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Psicologia USP

On-line version ISSN 1678-5177

Psicol. USP vol.2 no.1-2 São Paulo  1991

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Sistemas lógicos e sistemas de significação na obra de Jean Piaget

 

Logical systems and significance systems in the work of Jean Piaget

 

 

Zélia Ramozzi-Chiarottino

Professora titular do Instituto de Psicologia da USP

 

 


RESUMO

Partindo da idéia segundo a qual a teoria de Piaget é uma teoria do conhecimento, procuramos mostrar que a única maneira de atingir o núcleo essencial de seu pensamento e considerar a dicotomia por ele mesmo estabelecida, no que concerne à aquisição de todo conhecimento possível: os sistemas lógicos e os sistemas de significação.

Descritores: Sistemas lógicos. Sistemas de significação. Jean Piaget.


ABSTRACT

Accept, as a starling point, that Piaget's theory is a theory of knowledge. Then try to establish that the only way to reach the cote of Piaget's thought is to consider (as he himself did) the logical systems and the significance systems — a dicotomy related to the acquisition of every possible knowledge.

Index terms: Logical sysyems. Significance systems. Jean Piaget.


 

 

Partimos da idéia segundo a qual a teoria de Piaget é uma teoria do conhecimento de inspiração biológica, como ele mesmo tantas vezes repetiu.

Para compreender o que essa teoria tem de mais profundo, não devemos tentar examiná-la à luz das dicotomias tradicionais como: racionalismo - empirismo; idealismo - realismo ou coisa que o valha.

Acreditamos que a única maneira de atingir o núcleo essencial do pensamento de Piaget é considerar a dicotomia por ele mesmo estabelecida, no que concerne à aquisição de todo conhecimento possível: os sistemas lógicos e os sistemas de significação. Essa dicotomia é a única que pode satisfazer a epistemé biológica.

Piaget diz, por exemplo, que a capacidade de assimilar um dado a uma estrutura é inata (poderia, então, ser visto como um racionalista). Todo conhecimento parte da ação (poderia ser visto como empirista); acredita que conhecemos o mundo de acordo com nossas possibilidades e não tal qual ele é na realidade (poderia ser confundido com um idealista); o sujeito do conhecimento é biológico (poderia ser confundido com um realista - reducionista).

Falar de uma episteme biológica é difícil, nos primeiras tentativas, porque necessitamos do conceito de organismo. Ora, o ser humano não está habituado a falar do orgânico sem saber exatamente o que isto significa. Uma das grandes dificuldades que enfrentam aqueles que estudam a teoria piagetiana é a de poder compreender que ele sempre falou de um organismo apenas parcialmente conhecido pela ciência de hoje; daí a necessidade da criação de modelos. Entre a concepção de orgânico das ciências biológicas contemporâneas e aquela utilizada por Piaget, há uma lacuna ou um "espaço vazio"que ele "preenche" por intermédio de seus modelos. Em física, os modelos silo criados quando não há possibilidade de observação direta dos fenômenos. Ora, na teoria de Piaget dá-se o mesmo com o "orgânico". Porque não podemos observar diretamente os fenômenos, ele cria os modelos. Daí o "agrupamento", o grupo INRC e a abstração reflexiva, modelos do funcionamento das estruturas mentais e do processo de cognição.

A consciência humana, no entanto, segundo Piaget, não precisa ser explicada através de um modelo, ela é, diz ele, realmente constituída de sistemas de significação.

... La conscience constitue un système de significations dont les deux notions centrales sont la désignation et l'implication entre significations: par exemple 2 n'est pas cause de 4, mais sa signification, implique que 2 + 2 = 4(1).

L'hypothèse est alors que le caractère le plus général des états conscients, est d'exprimer des significations et de les relier par un mode de connexion que nous appellerons faute de mieux l'implication signifiante(2).

O fato de que Piaget assim tenha caracterizado a consciência não foi, até hoje, a nosso ver, suficientemente apreciado.

As consequências de tal caracterização são igualmente importantes para compreensão da Epistemiologia Genética e para aplicação prática de algumas de suas noções.

Do ponto de vista teórico, somos obrigados a perceber o lugar da inferência na teoria do conhecimento de Piaget.

Diz ele: "Quando a criança se serve de um cartão para puxar um objeto para si, pode-se dizer que, para ela, a situação "colocado sobre um suporte" implica a possibilidade do objeto ser trazido, mas se (e somente se) ele (objeto) está bem colocado "sobre" o suporte e não ao lado ou próximo (Piaget, 1977 p. 177). A isso designaremos "implicação significante". Nesta forma elementar, a implicação significante é bem anterior à inclusão (que supõe a extensão) e a todos os encaixes constituídos dos "agrupamentos" ou estruturas das operações concretas, sem falar das implicações proposicionais. Em suma, em todos os níveis, diz Piaget, a inferência se encontra no centro dos processos cognitivos, bem antes da elaboração das estruturas operatórias.

O importante a considerar é que a capacidade que o ser humano tem de inferir é responsável pela construção dos sistemas de significação que constituem a consciência. O sistema de significações é formado pelas implicações destas significações. Essa capacidade de estabelecer relações é mais ampla que a capacidade de operar (em termos de classificar e ordenar); está presente no conhecimento científico, é óbvio, e no conhecimento não científico, onde as relações são estabelecidas entre conteúdos (coisas, fatos, etc.) em certo espaço em que objetos "servem para", numa determinada sequência (que originará a noção de tempo), imprescindível para o estabelecimento dos vínculos causais legalóides da vida de todo dia.

Estas relações não são lógico-matemáticas necessárias e universais. Ao contrário, são contingentes, estabelecidas na experiência vivida. O conhecimento científico é essencialmente constituído de sistemas lógicos que são, ao mesmo tempo, sistemas de significação, sobretudo para os cientistas.

No saber popular, no campo afetivo, na atribuição de significado em geral, aquilo que conta para o sabedor, para aquele que sabe, que interpreta as circunstâncias em que vive, que sofre ou que se sente feliz, é o conteúdo. No entanto, subjacente aos sistemas de significação do conhecimento não científico há uma estruturação lógica que é, aliás, a condição de sua existência, mas que permanece inconsciente para o indivíduo comum, (Condição de existência na medida em que é a expressão do funcionamento das estruturas mentais.)

Poderíamos dar inúmeros exemplos deste funcionamento, desde os primeiros meses de vida até a maturidade. Copo, prato, talheres, formam um sistema de significação para uma criança bem pequena. Se ela vê sua mesinha pronta, com toalha e demais objetos para a refeição, conclui, a partir deste sistema de significações, "Vou comer". Se a comida não chega, ela chora. (É claro que prato, talheres, etc. foram assimilados anteriormente a seus esquemas motores como aquilo que "serve para"; é a designação). O saber cozinhar implica vários sistemas de significação, sem se confundir com o conhecimento científico, necessário e universal. É óbvio que há em jogo regras estabelecidas, não leis necessárias e universais. Assim, saber que colocando fermento no bolo, ele cresce, não se compara, segundo Piaget, a saber, com certeza, que o sol vai nascer amanhã... ou que no ano 2062 o cometa Halley passará de novo junto à Terra... No primeiro caso, trata-se de um sistema de significação onde predominam as noções espaço-temporais e as relações causais de tipo legalóide; no segundo, de um sistema físico com leis expressas em linguagem lógico-matemática.

Se considerarmos essa dicotomia, podemos por fim a celeuma saber popular x saber científico. Compreenderemos que ambos são aspectos diferentes da mesma capacidade humana de inferir. O importante é que não se venha dizer que se traia de uma "outra lógica". A lógica é sempre a mesma, ela não é estranha à vida: é expressão das coordenações operatórias necessárias à ação, diz Piaget. Inclusive a revolucionária...

Outra decorrência da distinção entre sistemas lógicos e sistemas de significação é a eliminação da confusão entre as estruturas mentais do sujeito biológico e epistêmico e as estratégias de comportamento do sujeito psicológico, num determinado espaço e num dado tempo.

Compreender o lugar da inferência, como diz Piaget, no centro dos processos cognitivos, e admitir os sistemas lógicos e os sistemas de significação, nos dá margem a pensar na possibilidade de uma teoria do conhecimento contingente do homem comum que seria a base para a construção de uma Psicologia Social verdadeiramente científica.

As consequências para a prática da psicologia são importantes: em vez de dizermos apenas (em educação e reeducação) partir sempre da ação para a operação, devemos acrescentar: partir dos sistemas de significação da criança para chegar aos sistemas lógicos; quer dizer que se deve partir do vivido para chegar a explicação . Nós acreditamos que o conhecimento deve ser extraído, abstraído dos sistemas de significação quaisquer que eles sejam, mas que necessariamente tenham sido estabelecidos no espaço e no tempo e com relações causais, no mínimo, de tipo legalóide.

Em Psicologia Clínica (no âmbito das terapias analíticas), aconteceria o inverso, devendo-se partir das explicações do analisando para buscar as significações a elas subjacentes; só então estaríamos aptos a efetuar as interpretações.

A vida afetiva é toda ela constituída de sistemas de significação, daí nossa posição diante das terapias bio-químicas. Acreditamos que um sistema nervoso com problemas bioquímicos estabeleça trocas defeituosas com o meio, e que medicamentos possam "corrigir" as possibilidades de troca. No entanto, as construções significativas, os sistemas de significação, já estão construídos e precisam ser refeitos através de uma terapia que possa agir exatamente a nível das construções simbólicas, de um lado, e da interpretação racional, de outro. (É nesse momento que entra o aspecto cognitivo).

Há uma hipótese curiosa, para nós, a respeito da origem cognitiva das psicoses, que, uma vez comprovada, bem ilustraria algumas das relações entre a afetividade e a pura cognição. Uma criança de meses, com uma grande capacidade cognitiva, explica uma situação particular com a possibilidade que tem naquele momento e a generaliza, passando então a entender o mundo através de uma explicação que seria válida apenas para o momento. Daí os medos, as ansiedades, determinados pelas inferências ilegítimas.

Em outros âmbitos, como o da Antropologia, a distinção entre sistemas lógicos e sistemas de significação tem sido feita para explicar mais precisamente o sentido, por exemplo, dos mitos. Acreditam alguns antropólogos que muitas vezes não basta que se entenda as significações dos conteúdos dos mitos; é preciso que se estude suas várias versões. Só aí chegaremos a uma estrutura lógica que nos permitirá descobrir significações mais profundas que aquelas que nos davam os conteúdos das várias versões consideradas isoladamente.

É importante para a Psicologia a idéia piagetiana da distinção entre sistemas lógicos e sistemas de significação assim como é importante entender a consciência como um sistema de significações ligadas pela inferência.

Piaget teve a idéia. Cabe-nos explorá-la e fazê-la frutificar.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PIAGET, J. Biologie et connaissance. Paris, Gallimard, 1967.        [ Links ]

PIAGET, J. Réussir et comprendre. Paris, P.U.F., 1968        [ Links ]

PIAGET, J. Essai sur la necessité. Archives de Psychologie, Geneve, 45: 175,1977.        [ Links ]

 

 

1. Jean Piaget. Biologie et connaissanne, p. 63
2. Id. Réussir et comprendre, p. 240.