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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.3 n.1-2 São Paulo  1992

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Contribuições da antropologia para o estudo da família

 

Antropological contributions to the study of the family

 

 

Cynthia Andersen Sarti

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas — USP

 

 


RESUMO

Este artigo aborda a contribuição dos estudos sobre o parentesco para a compreensão do que é a família. Sem pretender dar conta de toda a contribuição antropológica, trata particularmente de como a Antropologia contribuiu para pensar o caráter social (e não natural) da família e a não universalidade do nosso modelo de família nuclear. Destaca o significado do casamento e do tabu do incesto como instituições sociais, sobretudo a partir da obra de Lévi- Strauss, e sua contribuição para o pensamento antropológico sobre o parentesco. A decomposição das diversas relações que compõem o parentesco e a família, tal como apresentada no texto, esclarece que a mudança na família não é um processo totalizante.

Descritores: Família. Estrutura de parentesco. Tabu. Casamento. Antrolopogia Cultural.


ABSTRACT

This paper reports the contribution of kinship studies to the understanding of the family. It refers to the anthropological contribution to the subject, particularly on the analysis of the social character of the family and the non-universality of our pattern of nuclear family. It also highlights the meaning of marriage and the incest taboo as social institutions, stressed mainly by the work of Lévi-Strauss, a turning point in anthropological thought on kinship. The decomposition of the different relations that compose kinship and the family presented in the text, helps one to understand their social character and that family change is not a totalizing process.

Index terms: Family. Kinship Structure. Taboo. Culture (Anthropological). Marriage.


 

 

Em face da abordagem interdisciplinar que caracteriza este I Seminário "Família e Educação: uma questão em aberto", minha intenção é falar da contribuição da Antropologia para os estudos da família, naquilo que ela tem de mais específico, no instrumental que a Antropologia trouxe para pensar a família diferentemente de outras disciplinas. Quero esclarecer, em primeiro lugar, que não farei um panorama da contribuição da Antropologia, porque seria muito extenso; quero apenas destacar um aspecto que acho muito operacional para se pensar a família hoje, e que para mim, particularmente, ajudou muito quando me deparei com essa literatura. Eu me refiro à contribuição da Antropologia para pensar a "desnaturalização" e a "desuniversalização" da família, desta família que nós conhecemos na nossa sociedade. A contribuição da Antropologia é ímpar nesta questão, porque, ao tomar como objeto de estudo sociedades organizadas diferentemente da nossa, foi mais fácil um deslocamento e um estranhamento em relação à aparente "naturalidade" da família em nossa sociedade.

Hoje em dia, a Antropologia estuda também as diferenças na nossa própria sociedade, mas foi uma disciplina que se constituiu a partir do estudo de sociedades diferentes da nossa, construindo seu objeto de maneira distinta da psicanálise e da sociologia.

A contribuição da Antropologia para o estudo da família está principalmente na discussão sobre o parentesco. É sua contribuição básica. O parentesco é um objeto fundamental da Antropologia, próprio da sua constituição como disciplina, porque as sociedades tribais, objeto de seu estudo, eram sociedades sem estado e se regulavam pelo parentesco. As monografias clássicas da Antropologia acabam sendo monografias sobre o parentesco. Os laços de parentesco são o elo fundamental das sociedades tribais, o que rege suas relações sociais. Assim, o parentesco tornou-se um problema básico para a Antropologia.

O parentesco, entretanto, não é a mesma coisa que a família. Há uma diferenciação importante, O parentesco e a família tratam dos fatos básicos da vida: nascimento, acasalamento e morte. Mas a família é um grupo social concreto e o parentesco é uma abstração, é uma estrutura formal. Isto quer dizer que o estudo do parentesco e o estudo da família são coisas diferentes: o estudo da família é o estudo daquele grupo social concreto e o estudo do parentesco é o estudo dessa estrutura formal, abstratamente constituída, que permeia esse grupo social concreto, mas que vai além dele.

O que eu quero enfatizar aqui é a contribuição dos estudos de parentesco para os estudos da família, para pensar este grupo social concreto que tomamos como objeto de estudo.

Para a Antropologia, esses fatos básicos da vida, que são o objeto dos estudos de parentesco, são comuns a todos os animais. Todo mundo nasce, se acasala e morre. O que é específico do ser humano é que o homem escolhe a forma como ele vai fazer isso. Por mais que, seja dentro de limites estreitos, social e culturalmente dados, o homem escolhe como vai realizar estes fatos básicos da vida e atribui um sentido a suas escolhas. O que os estudos de parentesco fazem é justamente analisar o que o homem faz com estes fatos básicos da vida, por que ele faz, por que a escolha de uma alternativa em detrimento da outra e que implicações tem esta escolha, como mostrou Robin Fox (1986).

Lembro, em relação ao trabalho de Kupfer, também apresentado neste Seminário, que Lévi-Strauss, que dá uma grande contribuição ao estudo do parentesco, comenta em seu livro Tristes trópicos (1979), que a Psicanálise foi uma grande influência para ele, metodologicamente. O parentesco para Lévi-Strauss, é uma estrutura formal, universal, tal como Kupfer se refere ao inconsciente, e o que vai dar a variabilidade são os diferentes arranjos dos elementos do parentesco. Há um paralelo entre a forma como Freud pensa o inconsciente e Lévi-Strauss pensa o parentesco, enquanto estruturas formais, universais, próprias do humano. (É bom deixar claro que eu estou falando baseada na visão do Lévi-Strauss, cuja obra foi uma inflexão fundamental nessa questão da desnaturalização da família na Antropologia. Portanto, estou tomando uma corrente da Antropologia, a estruturalista, que se contrapõe a outras linhas da Antropologia que acham que a particularidade é irredutível e que não se colocam a questão da universalidade do ser humano.)

A discussão em torno do parentesco deu-se através da decomposição dos elementos que constituem o sistema de parentesco para analisar como se articulam esses elementos em cada sociedade e por que se articulam dessa maneira, de acordo com as características da organização social.

Os sistemas de parentesco são, do ponto de vista antropológico, considerados como estruturas formais, que resultam da combinação de três tipos de relações básicas: a) a relação de descendência, que é a relação entre pai e filho e mãe e filho; b) a relação de consangüinidade, que é a relação entre irmãos e c) a relação de afinidade ou seja, a que se dá através do casamento, pela aliança. Essas três relações são básicas e o estudo do parentesco é o estudo da sua combinação. Essas relações são a estrutura formal universal. Qualquer sociedade forma-se pela combinação dessas três relações. A variabilidade está em como se faz essa combinação.

Uma primeira questão que exprime a possibilidade de variação do parentesco é que os vínculos de filiação e de descendência podem ser diferentes, embora esta seja uma confusão muito comum. A filiação do pai e a da mãe podem ser diferentes, elas podem não coincidir com a descendência; ou seja, se há sociedades onde você descende tanto do seu pai quanto da sua mãe, como a nossa, isto não é verdade para todas as sociedades. Nós temos uma descendência bilateral, mas em sociedades onde há descendência matrilinear, o pai não é parente. O filho está fora da linha de descendência do pai. O pai é o marido da mãe, logo se diferencia filiação de descendência. Não se é necessariamente descendente do pai biológico. Isto porque a descendência não tem a ver com o vínculo de parentesco biológico entre pai e filho, mas com a definição social das regras de transmissão de direitos de uma geração para outra.

Para ilustrar isto, há um estudo clássico na Antropologia realizado por Malinowski (1976), que estudou as ilhas trobriandesas na Oceania, onde a descendência é matrilinear. Esse exemplo, entre outros, gerou uma polêmica com a Psicanálise, em torno da universalidade do complexo de Édipo. Como o pai social não é identificado com o pai biológico e o pai é tido apenas como marido da mãe, o próprio Malinowski levantou a questão de que o complexo de Édipo, enquanto estrutura inconsciente, não era universal. Ernest Jones, psicanalista, responde que há a estrutura do complexo e que, neste caso, quem exerce a função do pai é o tio materno.

Pode-se dizer que se para a Antropologia existisse um grupo natural, este grupo seria a mãe e seus filhos, não a mãe, o pai e seus filhos. Porque o pai, a paternidade, é uma figura social, é uma figura construída socialmente pelo casamento. Para a Antropologia, o casamento está dissociado da satisfação das necessidades sexuais também. O casamento existe para legitimar a prole, os filhos, para dizer qual é o lugar que aquele filho ocupa, qual é a posição da criança que vai nascer. O casamento existe para legitimar a relação com os filhos e não para legitimar a relação do homem com a mulher e as relações sexuais.

O trabalho de Lévi-Strauss marcou uma inflexão no pensamento sobre o parentesco, porque a partir de suas formulações em Les structures élementaires de la parente (1967), ficou realmente claro o caráter não natural da família, basicamente através da sua definição do átomo de parentesco.

O átomo de parentesco é a unidade mais elementar do parentesco. Radcliffe-Brown (1982), que também estudou o parentesco, dizia que a unidade elementar era:

 

 

O sinal de igualdade significa relação de casamento, a saber: = . O traço vertical significa relação de descendência, a saber: | . O triângulo representa o homem e o círculo, a mulher. Há o homem, a mulher e a relação de casamento; e o filho, a relação de descendência. Esta é a unidade básica do parentesco que coincide com a unidade biológica, pai, mãe e filho. Lévi-Strauss nos diz que não se pode pensar o átomo de parentesco a partir da unidade biológica, introduzindo um detalhe fundamental nesta configuração.

 

 

Isto quer dizer que há um outro homem. Este sinal Π indica relação de consangüinidade, a terceira relação que eu mencionei: afinidade, descendência e consangüinidade. Isto significa que, na unidade elementar do parentesco, há um outro homem que tem relação com essa mulher, o irmão dela; ele tem com ela uma relação de consangüinidade.

Por que isso é tão importante? Porque muda o eixo da definição do átomo de parentesco. Lévi-Strauss introduz a aliança como elemento fundamental do parentesco, através da inclusão do representante do grupo do qual o homem recebeu a mulher. Introduz, então, a dimensão cultural. Ele desnaturaliza a família, separa-a da unidade biológica pai-mãe e filho. A unidade elementar do parentesco se separa da biologia e entra no terreno da cultura ao se reconhecer que uma família, para se formar, pressupõe dois grupos. Pressupõe que um homem dê uma mulher a um outro homem que a recebe. Para Lévi-Strauss, é através da troca de mulheres que se dá a combinação dos elementos do parentesco. A constituição da família como fato cultural pressupõe a existência prévia de dois grupos que se casam fora de seu próprio grupo, dois grupos exógamos. Isso significa o reconhecimento de que o parentesco envolve relações além da relação de consangüinidade, ou seja, relações de aliança também, de afinidade. Assim, rompe-se com a idéia do caráter natural da família. A família não provém da unidade biológica, da mera reprodução. Constitui uma aliança de grupos.

A partir desta perspectiva, o tabu do incesto também passa por uma reinterpretação. Não tem nada a ver com uma inclinação natural, uma aversão natural às pessoas do seu grupo. O tabu do incesto é interpretado como um princípio de organização social, é uma forma de estabelecer aliança entre os grupos. Essa interpretação introduz uma dimensão política. É através da proibição da relação com as pessoas do próprio grupo, que se introduz a necessidade de se comunicar com outro grupo, através do casamento. Neste sentido, Lévi-Strauss retoma um problema levantado pelos evolucionistas, no começo da formulação do pensamento antropológico. Um evolucionista, Edward Tylor (1975), que estudou o parentesco, dizia que os povos se defrontaram com a seguinte escolha: casar fora ou ser morto fora. A questão era essa: sair do isolamento da consangüinidade, para a expansão através da aliança (o casamento). A aliança através do casamento era a forma de evitar o confronto entre tribos.

O casamento, para Lévi-Strauss, envolve três sujeitos, é uma relação a três, uma mulher e dois homens, um que dá essa mulher, e o outro que a recebe. É uma forma de comunicação entre tribos que de outra forma estariam em antagonismo. O tabu do incesto, assim como o casamento, estabelece o social. O casamento estabelece a norma em relação à legitimidade dos filhos e o tabu do incesto cria a norma em relação ao fato biológico das relações sexuais.

Os elementos que definem a família em Antropologia têm um caráter positivo e negativo: definindo o tabu do incesto, define-se o que pode e o que não pode ser feito. Define-se o legítimo e o proibido. O mesmo se passa com a divisão sexual do trabalho, outro princípio fundamental na constituição da família: estabelece o que os homens e as mulheres podem e não podem fazer, instituindo a reciprocidade.

O casamento destrói a naturalidade da relação entre mãe e filho, estabelecendo a mediação do pai. O tabu do incesto destrói a naturalidade das relações sexuais. Através da definição do casamento e do tabu do incesto, tal como é feita pela Antropologia, fica muito claro o caráter social dessas duas instituições.

Este traço de construção cultural da família é nebuloso em nossa sociedade porque o modelo familiar nuclear (com pai, mãe e filhos), que mais se aproxima da família biológica, é muito difundido entre nós.

A comparação com outros sistemas de parentesco permite mais facilmente ver a não-naturalidade do núcleo conjugal, que em muitas sociedades não coincide com a unidade de parentesco.

É o caso das sociedades onde a relação conjugal não é tão forte quanto a relação entre irmãos (sororal) e a paternidade não é um vínculo tão forte quanto o avunculado (ou seja, a relação do sobrinho com o tio, irmão da mãe).

Acho que há dois mitos que o instrumental da Antropologia contribuiu para destruir. Primeiro, a família conjugal como universal. Segundo, o casamento associado à satisfação sexual.

O que a Antropologia coloca, e que, a meu ver, é importante para os estudos de hoje, é que as relações de parentesco, o casamento e a divisão sexual do trabalho são estruturas universais. Em todas as sociedades há casamento, relações de parentesco (as três relações) e divisão sexual do trabalho, mas a combinação dessas relações, qual o seu significado, que relações são proibidas, não são proibidas, com quem se pode ou não casar, o que isso significa em termos da descendência, tudo isso é enormemente variado. Além de permitir ver a variabilidade, a "desuniversalização" e "desnaturalização" da família, a decomposição das relações envolvidas na família possibilita também pensar a mudança na família como um processo não totalizante, mas que pode estar referido a um ou outro elemento constitutivo da família. Nessa decomposição, fica claro que a família tem vários elementos que podem mudar ou não; a mudança, num dos elementos, não significa que o outro mude também.

Essa perspectiva nos ajuda a pensar a família hoje, que é uma família em transformação, mas que não é uma transformação totalizante; permite dimensionar melhor qual o peso de cada elemento que se transforma na família; e permite pensar que se a relação pais e filhos muda, isso não quer dizer que outras relações não possam manter o caráter tradicional. Isto tem implicações para pensar a família tanto terapeuticamente quanto em termos de políticas sociais. Eunice Durham (1983) dá boas indicações nesse sentido, quando comenta reivindicações aparentemente contraditórias na família atual das camadas médias. Há um questionamento da relação entre o homem e a mulher, com uma reivindicação de individualização, principalmente em relação ao trabalho feminino, de realização profissional e realização sexual. O homem e a mulher fazem uma reivindicação de caráter individualista. Por outro lado, em relação aos filhos, há uma demanda de reciprocidade, de complementaridade. São demandas que vão em sentidos opostos e que são resultados do mesmo processo de transformação.

Decompondo a família nos seus diversos elementos, como uma totalidade articulada, mas onde os elementos podem ser combinados de diferentes maneiras; repensando a família dentro de uma estrutura mais ampla, ou seja, contextualizando-a em termos de classe e outras condições sociais, podemos dimensionar melhor o que essa mudança reflete como processo mais amplo e geral.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DURHAM, E.R. Família e reprodução humana. In: Perspectivas antropológicas da mulher. Rio de Janeiro, Zahar, 1983, v.3, p. 13-44.        [ Links ]

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LÉVI-STRAUSS, C. Tristes trópicos, Lisboa, Edições 70, 1979.        [ Links ]

MALINOWSKI, B. Os argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo, Abril Cultural, 1976. (Os Pensadores, 43).        [ Links ]

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TYLOR, E. On a method of investigating the development of institutions applied to laws of marriage and descent. In: GRABURN, N. Readings in kinship and social structure. Nova York, Holt, Rinehart and Winston, 1975, p. 19-31.        [ Links ]