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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.3 n.1-2 São Paulo  1992

 

APRESENTAÇÃO DO SIMPÓSIO

 

Família e educação: uma questão em aberto1

 

 

Marilia Pontes Sposito

Faculdade de Educação — USP

 

 

Nos últimos anos, os estudos sobre família ocuparam o interesse de um elenco significativo de pesquisadores, uma vez que, na condição de módulo constitutivo da vida social, a família é instância que pode articular conhecimentos oriundos das diversas áreas das ciências humanas.

No entanto, se a Psicologia, a Antropologia, a História, a Psicanálise e a Sociologia voltaram seus estudos sobre as formas da organização familiar, o seu processo de institucionalização, as questões relativas à reprodução humana, à sexualidade e aos laços de parentesco, os diversos modelos culturais e os decorrentes processos de socialização, a pesquisa educacional ainda não contemplou, de modo geral, os estudos sobre a família no conjunto de suas principais preocupações temáticas capazes de suscitar novas investigações.

Muitas vezes centrados nos aspectos mais globais que orientam as ações educativas, sobretudo enfatizando a ação do Estado no processo de escolarização e sua conseqüente democratização, os estudos educacionais, nas últimas décadas, contribuíram para o desvelamento dos processos perversos de exclusão social e cultural que ocorrem em nossa sociedade.

Mesmo sendo consideradas as vicissitudes do processo de transição para a democracia, a escola pública voltou a ocupar o centro das atenções de educadores, profissionais e pesquisadores, buscando-se os caminhos para sua real abertura ao conjunto da população, quer sob o ponto de vista de sua existência física — a possibilidade de acesso ao sistema de ensino — quanto sob a ótica da transformação de sua qualidade, pela efetivação de um sistema de ensino menos excludente e capaz de propiciar condições necessárias para o exercício da vida coletiva e o desenvolvimento pessoal.

Durante os últimos anos, nesse novo quadro conjuntural que era desenhado, a procura de um novo padrão de relacionamento entre a escola e seus usuários também foi objeto das políticas educacionais, em particular nos níveis municipal e estadual, e integrou um conjunto significativo de estudos desenvolvidos por pesquisadores na área da educação. Propostas de democratização da gestão escolar, de implantação de mecanismos mais participativos na vida da escola, envolvendo os vários segmentos que integram o processo educativo, foram algumas das questões que estiveram na pauta das preocupações dos que estavam voltados para o tema da educação, quer sob a forma de pesquisas, como de apoio e subsídio para a formulação de políticas públicas.

Observa-se que, embora pressuposta, a questão da família, na condição de pais e mães de alunos usuários da escola pública, de modo recorrente foi absorvida pelo impreciso e ambíguo conceito de "comunidade". A recorrência à noção de "comunidade" ainda hoje se verifica, não obstante algumas teorias já apontassem nos anos 70 para a importância da educação familiar e suas influências no processo de escolarização. A título de exemplo poderíamos citar a teoria piagetiana do desenvolvimento cognitivo ou as denominadas teorias da reprodução, disseminadas sobretudo por meio dos trabalhos de Althusser e Bourdieu. Nesses estudos os temas do capital cultural ou da estrutura cognitiva, assim como as questões, muitas vezes polêmicas, sobre a competência lingüística no interior das relações familiares sempre estiveram presentes.

Assim, apesar da existência de um conjunto de conhecimentos acumulados nas diversas áreas das Ciências Humanas indicar a importância do tema família para o estudo dos processos educativos, o exame das conexões, continuidades e descontinuidades entre o sistema formal e informal de educação constitui um amplo campo de investigação a ser desenvolvido, não se limitando apenas aos aspectos relativos aos grupos populares, mas compreendendo as várias classes que constituem a sociedade brasileira.

É recorrente encontrarmos no dia-a-dia do sistema de ensino e, não raras vezes, no interior do discurso acadêmico, representações sobre a família eivadas de preconceito, muitas vezes alinhavadas nas formulações de um senso comum próprio de determinados grupos e classes da sociedade. Não é raro atribuir-se às crianças de origem trabalhadora e suas respectivas famílias a grande responsabilidade diante do fracasso escolar e das dificuldades relativas ao processo de ensino e aprendizagem. São em geral consideradas famílias carentes, desorganizadas ou incapazes de propiciar um ambiente cultural educativo para seus filhos. Certos estereótipos permanecem, a despeito das riquíssimas contribuições existentes nas disciplinas que há décadas dedicam-se ao estudo do tema.

Não se desconhece os esforços de alguns pesquisadores que procuraram trazer para a área da educação o tema da família, mas apesar dos estudos realizados até o momento, grande parte da questão constitui um tema em aberto.

Por essas razões, um grupo de professores, envolvendo áreas diversas no campo das Ciências Humanas, organizou em 1989 através do NESE — Núcleo de Estudos de Sociologia da Educação da Faculdade de Educação da USP — o seminário "Família e Educação: Uma Questão em Aberto". Mais do que um balanço da produção científica, o encontro buscou a interdisciplinaridade mediante a reunião de educadores, psicólogos, psicanalistas, historiadores, antropólogos e sociólogos que trabalhavam com o tema da família. A diversidade das matrizes teóricas e o recorte específico de cada disciplina permitiram a um público constituído de professores, pesquisadores na área da educação e alunos, um debate rico e sugestivo, que certamente problematizou, apontou temas para futuras pesquisas e, sobretudo, marcou a relevância dos estudos sobre a família para o enriquecimento das pesquisas na área da educação.

A imperiosidade de recuperar-se o sistema escolar de ensino em um país como o Brasil — que o degradou, nos últimos anos, a um nível jamais imaginado — é inconteste, apesar das reiteradas demandas e lutas de setores organizados da sociedade civil desenvolvidas recentemente. Por outro lado, há um consenso estabelecido em torno da importância da pesquisa e da produção de conhecimento, de modo a contribuir para desvendar os processos que envolvem as complexas dimensões do processo educativo em nossa sociedade. Todavia qualquer empreendimento nesse sentido será fadado ao insucesso se — além de promover pesquisas no âmbito restrito da escola ou da ação da Estado de modo geral — não implicar um estudo das condições familiares de existência e, nessa medida, da educação das crianças e jovens, nos diferentes grupos e classes sociais que compõem a sociedade brasileira, no campo e na cidade.

A socialização dos estudos e temas tratados no Seminário diante de sua atualidade constitui um espaço importante para o fortalecimento dessas preocupações. Os textos aqui reunidos examinam o tema da família sob os mais diversos ângulos, a partir de conferências e mesas-redondas que reuniram pesquisadores da Faculdade de Educação, do Instituto de Psicologia e do Departamento de História da Universidade de São Paulo, bem como convidados de outras instituições de pesquisa, dentre elas a Fundação Carlos Chagas e a PUC do Rio de Janeiro.

Constituindo um fórum de debates sobre as modalidades de organização familiar prevalecentes na sociedade brasileira contemporânea, os modelos que historicamente marcaram essa trajetória, as transformações mais significativas e os traços que permanecem ao longo do tempo, as peculiaridades da ação educativa no interior dos grupos familiares, o Seminário "Família e Educação: Uma Questão em Aberto", apontou a medida da importância dos conhecimentos gerados em várias áreas das ciências humanas, no estudo dos temas da família. No esforço de se repensar a educação escolar, configura-se, assim, a necessária articulação entre os dois processos educativos: aquele desenvolvido no âmbito do família e o conjunto de práticas que atuam no sistema escolar.

 

 

1 Texto apresentado na abertura do Seminário "Família e Educação: uma questão em aberto", organizado pelo NESE (Núcleo de Estudo da Educação da Faculdade de Educação da USP, em 1989.