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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.3 n.1-2 São Paulo  1992

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Família e socialização

 

Family and socialization

 

 

Jerusa Vieira Gomes

Faculdade de Educação — USP

 

 


RESUMO

O artigo analisa o processo socializador, realçando a mediação parental. Tendo por pressuposto que no interior do grupo doméstico a criança "aprende a aprender", analisa a continuidade/descontinuidade entre a ação educativa da família e da escola, sobretudo no que se refere às camadas populares urbanas.

Descritores: Família. Socialização. Crianças.


ABSTRACT

This paper analyses the socialization process of the child, emphasizing parental mediation. On the assumption that inside the domestic group the child "learns how to learn", it describes the continuity/discontinuity of family and school educational action, especially among the urban popular classes.

Index terms: Family. Socialization. Children.


 

 

O estudo sistemático de questões concernentes à socialização coube, tradicionalmente, às ciências sociais, especialmente à Antropologia. A Psicologia, conforme observam Zigler e Child (1969), em extensa revisão bibliográfica, estuda-a de maneira indireta e secundária, nos contextos da Psicologia do Desenvolvimento e da Psicologia da Personalidade. Desde então — afora os dois excelentes trabalhos de George Mead (1972) e, em particular, o de Lorenzer (1976) que, embora sob enfoques distintos acabam por acentuar a socialização como o cerne da Psicologia —, o panorama geral parece inalterado. Quanto a Educação, observa-se, é nítida a preferência de educadores pela socialização secundária, o que até certo ponto é compreensível. Porém, não é compreensível o não reconhecimento, na prática, da dependência entre ela, a socialização secundária, e a socialização primária: ou, o que é ainda pior, às vezes há até tal reconhecimento, mas fundado em premissas derivadas de estereótipos e de preconceitos.

Não fora por nada mais, estes já seriam motivos suficientes para justificar a propriedade de, neste seminário, refletirmos sobre a ação socializadora familiar e suas conseqüências para o processo socializador no âmbito escolar. Dito de outro jeito, a proposta é de refletirmos, nesta oportunidade, sobre a questão da continuidade/descontinuidade entre a educação familiar e a educação escolar. Contudo, antes de mais nada, talvez sejam necessárias algumas breves palavras esclarecedoras dos fundamentos teóricos desta fala.

E, à guisa de exemplo, farei um relato sucinto de um estudo de caso (investigação de campo) sobre a socialização primária, por mim realizado na Vila Helena. Assim será abordado o tema Família e Socialização.

 

I — BASES TEÓRICAS

Berger & Luckmann (1976), Sartre (1960) e Erikson (1976), em conjunto, constituem os apoios teóricos desta análise da socialização.

Berger & Luckmann, sob a ótica da Sociologia do Conhecimento, definem a socialização como "a ampla e consistente introdução de um indivíduo no mundo objetivo de uma sociedade ou de um setor dela". Definem, ainda, a socialização primária como "a primeira socialização que o indivíduo experimenta na infância, e em virtude da qual torna-se membro da sociedade"; e socialização secundária como "qualquer processo subseqüente que introduz o indivíduo já socializado em novos setores do mundo objetivo de sua sociedade". (p. 175 —destaques meus).

Observe-se, há nesse enfoque uma clara dependência da socialização secundária em relação a socialização primária, a medida que ela é um "processo subseqüente" de introdução de um indivíduo "já socializado" em outros setores (diversos) da vida social. É importante reter esta idéia —retomá-la-emos oportunamente.

Há, ainda, um outro ponto relevante da abordagem desses autores, e que deve ser aqui ressaltado: a explicação da socialização em termos da dialética homem-sociedade. Para eles, esta relação dialética compõe-se de três momentos, a saber: interiorização — objetivação —exteriorização. A interiorização corresponde ao momento privilegiado da socialização. A criança, ao nascer, encontra um mundo já posto — embora fruto da ação coletiva de todos os homens que a antecederam —, a ser por ela interiorizado e assumido. E interiorizá-lo, evidentemente, supõe objetivá-lo e a ele responder, exteriorizando-se nele.

Em decorrência, a criança não estabelece as condições iniciais de sua existência, elas são um a priori. Assim, até mesmo a unicidade e a originalidade de cada um só existem em relação a condições previamente estabelecidas, e que as determinam.

Nestes termos, a socialização é um acontecimento que exige, sempre, mediadores entre o mundo físico e social e a criança. Porque são eles, os adultos encarregados de educá-la — "os outros significativos", para Berger e Luckmann —, que estabelecem as condições iniciais de vida da criança (o a priori infantil). E é na relação com eles que ela, a criança, faz a sua aprendizagem de ser social ou, no dizer sartriano, de ser em situação.

Para Sartre — o segundo apoio teórico —, só é possível compreender o adulto a partir da análise das condições particulares que envolveram e determinaram as mediações parentais, durante a infância, bem como das características dos mediadores específicos.

Não obstante, ao invés de realçar a pessoa do mediador, ele remete a mediação à família — inclusive à família de cada um dos mediadores —, porque é ela quem insere o homem em sua classe e, assim, na sociedade. E adverte: o trabalho, a classe e a sociedade são interiorizados pela criança, por intermédio da apreensão que deles fazem seus próprios pais, a partir de suas particulares condições de trabalho. Portanto, tais interiorizações —e de vários outros aspectos da vida social — muito antes de derivarem da experiência pessoal primeira derivam, inicialmente, da experiência de outrem: dos mediadores. E, sobretudo, não apenas tudo isso se passa e é transmitido no interior de uma família particular, mas há uma história de como o grupo familiar vive, de geração em geração, a vida social; essa história, evidentemente, é transmitida e apreendida pelas novas gerações, objetiva e subjetivamente.

Finalmente, chegamos a Erikson (o terceiro apoio teórico): sua teoria psicossocial do desenvolvimento é, sem dúvida, uma teoria de socialização. Do nascimento à idade adulta, o homem desenvolve-se através de fases sucessivas, a cada uma das quais está, sempre, associado um "sentimento de", em coerência com os ideais de uma cultura concreta. Nessa medida, a aprendizagem que a criança realiza em cada uma dessas fases é determinada por exigências culturais. Preso ao referencial psicanalítico, Erikson supõe a existência de fases, embora apresente-nos uma seqüência original que abrange do nascimento à velhice, num total de oito fases ou idades, como ele mesmo preferiu denominá-las — respectivamente, oral-sensorial, muscular-anal, locomotor-genital, latência, puberdade e adolescência, adulta jovem, adulta e maturidade (enquanto para Freud são cinco as fases: oral, anal, fálica, latência e genital). Deriva, ainda, do referencial psicanalítico a ênfase na mediação materna. Contudo, tornou-se um "maldito" por realçar as determinações culturais dessa mediação. Na verdade, Erikson estabelece relações claras e inequívocas entre a figura materna, a formação da estrutura psíquica e as caraterísticas culturais (talvez isto explique a ampla utilização de sua teoria por investigadores sociais que estudam a socialização e temas correlatos).

Em resumo, é associando os autores aqui mencionados que procuro desvendar o processo de socialização. Tal enquadre implica algumas conseqüências imediatas, a saber: a) admitir a socialização primária como a base sobre a qual se desenvolverá a socialização secundária — ou, dito de outro jeito, a socialização primária, levada a cabo no interior dos grupos familiares, como a base sobre a qual se desenvolverá a socialização secundária, especialmente a educação escolar; b) buscar conhecer a modalidade de organização familiar predominante nas diversas camadas sociais, bem como as características básicas da educação infantil promovida por essas famílias e c) finalmente, colocar a questão da continuidade/descontinuidade entre as duas modalidades de processo socializador — familiar e escolar.

 

FAMÍLIA E SOCIALIZAÇÃO

Socialização, como vimos, refere-se ao processo de transformação do ser biológico em um ser social típico. Esse processo é, de costume, dividido pelas ciências sociais em primário e secundário. Família e escola — nas sociedades que assim o determinam — acabam sendo as grandes agências socializadoras, respectivamente, da socialização primária e da socialização secundária.

Ditas as coisas deste jeito, tem-se a impressão de que são dois processos, e não um único apenas dividido formalmente em dois, como é o caso. Sobretudo do ponto de vista de quem o vivencia, do nascimento até à morte, o processo é um só. Ora em casa, com a família, ora nos grupos de amigos, ora nas creches, nas escolas, nos clubs, nas casas de parentes e/ou de amigos, é a mesma criança quem está em processo de aprendizagem social. Mudam sim, os locais e as dinâmicas por eles impostas, bem como os comportamentos, as atitudes e os valores relevantes em conformidade com a especialidade de cada um deles. Mas a pessoa continua a mesma, em processo. Hoje tudo isso torna-se mais nítido, e mais complicado, quando a criança é introduzida no mundo institucional dos berçários e das creches, em uma idade em que gerações anteriores permaneciam restritas ao universo doméstico.

Consideremos, agora, a tarefa socializadora familiar: o que faz a família? Já sabemos, ela faz a primeira inserção da criança no mundo social objetivo, à medida que promove a aprendizagem de elementos culturais mínimos: linguagem, hábitos, usos, costumes, papéis, valores, normas, padrões de comportamento e de atitudes, etc. Mas, além de tudo, também promove a formação das estruturas básicas da personalidade e da identidade.

Contudo, não se esgota nisso a ação socializadora familiar. Acrescente-se, ainda, o fato de ela, no curso desse processo, "ensinar a criança a aprender" (Instituí Vanier, 1981). Ou seja, enquanto realizamos nossas aprendizagens primeiras no interior de nosso grupo doméstico, muito além do conteúdo específico dessas aprendizagens, estamos aprendendo uma modalidade particular de realizá-las, típica de nossa família, e que nos diferencia de nossos companheiros de mesma faixa etária e de mesma classe.

Tal "modalidade de aprender" —dependendo do grau de coerência entre ela e aquelas predominantes nas demais agências socializadoras, sobretudo nas escolas —acabará facilitando ou dificultando as aprendizagens futuras. Portanto, quanto maior a continuidade entre os dois momentos da socialização —primária e secundária —, maior será a facilidade para a criança aprender os novos conteúdos, as novas atitudes e, principalmente, as novas "maneiras" de aprender.

Investigadores que trabalham com camadas populares, de há muito já se deram conta da importância de se conhecer fatores familiares envolvidos — e até supostos determinantes — na aprendizagem e na vida escolares. No entanto, muitos deles enveredaram por concepções preconceituosas, que só contribuíram para encobrir os reais problemas existentes no âmbito da escola oferecida a essas camadas.

Maria Helena Patto analisou, neste seminário, as relações Família e a Escola nas camadas populares. O seu empenho de, ao longo de muitos anos, desvendar os problemas de repetência, evasão e de fracasso escolares em tais camadas é, acredito, não só de inestimável valor, mas o que de melhor se realizou até agora em nosso país. Nesse esforço, não há dúvida, ela também ressalta a importância da relação entre ambas as agências socializadoras (Patto, 1990).

No que concerne às camadas médias e altas, a existência das APMs (Associação de Pais e Mestres) parece tranqüilizadora, como se por si só atestasse as boas relações família-escola, e resolvesse a questão.

Ana Maria Nicolacci, todavia, em trabalho sobre estratos médios (cariocas), inova ao relevar o cerne dessa problemática: a (in)coerência entre a educação familiar e a educação escolar (Nicolacci, 1987) Isto é o essencial, suponho: a (in)coerência (ou continuidade/descontinuidade) entre os dois sistemas educativos, quaisquer que sejam as camadas consideradas.

Não há, como diversos profissionais parecem crer, ausência de ruptura, ou continuidade previamente assegurada, entre os processos educativos para as camadas abastadas. Se as classes populares defrontam-se com os problemas angustiantes de evasão, repetência e fracasso escolares, as demais camadas, por motivos diversos, padecem destes e de outros males. Veja-se, à guisa de exemplo, as taxas de recuperação e até mesmo de reprovação, de alunos — sobretudo de adolescentes — inteligentes e criativos. Veja-se, ainda, a queixa constante de professores sobre "comportamento de indisciplina" — os conhecidos comportamentos inadequados —em sala de aula. Nada disso pode ser compreendido, em profundidade, nos limites estreitos da sala de aula e da escola, a não ser que se queira apenas "controlar" comportamentos.

Ana Maria Nicolacci, em seu texto "Família e Pedagogia", afirma que "a eficácia de uma proposta pedagógica depende fundamentalmente de uma relação harmoniosa entre família e escola" (Nicolacci, 1987, p. 31). Concordando embora com tal assertiva, mas considerando o que já foi dito acerca da relevância da família enquanto promotora de uma "modalidade particular de aprender", eu diria: mas não basta que sejam harmoniosas as relações família-escola; faz-se necessário um profundo conhecimento da organização e da dinâmica familiares, e do processo de socialização predominantes nessas famílias, se o objetivo for a construção de uma proposta pedagógica eficaz. E, acima de tudo, acredito que este seja um motivo bastante para justificar a relevância do estudo da socialização para educadores.

 

SOCIALIZAÇÃO PRIMÁRIA: UM ESTUDO DE CASO

Mais do que descrever em detalhes a pesquisa, é meu intento comentar alguns dados por ela evidenciados e que me parecem sobremaneira relevantes. Porém, antes, cabe uma explicação sucinta do trabalho realizado.

A investigação de campo foi levada a cabo na Vila Helena, município de Carapicuíba. Dela participaram cinco grupos familiares oriundos do interior do estado de Minas Gerais, e que atenderam aos critérios seguintes: possuíam três gerações consecutivas vivas; tinham encetado a migração de acordo com o percurso clássico, campo-vila-metrópole; aquiesceram espontaneamente em participar. Assim, considerando os cinco grupos, a distribuição por geração foi a seguinte: cinco mulheres na primeira (a das avós); oito na segunda (a das mães) e dez crianças —sete meninas e três meninos — na terceira (a dos netos). Dessa maneira, foi possível o estudo longitudinal do processo socializador e, nessa medida, também foi possível identificar as suas especificidades, intra e inter-famílias, acompanhando os passos migratórios familiares, no sentido campo-cidade —ou, respectivamente, nos meios rural, semi-rural e urbano.

Evidentemente, enquanto estudo de caso, no modelo antropológico, não permite generalizações, mas fornece subsídios para uma análise, em profundidade, da educação infantil familiar e suas conseqüências para a educação escolar e, até mesmo, para outros aspectos da vida social, tais como o trabalho.

O procedimento usado revelou-se satisfatório para obter dados acerca de aspectos diversos da educação familiar, a saber: nascimento, alimentação — amamentação, desmame, conteúdo da refeição, independência alimentar —, a fralda e o controle dos esfíncteres, a locomoção — engatinhar, andar, andar autônomo —, o falar, as atividades infantis — brinquedo, estudo e trabalho —, a disciplina e as normas — autoridade dos pais, o certo e o errado, a surra e os castigos —, o sexo — as primeiras curiosidades e as informações —, a educação do menino e da menina.

Não obstante, há uma pergunta recorrente, nas vezes em que tenho exposto meu trabalho, e que se refere à não participação de homens, nas gerações adultas. De fato, embora alguns pesquisadores insistam em afirmar que todos, das populações mais pobres, independentemente de sexo e idade, gostam de expor suas vidas particulares em entrevistas, não foi bem isso o que encontramos (Sylvia Leser, que também realizou uma pesquisa com essa mesma população, e eu). Os pais apresentaram-se bastante resistentes no decorrer dos anos; irmãos quase nos escorraçaram, certa feita. Houve sim, um avô que manifestou vontade de colaborar, o que faz até hoje. Porém, por ser um caso único, acabou não sendo contado como informante, embora tenha sido considerado para efeito de comentários (aliás, pretendo melhor aproveitá-lo num outro trabalho). Quanto às crianças, achei por bem tornar misto o grupo, aproveitando o interesse delas, independentemente do sexo.

Uma segunda pergunta que me é feita, de costume, é por que um estudo geracional. Na verdade, para respondê-la, basta que se pense o apoio teórico assumido: uma vez suposta a mediação familiar, parece-me não haver muito como escapar à tarefa de recuperar a história da socialização nas famílias selecionadas, de geração em geração; e isto nos conduz ao estudo geracional.

No que tange ao migrante, sem dúvida, tal estudo é fundamental, porque é uma das poucas possibilidades de —recuperando, mais do que a história migratória familiar e pessoal, o estilo de vida predominante — compreender o comportamento, as atitudes e os valores por ele apresentado no presente. Por exemplo, nem mesmo respeitáveis investigadores das questões migratórias estiveram livres de cometer equívocos quando interpretaram as relações do migrante com o trabalho: atribuíram-lhe, muitas vezes, falta de perseverança — revelada por altas taxas de afastamento da atividade produtiva, e por não menos altas taxas de rotatividade no trabalho—, supostamente relacionada à clássica indolência do caipira (que acaba sofrendo as conseqüências de uma somatória de estereótipos e preconceitos atribuídos ao índio e ao negro, dos quais descende). Na verdade, os problemas de ajustamento apresentados pelo migrante diante das condições do trabalho fabril — que lhes são estranhas e adversas — derivam muito mais da distância entre estas e aquelas vigentes nos meios rural e semi-rural, quando ele, enquanto caipira, era ainda o pequeno proprietário — da terra ou da venda ou do bar —; quando ele ainda não se transformara em bóia-fria, em decorrência da extensão do capitalismo monopolista ao campo.

No que se refere à educação familiar infantil, acredito na propriedade do estudo geracional, porque de pouca valia seria conhecer apenas como a criança é educada aqui e agora, sem tentar compreender por que ela é educada de uma certa maneira. E tal compreensão exige que também se conheça os adultos que a educam: quem são, de onde vieram, como foram educados, em que trabalham, que expectativas nutrem em relação ao futuro de seus filhos, etc.

O que poucos profissionais se dão conta — e que a pesquisa revelou em sua inteireza —, é que os pais migrantes educam os filhos, no meio urbano-industrial, em condições assaz desvantajosas. Na verdade, venho repetindo há já algum tempo: os pais migrantes, de camadas populares, educam os filhos para uma realidade que lhes é, ainda, desconhecida. E isto é um paradoxo, porque sua tarefa seria "transmitir" às novas gerações a parcela do acervo cultural por eles conhecido e dominado. Mas eles ainda estão em processo de adaptação e de ajustamento ao novo meio —em continuidade a seu próprio processo de socialização secundária, só que agora em um meio estranho —, quando, por força das circunstâncias, vêem-se às voltas com a imperiosidade de educar os seus filhos. E, o que é pior, educá-los para a metrópole que mal conhecem; para um tipo de relação de vida e de trabalho que desconhecem e temem; para uma vida cujo sentido escapa-lhes.

Ninguém melhor do que uma das avós revelou a magnitude dessa problemática. Permitam-me citar suas próprias palavras: "Tem época que eu pelejo com as meninas; elas dizem: oh, eu não vou estudar. Eu falo, não estuda não, que nem eu, que nem sei pega o ônibus; não sei nem ir à USP (porque cabia a ela conduzir a neta à terapia, no IPUSP). A menina que me leva, eu não sei desce lá no lugar que nós desce pra atravessá; ela pega a minha mão, faz como que sou eu a menina e ela a velha. Ela me atravessa quando vê o sinal fecha. Eu não sei pega o ônibus que vai nem para Carapicuíba; eu não vou em lugar nenhum sozinha, se não sê o menino que vai comigo."

Este depoimento — muito além de evocar um dos mais belos poemas de Fernando Pessoa (Caieiro — VIII — de Guardador de Rebanhos) — revela uma das grandes contradições vividas por enorme parcela desse contingente que habita os bairros populares metropolitanos: quase desconhecendo a cidade, sem sequer discriminar com facilidade os ônibus indispensáveis à sua locomoção cotidiana, cabe-lhes (preferencialmente às mulheres, porque isso lhes é atribuído desde os ancestrais) a tarefa de educar o mais novo, protegê-lo, acompanhá-lo, mesmo quando é ele, o mais moço, quem melhor domina o meio fisico-social.

Claro, os adultos das demais camadas sociais, migrantes ou não, também encontram dificuldades no cumprimento da tarefa educativa porque, em certa medida, o mundo de seus filhos é-lhes estranho, escapa-lhes. Não é novidade a distância cada vez maior entre as gerações, separando-as, e os conseqüentes conflitos familiares e sociais. Contudo, se há um fosso geracional no interior de camadas médias e altas, há, por outro lado, também uma familiaridade com o meio urbano-industrial do qual somos todos produtos e produtores. Temos um desconhecimento relativo, apenas, que se situa muito mais nas esferas dos valores e das atitudes; ao contrário do migrante, que nele é um "estrangeiro".

Além do mais, o depoimento revela um fenômeno já denominado por Eunice Durham — ao referir-se às maiores oportunidades escolares e ocupacionais dos mais novos, nascidos na metrópole — de "inversão da hierarquia familiar" (Durham, 1978, p. 202). De fato, numa idade bastante precoce os adolescentes, e até mesmo as crianças, já dominam o meio físico e social melhor do que os adultos de sua família. Eles são mais desembaraçados, sentem-se mais à vontade na cidade, e nela se deslocam sem receio, por lugares distantes; enquanto seus avós e pais, quando não se limitam aos arredores do bairro de moradia, restringem-se, quase sempre, aos deslocamentos obrigatórios em função da atividade ocupacional. Assim é que, em poucos anos, o jovem descobre uma cidade ainda desconhecida para seus familiares —sobretudo para aqueles, homens ou mulheres, que ficam restritos aos limites do bairro em que habitam, e seus arredores. Na Vila Helena, por exemplo, não é incomum adultos conhecerem, exclusivamente, a região que margeia a Raposo Tavares, Cotia, a Aldeia e a Vila de Carapicuíba, além da Granja Viana e Osasco.

Há, ainda, um aspecto revelado pela pesquisa a ser aqui comentado: as alterações nas condições de trabalho e suas conseqüências para a educação da criança, nos grupos familiares. Nos meios rural e semi-rural, a criança era educada no trabalho, para o trabalho. Tão logo cumprido o resguardo materno, o recém-nascido era levado para o campo onde dormia e alimentava-se, enquanto os demais amainavam a terra. Cabiam aos menores — entre dois e sete anos — pequenos serviços tais como juntar gravetos, limpar sob os pés de café, colher o café dos galhos mais baixos (lógico que na medida da idade de cada um). De todo o modo, vivendo desde muito cedo imersa no ambiente de trabalho familiar, a criança acabava aprendendo a brincar ali mesmo, com as coisas relacionadas ao trabalho, e rondando sempre o trabalho de outrem. Assim, ela não só aprendia a trabalhar muito precocemente, mas, também em idade precoce interiorizava o trabalho como atividade central da vida de todos, fossem velhos, adultos, jovens ou crianças. Também em casa a labuta não parava: a roupa, o fiar, o tecer, o pilar os grãos, a feitura dos alimentos, eram ocupações cotidianas, e que envolviam sobretudo mulheres e crianças. Na cidade a atividade ocupacional dos pais, quase sempre, escapa aos filhos, porque é realizada em locais especializados.

Disseminou-se, entre nós, a crença de que a maioria das crianças pobres é submetida ao trabalho prematuro, o que explicaria a alta taxa de evasão escolar no interior de tais camadas. Não há dúvida, é significativo o número de crianças obrigadas a muito cedo trocar a escola por alguma atividade ocupacional que lhes permita colaborar no orçamento doméstico. Contudo, não é possível generalizar, há um contingente não menos significativo —quiçá até maior —de crianças que não possuem tamanha sobrecarga. O processo de adaptação às condições urbanas de existência (como reconheceu o Prof. Antonio Candido, em Os Parceiros do Rio Bonito), leva muitas dessas famílias a adotar como seus, valores típicos de outras camadas. Exemplo disso é a progressiva incorporação da idéia de que à criança cabe brincar e, na idade aprazada, estudar. Se, no campo, cabia-lhe, à semelhança do adulto, trabalhar (embora na medida de suas forças, já o disse), na cidade, mesmo quando acontece-lhe "necessitar" trabalhar, ela o faz com a consciência de realizar uma atividade pertinente a outra fase da vida; ou seja, ela já interiorizou a sua "condição" de criança, ao contrário de suas mães que, nessa mesma idade, mas em outro meio, sabiam-se semelhantes aos adultos, no mínimo no que se refere às obrigações. No dizer de uma delas, "eles pensavam que a gente era adulto igual a eles"; frase reveladora da representação que todos eles, independentemente do sexo e da idade, faziam da criança (aliás, em consonância com os escritos de Ariès).

As alterações derivadas das condições urbanas de trabalho e vida são diversas, de maneira alguma esgotam-se nas até agora apontadas. A exigüidade do tempo obriga-me a selecionar apenas as mais significativas, do ponto de vista deste seminário. Em coerência com os relatos de Erikson (sobre populações indígenas norte-americanas), mudam, quase radicalmente, as exigências feitas à criança. Assim, se no campo a educação infantil objetivava promover a autonomia desde muito cedo, no meio urbano ela objetiva a promoção de hábitos de limpeza. Lá, existiam procedimentos eficazes de levá-la a alimentar-se e a defecar de maneira autônoma tão logo lhe fosse possível coordenar os movimentos necessários —tão logo, inclusive, pudesse andar. Na cidade, as filhas dessas mulheres mais velhas recordam os procedimentos mas não os utilizam elas mesmas porque, dizem, "dá muito trabalho". Sem dúvida, aqui saem para trabalhar: a mulher, o marido e os filhos mais velhos. Cabe, em geral, à avó cuidar dos menores; quando isto acontece ela continua treinando-os. Porém, o expediente comum é pagar a outra mulher que vive de cuidar de filhos de mães trabalhadoras (aliás, como se elas não o fossem). Ora, nesses casos, torna-se mais fácil estabelecer que os maiores alimentem os menores; ou, ainda, alimentá-los em "cadeia", do que dar-se ao esforço de promover a autonomia de várias crianças. Quanto à defecação, basta colocar a calça plástica ou deixá-las despidas da cintura para baixo. O único hábito intencionalmente desenvolvido a este respeito é, quase sempre, o de fazer fora de casa.

Para finalizar, a grande alteração, no meio urbano, refere-se à escola: nos meios rural e semi-rural, quando muito os filhos homens tiveram algum acesso a ela; as mulheres eram mantidas a distância, porque "só queriam estudar para escrever aos namorados", pensavam seus pais. Nas vilas semi-rurais, meninas e meninos passam pela escola, mas de maneira inconstante, alternando-a com o trabalho. Na metrópole, todos chegam a freqüentá-la, mas acabam abandonando-a. Não obstante, parecem todos convencidos de ser ela o local desejável de permanência da criança, ao menos até a 8ª série, muito embora poucos deles cheguem a alcançar de fato tal objetivo.

Do aqui exposto fica evidente que ao recompor o processo de socialização de crianças no interior de grupos familiares, mesmo que em número insuficiente para qualquer generalização, estamos reconstruindo não só a história migratória desses grupos, mas a transformação deles, acompanhando os passos migratórios no sentido campo-cidade, e, inclusive, a história escolar deles... Emerge de tudo isso a importância de se estudar as modalidades de ação socializadora: primária e secundária.

 

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