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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.3 n.1-2 São Paulo  1992

 

INFORME

 

O centro de pesquisa e documentação de filosofia austríaca (parte II)

 

 

Norberto Abreu e Silva Neto

Instituto de Psicologia — USP

 

 


RESUMO

Conforme foi anunciado em número anterior desta Revista (vol. I, nº 2, 1990, p. 177-90), o presente escrito tem por objetivo dar conta de alguns dos projetos de pesquisa desenvolvidos no Forschungsstelle und Dokumentationszentrum für österreichische Philosophie, dirigido pelo Professor Rudolf Haller na cidade de Graz. O que será apresentado é um sumário de quatro projetos, dois conduzidos por Johannes Brandi e dois por Hans Georg Zilian, ambos professores da Universidade de Graz.
Os dois projetos de Johannes Brandi já estão concluídos. Um deles trata da doutrina dos julgamentos de Brentano e o outro volta-se para o verificacionismo de Wittgenstein. Já os projetos de Hans Georg Zilian estão em andamento. Um trata especificamente da metodologia da psicanálise de Freud e o outro coloca em discussão a relação entre Wittgenstein e Karl Kraus.


 

 

O Verificacionismo de Wittgenstein

O projeto de Brandi foi concluído em 1988 e teve por objetivo pesquisar que significado tinha o verificacionismo para Wittgenstein no tempo da preparação de sua Gramática Filosófica. Para a realização de sua pesquisa resultaram ser importantes os dois escritos datilografados de Wittgenstein, de números 210 e 211, cujas cópias estão à disposição no Centro de Pesquisa. Conforme Brandi salienta, esses dois escritos se diferenciam do assim chamado "Grande Escrito Datilografado" (213), antes de mais nada por servirem ainda de base à ordenação cronológica dos volumes IV a X do Manuscrito. A história do "Grande Escrito Datilografado" em sua relação com o texto publicado da Gramática Filosófica já foi extensamente pesquisada por diversos autores, dentre os quais Brandi salienta: A. Kenny, G. Baker, P. M. S. Hacker, e St. Hilmy. Com seu estudo, Brandi (1989) quer completar esses trabalhos e, ao mesmo tempo, dar informações sobre a história prévia do "Grande Escrito Datilografado".

Assim ele resume seus procedimentos:

Primeiro foi feito um breve sumário de todas as 850 folhas do extenso material. Depois foram reunidas todas as passagens nas quais Wittgenstein explicitamente entra na verificabilidade das proposições plenas de sentido. Finalmente, a partir dessas 20 folhas de amostragem das citações, tentou-se determinar o valor filosófico do verificacionismo de Wittgenstein (p. 18).

Tendo seguido tais passos, Brandi (p. 18-19) ressalta então os pontos de vista que lhe resultaram ser essenciais. Assim ele os descreve:

1. Wittgenstein tentou esclarecer a relação do pensamento com o mundo, de uma maneira ainda mais rigorosa do que no Tractatus. Nessa altura não se torna primária a teoria da imagem, mas a idéia das proposições como um fato e com isso associa-se a tese da forma geral da proposição dada.

2. A idéia da verificabilidade não permite tratar proposições sobre crença ou desejo como casos excepcionais de um contexto semântico extensional.

3. Em contraposição à semântica de Frege, os pensamentos aparecem em Wittgenstein na condição de algo "não mencionado", na condição de que eles são dados nas situações em que na realidade foram traduzidos.

4. A distinção rigorosa entre fatos e coisas (complexos) mostra-se então logo como filosófica transcendente, quando ela se associa com a verificabilidade das proposições.

5. Nisto Wittgenstein dá razão aos idealistas que afirmam que deveríamos sempre partir de nossas experiências de fatos para falar de infindas possibilidades.

6. A questão da verificação das proposições nos indica como poderíamos preservar uma filosofia da experiência imediata de cair num psicologismo falso.

7. A confusão de categorias gramaticais é uma fonte permanente de absurdos filosóficos. Uma de tais fontes de absurdos é fazer confluir as linguagens fenomenológica e fisicalista, assim como o é também a introdução de analogias científíco-naturais na matemática.

8. É uma regra gramatical, que o processo de verificação exija um retrocesso à experiência evidente. Disso não se segue, todavia, que sobre elas não poderíamos fazer no tempo existente no mundo exterior afirmações plenas de sentido. Não se segue também que a possibilidade da verificação ontológica e da teoria do conhecimento deva ser fundamentada. A verificabilidade dos plenos de sentido é elemento essencial de nossa linguagem.

Finalmente, Brandi tenta também esclarecer, em seu estudo, até que ponto o verificacionismo de Wittgenstein pode resistir à crítica do critério empírico do sentido. O teor básico de sua crítica, nesse caso, é que Wittgenstein utilizou-se de um tema filosófico principal, sem moldar de forma rígida um princípio. Portanto, sua posição foi desde o início contra as proposições analógicas não verificáveis. Em parte essas falsificações poderiam ser como, por exemplo, leis naturais ou hipóteses empíricas; em parte, elas não são verificáveis como, por exemplo, as proposições gramaticais.

Ao relato da pesquisa, Brandi anexa uma amostra das citações pertencentes ao tema dos escritos publicados de Wittgenstein. Através da comparação com os textos do espólio literário discutido, ele se propõe a oferecer uma visão de conjunto a mais ampla possível das declarações de Wittgenstein sobre o verificacionismo

 

A Doutrina dos Juízos de Franz Brentano

De 1875 a 1890, durante sua atividade docente na Universidade de Viena, Brentano desenvolveu em suas aulas de lógica a análise dos atos de juízo. Tal análise foi o objeto de estudo de Johannes Brandi. Os resultados a que chegou em seu trabalho foram baseados na documentação das aulas ainda conservadas e copiadas. Desse material do espólio de Brentano, até agora foi publicada apenas uma seleção sobre o tema dos juízos, sob a forma de redação do livro Die Lehre vom richtigen Urteil (Hamburgo, Felix Meiner Verlag, 1956). Assim, considerando o volumoso material sobre esse tema que continua desconhecido, Brandi colocou-se como objetivo documentar uma descrição dos manuscritos preparados, tendo em vista propiciar a confrontação dos textos à disposição já publicados com os ainda não publicados.

Os resultados que Brandi (1989) considerou importantes são por ele sumarizados:

Considero que Brentano não pesquisava o conteúdo, mas o ato dos juízos sob o ponto de vista da forma lógica. Isso dá à sua ambicionada reforma da lógica aristotélica uma direção inteiramente outra, do que a do conhecido trabalho de reforma de Gottlob Frege. O princípio de Brentano se mostra uma alternativa interessante em todos aqueles pontos nos quais se tocam o círculo de problemas lógico-semânticos e as questões tradicionais da filosofia. Não se deve naturalmente esperar, que Brentano já tivesse encontrado há cem anos soluções para cada um dos problemas ainda hoje ardentemente discutidos. Pode-se contudo indicar que a tese central de Brentano, segundo a qual todas as afirmações categóricas são reconstruídas como afirmações na forma "existe", é mais ampla do que uma antiga formulação da tradutibilidade na linguagem da lógica dos predicados. O que sob uma tal interpretação cai por terra, é que com a indicação da forma "existe", Brentano propõe algo totalmente outro que a lógica hoje estabelecida. Em conseqüência disso, para ele, na proposição existencial se reflete diretamente a forma lógica dos atos de julgamento. Esse círculo de problemas foi logo afastado nos últimos anos através da pesquisa sobre o ato lingüístico das afirmações, novamente conforme o interesse (p. 17).

Junto a 140 páginas de relatório do projeto, Brandi depositou também no Centro de Pesquisa cópias de literatura secundária sobre a doutrina dos julgamentos de Brentano, bem como uma bibliografia mais completa da filosofia deste. E, finalmente, ele relata que desse projeto resultou a preparação de uma edição crítica das aulas de lógica de Brentano dos anos 1884/1885, já em vias de publicação.

 

Ética e Linguagem: Sobre a Relação entre Karl Kraus e Wittgenstein

Karl Kraus foi um dos críticos de cultura mais polêmicos da Viena fim de século. Editou, a partir de 1899, o famoso fascículo "die Fackel", que foi por ele exatamente concebido como uma instância de crítica cultural. Kraus polemizou com jornais e teatro; a guerra e a moral sexual, a corrupção política e lingüística; polemizou com prefeitos e editores, com juizes e policiais, literatos e diretores de teatro. Nos primeiros anos de seu aparecimento, foi também alvo das agressões krausianas o rico industrial, patrono das artes e mecenas vienense, Karl Wittgenstein, pai de Ludwig.

Sobre a atitude de Ludwig Wittgenstein para com o "die Fackel", é admitido que esse fascículo despertou seu interesse por seu próprio fundamento, por ser instrumento de crítica cultural. Seu apreço pela publicação pode ser demonstrado pelo fato de que o fascículo era-lhe remetido, a seu pedido, para leitura durante a temporada que passou na Noruega e durante o período em que esteve na frente de batalha na Primeira Guerra Mundial. Exatamente durante aqueles anos em que, se sabe, Wittgenstein elaborou o seu famoso Tractatus.

É um fato mais do que conhecido na história das idéias da filosofia austríaca a influência de Karl Kraus sobre Wittgenstein. O próprio Wittgenstein a salientou. No entanto, no entender de Zilian, essa influência raramente é representada com exatidão, seja em detalhe ou parcialmente. Para ele, a relação entre os dois pensadores deverá permanecer um enigma enquanto Kraus for concebido como um crítico de jornal escalpelador e como um policial da língua, e enquanto a dimensão prática do projeto wittgensteiniano ficar incompreendida. Assim, seu trabalho visa distinguir duas linhas centrais na obra krausiana. Por um lado, ele distingue o Kraus crítico lúcido e destemido da hesitante modernização da sociedade austríaca de seu tempo e, por outro, o Kraus crítico de linguagem, a quem um despedaçamento dos ditos e opiniões apareceu como manifestação da corrupção espiritual. Para Zilian (1989), sua crítica da linguagem antecipa

aquele debruçar-se sobre a estrutura conceitual tão característica da filosofia analítica do século XX, cunhada por Wittgenstein. Como crítico da sociedade, ele coloca a questão das possibilidades de reflexão de indivíduos autônomos e íntegros visando sempre maior auto-entendimento do poder social, seja aquele da burocracia ou o de uma desenfreada economia de mercado. Essa questão torna-se temática quando consideramos aspectos da obra wittgensteiniana; e, não menos, quando nos voltamos para o modo de viver de Wittgenstein (p. 20).

 

Freud e o Vocabulário Psicológico na Tradição Austríaca

Hans Georg Zilian situa Freud no rol do que chamou "os grandes jovens austríacos historiadores do espírito". Zilian entende que se poderia, em muitos desses jovens (por exemplo, Fritz Mauthner ou Otto Weininger), identificar uma discordância entre a orientação intelectual e a emocional, e que nada mais seria do que um reflexo da contradição entre história e sociedade austríacas da virada do século. Segundo Zilian, tal discordância poderia ser pensada em relação com crises de identidades pessoais desses jovens, sejam tais crises de natureza política, étnica ou também motivadas sobretudo intelectualmente. Essa é a pressuposição na qual se assenta o projeto de pesquisa desse autor. No caso de seu objeto de estudo, Freud, Zilian dirá que esse fenômeno de crise de identidade pessoal pode ser localizado no plano metodológico.

Freud foi, por formação, e no início de sua carreira, cientista natural. Ele trabalhou no quadro de um programa de pesquisa reducionista, que está associado a nomes como o de Helmholtz. Ele esteve ao mesmo tempo em uma tradição de pensamento cético-nominalista, a qual encontrou seu auge em Ernst Mach e no Círculo de Viena. Mas, diz Zilian, com o desenvolvimento de seu sistema psicanalítico, Freud migrou para um "domínio de coisas que justamente eram suspeitas aos espíritos predominantes (Helmholtz e Mach): migrou para a hipnose, os sonhos e para o domínio das coisas vulgarmente ditas do inconsciente, as quais, para a visão naturalista estão em último lugar enquanto fenômenos a serem considerados, visão esta bastante diversa dos ocultistas que freqüentemente inventam modos de jogar com o culto; noutras palavras, através da numerologia ou da hipnose ou da interpretação dos sonhos. O projeto de Zilian visa então ver essa contradição interna de Freud no quadro vienense:

As raízes da psicanálise encontram-se então, por um lado, na rigorosa ciência natural e de outro, no mínimo, na vizinhança da especulação pseudocientífica, que em Viena, na virada do século, viveu também uma alta florescência (muitos como Weininger, Hermann Swoboda e, mais tarde, também Paul Kammerer) (p. 21).

Se o que foi dito acima refere-se aos inícios da psicanálise, Zilian acrescenta que em seguida ela desenvolveu uma face dupla: aparecia a Freud e a seus seguidores como uma revolução científica, ao mesmo tempo em que eles eram desacreditados como charlatões por seus adversários. Assim, Zilian salienta em seu projeto que

em contraposição a Mach ou aos fisicalistas, membros da Círculo de Viena, que em nome da objetividade científica queriam estabelecer o limite, tão estrito quanto possível, do vocabulário psíquico, Freud não apenas introduziu novas entidades psíquicas, mas também recorreu ao vocabulário psicológico desenvolvido pelo senso comum no recém-descoberto território do inconsciente (p. 21).

Será que nosso aparato conceituai tradicional pode manter intacto esse transporte? Essa é para Zilian uma questão em aberto, mas no caso de Freud, ele nos diz que desse transporte resultaram símbolos que não têm mais o caráter de símbolos e desejos que como tais não são ulteriormente reconhecidos. Assim, ele argumenta que, com Freud

...um vocabulário essencial relacionado a intenções e consciência foi aplicado a fenômenos para os quais ele não foi desenvolvido. A fronteira entre a inovação conceituai como motor do desenvolvimento científico de um lado e, de outro, a má interpretação de um domínio fenomenal, não é nesse caso tão simples de se pôr em relação. Acrescente-se que o aparato conceituai freudiano normativo coloriu o uso das expressões —o "rigoroso" superego, o instinto de agressão, etc. — cuja adequação empírica é extremamente problemática. As conseqüências dessa conceitualização são igualmente ambíguas, pois, em nome da racionalidade, prescinde-se do ato humano, o qual pelo recurso à emancipação das pressões irracionais, é posto sob tutela. O autoconhecimento, que segundo a psicologia do senso comum todo homem disporia, torna-se uma mercadoria que se deve comprar a preços elevados de especialistas (p. 21).

Dessa forma, Zilian considera que a metodologia de Freud é uma transposição apenas parcialmente feliz do paradigma de pesquisa naturalística utilizado, ao mesmo tempo em que salienta o espantoso paralelo que apresentam com a numerologia de Wilhelm Flieb, as tentativas de Freud em estabelecer relações entre as hipóteses e suas instâncias de verificação. Zilian considera ainda que a maior ironia dá carreira intelectual de Freud é que, tendo ele começado como um inovador, tenha, contudo, terminado com uma nova ortodoxia, "com um sistema fechado, no qual todas as possíveis questões têm já de antemão suas respostas estabelecidas" (p. 22).

Por outro lado, a par da dubiedade do significado científico do sistema, Zilian ressalta que seu projeto visa analisar também a dubiedade das implicações políticas do sistema freudiano. Assim ele nos diz que:

A linha emancipatória no pensamento de Freud é inseparavelmente entretecida com um pessimismo de base, que equipara a confiança do Iluminismo na racionalidade e no ator autônomo a idéias ingênuas do tipo o homem nasce "bom", ingenuidade essa que, no entanto, meramente espelha ao mesmo tempo o que ela em sua conceptualização introduz de contrabando, o homem nasce precisamente "mau" (p. 22).

E, finalmente, Zilian aponta que se em sua filosofia social Freud constrói uma articulação entre Hobbes e Pareto, no entanto tal empreendimento é por ele abandonado em muitos lugares. Assim, conclui Zilian que tal abandono deixa entrever que uma ciência "crítica", a partir do modelo da psicanálise, teria poucas possibilidades de êxito.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRANDL, J. "Brentanos Urteilslehre" FÖP-DÖP-NACHRICHTEN/Forschungsttelle und Dokumentationszentrum für österreichische Philosophic, Graz, nº 1, p. 17, jan. 1989.        [ Links ]

BRANDL, J. "Wittgensteins Verifikationismus". FÖP-DÖP-NACHRICHTENI Forschungsttelle und Dokumentationszentrum für österreichische Philosophie, Graz, nº 1, p. 18-19, jan. 1989.        [ Links ]

ZILIAN, H.G. "Ethik und Sprache: zur Beziehung zwischen Karl Kraus und Wittgenstein". FÖP-DÖP-NACHRICHTEN/Forschungsttelle und Dokumentationszentrum für österreichische Philosophie, Graz, nº 1, p. 20, jan. 1989.        [ Links ]