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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.2 n.1-2 São Paulo  1991

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

O inconsciente na interação humana

 

The unconscious in the study of human interaction

 

 

Sueli Damergian

Profª Doutora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

Este trabalho mostra a necessidade de inscrever o objeto da Psicologia Social na mais ampla tradição da disciplina, fundamentada na escola da Gestalt, na teoria de Kurt Levin, que permitem concebe-lo em sua totalidade e complexidade, o que não tem sido feito por algumas tendências dominantes na Psicologia Social brasileira. Traz a proposta de valorização do inconsciente no estudo da interação humana, o que pressupõe um objeto abrangente para a Psicologia Social. Sem um tal objeto não é possível a construção de teorias que possam conter em seu bojo o estabelecimento de relações entre o destino individual e os destinos da sociedade, a compreensão da vida social através da participação de sujeitos psicológicos e concretos que habitam suas estruturas. Essa proposta leva a uma concepção de objeto da Psicologia Social fundamentada na tradição a que nos filiamos e que nos permite colocá-lo em consonância com a Psicanálise, chegando-se a um modelo de sujeito epistêmico em Psicologia Social. Indica um caminho para o exame da troca afetiva, implícita na interação psicológica, onde o inconsciente adquire um papel fundamental e torna viável um modelo de saúde mental.

Descritores: Psicologia Social. Inconsciente. Interação humana.


ABSTRACT

This report shows the necessity of enrolling the subject about Social Psychology in the most extensive tradition of the subject matter, which is established according to Gestalt School, in Kurt Lewin's theory, which allow it to be conceived in its totality, and complexity that has not been done by some dominant tendencies in the Brazilian Social Psychology. The work brings the proposal of valorization of the unconsciousness in the study of the human interaction, which pressuposes an included subject for the Social Psychology. Without this subject il is not possible to lay down theories which can contain in their swelling the establishment of the relations between the individual destination and the society destination, the comprehension of the social life through the participation of the psychological and concrete subjects that inhabit their structures. This proposal takes to a conception of object of the Social Psychology laid down in the tradition in which we are in and also allow us to put it in harmony with Psychoanalysis, reaching a model of epistemic subject in Social Psychology. It indicates a way to an exam of affective exchange, implicit in the Psychological Interaction where the unconsciousness acquires an important role and to make possible an ideal of mental health.

Index terms: Social psychology. Human interaction. Unconsciousness.


 

 

"Se não conseguimos ver as coisas claramente, pelo menos veremos claramente quai são as obscuridades."

S. Freud. " Inibições, Sintomas e Ansiedade."

 

Tão antiga quanto a obra dos grandes poetas, dramaturgos, romancistas e filósofos é a indagação sobre a natureza humana, sobre o comportamento social dos homens, sobre as diversas formas pelas quais eles interagem, tecendo sua trama de paixões e ódios que compõe o cenário da vida social cotidiana. De há muito os homens se preocupam em tentar compreender e desvendar as coisas humanas. Antiga é a preocupação, antiga e a dificuldade.

Impõe-se ao investigador da natureza humana a necessidade de exercer um desdobramento sobre si mesmo. É como se tivesse que direcionar seus dois olhos para fora, para observar o fato, para olhar a experiência e tentar captá-la. E, ao mesmo tempo, cuidar para que o olho esteja atento, olhando o olho que olha. Afinal, não podemos nos esquecer que somos o olho que observa e o que é observado, o que investiga e o que é investigado, que temos que olhar para dentro de nós e para fora, ou seja, somos sujeito e objeto de nosso próprio trabalho.

Contudo, a dificuldade da tarefa não pára por aí, ao contrário, apenas se inicia. Somos muitos olhando para os mesmos fatos e investigando os mesmos objetos. Daí, os desacordos, brigas, choques, orgulhos feridos, ataques mútuos entre as várias correntes que se degladiam, procurando cada qual impor a sua verdade como a verdade absoluta sobre o ser humano. Fica difícil, muitas vezes, a cooperação, o respeito à posição do outro, que poderiam levar a um enriquecimento que o sectarismo e a cisão não podem oferecer.

Estamos diante de questões relativas à complexidade do objeto da Psicologia. Os mesmos desejos, impulsos, ódios ou paixões que investigamos fora de nós movem, silenciosa e continuamente, nossas próprias ações. Assim, os desacordos entre as diversas posições que tentam explicar a natureza humana refletem também, de uma forma ou de outra, o quanto é difícil e complexa a compreensão do ser humano c, principalmente, a convivência entre os seres humanos.

Já se tornou lugar comum dizer que o homem avançou muito em suas conquistas tecnológicas e científicas, não se limitando apenas ao próprio planeta em que habita. Naves tripuladas atravessam o espaço sideral rumo ao desconhecido, realizando proezas antes imaginadas apenas na fantasia dos ficcionistas. Já o desconhecido que habita em cada um de nós não pode ser desvendado por nenhuma nave que queira tomar posse de seus territórios e instalar neles algum instrumento que permita controlar e prever o seu funcionamento.

Não somos realmente senhores dentro de nosso próprio mundo interno, urna vez que a zona nebulosa e vaga do inconsciente ainda é um desafio ao nosso conhecimento o a nossa paciência de exploradores. E temos que conviver com mais esta ferida narcísica: enviamos naves tripuladas à Lua e temos dificuldade em conhecer o que se passa dentro de nós mesmos. Dificuldade em tripular os nossos sentimentos e conviver com nossos semelhantes.

Se no século XIX a esperança e a crença no progresso social, na fraternidade humana embalavam os sonhos da humanidade, a desilusão, o medo da destruição total, a inquietação, a miséria crescente fazem parte do pesadelo cotidiano que caracteriza o final do século XX. Foi em vão que esperamos por uma vida mais fraterna, mais justa, mais saudável. A ciência e a tecnologia, ao invés de proporcionarem conforto e segurança, nos ameaçam a todo momento com a parafernália destrutiva que são capazes de criar. A liberação política não favoreceu a justiça social, a estabilidade, a autonomia. As instituições sociais mais e mais reprimem e aprisionam o homem. As pulsões de vida travam uma batalha desesperada contra as tendências a agredir e destruir.

É neste cenário, nada animador, que se desenrolam as interações humanas, objeto da Psicologia Social. Quando se fala em interações humanas pensa-se nas relações que o indivíduo estabelece com os outros indivíduos, na constituição dos agrupamentos e vínculos humanos c, inevitavelmente, na personalidade de cada um que está envolvido na situação. Não há como desconsiderar a emergência de desejos, fantasias inconscientes, pulsões de vida e morte quando nos debruçamos sobre a vida social e tentamos compreender como os homens convivem entre si. Para tanto, temos que estar atentos. É preciso cuidar para que nosso desejo onipotente de tudo saber e controlar não nos cegue para os fatos que apontam em direção aos aspectos obscuros do ser e que aparecem revestidos de uma simplicidade enganadora.

O reconhecimento do lugar do inconsciente nu interação humana e a fidelidade aos clássicos da Psicologia Social

É com o mesmo espírito mostrado por Freud — não simplificar e não reduzir a complexidade do problema com que trabalhamos — que buscamos recuperar o objeto da Psicologia Social em sua complexidade, e abrangência.

Falamos em recuperar porque a interação humana não tem sido considerada em sua totalidade e complexidade, principalmente por parte de algumas tendências dominantes na Psicologia Social brasileira, como o cognitismo experimentalista e a abordagem calcada no materialismo dialético. Recuperar tem também o sentido de mostrar que uma volta aos clássicos da Psicologia Social, a escola da Gestalt e a Kurt Lewin nos leva de encontro ao indivíduo considerado em sua totalidade. Neles, encontramos uma concepção de campo onde todos os elementos se fazem presentes, os internos e os externos. Os conscientes e os inconscientes. Cada qual com sua parcela de influência no comportamento psico-social.

Nossa leitura dos clássicos nos levou para um caminho diferente daquele trilhado por essas tendências dominantes na Psicologia Social brasileira. Apontou-nos para a necessidade de integrar e não separar e opor, de explicar e compreender e não apenas descrever, de procurar a qualidade e não a quantidade. De olhar para a interação humana com mais profundidade e amplitude, o que nos leva a recorrer, entre outras, às contribuições da Psicanálise.

Não é o que encontramos no cognitismo experimentalista aqui praticado, por exemplo, em que o psicológico é visto apenas como cognição e em função de dados acessíveis à consciência, numa busca de predição e controle do comportamento social, voltada para uma tecnologia social, tecnologia do comportamento humano, na verdade. O inconsciente é deixado de lado e quando se faz referência aos estados internos, eles dizem respeito apenas ao nível superficial da cognição, desde que inferido logicamente e redutível a relações de causa e efeito.

Também não encontramos essa busca da compreensão da totalidade e da complexidade do comportamento social numa visão que se pode considerar sociologizante, baseada no materialismo dialético, fio condutor e interpretativo das relações sociais. O Psicológico acaba cedendo espaço ao social, ao problema de luta de classes. É verdade que as determinações que agem sobre o ser humano decorrem do contexto social e histórico em que ele vive. Só que elas dizem respeito a um tipo de determinações — as externas — relativas às pressões e restrições presentes no meio social. E as forças internas, o elemento fantasmático do inconsciente, será que não se fazem presentes na interação humana, na estruturação do vínculo social? A teoria marxista centrou-se sobre a lógica das situações históricas e esqueceu-se da importância do psíquico, do fantasmático. Assim, não levou em conta um aspecto fundamental das estruturas sociais, que é o fato de elas não existirem em si, como fetiches. Ao contrário, as estruturas são habitadas pelos homens, que as modelam, dando-lhes forma e significação, fazendo-as vivas, plenas de emoções, carregadas de amor e de ódio.

As limitações deste trabalho não nos permitem um aprofundamento dessas questões. Do mesmo modo, não podemos nos estender muito quanto as contribuições dos clássicos para uma concepção abrangente do objeto da Psicologia Social. Assim, nós nos limitaremos a apresentar algumas considerações que ilustram uma outra forma de investigar esse objeto, KOFFKA (1975) diz que a Psicologia Social pode ser perfeitamente quantitativa sem perder seu caráter de ciência qualitativa, ou seja, de explicação do fenómeno. Ao destacar a questão da qualidade, a Gestalt leva-nos a refletir sobre a qualidade da interação psicológica, aspecto fundamental para a Psicologia Social. Afinal, sobre qual qualidade se exerce a interação humana? Ela é saudável ou não? A mera descrição de dados conscientes não pode dar conta desta questão.

KOFFKA diz também que a Psicologia da Gestalt é integradora e não pode ignorar os problemas da interação mente-corpo e vida-natureza. Também não pode, segundo ele, aceitar que tais domínios do ser estejam separados entre si por abismos intransponíveis. A proposta integradora da Gestalt permite-nos desenvolver a idéia de integração interno-externo e incluir o inconsciente em nossa investigação acerca da interação humana.

Seguir a tradição gestaltista e lewiniana implica em se ter visão de campo acerca do comportamento psicossocial. Ora, o que é uma visão de campo senão aquela que inclui todos os dados do campo presentes no aqui-e-agora e no Ego enquanto subsistema desse campo. KOFFKA (1975) observa que "as forças que determinam o comportamento talvez não sejam sempre aquelas que acreditamos serem as determinantes". Prossegue afirmando que a Psicanálise trouxe à luz muitos fatos do tipo: fazemos algo para agradar a x, como pensamos, mas na realidade é para nos vingarmos de y, que não precisa estar presente nem em nossos pensamentos. A Psicanálise, diz Koffka, quer provar que todas as nossas ações são desse tipo, redutíveis a muito poucas forças subterrâneas, totalmente ausentes de nosso campo comportamental.

A respeito dessas forças subterrâneas, Koffka observa que por mais que os psicanalistas tenham exagerado, é verdade que esse tipo de ação existe. Alem disso, ela não pode ser explicada em termos de meio comportamental e é tão semelhante ao resto do comportamento que necessita de um conceito explicativo comum. Diz que o conceito de campo é aplicável a todo o comportamento, o que leva a pensar, mais uma vez, que o campo psicológico não pode ser idêntico ao campo comportamental. Ou seja, uma coisa é o meio em que o organismo se comporta, ou melhor, com o qual interage e outra coisa é o campo psicológico que define esse organismo. Koffka assinala mesmo que a totalidade de nosso comportamento não é explicável em termos do meio comportamental, quer dizer, do externo ao organismo. Uma tal consideração torna possível incluir os aspectos inconscientes como elementos a serem considerados por uma teoria que se ocupe do campo psicológico.

KÖHLER (1968), ao criticar as posições empiristas sobre o entendimento social, abre-nos uma perspectiva importante a ser explorada. Ele nos mostra que o cognitivo, o comportamento como esfera de fatos perceptivos, deve ser nosso primeiro sujeito quando investigamos o problema do entendimento social. Mas não o único nem o exclusivo. Há então outros aspectos da organização interna que podem e devem ser considerados. Esses aspectos dizem respeito à esfera afetiva, que o próprio Köhler chama de causas ocultas, ao fazer referência a Psicanálise. Ora, a Psicologia Social de chamada tendência cognitiva, inspirada na teoria da Gestalt, tomou os fatos perceptivos do comportamento como primeiro e último objeto a ser considerado no entendimento social.

Queremos acentuar, então, que a forma como os gestaltistas colocaram o problema do comportamento, do entendimento social, não é exclusivamente cognitivista. Melhor ainda, eles não pretendem que a cognição seja a única forma de se entender e explicar os processos mentais e a interação humana.

Uma argumentação de KÖHLER (1968) ilustra bem essa posição dos teóricos da Gestalt, Ele discute a questão do tempo e da repetição sobre sua própria apreciação acerca da "overture" de Tristão e Isolda. Ao afirmar que já se impressionava tanto quanto antes com a melodia, Köhler explica que suas mudanças de reação estão de acordo com sua tese principal, que diz respeito às relações compreensíveis entre fatos experimentados e reações internas experimentadas. Quando, com os mesmos estímulos o material experimental muda, diz ele, já não podemos esperar que as mesmas reações pareçam naturais e adequadas.

Köhler vai mais além em sua argumentação e inclui os problemas relativos à personalidade. Diz que em uma personalidade modificada pelo tempo os efeitos de uma determinada melodia não podem ser os mesmos. Acrescenta a observação de que os efeitos dependem não apenas de determinadas causas, mas também das características do sistema em que ocorrem os efeitos. Sua explicação não é, assim, fragmentária. Ao contrário, a personalidade é tratada como um sistema onde todos os elementos têm a ver com os efeitos produzidos.

Köhler não para aí. Ao exemplificar questões relativas ao estado de ânimo e às mudanças súbitas que nele possam ocorrer, diz que causas ocultas podem estar em jogo. Afirma, então, que quando estamos irritados e descobrimos alguma coisa que esteja mais ou menos de acordo com nossa disposição interna, o objeto em questão imediatamente aparecerá como uma causa de todo adequada a um acesso de raiva. Entretanto, diz ele, nossa reação pode ser muito exagerada graças às causas ocultas que nos tornaram irritadiços muito antes dessa ocasião.

Köhler mostra que duas lições podem ser tiradas desse exemplo. Em primeiro lugar, ele confirma o ponto de vista de que, conquanto relações dinâmicas possam ser experimentadas, os efeitos também podem ser patentes quando nenhuma experiência aponta suas causas. É preciso levar em conta que, a princípio, o estado de ânimo não se refere a algum objeto em particular e é necessário adivinhar-se qual sua causa oculta. A segunda lição, diz ele, é que ambas as espécies de determinação podem ser unidas em um único fato, Köhler não nega nem a possibilidade das causas ocultas serem as provocadoras de determinadas reações e nem a causação experimentada como determinação.

Entretanto, não é apenas na Psicologia da Gestalt que encontramos formulações que se constituem em verdadeiras aberturas para se considerar a importância do inconsciente, do fantasmático, das motivações internas, na interação humana. A teoria de campo de Kurt Lewin oferece-nos elementos que nos permitem pensar que o sujeito com o qual Lewin trabalhou aproxima-se muito mais de uma concepção de sujeito epistêmico em Psicologia Social. Tal idéia tem o valor de oferecer as condições de possibilidade para o trabalho com o sujeito sócio-psicológico e sujeito psíquico, aspectos que discutiremos mais adiante.

Alguns argumentam que Lewin viu mais o campo como determinante e não o sujeito como fonte de decisão. Se procurarmos com atenção em sua obra veremos que isto não é verdade. Ao discutir a questão das forças ambientais e o desenvolvimento individual, LEWIN (1975) faz observações que consideramos essenciais para nossa problemática. Ao tratar das propriedades fundamentais das forças de campo através do conceito de valência, diz que há uma variação em extremo quanto à direção que a valência incute ao comportamento da criança. Esta variação não se dá ao acaso, mas está de acordo com o conteúdo das carências e necessidades da criança.

Ao comentar a imensidade com que as valências podem atingir o comportamento da criança e assim influenciá-lo, Lewin destaca que os fatores internos, especialmente o estado real momentâneo das necessidades da criança têm um significado decisivo na determinação da intensidade das valências. Como vemos, Lewin não concebe que as forças externas, do campo, agem sobre o indivíduo como se este fosse uma massa amorfa, a ser moldada pelas valências do campo.

A abrangência da concepção lewiniana aparece em muitas outras situações. Ao discutir questões relativas à problemática temporal, LEWIN (1970) afirma que à medida em que o indivíduo amadurece e adquire autodomínio ele separa mais nitidamente seus desejos das expectativas. Seu espaço de vida diferencia-se em nível de realidade e diversos níveis de irrealidade, como fantasia e o sonho.

Aí está, portanto, sem nenhum mistério, a inclusão do inconsciente na concepção lewiniana. Se Lewin considera que as fantasias, os níveis de irrealidade fazem parte do espaço de vida, deve-se pensar a totalidade dos acontecimentos possíveis para o indivíduo num dado momento (= a espaço de vida) incluindo-se também aqueles acontecimentos que dizem respeito ao dado inconsciente. Ou seja, o inconsciente (níveis de irrealidade, fantasias) está representado, presente no espaço de vida. Nesse sentido, qualquer tentativa de prever e controlar o comportamento arrisca-se a ser uma empreitada vil. Assim, esses dados de irrealidade do espaço de vida devem ser considerados em termos de influência que podem ter na interação com o meio.

Lewin tem muito mais a nos oferecer. Basta que se faça uma leitura atenta e cuidadosa de sua obra.

Em um artigo de Annita de Castilho e Marcondes CABRAL (1966), a maior e mais brilhante representante da tradição gestaltista e lewiniana no Brasil, também encontramos apoio para nossas suposições. Fundamentalmente, para a possibilidade de se encontrar na teoria conceitos que, ao invés de se incompatibilizarem com a Psicanálise, acabam por possibilitar uma compreensão mais acurada de alguns fenômenos da interação humana. Vamos repetir aqui apenas a questão maior colocada por A. Cabral, ao destacar a dificuldade que o chamado psicólogo acadêmico tem para assimilar a contribuição da Psicanálise. A questão proposta é a seguinte: "será que a linguagem dos afetos é menos científica que a linguagem dos dados perceptuais apenas porque esta se vale de um pequeno aparelho e de um material visual estimulador e a primeira tem como matéria-prima as paixões humanas?

Esta é também a questão que nos interessa, pois trazer uma tal preocupação a nível de consciência em lermos da Psicologia Social parece-nos o mesmo que "buscar para a ciência psicológica outra alternativa que a de isolar sistemas como uma rivalidade retinal", como afirma A, Cabral, Ainda citando suas palavras: "evitar fatos e problemas não será jamais solução definitiva para o pensamento científico".

Parece-nos, então, que determinadas abordagens da Psicologia Social tem procurado evitar falos e problemas, uma vez que do trabalho desenvolvido pela Psicologia da Gestalt, por Kurt Lewin e por Fritz Heider em sua teoria das relações interpessoais, ficaram apenas com os aspectos conscientes de suas concepções.

A preocupação com um modelo de saúde mental e as relações entre o destino individual e o destino da sociedade.

Não pretendemos evitar fatos e problemas nem negar o que não pode ser desvendado ao investigarmos a interação humana como um aspecto central da Psicologia Social. O maior problema, aqui, é como concebê-la, uma vez que dois níveis, duas ordens de acontecimentos estão envolvidos: o individual (psicológico) e o social. É preciso ter presente, então, o que é do indivíduo, o que é do meio e como se dá a interação dos dois pólos.

Há riscos evidentes toda vez que se chega a uma tal problemática: o de psicologizar o meio ou o de sociologizar o indivíduo. É grande a sedução para que se chegue a um tal estado. Também e grande o risco de se cair numa circularidade que desemboca num impasse: ou indivíduo, ou meio. E a discussão é sobre a interação.

É preciso pensar, então, o que é do indivíduo, enquanto organismo, e o que é do social. O modelo de interação que propomos é baseado na troca entre organismo e meio. Ele se apresenta como um processo de construção regulada, utilizado por Piaget para explicar a adaptação do ser humano ao meio.

Estamos tomando de Piaget a idéia da troca entre o organismo e o meio. Sua teoria nos oferece um modelo que poderia ser análogo ao que estamos procurando. Ele é dinâmico, penetra na "caixa preta" e nos permitiria penetrá-la, no sentido psicanalítico, para investigar o que não é tratado sobre a interação. É um modelo isomórfico que estamos propondo. Os conteúdos que temos interesse em investigar são da Psicanálise, dizem respeito a interação afetiva.

Conceber a interação humana como troca leva também a conceber a subjetividade como resultante de um processo de construção, de troca entre o organismo e o meio, basicamente, entre o bebê e a mãe. Assim, pensar o que é do indivíduo (o bebê, no caso) enquanto organismo leva a pensar nas condições mínimas necessárias para que possa se estabelecer a interação. Como ponto de partida, a concepção de Waddington: o genoma como um sistema ativo de "respostas" e reorganizações, um sistema capaz de enfrentar o meio, utilizar seus recursos para processar as informações que recebe. Isto é muito diferente de uma "tabula rasa". Ao contrário, temos um organismo vivo, ativo, dinâmico, que "responde" interna e externamente às informações recebidas do meio.

É preciso, então, que o organismo disponha das condições mínimas necessárias para que se possa estabelecer a relação com o meio, inicialmente representado pela mãe. Entre essas condições necessárias está a ausência de deficiências neurológicas que comprometam a assimilação do dado externo, que o impeçam de estabelecer a relação com o meio-objeto-mãe. Assim, dispondo de condições internas, digamos "normais", com possibilidades de se desenvolver e encontrando um meio favorável o indivíduo poderá, presumivelmente, construir sua identidade de forma bem estruturada e saudável.

Entretanto, interno e externo tem que estar presentes. As condições do meio também precisam ser adequadas a fim de propiciarem: a construção da subjetividade. Quando o organismo-sujeito é dotado de condições para o crescimento e tem que enfrentar um meio adverso, as vicissitudes pelas quais terá que passar poderão deixar marcas profundas, verdadeiras fraturas em sua personalidade. Neste caso, o crescimento pode ser tolhido em suas possibilidades e o sujeito pode não alcançar o estado de integração que suas condições lhe permitiriam, Ele pode até superar um meio adverso. O difícil e supor que isso não deixará lacunas em sua personalidade.

Por outro lado, o meio, por favorável e adequado que seja, pode compensar, até certo ponto, uma estrutura de personalidade mais frágil, estimulando o crescimento. O que ele não pode, de qualquer forma, é proporcionar um desenvolvimento que vá além daquilo que o organismo é capaz de receber. Isto significa que quando existem limitações internas, constitucionais mesmo, elas podem ser atenuadas mas não ultrapassadas por um meio extremamente favorável.

A importância de pensar a interação enquanto troca é, do ponto de vista da Psicologia Social, a possibilidade de contribuir para uma vida mais saudável. Podemos levar em conta um organismo capaz, ou não de processar a informação que recebe do meio. Capaz também de modificar o meio à medida em que processa essa informação e que modifica a si próprio. Não é possível, neste processo de interação, excluir ou desvalorizar nenhum dos elementos em questão: indivíduo e meio têm assegurados seu lugar, sua especificidade e sua importância sem que um se reduza ao outro. Isto equivale a admitir que o psicológico está presente no social, que o biológico está presente no psicológico e que o social está presente no psicológico. Entretanto, trata-se de ordens diferentes e uma não pode explicar a outra, como aponta MERLEAU-PONTY (1975), ao tratar da ordem vital, da ordem humana e da ordem social.

Como já dissemos, a nossa ênfase está no aspecto afetivo da interação. Acreditamos que um modelo de saúde mental precisa ser estabelecido e a Psicologia Social deve se preocupar com isso. Quais seriam então as condições para a troca afetiva, pensando-se em um modelo de saúde?

Antes de mais nada, é preciso considerar que o afetivo, para Piaget, é o aspecto energético da estrutura. A situação da troca afetiva é então a seguinte: temos o bebê e a mãe. Do ponto de vista do bebê, é preciso que ele lenha não apenas as condições da troca possível (a forma), mas também a condição para a troca em termos dos sistemas de significação. Esta condição, que e o energético, nós entendemos como a pulsão de vida. Que ela seja mais forte que a pulsão de morte e permita o impulso para o objeto, que garante a sobrevivência.

E a mãe, o que representa? Desta perspectiva, a mãe é não apenas o objeto externo, é o energético positivo, o ponto fixo para que o bebe construa seu mundo interno e sua identidade. Cabem aqui os conceitos de valência e de espaço de vida de Kurt Lewin, A mãe, enquanto ponto fixo que deve ser, se situa no espaço de vida do bebê como representante de uma valência positiva. Oferece a ele o objeto bom de que fala Melanie Klein, necessário para a construção do núcleo do ego. Pensamos ser este o modelo de saúde, construído sobre uma relação amorosa. Evidentemente, não há só amor, só pulsão de vida. Há ódio, agressividade, medo, inveja, sentimentos humanos, próprios do ser humano e participantes das vicissitudes de seu processo de crescimento.

Uma vez estabelecidas as condições para a troca, das quais depende um inconsciente saudável (psicanaliticamente falando-se, obviamente), entramos em um segundo momento dos sistemas de significação, que diz respeito aos conteúdos. A partir daqui lemos que considerar que existe uma troca entre o indivíduo e o meio e cada elemento da relação entra com o peso, a sua participação. A mãe aparece agora como uma segunda função (a primeira é o ponto fixo, a valência positiva, a capacidade da maternagem), que é a de transmissora de conteúdos. Neste sentido, ela é veiculadora da ideologia, representante do social, inserida em sua história, localizada socialmente.

O que foi dito não significa que aquilo que for oferecido pela mãe, enquanto conteúdo, e internalizado pela criança, não vá fazer parte de seu mundo interno, das fraturas de sua subjetividade. Vai e, e mais que isto, ajudará a compor um padrão de interação, a reforçar sentimentos, seja de onipotência, inveja, destrutividade ou cooperação. Contribuirá também para o desenvolvimento de uma personalidade mais integrada e saudável, ou mais desintegrada e destrutiva. O importante é que se retenha o quanto é vital o estabelecimento de uma relação amorosa, que é inscrita nas primeiríssimas linhas da biografia do bebe. O sofrimento psíquico começa já da impossibilidade de se estabelecer essa primeira relação amorosa. Suas conseqüências, como sabemos, são dolorosas e terríveis, tanto para o indivíduo quanto para a sociedade.

Assim, se concebemos o indivíduo como um organismo que, a nível de genoma, recebe condições para efetuar trocas com o meio, essas trocas envolvem o organismo como um Lodo. Não um organismo fragmentado ou empobrecido. Ou seria possível interagir com o meio deixando o inconsciente de lado? Onde? Como?

Na verdade, quando falamos na possibilidade de trabalhar com um conceito mais limitado ou mais complexo e rico de natureza humana e interação, queremos ir mais além nesta discussão. Uma proposta no sentido que estamos introduzindo neste trabalho é discutida por DUVEEN E LLOYD (1986). Em um artigo sobre o significado das identidades sociais, os autores dizem que o limite da construção do conceito de identidade social está em que ele não descreve a identidade psíquica dos indivíduos. Deste modo, ele não nos leva a uma compreensão da excepcional idade, da singularidade dos seres humanos. Os autores observam então que Piaget faz uma distinção entre sujeito epistêmico e sujeito psicológico. Seu objetivo é destacar o sentido no qual sua teoria do processo de cognição se preocupa com as comunidades entre os indivíduos e não com suas diferenças.

Duveen e LLoyd assinalam que as identidades sociais aparecem como intersecção entre comunalidades e diferenças. Eles propõem, assim, na discussão da Psicologia Social considerar o sujeito epistêmico, o sujeito sócio-psicológico e o sujeito psíquico.

Comunalidades e diferenças devem ser levadas em conta pela Psicologia Social quando trata da interação humana.

Pensamos, antes de mais nada, que a Psicologia Social deve trabalhar com um modelo de sujeito epistêmico. Deve fundamentar-se em um construto que reflita as comunalidades, ou seja, que contenha as possibilidades do ser humano enquanto espécie. Quais são, então, essas possibilidades comuns à espécie humana, presentes já no genoma?

São possibilidades que dizem respeito à capacidade que o ser humano tem para se desenvolver afetiva, cognitiva e socialmente. Referem-se à inteligência, a simbolização, ao crescimento afetivo-emocional, ao viver em sociedade, à utilização da linguagem, à capacidade de trabalhar e de modificar o meio. Mas um sujeito epistêmico não realiza nada disso. É um modelo, que aponta para as possibilidades da espécie. Através do modelo sabemos então o que é comum à espécie humana, até onde os indivíduos podem se desenvolver. Alguns evoluem até muito próximo das possibilidades contidas no modelo. Outros ficam aquém das mesmas, muito aquém. Isto depende do indivíduo e do meio. E da interação entre ambos. Aqui entram as diferenças.

Começa a ficar claro quem pode realizar as condições que o modelo de sujeito epistêmico contém. É o sujeito concreto, o sujeito vivido, aquele que participa da vida social. Esse sujeito vivido, concreto, atuante, não é, entretanto, apenas um sujeito sócio-psicológico. Ele é também um sujeito psíquico, tem uma vida mental, num mundo interior que não se resume aos aspectos conscientes. Tem, portanto, um inconsciente que carrega para a ação, que interfere em sua forma de ver o mundo, em suas relações. Negar isto é negar um dado das comunal idades presentes no modelo de sujeito epistêmico.

Estamos propondo, então, uma Psicologia Social que considere a existência do sujeito psíquico. A introdução do sujeito psíquico no âmbito da Psicologia Social, além de trazer outra dimensão à investigação de seu objeto de estudo, contribui para enriquecer a compreensão do sujeito sócio-psicológico. Seus comportamentos e suas interações podem ser entendidos com uma profundidade que não pode ser atingida quando se entende que tudo se passa ao nível da consciência. Das comunalidades passa-se para as diferenças, para o que caracteriza o ser humano como singular. Todos temos um aparato biológico, mental, condições para desenvolver a inteligência, apreender o mundo, condições para desenvolver a inteligência, estruturar-nos internamente e intervir na realidade. Mas não o fazemos da mesma forma.

A partir das primeiras relações de objeto, a internalização da mãe pelo bebe tem que ser pensada através das condições e necessidades do bebê no momento. Temos a mãe, a sua adequação ou não e temos as fantasias inconscientes dominantes em cada momento. Uma tal situação nos acompanha por toda a vida. A percepção que cada um de nós tem da realidade externa é única. Também única será nossa forma de reagir a ela. Cada um dá um colorido especial àquilo que percebe e internaliza do mundo externo. Isto é da esfera de atuação do sujeito psíquico, que possui suas particularidades, seu mundo interno atuante, suas fantasias inconscientes, suas repressões.

Pensamos que não é possível isolar o sujeito psíquico como se ele ficasse suspenso, entre parênteses, e participássemos da vida apenas como sujeitos sócio-psicológicos. Incluir o sujeito psíquico, por sua vez, é levar em conta o inconsciente que está presente nas ações do sujeito concreto, na experiência vivida do sujeito psicossocial. Não incluir o sujeito psíquico, o inconsciente, na análise da interação humana é, por outro lado, afastar-se da possibilidade de trabalhar com um modelo de sujeito epistêmico em Psicologia Social. É também reduzir a perspectiva do humano ao racional, egóico, consciente, observável.

Não podemos fugir à questão de estarmos tratando com a concepção mesma da natureza humana. Não é esta algo pronto, acabado, que se impõe ao meio desde o seu início. Não é também o resultado da imposição do meio sobre ela, como se pudesse ser reduzida a um vazio que o meio preenche. A identidade que caracteriza o ser humano é na realidade o resultado de um processo de construção, de desenvolvimento. É graças aos processos de interação entre o psíquico e o social que a natureza humana se desenvolve. Como diria Sartre, a existência realiza a essência, a possibilidade de ser humano. Nada aparece pronto e acabado. É na interação que a subjetividade se constrói e que o existir humano adquire significação.

Vale destacar que essa troca, essa relação homem-mundo tem por motor a necessidade e o desejo em busca de satisfação. É a busca da fonte de gratificação que permite um psiquismo aberto, uma saída da posição narcísica original em busca do objeto. E buscamos a gratificação quando sentimos a falta, a lacuna, a ausência, quando falhamos em nossa onipotência, em nosso sonho de nos auto-bastarmos. Ainda que narcisicamente feridos, abre-se uma brecha em nosso psiquismo e nós nos voltamos para fora, para o mundo externo, para o social, para o outro, o alter, o que é diferente de nós, que frustra e gratifica.

O objeto existe, mas está fora, no mundo, na mãe inicialmente. Assim, já na experiência primeira do sujeito (bebe), a ação do outro (mãe) carrega uma função. É uma ação significante e portadora de uma complexa rede de relações sociais. Pode-se dizer ainda que como ação significante, o outro carrega uma sentença em relação ao sujeito desejante. No instante da relação é ele quem frustra ou gratifica, ainda que esse outro, por ser portador de uma história, se transforma também em instrumento, em veículo de uma negação mais ampla, que muitas vezes carrega e repete como se fosse sua.

Trata-se aqui de trabalhar com os dois aspectos fundamentais do ser humano: o pulsional e o social. O pulsional põe em movimento o organismo em busca do outro, que pode reconhecer o desejo ou responder ao desejo de reconhecimento, como diz ENRIQUEZ (1990), ao apelo para ser confirmado em sua existência, em sua identidade. Não há como deixar de lado o peso do pulsional enquanto fundamento do psíquico e do social, movendo a dialética da relação do sujeito com o mundo externo.

Falamos no outro que pode frustrar ou gratificar (e que inicialmente é representado pela mãe), que pode ser veículo de uma negação (frustração) que repete, muitas vezes, como se fosse sua, de forma automática, inconsciente, na verdade repetindo modelos com os quais se identificam durante sua história.

Ao trabalharmos com o pulsional e o social, com o problema das identificações (introjeção de modelos) e da alteridade, não podemos deixar de lado a importância dos fenômenos psíquicos e fantasmáticos subjacentes à interação entre o individuo e o meio. O pulsional imprime movimentos ao organismo e, ao mesmo tempo, visa o outro. Como diz ENRIQUEZ (1990), torna-se indispensável recorrer-se à teoria das pulsões e dos processos identificatórios para se compreender as duas ordens de realidade: a realidade psíquica e a realidade social.

Se a teoria das pulsões e dos processos identificatórios fundamenta essas duas ordens de realidade é porque elas estilo intimamente relacionadas, em permanente interação, influenciando-se mutuamente, sem perderem sua especificidade. Existe a mente na sociedade do mesmo modo como existe a sociedade na mente. Através dos mecanismos de introjeção e de projeção, interno e externo, psicológico o social interagem. Amor e ódio, construção e destruição, inveja, gratidão, onipotência etc. permeiam a troca entre o indivíduo e o meio, atribuindo um colorido especial e fantasmático aos comportamentos humanos, carregados de aspectos inconscientes, afetivos.

São problemas aos quais a Psicologia Social não pode se esquivar, uma vez que ela trabalha com a interação humana, com os vínculos sociais. E, ao enfrentá-los, não o pode fazer sem a colaboração da Psicanálise, dos conceitos que ela oferece. A Psicologia Social pode perfeitamente trilhar esse caminho fecundo sem o risco de se descaracterizar, de se reduzir à Psicanálise. Não podemos sucumbir a uma crise de identidade que nos tome sectários, fechados, parciais no trato com nosso objeto de estudo, recusando as contribuições que possam nos enriquecer.

A Psicologia Social continua Psicologia Social. Mais profunda, mais aberta, inovadora. E temos as palavras de FREUD (1921), que contribuem para diminuir as ameaças de desintegração. Ele diz:

O contraste entre a psicologia individual e a psicologia social ou de grupo, que à primeira vista pode parecer pleno do significação, perde grande parte de sua nitidez quando examinado mais de perto... Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido ampliado das palavras e, ao mesmo tempo, também psicologia social.

Ao invés de encolher, a Psicologia Social se amplia. No dizer de ENRIQUEZ (1990), Freud nos oferece uma perspectiva inovadora, contribuindo para fundar uma Psicologia Social que leve em conta tanto os comportamentos reais como a realidade fantasiada, buscando o vínculo que une estes dois modos de realidade e que necessariamente passa pelo "outro" que intervém com bastante freqüência como modelo, objeto, apoio e adversário, como mostra Freud.

Esse "outro" é fundamental em nossa discussão. E o outro que está no social, no mundo externo e que no início é a mãe e depois se amplia em tantos outros que permeiam nossas experiencias de vida. E pode ser construtivo ou destrutivo, invejoso ou grato e colaborador, narcisista ou não e que já não está mais fora, no social. Passa para dentro, transforma-se em modelo, objeto de nossa vida mental, está na base das identificações que constituem o nosso ego e é colorido por nossas fantasias quando o internalizamos. E está na base de nossos padrões de interação, de como reagimos, muitas vezes, a determinadas pessoas, amalgamado a nossos conteúdos afetivos, inconscientes, que são projetados no social. Interno e externo em contínua interação, num ciclo que não se esgota.

Daí a importância da mãe fornecer um primeiro modelo, saudável, amoroso, construtivo para o bebe. Invocando Arquimedes, que ela forneça o ponto fixo em torno do qual o bebe se apóie para construir o seu universo, o seu mundo interno, a sua identidade.

A trajetória biográfica de cada ser humano em seu processo de desenvolvimento equivale à ação de Janus, com suas duas faces. Passado e futuro, começo e fim, vida e morte. Eros e Tânatos, as forças que se alternam, que se opõem e de cujo equilíbrio depende a própria vida, Eros, ou o predomínio da face do amor e da vida, possibilita a formação e internalização de um modelo construtivo de interação. Os conteúdos vivenciais experimentados a partir da relação dialética mãe-bebê e constituídos sob o predomínio de Eros tornam possível enveredar pelo caminho da saúde, da integração, do crescimento.

Quando a face que se volta para o bebê é a da morte, vestindo a máscara de Tânatos, o prato da balança vital pende para a destrutividade, com todos os seus disfarces. Tânatos, aqui, pode aparecer sob a forma da mãe inadequada. É o peso do objeto externo veiculando modelos destrutivos. A mãe extremamente frustadora, a mãe ambígua, a mãe filicida, incapaz de exercer a função de maternagem...

Frustração bem dosada é condição de desenvolvimento. Frustração excessiva é paralisante. Em casos menos extremos, há situações de frustrações que produzem cicatrizes. Uma trama interativa estava sendo tecida e um fio se rompeu. A trama ficou marcada em sua tecitura original. Rompeu-se um ponto, abriu-se uma lacuna. Dependendo da intensidade da frustração, do não atendimento às mais vitais necessidades do bebe, não se tece a trama, mãe e bebê não se ajustam. E sobrevem o caos, a catástrofe mental. Será que essas marcas, esses pontos rompidos, essas tramas mal tecidas, essa falta perene não atuam na vida social do adulto, não interferem em sua participação na realidade? Como dar o que não se recebeu, como amar quando se foi odiado e rejeitado? A falta está lá e dói. "As vezes, muitas vezes, é uma dor sem consciência que leva a provocar uma dor maior. No outro. Em si mesmo, O movimento é de ataque, destruição. Para devolver a ferida, buscar o seio que negou, o olhar que não acolheu. Depois de instalado, facilmente se perpetua o círculo vicioso da destrutividade.

A face tanática de Janus-mãe também "olha" ambivalente para o bebé. Oferece o seio algumas vezes, outras nega. Por vezes oferece o seio e nega o alimento: o leite/amor e sonegado, dissocia-se o simbólico do concreto. Contraditória e arbitrária, oferece ao bebe, carente de consciência e compreensão, o modelo da contradição, que ele não pode entender. Mais um modelo... a se repetir na vida social.

Essas considerações todas que apresentamos sobre o objeto da Psicologia Social conduzem-nos a outra questão, que diz respeito aos destinos da sociedade. Há autores que acreditam que a Psicologia Social não deve ser finalista, não deve se preocupar com os destinos da sociedade. Ainda assim, pregam o advento de tecnologias salvadoras para promover o bem-estar social. Nós acreditamos que a Psicologia Social deve se preocupar com os destinos da sociedade, deve se empenhar em contribuir para uma convivência mais saudável. Neste sentido, ela deve levar em consideração as condições em que se estabelece a troca entre os indivíduos e a sociedade, a importância dos primeiros padrões interativos, que podem se perpetuar e dos modelos que oferece para os indivíduos.

Pessoas saudáveis influirão saudavelmente no meio em que vivem. Não é possível negar que a sociedade como um todo, com seus grupos e instituições, pode ser mais ou menos saudável, dependendo das pessoas que a compõem.

Estamos falando de saudável no sentido psicanalítico do termo, tal como é empregado, por exemplo, pelo psicanalista inglês MONEY-KYRLE (1978), talvez o psicanalista que mais tenha se voltado para questões sociais. Em um estudo sobre Estado e Caráter na Alemanha, ele observa que "saudável" ou normal e a sociedade bem adaptada, que favorece o desenvolvimento de indivíduos normais ou saudáveis. Do mesmo modo, o não-saudável estado de mente é aquele em que os sentimentos e, às vezes, também a percepção, são perturbados por fantasias inconscientes.

Chegamos ao outro lado da moeda. A sociedade também pode ser encarada como uma grande mãe, que acolhe e favorece o desenvolvimento de seus filhos-membros ou não. Afinal, interação é troca. Assim como o inconsciente mais ou menos saudável (psicanaliticamente falando-se) das pessoas influi na sociedade, a organização da sociedade influi na estrutura da personalidade, no inconsciente das pessoas. Acreditamos que a mãe-sociedade também deve funcionar como um ponto lixo para o desenvolvimento de seus filhos-membros. E impossível negar-se a influência que uma tal ou qual organização da família, das instituições, da sociedade vai exercer sobre os conteúdos vivenciais do inconsciente sobre a estruturação da personalidade dos indivíduos.

Sociedades chamadas primitivas oferecem-nos exemplos de organização, coerência, consistência de modelos, que se refletem em relações menos conflituosas e mais cooperativas entre seus membros. Modelos definidos permitem identificações com pontos estáveis, E a nossa mãe-sociedade, que ponto fixo ela nos oferece?

A destrutividade crescente, a falta de consideração pelo humano, a ausência de cooperação, as relações nada amorosas entre os seres humanos, respondem por nós. Voltamos à Janus bifronte, que volta para seus filhos sua face tanática, mortífera. Que ponto fixo é este? Aliás, como falar em ponto fixo com tamanha sobreposição de modelos que a sociedade atual nos oferece? Podemos ser todos e nenhum, tudo e nada, a imagem identificatória não é a de um modelo seguro. Formou-se um mosaico de fragmentos identificatórios. Onde está o ponto de apoio?

Em meio ao caos, aparece com mais nitidez a necessidade de um elemento aglutinador, Torna-se fundamental refletir sobre a importância dos modelos de identificação que a mãe-sociedade oferece para os indivíduos. Assim como os filhos se identificam com os pais, internalizando modelos, os indivíduos se identificam com os modelos que a mãe-sociedade apresenta.

Quais os modelos, então, que nossa mãe-sociedade nos oferece? Esta ó uma resposta difícil de precisar. Além de não apresentar um modelo definido, um ponto fixo e sim uma sobreposição, o que predomina é o componente destrutivo. Nossa mãe-sociedade é permissiva, não impõe limites (principalmente às nossas fantasias destrutivas, incentivadas pelos avanços tecnológicos) ou é ambígua em relação a eles, gratificando a rivalidade, a competição destrutiva, invertendo ou destruindo valores. Age como mãe filicida, contraditória, ambígua, oscilante entre padrões e valores. O permitido para uns é proibido para outros, discriminação, confusão e corrupção imperam.

Será que uma tal mãe-sociedade é favorecedora da saúde mental, a integração de seus filhos-membros? Mais uma vez a resposta é negativa. O que há é o favorecimento da distorção da realidade psíquica c, conseqüentemente, da percepção da realidade externa. Como mãe-filicida, nossa sociedade estimula as nossas ansiedades mais primitivas, a persecutoriedade, favorecendo a destrutividade, que faz com que nos coloquemos diante do outro como guerreiros, prontos para o ataque, para desferir o golpe mortal. Não temos então que nos defender de uma ameaça, seja ela real ou imaginária?

A mãe-sociedade primitiva estimula nossa onipotência primitiva: tudo controlar, tudo poder, tudo destruir. Fabricando armamentos cada vez mais poderosos torna possível, com um simples apertar de botões, a supremacia do império de Tânatos. Podemos controlar e destruir à distância. São as fantasias onipotentes e destrutivas do frágil bebe transformando-se em realidade. Continuamos bebês, na grande maioria. E pensamos que somos deuses, senhores absolutos da vida e da morte.

As fantasias inconscientes mais primitivas do ser humano é que estão sendo gratificadas pelas contraditórias ambições de nossa sociedade, que investe maciçamente nas tecnologias e muito pouco no humano, Ao invés de proporcionar o conforto, ela nos ameaça. E as figuras dos chefes, líderes políticos, pais e mães sociais são um reflexo a se transformar em causa desta situação. Ambição, narcisismo exacerbado, desejo de controle onipotente. Reforça-se o círculo vicioso da destrutividade. Faz-se urgentemente necessário rompe-lo. É preciso achar o caminho.

Se a sociedade deve funcionar como uma grande mãe, como um ponto fixo para a construção da identidade de seus filhos-membros, como pensamos, deve haver uma preocupação com os modelos de identificação que ela oferece, Acreditamos que modelos saudáveis podem se constituir em focos de disseminação de saúde mental. Se, com tanta licenciosidade e sem-cerimônia, a destrutividade é disseminada, por que não a saúde mental, a possibilidade do crescimento, da convivência amadurecida?

Roger Money-Kyrle, no estudo a que já nos referimos, propõe, para que a situação do nazismo não se repita, que pessoas saudáveis, mais amadurecidas, sejam colocadas em pontos-chaves da administração do Estado. Assim, essas pessoas serviriam para promover identificações positivas. KURT LEWIN (1970) fala em líderes democratas, desenvolvidos, que possam favorecer o funcionamento dos grupos. Nós estamos propondo uma ideologia da saúde. Ela deve estar calcada numa preocupação com os modelos de identificação que a sociedade oferece. Parece-nos ser este um caminho possível para se quebrar o círculo vicioso da repetição destrutiva. É preciso que possamos internalizar coerência, integração e que nosso amor seja estimulado. E que a sociedade possa oferecer a condição de uma relação amorosa com a vida, com a participação no mundo social. Recordando Freud, é preciso que possamos amar melhor, trabalhar melhor, construir e não destruir.

A Psicologia Social deve se preocupar com este estado de coisas. Se o seu objeto é a interação humana, ela está na base da construção da identidade e, portanto, da atuação na vida social. Não dá para desvincular uma coisa da outra. Não dá mais para fragmentar, para simplificar, para reduzir, para "saber tudo" e não compreender nada. Assim como não dá para desprezar o fato de que o indivíduo que interage com o mundo é uma totalidade e tem uma vida psíquica, que influi em sua vida pessoal e social. Nilo dá mais para ignorar que as revoluções coletivas não removem a dor humana, o sofrimento psíquico. Este permanece, faz parte da constituição biográfica e não é resolvido por um simples engajamento coletivo ou partidário. É preciso descer até os processos constitutivos do sujeito se se quiser entender como se produziram, através da interação, as fraturas na subjetividade, como observa LORENZER (1976),

Recuperando a tradição gestaltista e lewiniana, que concebe seu objeto em sua complexidade e totalidade, a Psicologia Social estará recuperando seu ponto fixo. E também sua identidade. Estabelecidos os seus limites e a complexidade de seu objeto, não há porque a Psicologia Social temer a aproximação com a Psicanálise e as contribuições que a ciência do inconsciente tem a oferecer.

Aceitando a complexidade de seu objeto e fato de que as descobertas da Psicanálise têm a ver com ele, a Psicologia Social adquire condições mais efetivas para sua atuação. Para se preocupar com os destinos da sociedade, com a melhoria das condições de vida, com a busca de caminhos mais humanos e saudáveis, que possibilitem o rompimento do círculo vicioso da repetição destrutiva. Na verdade, pensamos em uma Psicologia Social que busque um compromisso entre conhecimento e moral. Isto tem que ser pensado a partir do conhecimento do objeto e as conseqüências que daí derivam.

Pensamos que a Psicologia Social que praticamos não pode ficar indiferente à insalubre qualidade de vida que nossa sociedade fomenta. Estamos falando de insalubridade mental. É hora de se juntar esforços e conhecimento, de uma forma cooperativa, sem invejas e ódios, para se tentar uma revolução humanística, em prol da vida. É preciso empenho na luta contra Tânatos, instalado no seio da mãe-sociedade filicida. Que nos alimenta com destrutividade, rivalidade, narcisismo. Como diz BION (1985), tentar resolver o conflito entre o narcisismo e o "socialismo". Antes que alguém aperte o botão de desintegração total, já bastam os "botões" da destrutividade que apertamos a todo momento e de que nem nos damos conta. É preciso desalienar e crescer para construir, já fomos longe demais em nossa alucinada desconsideração pela vida. Há "mal-estar na civilização..." Por isso, deixamos as palavras finais com FREUD (1930):

A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo insinuo humano de agressão e autodestruição. Talvez, precisamente com relação a isso, a época atual mereça um interesse especial. Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que, com sua ajuda, não teriam dificuldade em se exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem disso e é daí que provém grande parte da sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade. Agora só nos resta esperar que o outro dos dois 'Poderes Celestiais', o eterno Eros, desdobre suas forças para se afirmar na lula com seu não menos imortal adversário. Mas quem pode prevenir com que sucesso e com que resultado?

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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