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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.3 n.1-2 São Paulo  1992

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A família de classe média atual no Rio de Janeiro: algumas considerações

 

Middle-class families in Rio de Janeiro today: some ideas

 

 

Sérvulo Augusto Figueira

PUC—RJ

 

 


RESUMO

O artigo examina as principais alterações observadas nos últimos anos na família de camadas médias urbanas da zona sul da cidade do Rio de Janeiro. A análise incide sobre as mudanças, expressas pela linguagem cotidiana, nos padrões de gênero e nas esferas da sexualidade e da autoridade. A partir de considerações sobre estas famílias do ponto de vista cultural, o autor faz incursões em um espectro mais amplo de outras relações sociais.

Descritores: Família (Brasil). Relações familiares. Valores. Normas sociais. Mudança social.


ABSTRACT

This article investigates the main changes observed in middle-class families in Rio de Janeiro in recent years. The main changes, expressed in everyday language, in sexuality and authority patterns are examined. From cultural considerations about these families, the author discusses a large gamut of other social relationships.

Index terms: Family (Brazil), Family relations. Values. Social norms. Social change.


 

 

De início gostaria de apresentar dois conjuntos de questões: o primeiro é a questão que eu chamaria, na falta de um melhor termo, do sociologicamente invisível e o segundo diz respeito a uma série de questões sobre a família no Brasil.

Queria esclarecer algumas coisas, para me situar melhor para vocês. Tenho uma formação acadêmica como psicólogo, professor da PUC—RJ e trabalho fundamentalmente como psicanalista. O meu trabalho com família é de caráter interdisciplinar, iniciando-se em 73/74. Um trabalho em que eu tentava fazer uma série de sínteses entre posições no campo da Sociologia e da Antropologia em relação à família e posições no campo da Psicanálise. A motivação para estudar as questões da família, especialmente de classe média, foi o fenômeno da difusão no Rio de Janeiro de forma maciça da psicanálise, a sua popularização.

Como isso aparecia?

Aparecia em diversas referências no jornal O Pasquim, importante na época, nas conversas que as pessoas tinham em festas insuportavelmente chatas, porque o assunto básico era sobre o analista, a análise, etc.

Evidentemente isso ocorre após 68/69, quando dava-se a impressão de um deslocamento do discurso, com ênfase na área do privado, cujo tema posteriormente foi teorizado e pensado por Luciano Martins, num artigo chamado "Geração AI-5". Mas no primeiro momento, vendo essa situação, escrevi o meu primeiro artigo que continha uma crítica psicanalítica extremamente "severa", bem científica, do uso da interpretação no cotidiano, demonstrando por meio de Freud, Lacan e outros autores, que a interpretação do cotidiano era uma bobagem, era algo insustentável, reducionista.

A partir de um certo tempo, a partir da leitura de trabalhos de Foucault e Castel, cujo livro é de 1973, de alguns artigos que discutiam o problema da difusão da psicanálise na França e em contato com pesquisadores do Museu Nacional e do Departamento de Sociologia da PUC, fui mudando o meu modo de analisar a questão, pois notava estar diante de um fenômeno amplo, contando com alguma coisa por trás, que faz com que as pessoas insistam em interpretar o cotidiano com o uso equivocado da psicanálise. Em contato com bibliografias de diversos autores da França e EUA (Peter Bergé), comecei a me preocupar com o que poderia estar por trás disto, no plano da classe média. Comecei a desenvolver um trabalho em 74/75 em torno da problemática da modernização da família e pouco a pouco fui evoluindo para adotar uma metáfora, que depois veio a circular, que parece captar bastante bem certos aspectos da mudança no âmbito da família em geral, especialmente de classe média, a metáfora do desmapeamento. Essa imagem sugere que perdemos o mapa para orientação. É uma metáfora feliz pelo fato de tornar-se conhecida, pois falava do desmapeamento no âmbito da família que, basicamente, veio com a mudança acelerada, buscando-se 50 anos em 5, como afirmava Juscelino Kubistchek, envolvendo toda a aceleração da industrialização e modernização do país. Efetivamente, o país sofreu bruscamente uma mudança e é como se as pessoas tivessem acordado no dia seguinte e o mundo estivesse de cabeça para baixo, adotando novos valores, novos códigos. A adoção desses novos códigos se fazia num determinado plano da organização subjetiva das pessoas, que estava crivado ou distanciado de um outro plano, o inconsciente, que ficava relegado a uma outra dimensão, plano em que as pessoas abraçavam valores arcaicos, mais tradicionais. Desse tipo de conflito ou dessa situação desmapeada surgia uma demanda de organização e a psicanálise difundida era o que existia para resolver esse tipo de problema. Ela não se fazia apenas através da terapia no consultório, mas, também, através de seu discurso, de seus clichês, da atmosfera que a psicanálise popularizada criava. O que estava por trás da difusão da psicanálise era uma problemática de mudança acelerada no âmbito da classe média, atingindo basicamente o binômio da família e da subjetividade, criando uma demanda de um sistema simbólico organizador que não podia mais ser encontrado nas religiões tradicionais e nem em outras formas de organização simbólica ou nem mesmo da prática política, inclusive por causa do fechamento político. Com essa problemática acompanhando minhas preocupações, eu me vi novamente envolvido, quando fazia o doutorado em Londres. Antes de viajar, eu tinha uma idéia um tanto quanto ingênua, imaginava que se no Brasil existia uma psicanálise que era incipiente como força científica e tinha tanta popularização em Londres, onde a psicanálise é fortíssima, iria encontrar uma popularização maciça. Era um raciocínio ingênuo, mas bastante racional para quem ia viajar.

Chegando, verifiquei que eu não encontrava traços de psicanálise em lugar algum. Havia uma ausência absoluta daqueles comentários chatíssimos: ninguém comentava no jantar se fazia análise ou não, nada nos jornais, revistas ou televisão. Não havia referência de ordem alguma sobre psicanálise. Depois de um certo tempo, comecei a perceber que não era bem assim. Comecei a sofisticar a minha percepção e percebi que ela estava presente de um outro modo: era altamente fragmentada e escondida. Por exemplo, na área da Pedagogia havia influências de psicanalistas, sobretudo na década de 30, mas as pessoas envolvidas com pedagogia jamais iriam evocar a psicanálise. Como o tema da minha tese era sobre a teoria da difusão psicanalítica, em Londres tive que dar conta desta situação. O que eu tinha desenvolvido para o Brasil simplesmente não se aplicaria à situação inglesa, embora lá tivesse havido também um processo acelerado de mudança em alguns setores da sociedade, porém não se encontrava uma demanda de organização que a psicanálise devesse suprir.

Eu fui obrigado a criar um outro modo totalmente diferente de entender a situação da psicanálise na sociedade que estava mais próximo do modelo cultural e antropológico. A psicanálise não se difunde na Inglaterra porque ela colide frontalmente com valores do Ethos e do Eidos, ou seja, da codificação de pensamento, da lógica categorial inglesa e da codificação de afetos. Para dar um exemplo, recorro ao empirismo do pensamento inglês que é avesso a um pensamento tão metafórico como o psicanalítico. O empirismo faz com que as pessoas tenham uma relação curiosa com a metáfora.

Os ingleses acham que metáfora existe na literatura e não na ciência. No plano da organização emocional básica da classe média ocorre a contenção de afetos. Qualquer saber ou forma de pensamento que estabelecesse um curto-circuito entre o lado de fora e o lado de dentro, ou seja, baseado na expressão do que o sujeito faz e do que o sujeito sente, e que tivesse o poder supostamente de penetrar na sua subjetividade, qualquer saber, neste sentido, seria tabu numa sociedade que preza a privacidade e o que há de mais precioso no indivíduo, o seu espaço interno. Isso me criou outro modelo e a partir dele eu passei a pensar o Brasil sob outro ponto de vista, retomando autores como Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Roberto Schwarz e Gilberto Freyre. Clássicos que estudaram e pensaram o Brasil a partir de modelos abstratos e generalizadores, mas preocupados com a brasilidade. O que eu queria dizer sobre a família relaciona-se com esses dois momentos: o primeiro, no Brasil, em que eu estava preocupado com a difusão da psicanálise e a questão da mudança social e o segundo, na Inglaterra, em que me vi às voltas com certas formas estáveis de organização da família e da subjetividade. Apresentei essas questões apenas para dar uma ancoragem às minhas idéias.

A primeira problemática, que eu chamei do "sociologicamente invisível", se organizou para mim como um confronto com a produção do Museu Nacional, encabeçada por Gilberto Velho e desenvolvida a partir da participação em bancas de mestrado e doutorado apresentadas no Rio de Janeiro. A antropologia trabalha com uma série de questões no âmbito da família como se elas fossem representações: o indivíduo seria uma representação da ideologia ocidental, pois nas classes populares não existiria essa representação. A minha discussão com este tipo de produção do Museu Nacional se dá a partir da minha experiência como analista no Rio de Janeiro e em Londres, trabalhando com pacientes de classe média e operária. Creio que a problemática do individualismo não consiste apenas em uma representação do indivíduo. Não existe um individualismo clássico, como na ideologia da Revolução Francesa, mas existe efetivamente uma organização subjetiva que corresponde mais a uma forma individuada de se relacionar com códigos sociais que difere de uma organização subjetiva, própria de outras frações ou populações das denominadas sociedades complexas.

Nesta discussão, eu me vi às voltas com o que era invisível para o discurso das ciências sociais. Para a perspectiva das ciências sociais, a questão do indivíduo é tratada como uma representação, mas trabalhando com o entroncamento das ciências sociais e psicanálise foi possível perceber o indivíduo não apenas como organização, mas efetivamente como uma organização da subjetividade. Nesse sentido eu forjei esse termo de que nós estaríamos falando, o que é "sociologicamente invisível", no sentido de que as sociologias clássicas não conseguem perceber essa dimensão da codificação dos afetos, da codificação de uma lógica subjetiva. Não que as teorias não consigam perceber, contudo elas não colocam isso em prática. Toda sociologia clássica tem uma percepção do indivíduo. Encontramos essa percepção em Durkheim, Weber e Zimmel. Mas é como se a sociologia tivesse se organizado a partir de um certo modelo de Durkheim, separando o indivíduo do social, e os sociólogos como profissão tivessem definido que a ordem do indivíduo não faz parte da sociologia. O que eu queria demonstrar é que tais processos não são da ordem do indivíduo. A emoção não é da ordem do indivíduo, ela é codificada socialmente e neste âmbito o sujeito produz sua variação individual. A emoção é codificada socialmente, assim como a formação de identidade.

Para analisar a mudança social e a família no Brasil, e o que eu chamo do "sociologicamente invisível", pode-se começar por um desvio e partir ponto de vista do cotidiano, extraindo-se os indicadores mais óbvios. Eu vou me referir ao modelo classe média — Rio de Janeiro, já que há uma série de diferenças entre Rio de Janeiro e São Paulo, no âmbito da classe média.

Vou trazer essa temática considerando a Zona Sul como uma fração da sociedade produtora de bens simbólicos através da mídia. Ou seja, as pessoas que escreveram os episódios de "Malu Mulher" podem ter feito isto sentadas em um botequim da Zona Sul, conversando sobre dramas privados. Mas esses dramas privados se transformam em episódios transmitidos ao Brasil inteiro, em rede nacional, e são exportados para a Suécia e outros países. A importância desse tipo de fenômeno carioca não é numérica, estatística ou quantitativa, sua importância é qualitativa na medida em que a produção de uma série de discursos e bens culturais está centrada no Rio de Janeiro, ainda. O mito de Ipanema está muito ligado ao campo da moda, no plano do comportamento, da mídia, da música, etc.

Se considerarmos um ponto de vista bem cotidiano para observarmos o que está acontecendo, percebemos que houve um aumento muito grande, nos últimos anos, das separações, de recasamentos, de pessoas morando sozinhas que recebem o nome de singles. Existem, paralelamente a isto, algumas frações da sociedade com alergia ao casamento, alergia sobretudo observada nos homens. Houve o aumento do se "juntar", de "morar juntos" e a aparição da nova "família extensa", que é a situação de um homem de 65 anos e uma mulher de 62 anos que são avós e recebem no domingo para almoçar o filho, com a terceira esposa e os filhos deste, a segunda esposa do filho com os filhos e o marido novo, os filhos da primeira mulher do filho e assim por diante. Aí se tem uma composição complexa que está aparecendo há uns 10 ou 15 anos. Assim como aparecem famílias de classe média que deixam os filhos adolescentes terem relações sexuais com o(a) namorado(a) em casa. Isto era impensável há uns 20 anos atrás.

Há a produção independente ou, como era chamado antigamente, a mãe solteira, que se transformou em forma positiva em relação ao fato da reprodução. A posição da mulher nestes 20 anos mudou e muito. Antes a mulher não podia se vestir de tal modo, não podia fumar na rua, falar palavrões. Enfim, sua posição sofreu uma erosão súbita nos últimos 10 ou 15 anos.

Paralelamente temos nos anos 70 a emergência de novos códigos relacionados como a "amizade colorida", a questão de "ficar com" (anos 80), que são duas formas bastante novas de relação no cardápio relacional brasileiro. E outros termos surgem como, por exemplo, "caso", que era um termo antigo e foi reativado e "relações paralelas" para relações extraconjugais. O maior indicador de modernização em qualquer cultura é a mudança léxica. "Relações paralelas" é um termo novo, leve para substituir a problemática do "corno", é, assim, um termo sem peso moral. Gay substitui a problemática clássica do "viado", do "bicha" que são expressões extremamente carregadas. Essas alterações léxicas exprimem mudanças rápidas. O "ficar com" é uma problemática curiosa. Envolve apenas uma situação instantânea. O par encontra-se em uma festa, as pessoas ficam juntas e não há expectativa de continuidade no dia seguinte. É uma relação de total descompromisso, mas isso é plantado num pano de fundo absolutamente tradicionalista, que não mudou substantivamente, a posição da mulher. O "ficar com" apenas agiliza a relação homem/mulher muitas vezes em proveito da sexualidade masculina que é oportunista, ou a mulher assumindo essa atitude, reproduzindo a lógica da segmentação sexual.

No Brasil, a questão sexual está sempre presente, o que não acontece em outros países, pois no campo do trabalho homem e mulher se encontram como profissionais. No Brasil, não mudou a lógica da segmentação sexual. No trabalho a questão da sexualidade continua presente, tendo sido inibida nos países avançados. A sexualidade continua sendo a área do pecado e a distinção entre sexos (a divisão sexual do trabalho) ainda é forte em nosso país em todos os campos. Não há uma igualização. Todas estas questões interferem na formação da identidade da mulher.

Há uns 20 ou 30 anos, prevalecia a concepção que a mulher foi criada para o homem, sucessivamente: o pai, o irmão, o marido, o morto. A sexualidade da mulher foi sempre transitiva, ela está referida a um outro e à sua honra. Aparentemente, tudo está mudado, no Brasil, mas há indícios que negam mudanças profundas.

Houve alteração, porém não houve mudança na lógica sexista. Na propaganda, se pegarmos qualquer revista, temos as imagens da mulher caseira e da mulher sexy, bem definidas. Há muito pouca variação para a mulher inteligente, charmosa, discreta ou interessante.

Dentro desse quadro de modificações vividas, há uma alteração muito grande frente à homossexualidade, a tal ponto que a heterossexualidade está sumindo por efeito de moda. Ou seja, não se é moderno se não for andrógino ou bissexual. Há uma série de outros indicadores, como a emergência da relação díspar em termos de idade. A relação do homem mais velho com uma garota mais nova sempre existiu. Mas antes era a imagem de um coronel que sustentava a garotinha. A grande diferença de idade entre homens e mulheres sempre existiu, mas agora destaca-se a mulher mais velha com rapazes mais novos. As novelas mostram isso, que poderia parecer muito moderno, mas não é. O diferencial etário é uma maneira de driblar a concorrência entre os sexos que as pessoas não conseguem administrar. A mudança que aparece é a mulher ocupando agora o lugar que antes foi do homem, reproduzindo uma relação paternalista e hierárquica. Este foi o caráter da modernização brasileira dos últimos anos, que não propiciou condições para o indivíduo experimentar livremente situações ou oportunidades criadas pela vida.

Um outro fenômeno da modernização no Brasil é a questão da precocidade sexual. Quem tem filhos ou sobrinhos pequenos pode perceber que a questão da sexualidade está entrando nas faixas mais novas. Se ligarmos a TV às 8 da manhã vemos a Xuxa, Simony, e Mara que promovem uma relação com as crianças de grande excitação erótica e físicalidade. Houve uma univocidade do desejo sexual; a criança deseja a Xuxa, o pai deseja a Xuxa, o avô deseja a Xuxa, seus amiguinhos desejam a Xuxa, todos desejam a Xuxa. Quais são as pré-condições para que este tipo de programação apareça?

Há um aspecto interessante e aparente na educação de crianças no Brasil. Houve a emergência dos direitos da criança — mas e os deveres das crianças? Todo país que criou direitos não esqueceu dos deveres da criança. No Brasil há uma ética dos direitos sem a contrapartida dos deveres. Está se criando uma geração que não tem a noção do social, dos limites, de dever, pessoas egocêntricas, que não enxergam os outros. O controle do comportamento das crianças torna-se muito mais oportunista do que ético, dado o tom pragmático que a classe média tem imprimido à educação de seus filhos. Não há mais orientações a partir de princípios.

Há uma pretensão de ser moderno no Brasil, em todos os aspectos: econômicos, políticos e sociais. O resultado é uma desorientação e angústia, acopladas à busca da novidade, do prazer e da excitação. Os elementos da novidade e da excitação tendem a diminuir no Brasil dos anos 80. O mergulho no novo foi muito rápido e se articulou a velhas formas que não foram abandonadas. Como conseqüência vêm a angústia e a busca da psicanálise.

Sempre me perguntam se eu acho que o poder da psicanálise no Brasil vai acabar, valorizando-se outras formas como a bioenergética, terapia corporal, etc. Respondo que não, porque o corpo tem uma relação diferente com o espírito, dependendo da cultura. Uma terapia que atinge as pessoas pelo corpo e não o espírito não vai dar certo, pois enquanto em outros países, como a Inglaterra, o corpo está dissociado do espírito, aqui o corpo é o lugar do pecado e do prazer, de acordo com a nossa tradição católica.

Dei uma série de exemplos apontando situações de mudança e, ao mesmo tempo, processos que não se alteraram.

Vivemos um processo de modernização reativa — típico de países em que a mudança social é rápida. Ocorre a emergência de formas sociais que são "anti" as formas sociais anteriores. A frase de Caetano Veloso "É proibido proibir" revela a modernização reativa. Ocorre uma restrição em segundo grau. Não se pode proibir, mas continua havendo proibição. A modernidade cria um outro não.

A opção baseada no valor individual é o registro do moderno. O que aparece como modernização reativa é uma tentativa de controlar as identificações e os valores que o sujeito tenha adquirido em outra etapa da vida.

Por essas razões é preciso desvendar o que eu denominei de "sociologicamente invisível" para se entender esse tipo de processo que descrevi muito rapidamente.

O segundo bloco de questões diz respeito ao Brasil e à problemática da cultura. Eu acho que a maior parte dos acadêmicos não sabe em que país está, onde vive. É difícil sabermos em que lugar estamos porque o real é muito complicado, desafia uma série de noções que vêm basicamente do primeiro mundo. Os saberes da sociologia e da psicanálise produzidos no primeiro mundo supõem, em última instância, uma organização social com certas diferenciações que o Brasil simplesmente não possui. Não se pode imaginar que o Brasil se transforme numa Inglaterra, EUA, Alemanha ou França. Está virando uma outra coisa que não se sabe muito bem o que é.

O que chamamos de Estado para designar a formação política brasileira não tem nada a ver com o Estado liberal capitalista e moderno. Roberto Scharwz, em um artigo chamado "As idéias fora do lugar", se refere ao fato de que, no século XIX, intelectuais estavam falando de liberalismo quando ainda existiam escravos. A nossa intelectualidade, ao não considerar esse problema, produzia um discurso inadequado. Essa é uma matriz do pensamento que contém uma inadequação em suas bases.

O desmapeamento cria a confusão com a emergência de processos modernizadores a partir de bases arcaicas.

A codificação da década de 50 se fez a partir de uma experiência cultural anterior que foi esquecida. O casamento monogâmico dos anos 50 se construiu a partir de uma ruptura do modelo patrimonial que não era monogâmico. Os anos 70 criaram outros modelos. Pode-se dizer que no Brasil há um modelo da família extensa que é extremamente persistente. Essa família constitui uma armação que serve de pano de fundo para as pessoas se perceberem. Ela é desejada, as pessoas precisam dela. Um aspecto muito interessante ligado à família extensa é a relação entre público e privado no Brasil.

No Brasil o estranho não aparece de modo neutro, ele é perigoso. Por exemplo, se você vai à casa de um amigo e este tem um filho pequeno, ele diz: "Dá um beijo no titio", para que você não seja um estranho. Se você não está na família, você está no público, que é perigoso, você é estranho. Nas sociedades complexas, o público é neutro, normatizador. No Brasil, o público é uma área obscura, cheia de perigos, está fora da família. Ela é categoria que ameniza em oposição ao público. A lei para nós está identificada com o estranho, o inimigo. Tanto é que dizemos: "Aos amigos tudo, aos inimigos a lei". A lei da família se sobrepõe à lei abstrata, como é o caso de Doca Street, que matou em defesa da honra da família e foi solto.

Essa forma da organização social brasileira pode ser percebida no trânsito. Se o sinal está fechado você tem que parar em função de uma noção abstrata. O apelo no Brasil sempre está relacionado ao pessoal. A frase surgida na década de 70 "Não faça do seu carro uma arma porque a vítima pode ser você", apela para o pessoal, você só não mata alguém com seu carro porque você também pode morrer. Não há uma aceitação da regra abstrata. O império da família é tão grande que não há formação do outro abstrato, no Brasil. A penetração da lei é muito superficial em nosso país que é regido pela lógica da malandragem. A malandragem é uma oscilação, que é encarnada pelo malandro, entre a ordem e a desordem. Essa lógica combinada com a lógica da inclusão familiar rege o Brasil como um todo.

Diante da ausência do outro abstrato, sobretudo em cidades como o Rio de Janeiro, as pessoas só se comportam diante das situações se houver a presença (física) da autoridade; nas demais situações procura-se levar vantagem. Eu só roubo o cinzeiro do bar se não tiver ninguém olhando; é o "se dar bem", como por exemplo, ir ao restaurante e não pagar a conta se ninguém está observando.

O superego estudado por Freud significou a descoberta de uma instância do psiquismo que controlava o comportamento, o pensamento e o desejo, independentemente da consciência. No Brasil, essa instância não está formada em diversas circunstâncias e em várias áreas. Isso quer dizer que em várias situações as pessoas só se comportam de acordo com regras quando há a presença física da autoridade.

Esses elementos, aqui apresentados muito rapidamente, regem a organização social brasileira, antecedem o processo da modernização e estão presentes de modo não facilmente perceptível em um padrão da organização familiar que é extremamente persistente.

Para finalizar, gostaria de encerrar com um comentário sobre a violência que, de certa maneira, reúne questões tratadas anteriormente: família, relação com o outro, o "superego" e a malandragem. A relação nossa com a violência é extremamente problemática, envolve vários aspectos. Eu gostaria de salientar um elemento que envolve, ao mesmo tempo, a problemática do "sociologicamente invisível" e modos da organização subjetiva familiar brasileira. A reação à violência em geral é ineficaz porque, no Brasil, há uma identificação normativa com a malandragem do ladrão e não com a vítima. Se não houve crime de sangue, essa identificação se manifesta de modo claro. Quando não há uma identificação com a vítima você não pode ter uma ação concentrada e forte como vítima. O país está tão arrasado que as pessoas se identificam com a competência do ladrão.

Não temos uma relação com o espaço público estruturado, não temos uma relação marcada pela lei e sim pela malandragem e não temos identificações positivas a não ser dentro da família. Desse modo o ladrão que nos assalta é um amigo em potencial.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Rio de Janeiro, Vozes, 1978.        [ Links ]

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