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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.3 n.1-2 São Paulo  1992

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A contribuição da psicanálise aos estudos sobre família e educação

 

The contribution of psychoanalysis to the studies of the family and education

 

 

Maria Cristina Machado Kupfer

Instituto de Psicologia — USP

 

 


RESUMO

O presente trabalho discute as concepções psicanalíticas a respeito da família e da educação, procurando demonstrar que, para a Psicanálise, a família não é entendida como um modulo da vida social, mas como uma estrutura no seio da qual se constitui a posição de um sujeito frente à sexuação. Por isso, o estudo das relações entre família e educação parece não caber no âmbito da Psicanálise. Porém, os escritos de Jurandir Freire Costa, um psicanalista preocupado em discutir as relações entre os determinantes sócio-culturais e os psicanalíticos, ajudam a apontar na direção de uma integração entre as leituras sociológica e psicanalítica da família e da educação.

Descritores: Família. Educação. Psicanálise


ABSTRACT

In this paper the psychoanalytical conceptions of Family and Education are examined, in an attempt to demonstrate that for Psychoanalysis the-family is not conceived of as a module of social life but as a structure in whose core the subjects constitute their sexuality. That is why the relations between Family and Education have no place in Psychoanalysis. However the writings of Jurandir Freire Costa, a psychoanalyst who studies the relationships between the socio-cultural and the psychoanalytical determinants, contribute to the integration of the sociological and psychoanalytical conceptions of Family and Education.

Index Terms: Family. Education. Psychoanalysis.


 

 

Ao ser colocado diante do binômio Família-Educação, um psicanalista teria provavelmente muito a dizer a respeito da Família, pouco a dizer a respeito de Educação, e praticamente nada a dizer a respeito da relação entre essas duas dimensões da vida social.

Falando a respeito de Família, um psicanalista seria provavelmente bastante prolixo. Afinal de contas, já é de domínio público o fato de que o fundamento teórico freudiano a sustentar a constituição do inconsciente é o complexo de Édipo, drama que se desenrola necessariamente no seio de um triângulo que é familiar: no interjogo dos papéis encenados por indivíduos que ocupam as funções de pai, mãe e filho, um indivíduo aprende a articular seu desejo com uma lei que opõe a esse desejo, um freio.

No interior da clínica psicanalítica, também são abundantes os discursos a respeito da importância da introdução da família como um todo na condução da cura de muitos pacientes. Se o paciente a ser analisado é, por exemplo, uma criança, é quase consenso entre os psicanalistas de crianças a crença de que seus pais devam ser acompanhados, escutados, pois as dificuldades apresentadas pelas crianças sempre revelam algo a respeito da verdade inconsciente do casal de pais, sendo por isso encaradas tais dificuldades como sendo os próprios sintomas dos pais, dos quais a criança não passa de um porta-voz. Se de outro lado, o paciente em questão é um psicótico, novamente a clínica psicanalítica não hesita em recomendar um atendimento paralelo dos pais. Finalmente, também são muito conhecidas as experiências de terapia familiar, embora essa modalidade terapêutica já não seja, strictu sensu, psicanalítica. De qualquer maneira, todo esse discurso psicanalítico sobre a família, se reunido em uma só obra, constituiria um volume avantajado.

Já a respeito do tema Educação, o discurso psicanalítico seria provavelmente mais acanhado. Embora Freud tenha se preocupado com ele ao longo de toda a sua obra, o número de páginas por ele escritas em torno desse assunto não ultrapassa a marca dos 200. No início dessa obra, tais páginas apregoavam a importância da Psicanálise para a Educação, e transmitiam a crença de que os ensinamentos psicanalíticos, transmitidos aos educadores, poderiam se constituir em valioso instrumento de profilaxia das neuroses. Mas, nos escritos finais, Freud deixou de apostar nesse poder: não havia como prevenir o aparecimento da neurose através de boas orientações educacionais.

Já o discurso a respeito das relações entre a Família e Educação parece escapar do âmbito da teoria psicanalítica.

Do ponto de vista da Psicanálise, a família não é entendida como um módulo da vida social, ou pelo menos não é com esse estatuto que o conceito de família comparece quando se fala, por exemplo, do triângulo edípico. Pai e mãe são entendidos como funções e papéis que não guardam relações com as funções e papéis sociais desempenhados pelas personagens que encarnam as funções maternas e paternas. Tais funções se referem ao papel que pai e mãe desempenham no processo dentro do qual se constitui o que Lacan chama de sexuação. A sexuação não descreve um processo no qual um indivíduo adquire um papel social de homem ou de mulher, mas descreve a constituição de uma posição subjetiva inconsciente frente à diferença sexual.

Atravessar o complexo de Édipo significa, em última análise, ter de se haver com o fato de castração, introduzida a partir do momento em que a diferença sexual anatômica é percebida por uma criança. A constatação dessa diferença desaloja o sujeito da posição subjetiva em que se encontrava até então — posição de felicidade narcísica em que nada faltava, pois a completude vivida com a mãe era sem falhas. Com a entrada no complexo de castração, será necessário que essa criança faça uma escolha. Terá de decidir o que fazer com essa realidade. Então, procederá ao recalque da castração, tornando-se um neurótico; recusá-la-á, sem contudo desalojá-la de seu inconsciente, tornando-se um perverso, ou expulsará essa lei para fora de seu inconsciente, tornando-se um psicótico. As figuras de pai e mãe pilotam esse processo porque encarnam as funções de pai e mãe. Porém, nada impede que um homem exerça função materna, ou que uma mãe exerça função paterna, ou um irmão da mãe exerça o papel do pai, e assim por diante. Portanto, as funções não coincidem necessariamente com os pais sociais exercidos por essas personagens no interior do módulo social familiar. Assim, não é com a família social que a Psicanálise se vê às voltas, mas com uma montagem lógica, formal, estrutural, a ser encarnada por personagens.

Uma demonstração eloqüente de que tais estudos não cabem no âmbito da Psicanálise é feita por Jurandir Freire Costa, em seu livro Violência e psicanálise (1984).'

No capítulo "Saúde mental, produto da educação?", Jurandir sustenta a seguinte tese: a Educação não produz saúde mental, mas reproduz a ordem social. A Educação incide sobre um âmbito preciso: atua na esfera do que Jurandir chama de identidade psicológica, buscando conformar tipos psicológicos-padrão. Esse tipo psicológico é moldado pela classe social, busca universalizar o particular, varia com a História. O desvio do tipo psicológico ordinário (TPO) pode ser causa de sofrimento mas não é sinônimo de doença mental.

A família busca conformar o TPO, em sã consciência. Não por opção, mas porque sua própria substância é composta de representações socializadas que são transmitidas à criança que aí encontra uma referência.

No caso patogênico, a informação não coincide com a intenção do educador. Um pai pode querer ser um pai conforme um TPO, mas acaba dirigindo ao filho uma mensagem que não é reconhecida porque não tem tradução na língua dos TPO —uma mensagem cuja lógica ele próprio desconhece e sobre a qual não tem controle.

Jurandir faz uma espécie de corte. De um lado, ficam as instâncias psicológica e sociológica, que podem manter entre si uma relação de influência, pois são âmbitos da mesma ordem — aí, Família e Educação mantêm relações possíveis: mas do outro lado do corte, fica um outro registro que escapa às trocas entre o psicológico e o sociológico, um âmbito inconsciente, mais propriamente psicanalítico, que não é gerado pelos valores e práticas sociais, mas depende de encontros entre estruturas inconscientes. Esse outro registro ainda não tem nome nesse texto de Jurandir. Ele apenas o constata.

Se ficássemos apenas com esse texto de Jurandir, a Psicanálise teria de ficar de fora nas discussões em torno das relações entre Família e Educação.

No entanto, Jurandir avança em suas reflexões em um outro livro, recentemente publicado, Psicanálise e Contexto Cultural (1989).

Jurandir é um psicanalista preocupado em integrar a leitura social com a leitura psicanalítica, sem apelar, contudo, para um freudo-marxismo ou algo do gênero. O que ele espera encontrar são subsídios para promover esta articulação do interior da Psicanálise. A idéia é procurar no interior do edifício psicanalítico os conceitos que permitam descrever um indivíduo que está ao mesmo tempo submetido à variabilidade cultural e à invariância das leis que regem a formação de seu inconsciente. Se não se sai de dentro da Psicanálise, evitam-se com isso os encaixes forçados entre teorias que partem de pressupostos diferentes, e que portanto dificilmente poderão ser complementares.

Ao buscar uma conciliação entre a variabilidade da cultura com os invariantes postulados pela Psicanálise, Jurandir encontrou uma distinção que foi feita por Lacan e que lhe pareceu bastante útil para esse propósito de conciliação: trata-se da distinção entre eu inconsciente e sujeito do inconsciente. Já veremos em que consiste essa distinção. Mas é importante, para não se perder o fio, dizer que, de posse dessa distinção, poderíamos fazer o seguinte. No corte que Jurandir fez, situando o psicológico de um lado e o psicanalítico de outro, poderíamos situar, do lado do psicológico, ou do tipo psicológico, a esfera do eu, e do outro lado do corte, poderíamos situar o sujeito do inconsciente. Então, ficaria assim: existe uma esfera, uma dimensão, uma instância psíquica no indivíduo, chamada eu inconsciente — conceito este que se encontra dentro do campo teórico da Psicanálise —que recebe as influências da educação e das práticas sociais instituídas, e que pode ser, portanto, modelado pelas práticas familiares. E existe, de outro lado, uma outra dimensão, que é postulada como invariante e universal.

Em Psicanálise, é necessário trabalhar com alguns postulados invariantes: afirma-se a constância das pulsões, do inconsciente — o inconsciente propriamente dito não varia conforme a posição social do indivíduo, e até mesmo uma criança deficiente mental tem inconsciente, podendo portanto ser analisada — e a universalidade dos distúrbios psíquicos. Mas — e aí está a reflexão de Jurandir que nos ajuda —a expressão dessas mesmas pulsões, desse inconsciente, desses distúrbios psíquicos, pode variar. "A universalidade do distúrbio psíquico não significa invariância das expressões psicopatológicas (...). Não temos dúvidas de que os distúrbios mentais só existem através de certos conflitos subjetivos, os quais, por seu turno, estão sócio-culturalmente determinados" (1989, p. 18).

Desse ponto de vista, a Psicanálise tem agora algo a dizer a respeito das relações entre Família e Educação.

No interior de uma família, entendida agora como um módulo nuclear da sociedade, montam-se pequenos eus, cujo estofo são as identificações com pais, com seus traços e valores superegóicos, com ideais que eles lhes vendem a varejo. Embora a história de sujeito do inconsciente já esteja selada, pois seu destino como neurótico, psicótico ou perverso não se opera ao nível do eu, ainda assim, sobre essa infra-estrutura serão construídos os elementos superestruturais egóicos e socialmente determinados.

A Educação virá normalizar essas relações, virá imprimir-lhes direção e significação. Ao trabalhar na construção do tipo psicológico padrão, a Educação não estará fazendo outra coisa além de reproduzir as normas sociais vigentes, pois será o arauto privilegiado dos ideais a serem perseguidos por esse eu em construção, que precisa alimentar seu próprio narcisismo através da perseguição a esses ideais.

Mas, por detrás dessa montagem, jaz, surdamente, o sujeito do inconsciente, que se faz representar vez por outra em um lapso, em uma formação do inconsciente. Sobre ele a família e a educação não incidem, e nem devem incidir, sob pena de descaracterizar sua tarefa, eminentemente repressora e normalizante.

Nenhuma prática pedagógica instituída pode incluir em seus métodos regulares a consideração ou mesmo a manipulação dessa dimensão do indivíduo em formação.

Pergunto-me agora se não é uma grande sorte que essa dimensão não seja passível de enquadramento, pois se o fosse, estariam ameaçadas pelo furor metodologizante da Pedagogia as suas forças extremamente criativas. Ou então, estaria ameaçado o enorme potencial impulsionador de que é dotado esse sujeito, pois sua mola propulsora é o desejo inconsciente. Imagine-se o desastre que aconteceria caso esse desejo caísse nas mãos normatizantes da Pedagogia.

Existe, de um lado, o eu, a ser moldado, normatizado, padronizado pela Educação e seus mandados (família, escola, clubes, e outras instituições do tipo). Mas existe, de outro, o sujeito, abstração lógica que está por detrás dos sonhos, dos atos falhos, dos homens que se deixam impulsionar pela verdade de seu desejo, dos homens que produzem Poesia e Literatura.

Nesse constante jogo entre reter, reprimir, moldar, de um lado, e explodir, romper, transgredir seus próprios limites, de outro, os indivíduos caminham, transformam, fazem sua própria história e a história dos homens.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA, J.F. Psicanálise e contexto cultural: imaginário psicanálitico, grupos e psicoterapias. Rio de Janeiro, Campus, 1989        [ Links ]

COSTA, J.F. Violência e psicanálise. Rio de Janeiro, Graal, 1984, p. 63-78: Saúde mental, produto da educação?        [ Links ]