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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.2 n.1-2 São Paulo  1991

 

RESENHA

 

 

Chronopsychologie, por P. Leconte & C. Lambert. Paris, Presses Universitaires de France, 1990. (Que sais-je?)

O tempo, colocado por Bergson como elemento essencial da vivência psicológica, enquanto duração, é retomado, na jovem ciência da cronobiologia, enquanto recorrência e ritmicidade. Definida como o estudo da organização rítmica dos processos biológicos, a cronobiologia recuperou a mudança cíclica como aspecto básico do funcionamento do organismo, em contraposição com perspectivas de pesquisa que privilegiavam equilíbrios de tipo homeostático. Ritmos de sono-vigília, de níveis de corticosteróides e outros hormônios, de atividade do sistema nervoso central, de temperatura do corpo e muitos outros têm sido descritos e estudados de modo a dar fundamento à ideia de que existem "relógios biológicos", fonte endógena de controle, capazes de atuar mesmo na ausência de sinais temporais provindos do ambiente.

A existência de ritmos fisiológicos implica, dentre uma perspectiva moderna, não-cartesiana, a de ritmos comportamentais. Ao lado da cronobiologia propriamente dita, ou melhor, dentro dela, cabe espaço para uma cronopsicologia, interessada por flutuações regulares na atenção, na memória, no pensamento e na manipulação de informação em geral e na afetividade, processos que tem sido província cativa do psicólogo.

É deste setor novíssimo que trata "La Chronopsychologie", de Leconte e Lambert, dois pesquisadores franceses da Universidade de Lille. O livro, que pertence à coleção Que sais-je?, sofre, evidentemente, com as restrições de espaço deste tipo de empreendimento editorial. Apesar disto, não me senti decepcionado com o texto que eu previa rudimentar: os autores conseguiram locar nos principais assuntos, citando pesquisas a cada passo, muitas delas recentes, e constituir um panorama dos efeitos cronopsicológicos em atividades cognitivas que, se não é completo (e não poderia sê-lo) permite uma primeira avaliação. Não houve esforço dos autores em tomar o campo mais coerente do que so apresenta hoje (eles evitam colocar em destaque hipóteses gerais que permitiriam organizar a poeira do informações empíricas): transmitem a impressão, sem desvalorizá-la, de que a cronopsicologia esta à procura do suas teorias.

Disse tratar-se de um setor novíssimo, mas houve precursores, é claro. Von Bechterew, por exemplo, já em 1893, referia-se às flutuações de desempenho ao longo do dia ("o desenvolvimento dos processos psíquicos é retardado pela manhã e acelerado à tarde. As velocidades mais baixas ocorrem no começo da noite", citado por Rutenfranz e Colqhoun, 1979). Não houve progresso na investigação destas flutuações porque os psicólogos, empenhados na procura dos processos cognitivos básicos, supunham ser constante seu modo de atuação, ou seja, dependente apenas de fatores da tarefa ou da experiência previa. Claramente envolvido era um pressuposto de não-ritmicidade, paralelo ao pressuposto da não-ritmicidade dos processos fisiológicos.

Uma quantidade não desprezível de pesquisa, que data principalmente das últimas duas décadas, indica ao contrário que a eficiência cognitiva flutua, de acordo com unidades temporais mais ou menos extensas. A ritmicidade mais estudada é a circadiana, feita de recorrências que têm a duração de um dia (ou quase um dia ) como período. Em crianças, por exemplo, a velocidade de desempenho numa tarefa sensório-motora, como a de detectar e assinalar sinais pré-determinados em listas, é melhor pela manhã, decrescendo regularmente ao longo do dia. A acuracidade (taxa de acertos) é, ao contrário, oposta, começa em níveis baixos e atinge níveis altos por volta das 16:30. Existe, assim, uma interessante relação inversa entre rapidez e precisão na execução de uma tarefa que exige atenção.

Mais enigmáticos são ritmos infradianos (período superior a 28 horas), como o encontrado, numa pesquisa francesa, em que indivíduos tinham de recordar uma lista de palavras, logo depois de ouvi-la. Em alguns indivíduos, a eficiencia do desempenho flutuava de acordo com um período de 14 dias, para outros, de acordo com um período de 3 semanas. O número "sete" - que George Miller qualificava de número mágico - tem uma misteriosa vigência em cronopsicologia: muitos desempenhos variam ao longo da semana, de um modo significativo, disso pode testemunhar qualquer professora de primeiro grau.

Os ritmos podem ser bem rápidos (ritmos ultradianos), Se um teste de reconhecimento (verificar se uma palavra pertence ou não a um conjunto memorizado) for aplicado a intervalos curtos, verifica-se que os escores melhoram e pioram, em alguns indivíduos, a cada 100 minutos aproximadamente, ritmicidade que tem a ver talvez com ciclos de ativação cerebral.

Seria interessante verificar até que ponto as pessoas so dão conta de que varia - de forma rítmica -seu funcionamento cognitivo, a capacidade que podem prestar aos eventos, a memória ou até mesmo seu raciocínio. Minha fenomenologia (talvez não seja representativa) indica a consciência de que alguns períodos do dia são mais propícios do que outros para o trabalho intelectual. Mas não me dou conta de eventuais ritmos ultradianos (como o dos 100 minutos), pelo menos enquanto ritmos. Percebo quedas de atenção e momentos de aguda percepção das coisas: mas não me aparecem como recorrentes. O fato de estarmos geridos pela roda do tempo, sem necessariamente nos darmos conta, pelo menos de forma clara, & um aspecto que acrescenta fascínio à perspectiva cronopsicológica.

Mas é preciso, como os casos abordados pelos autores mostram de modo abundante, situar a causalidade rítmica dentro de seu contexto sistémico, sem simplificá-la demais nem ceder à tentação de uma determinação linear. A variabilidade ou até a contradição que surgem, às vezes, nos resultados, indicam a presença de uma rede de determinantes, e de efeitos importantes de interação entre os possíveis ritmos de base endógena e as condições ambientais e de motivação em que se dá o desempenho. O comportamento é compromisso, ponto de convergência de variáveis diversas, uma exigência epistemológica inevitável é encontrar caminhos de análise que respeitem esta multideterminação.

Reforça a perspectiva interacionista constatar que a manifestação dos ritmos em desempenhos cognitivos depende da natureza da tarefa desenvolvida. Tarefas que mobilizem estratégias sensório-motoras podem ter um desenvolvimento temporal muito diferente das que exigem raciocínio, testes que envolvam levar-se em conta uma informação apresentada em paralelo podem diferir, em termos cronopsicológicos, daqueles em que a informação é dada sequencialmente. Folkard e colaboradores, a quem se deve muitas das informações atualmente disponíveis sobre ritmos circadianos da memória, mostram, que, numa tarefa de busca visual em que indivíduos têm de localizar, num texto, grupos de letras, o desempenho tem seu máximo (acrofase) de manhã quando o número de letras no alvo é alto (6 letras) e à tarde quando é pequeno (2 letras). Esta diferença talvez decorra da maior mobilização de memória imediata quando se trata de 6 letras, e do fato de a memória imediata funcionar melhor de manhã (se se pede a crianças que repitam o conteúdo de um texto que acabam de ouvir, a quantidade de informação retida é geralmente maior de manhã do que à tarde). Outras pesquisas mostram que os desempenhos em memória semântica e em memória gráfica (visual) evoluem em oposição de fase, isto é, quando o desempenho é melhor num tipo de tarefa, é geralmente baixo na outra. Dados como estes, e muitos outros, mostram que o objetivo da pesquisa cronopsicológica não é desvendar um ritmo mestre, um relógio básico da cognição, mas revelar as formas complexas através das quais ritmos vários organizam, em conjunto com a influência ambiental, o comportamento concreto.

A motivação é outro fator crucial. Tarefas recompensadoras, tarefas em que o indivíduo tem informação a respeito de seu próprio desempenho e para as quais se sente capaz, tarefas em que ele estabelece uma competição, seja consigo próprio (alcançar níveis mais altos, sucessivamente) ou com outros, variarão, ao longo do dia e ao longo da semana, de modo diferente do que tarefas tediosas ou cansativas. Blake (1971) mostrou que a flutuação circadiana da eficiência, numa tarefa simples, dependia de os sujeitos serem, ou não, informados dos escores obtidos. Chiles e colaboradores (1968) que observavam pessoas colocadas durante semanas em condições simuladas de vôo espacial, verificaram que a baixa da vigilância, normalmente observada numa certa fase do dia, era suprimida se a estas pessoas fosse exigido um esforço suplementar em momentos de queda de atenção.

A fadiga também atua como elemento mascarador, isto é, como influência capaz de atenuar ou disfarçar a influencia das predisposições rítmicas. Normalmente, quando estão em jogo tarefas longas, desprovidas de potencial ativador, os desempenhos melhoram significativamente ao longo do dia, mas somente se houver alternação dos testes propostos ou espaçamento temporal entre eles. Quando apresentados de forma repetitiva ou sem intervalo adequado, desaparece o aumento de eficiência, não há sinal de ritmicidade.

Um dos aspectos mais intrigantes dos ritmos em funções psicológicas é o das diferenças individuais. Como em outras áreas de pesquisa comportamental, percebe-se que os desempenhos variam, em condições muito semelhantes, de uma pessoa para outra. Não se trata de uma variação acidental: cada indivíduo mantém-se consistente na sua maneira de agir e reagir, são estilos comportamentais que a pesquisa desvenda e que se superpõem às diferenças inter-sexuais (como, por exemplo, a maior duração do sono em mulheres apontada por algumas pesquisas) e às que ocorrem com a idade.

Era inevitável que se partisse à procura de uma influência do tipo de personalidade sobre os desempenhos cronopsicológicos. Várias pesquisas mostram que o tempo de reação (a rapidez com a qual a pessoa reage a um estímulo pré-determinado) tende a ser maior de manhã do que à tarde, em extrovertidos, mas menor de manhã do que a tarde em introvertidos. Os introvertidos teriam uma acrofase mais precoce do que os extrovertidos na curva de temperatura corporal, no ritmo sono-vigília e mesmo em certos ritmos de desempenho (Blake, 1971) e seriam mais flexíveis para adaptar-se ao trabalho noturno (Reinberg et al., 1978). Outra dimensão de personalidade é o fator dependência-em-relação-ao-campo: enquanto os "independentes" são capazes de analisar uma situação perceptual/conceitual, abstraindo os aspectos relevantes ou re-estruturando-a de acordo com critérios próprios, os "dependentes" reagem globalmente, deixam-se influenciar mais por fatores contextuais. Lambert mostrou que "independentes" tinham uma amplitude menor de flutuação circadiana - tanto em atenção como em memória a curto prazo - que os "dependentes", como se estes estivessem mais presos aos seus ritmos internos.

Embora tragam subsídios, acho que os estudos que usam como variável diferenças de personalidade põem, por assim dizer, a carroça antes dos bois. Mais relevantes são as tipologias que partem da própria ritmicidade para descobrir padrões individuais consistentes. A mais influente destas tipologias é a que supõe haver uma dimensão de "matutinidade"/"vespertinidade", entre cujos pólos se distribuem as pessoas. Os matutinos típicos são pessoas que acordam com facilidade, se sentem bem dispostos pela manhã, mas preferem dormir mais cedo; os vespertinos típicos, ao contrário, custam a ajustar-se, de manhã, à rotina diária, mas vão ganhando ânimo com o passar das horas, sentindo-se plenamente em forma à noite. Diferenças fisiológicas entre matutinos e vespertinos (na temperatura corporal, por exemplo, que tem mais cedo seu pico no caso dos primeiros) são acompanhadas de importantes diferenças comportamentais. Como seria de se esperar, os matutinos têm melhor desempenho de manhã do que à noite numa série de tarefas (tempo de reação, detecção visual, busca de alvos, memória a curto prazo, etc.), sendo oposto o padrão encontrado em vespertinos. Em pesquisa recente. Antonieta Castanho, Luis Menna-Barreto, Rosane Cristina Piedade, Shi Li Li, e eu mostramos haver diferenças na ritmicidade de estados afetivos (medidos por auto-avaliação) entre os que gostam do dia e os que preferem a noite. A alegria e alguns outros afetos distribuem-se com uma regularidade previsível, típica de cada indivíduo, ao longo do dia, e sofrem o viés da matutinidade/vespertinidade.

Afirmam os autores que "são várias e muito importantes ... as implicações práticas dos trabalhos realizados no quadro da abordagem cronopsicológica" (p. 99). É difícil não concordar. O estudo da trama temporal do comportamento, a nível de minutos, de dias, ou semanas, nos aspectos cognitivos ou afetivos, do ponto de vista do bem-estar ou da eficiência, fornece um quadro de referência essencial para o psicólogo. Abolida a idéia de que o funcionamento psicológico mantém-se preso a níveis de constância, ou de que flutua apenas em função da experiência ou dos eventos ambientais imediatos, abre-se um domínio de perguntas e de pesquisas que, se não pretende tudo abranger ou resolver, pelo menos serve para trazer a prática mais perto de seu ideal de eficiência.

O problema é não estarmos ainda suficientemente municiados de pesquisa básica e de pesquisa aplicada. Escrevem Leconte e Lambert, pensando numa das áreas possíveis de aplicação: "É forçoso admitir que, no momento, as pesquisas levadas adiante em cronopsicologia da educação continuam parciais, incompletas, pouco freqüentes na França e certamente não permitem ... responder sem ambigüidade e sem desonestidade científica à pergunta 'quando se deve aprender?'" (p. 100).

O mesmo diagnóstico provavelmente possa ser emitido a respeito da pesquisa cronopsicológica no Brasil, apesar de seu impulso incipiente: muito precisa ainda ser feito. Cabe, em primeiro lugar, divulgar entre psicólogos, que, em sua maioria não tiveram oportunidade de entrar em contato com elas, as idéias básicas da cronobiologia e da cronopsicologia.

Para que se torne mais preciso e mais útil, o conhecimento cronopsicológico deve ser acompanhado de um conhecimento a respeito do funcionamento básico dos fenômenos, memória, atenção, estado de ânimo, capacidade sensório-motora e que tais. Quando é hesitante a compreensão dos processos e fatores não-rítmicos envolvidos, como pode ser firme a pesquisa da organização temporal?

É preciso, além disso, levar a investigação, o quanto possível, para os contextos sociais concretos, tentar encontrar pontes metodológicas entre as medidas simples e rigorosas do laboratório e as descrições do comportamento in situ. A tarefa de vigilância, diante de um ponteiro ou de sinais luminosos, não replica perfeitamente à com a qual se defronta um inspetor de vôo, ou um piloto, ou um operário numa linha de montagem. A cronopsicologia deve investir, a meu ver (e acredito que esta posição esteja implícita no livro de Leconte e Lambert) na validade ecológica ou externa de seus estudos. Isso significa proceder a descrições comportamentais minuciosas nos "behavior settings" como os chamavam Barker e Wright (o espírito etológico é, nessa empreitada, uma inspiração constante) e escolher as provas que porventura devam ser aplicadas de maneira a respeitar a estrutura da situação social.

Leconte e Lambert passam em revista as áreas onde as idéias cronopsicológicas poderiam ter serventia: atendimento ao escolar, tanto no aspecto de planejamento das atividades da sala de aula, como no dos elementos auxiliares capazes de aumentar o rendimento (sono, alimentação, fadiga, etc.); tratamento de problemas de depressão e de perturbação do sono, de disfunções cognitivas próprias da idade avançada, da demência e da deficiência mental; aplicações à melhoria das condições de trabalho, através de um estudo dos efeitos dos turnos, da distribuição de tarefas, etc. Outros usos deste conhecimento serão eventualmente descobertos, através do interjogo da pesquisa com a prática.

A curto prazo, cabe levar adiante o trabalho importante de descrever as ritmicidades comportamentais, de analisar os fatores que as geram e as mascaram, sua inserção na realidade ambiental, não esquecendo a busca de modelos teóricos (não há nada mais prático do que uma boa teoria, dizia Lewin): assim poderá ser pleno o aporte das idéias cronopsicológicas à psicologia.

 

César Ades
Depto. de Psicologia Experimental
Instituto de Psicologia - USP