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Psicologia USP

On-line version ISSN 1678-5177

Psicol. USP vol.4 no.1-2 São Paulo  1993

 

APRESENTAÇÃO

 

Múltipla memória

 

 

César Ades

Departamento de Psicologia Experimental - Instituto de Psicologia-USP

 

 

Ouvindo o nome,
Vejo de novo:
Flor de capim.

 

Há várias interpretações para esta haikai, de Teiji (Franchetti, Doi & Dantas, 1991), por isso tomo a coragem de propor mais outra: ouvindo o nome da flor, eu a revejo mentalmente, ela passa a re-existir para mim. A memória é, basicamente, esta intrusão do passado no presente, seja sob a forma de imagens, seja como instruções, implícitas ou explícitas, de como agir. As lembranças podem surgir de forma mais ou menos vivida, espécie de cópia de eventos vividos anteriormente, cópia quase sensorial; podem também aparecer como relatos, histórias que contamos para nós mesmos ou para os outros. Embora as imagens e palavras ocorram agora, sabemos que pertencem a um momento que já não é mais.

O passado manifesta-se, além disso, nas tarefas, nos gestos, nos comportamentos habituais, que executamos sem nos perguntarmos acerca de sua origem, sem a consciência de que provêm de uma experiência anterior; postos em uso, simplesmente, em função das circunstâncias presentes. A memória se apóia em sinais deixados no ambiente e no comportamento dos outros indivíduos com os quais interagimos; são palavras ditas ou escritas, são os produtos de nossos atos e dos atos dos outros que podemos reencontrar e que trazem o testemunho de períodos anteriores. No limite, ela é o próprio substrato dos fatos culturais.

Múltipla como é, a memória parece participar de todos os processos psicológicos e da própria percepção que temos de nossa individualidade. Em 1870, dizia o psicólogo Hering (muitos hoje concordariam): "Parece, portanto, que devemos à memória quase tudo que temos ou somos; que nossas idéias e concepções são seus produtos, e que nossas percepções, nossos pensamentos e nossos movimentos corriqueiros derivam desta fonte. A memória junta os inúmeros fenômenos de nossa existência num todo único" (Hering, 1920, citado por Schacter, 1991, p.684)

Fenômeno fundamental, que deixa curiosos tanto o leigo como o pesquisador, a memória tem sido abordada de diversas maneiras. Seu funcionamento foi descrito a partir de uma decomposição em sub-processos ou módulos cada qual responsável por uma tarefa específica e passível de ser estudado por conta própria. Ela foi definida e estudada a partir de abordagens diferentes, de acordo com as opções e os departamentos de que se originam os pesquisadores: seja como processo de comportamento, seja como fenômeno neurobiológico, seja como componente da interação social, seja como cultura ou história, seja ainda como uma estratégia de adaptação ao meio natural. O desenvolvimento da tecnologia eletrônica fez brotar, além disso, modelos ambiciosos de memória, construídos a partir dos pressupostos da inteligência artificial e da neuro-biologia computacional.

O simpósio de que se originou este número da revista Psicologia-USP (estou mobilizando minha memória episódica) foi pensado por Carlos Tomaz e por mim em Caxambú, à beira da piscina do Hotel Glória, por ocasião da Reunião Anual da Federação das Sociedades de Biologia Experimental. Era uma manhã de muito frio e de muito sol, tomávamos café, havia muita gente ao redor. Falávamos justamente da diversidade de abordagens à memória e de quanto seria interessante confrontá-las, trazendo para o debate especialistas e propiciando aberturas conceituais. Ponderávamos que o campo da memória merecia maior desenvolvimento, no Brasil. Consideramos um instante e rejeitamos - por haver outros contextos para tal (por exemplo, um simpósio organizado pelo próprio Carlos Tomaz em colaboração com Frederico Graeff) - a possibilidade de convidar cientistas de fora para compor a mesa.

O simpósio foi realizado na Reunião Anual da SBPC, em São Paulo, em 1992, com a participação de Ecléa Bosi, Osmyr Faria Gabbi Jr., Carlos Alberto Tomaz e a minha. Cada qual trouxe seu enfoque, seus exemplos, sua argumentação. A diversidade, ao invés de criar uma impressão desanimadora de fragmentação, estimulou o debate sobre paralelismos e discrepâncias. Lembro-me de terem sido bastante animadas as discussões e de terem ultrapassado a margem estreita de tempo que, em congressos, é concedida para a interação entre participantes. No término, sentia-se que ainda havia muitos assuntos a serem explorados.

A idéia de compor um número temático de Psicologia-USP fez com que se ampliasse o escopo, acrescentando-se ao material do simpósio os trabalhos de outros pesquisadores convidados. Não foi possível incluir todos os que, em nosso meio, contribuem para o conhecimento da memória nem garantir um lugar, neste número, para todos os enfoques relevantes. A presente iniciativa gerará - espero - outras, com recortes diferentes e maior abrangência.

A busca de multi- e interdisciplinaridade é um marco atual da ciência do comportamento. Daniel Schacter o nota bem: "o estudo da memória tornou-se, cada vez mais caracterizado por um ecletismo que expande a área para além das fronteiras bastante estreitas do que poderia ser chamado de a tradição ebbinghausiana clássica (...)" (Schachter, 1991, p.685). Uma das vantagens do confronto de perspectivas é propiciar um exercício inter-conceitual, ou seja, a consideração de que os conceitos utilizados num nível de análise têm a ver com os empregados em outro; ou ainda, de que são possíveis conceitos que dêem conta dos fenômenos focalizados em vários níveis. Outra vantagem é fornecer contextos para o surgimento de novas idéias de pesquisa, a partir de uma saída das fronteiras de cada especialidade.

Os trabalhos reunidos no presente número dispõem-se de acordo com três vertentes: biológica (Ades; Tomaz; Xavier; Oliveira & Bueno; Chaves), psicológica/individual (Oliveira-Castro; Sousa & Da Silva; Gabbi; Ades & Botelho) e social (Bosi; Schmidt & Mahfoud; Bueno, Sousa, Catani & Souza; Cardini). Esta é uma ordenação conveniente dos assuntos: parte do que é básico e comum aos animais e ao ser humano e chega aos aspectos autobiográficos e sócio-históricos da memória. Gostaria contudo que não fosse vista como estritamente linear ou hierárquica: as alças de retorno de uma vertente à outra podem ser tão importantes quanto o conteúdo próprio de cada uma.

Antes de tecer algumas considerações sobre os artigos e sobre o tema geral - à guisa de overview - gostaria de ressaltar o quanto a elaboração deste volume de Psicologia USP deve às discussões com a Comissão Editorial e, em particular, com minha colega Maria Helena Souza Patto; e o quanto se beneficiou com a revisão impecável das referências bibliográficas por parte de Aparecida Angélica Zoqui Paulovic Sabadini do Serviço de Biblioteca e Documentação do IP-USP e ao trabalho muito cuidadoso e competente de Maria Clarice Ferreira na preparação dos manuscritos, em sua forma definitiva.

 

O contexto biológico

1.

A primeira preocupação biológica é decifrar o substrato neural da memória, procurando responder às perguntas (Tomaz): "que regiões do sistema nervoso estão envolvidas no processamento e na manutenção de informações mnêmicas?" e " quais são as mudanças celulares e neuroquímicas que acompanham a aquisição da informação?". Uma apresentação da análise neurofisiológica se encontra nos artigos de Carlos Tomaz e de Gilberto Xavier. Não se deve taxá-la de reducionista, ela não se propõe substituir abordagens psicológicas ou mesmo a fenomenologia da memória por uma descrição de, por exemplo, como compostos GABAérgicos ou como lesões seletivas do hipocampo afetam a retenção de uma resposta aprendida. Ela parte para a exploração dos fenômenos da memória tendo constantemente em vista os resultados obtidos no nível comportamental. Abre-se, com esta análise, uma fascinante aventura interdisciplinar em que os dados sobre a "mente" e sobre o "corpo" são expressos numa forma conceitualmente compatível.

 

2.

As deficiências graves da memória, descritas a partir de observações clínicas, constituem uma via privilegiada, além dos estudos em laboratório, para a compreensão dos processos mnêmicos (Oliveira & Bueno; Chaves; Xavier). As amnésias que se constatam em pessoas com a síndrome de Alzheimer ou Korsakoff, ou nas que sofreram danos cerebrais traumáticos, merecem um intenso esforço de pesquisa que vise atenuar os prejuízos intelectuais e de interação social dos pacientes. Mas também devem atrair a atenção pelos insights teóricos que oferecem, especialmente por desvendarem possíveis linhas divisórias entre módulos de funcionamento da memória. Em seu artigo, Maria Gabriela Oliveira e Orlando Bueno abordam questões de localização e de modularidade. Descrevem, entre outros, o caso clássico do paciente H. M. que, apesar de continuar dotado de boa memória de curto prazo, de ser capaz de sustentar conversações e de possuir um funcionamento perfeito da inteligência, era incapaz de lembrar-se de eventos pessoais ou públicos ocorridos depois de uma operação em que tinha-lhe sido retirado o lobo temporal medial. A " era do hipocampo" no estudo da memória origina-se das pesquisas realizadas, ao longo dos anos, com o paciente (nos dois sentidos da palavra paciente) H. M.

 

3.

O cuidado e tratamento dispensados a pacientes amnésicos depende essencialmente da precisão do diagnóstico comportamental. Márcia Chaves nos oferece uma revisão dos testes clínicos utilizados na área, com considerações importantes sobre questões de validade e confiabilidade. Aborda mais em particular o teste Mini Mental State Examination, que utilizou em pesquisas suas e propõe um enfoque em que informações obtidas através de diversos métodos de diagnóstico sejam integradas.

 

4.

A abordagem biológica traz novos argumentos a favor da idéia antiga de que memória e afeto andam conjugados (Chaves; Tomaz). É muito significativo, para a discussão psicológica do assunto, verificar que as mesmas regiões do cérebro podem estar envolvidas na regulação emocional e cognitiva do comportamento, a coincidência anatômica sinalizando uma integração funcional. Pesquisas recentes mostram que os efeitos amnésicos de drogas benzodiazepínicas como o diazepam estão relacionados aos seus efeitos ansiolíticos (tranqüilizantes) e que ambos dependem da integridade da amigdala (Tomaz; Tomaz, Dickinson-Anson, McGaugh, Souza-Silva, Viana & Graeff, 1993). Que o alegre, o triste, o estressante, o ameaçador, tenham a ver com a preservação ou diluição da lembrança, além de lhe dar um "colorido" afetivo, põe abaixo uma dicotomia clássica e reforça a necessidade de uma abordagem sistêmica.

 

5.

Há mais de um século, William James (1892/1924) distinguia uma memória primária ou imediata de uma memória secundária que seria "o conhecimento de um antigo estado psíquico reaparecendo na consciência depois de desvanecer-se dela" (p.375). Os "tipos" de memória continuam sendo discutidos até hoje (recebem menção nos artigos de Ades; Xavier; Oliveira & Bueno; Chaves). Xavier nos oferece uma definição informada das principais dimensões classifícatórias (memória de curto e de longo prazo; memória operacional e de referência; memória episódica e semântica; etc.) acompanhada de uma análise da relevância e dos limites de cada uma. Posiciona-se a favor de uma visão do substrato neural da memória como composto de módulos, capazes de trabalhar " cooperativa e independentemente".

Há controvérsia quanto à natureza ou ao número de "tipos" de memória. ou mesmo quanto à necessidade de se estabelecê-los (Izquierdo, 1989; Nicolas, 1993), o que torna a questão (e a proposta de um modelo neural, Xavier) bastante instigante e merecedora de exame.

 

6.

As vespas que, em dias de calor, vejo executarem um vôo lento e cheio de circunvoluções, ao redor da peça d'água, no jardim, pousando de vez em quando para beber, estão utilizando sua experiência passada. Orientam-se e reconhecem o local graças a imagens retinianas armazenadas na memória e cotejadas com o que vêem no ambiente. A memória está presente em muitas andanças e tarefas que os animais executam em seu meio natural, e deve ser tomada como desempenhando uma função adaptativa e como produto de seleção (Ades). Esta perspectiva coaduna-se bem, embora em outro plano, com a tendência de se estudar as lembranças de seres humanos em seu ambiente natural, o contexto histórico-cultural (Bosi; Schmidt & Mahfoud; Bueno et al.).

 

Questões psicológicas

7.

Com o advento do cognitivismo moderno e da ciência cognitiva, predominam, novamente, as concepções da memória como instância psicológica baseada em representações, ou seja, em processamentos que se dão no cérebro, na "mente", "na cabeça". O artigo de Jorge Oliveira-Castro, traz uma crítica ágil às teorias representacionais e argumentos teóricos e empíricos a favor de uma abordagem comportamental. Parte da idéia de que falar em " operações mentais" é usar de metáforas e propõe uma definição negativa: algo que acontece "dentro da memória" ou "dentro da cabeça" seria, na verdade, um conjunto de comportamentos que, necessários em determinada etapa da aprendizagem, deixam paulatinamente de ocorrer.

Não é apenas a representação que está em voga. Voltou o tema wundtiano e jamesiano da consciência. Multiplicam-se os simpósios a seu respeito, filósofos a debatem com brio e psicólogos a inserem em seus esquemas teóricos. Tulving (1989), em particular, rejeita a doutrina implícita da concordância, para a qual o desempenho explícito de uma pessoa, suas cognições e sua experiência consciente correm em estreito paralelismo. A não-concordância remete, segundo ele, à investigação da consciência enquanto função autônoma. A chamada memória implícita -que tem gerado recentemente um número considerável de experimentos (Schachter, 1991). - contrapõe-se à memória "consciente" que o próprio indivíduo reconhece como memória. É uma memória que não é datada e não é passível de descrição verbal, que se detecta apenas no desempenho. Pacientes amnésicos por lesão cerebral demonstram, na execução de tarefas, domínio de uma informação previamente apresentada; mas, questionados, não são capazes de indicar o contexto ou o conteúdo desta informação. Lembrar-se não é necessariamente ter consciência daquilo que é lembrado.

 

8.

O artigo de Fátima Sousa e José Aparecido Da Silva (duplamente brasileiro: por relatar pesquisas feitas aqui, e por usar, como estímulos, aspectos da geografia do Brasil), serve de introdução à psicofísica da memória, uma linha recente de investigação, baseada numa intuição muito antiga, que remonta a Aristóteles, de que a memória é composta de imagens ou cópias preservadas de percepções prévias (Algom, 1992). A flor de capim vista novamente, de acordo com o haikai ao qual me referi, no início deste texto. O isomorfismo representacional permite que se tente aplicar à memória - no sentido de evocação ou recuperação de imagens - os princípios que parecem reger a percepção imediata das coisas. O sucesso da transposição da lei da potência de Stevens (Sousa & Da Silva) me parece repleto de implicações: gostaria de vê-lo como um argumento para uma concepção da memória de eventos ou episódica como estreitamente associada aos processos perceptuais, talvez proveniente deles, numa escala evolutiva.

 

9.

Osmyr Gabbi Junior reencontra, em sua leitura de Freud, uma teoria da memória por debaixo da teoria das fases da libido. As fases são sistemas que se sucedem, por superposição, cada uma gerando, dentro de si própria, a próxima, mas com ruptura, havendo a necessidade de uma tradução da linguagem de uma na em que é vertida a outra. É um jogo semântico, passa-se de um sistema de referentes a outro (do referente "boca" para o referente "lábios", por exemplo) podendo acontecer perturbações ou permanências indevidas, que configuram as neuroses ou psicoses. Em que medida a memória, tal como pensada por Freud, poderia ser traduzida (sem perturbações) nos termos com os quais comumente nos referimos à memória, na pesquisa psicológica ? Parece-me, de um lado, que o sentido freudiano de "memória" não se sujeita a redução - direta, conceitualmente simples - aos mecanismos que o psicólogo costuma postular (aquisição, retenção e evocação de informação). Há mais, na passagem de uma fase libidinal a outra, do que uma questão de lembrar-se e esquecer. De outro, parece-me aberta a possibilidade de trocas, ao nível de aspectos mais específicos das hipóteses freudianas, por exemplo os ligados à repressão de lembranças ameaçadoras ou de afeto negativo (Loftus, 1993).

 

Aspectos autobiográficos e sociais

10.

Em Über das Gedächtnis (1885), obra memorável, Ebbinghaus deixou um legado de cuidado e de rigor experimental ao estudo da memória. Sua contribuição essencial foi mostrar que era possível encontrar relações regulares entre aprendizagem e retenção, uma vez purificada a memória dos aspectos que remetessem à experiência pessoal do sujeito memorizador. Usou, como estímulos, sílabas formadas de letras sorteadas ao acaso, das quais supôs que tivesse sido suprimido o " sentido", e inaugurou um método de avaliação do desempenho baseado na re-aprendizagem, eliminando assim o recurso à evocação ou ao relato, contaminados de subjetividade. Embora tivesse usado a si-próprio como sujeito experimental, Ebbinghaus não se preocupou em absoluto pelo que, hoje, chamaríamos de memória autobiográfica.

Uma reação à tradição ebbinghausiana (já presente, de certa forma, nas propostas de Bartlett, 1932) foi deflagrada pelo psicólogo cognitivista Neisser, por ocasião de uma reunião científica sobre aspectos práticos da memória (Gruneberg, Morris & Sykes, 1978). Nesta reunião, Neisser queixou-se do " silêncio estrondoso" da psicologia a respeito de questões importantes no estudo da memória, relacionadas ao seu uso no dia-a-dia, em contextos sociais "naturais", questões, segundo ele, mais prementes do que as abordadas no ambiente "abstrato" do laboratório.

O campo que, a partir daí, começou a ser explorado, recebeu nomes diversos, entre eles os de memória cotidiana ou de memória autobiográfica. Busca-se supreender os mecanismos mnêmicos em situações concretas; muitas vezes, através de relatos e de avaliações dados pelos próprios sujeitos. Estuda-se, por exemplo, as lembranças que crianças pequenas têm de sua história imediata e das rotinas familiares; o quanto e por quê pessoas se lembram de episódios sociais marcantes, como a tentativa de assassinato de um presidente ou a explosão de uma nave espacial (um evento marcante, em nosso meio, foi o acidente sofrido por Airton Senna); como a rotina anual do ano letivo e das férias influencia as recordações de estudantes, como decresce o domínio de uma língua estrangeira no decorrer dos anos (Bahrick, 1984, usando uma abordagem naturalística, quantificou o declínio de retenção do espanhol, como segunda língua, a intervalos que chegavam ao marco impressionante de cinqüenta anos após a aprendizagem. Diga-se de passagem: a retenção, depois deste tempo todo, ainda era apreciável!).

Procurando avaliar a influência do " colorido afetivo" sobre a memória de eventos corriqueiros, uma questão que tem a ver com hipóteses psicanalíticas, Ades, Botelho, Duarte, Teixeira, Arruk, Melo e Gazire (1990) deixaram que, durante uma semana, pessoas registrassem eventos de sua experiência cotidiana, testando a memória depois de intervalos de uma ou duas semanas. Eventos pessoais muito desagradáveis demonstraram ser tão memoráveis quanto os muito agradáveis, em contradição com o que se esperaria, a partir de uma hipótese de repressão das lembranças negativas. A equivalência do positivo e do negativo, em termos de modulação da memória também é verificada, no estudo de Ades e Botelho (no presente volume), em que nomes de "amigos" e de "inimigos" tiveram efeitos semelhantes enquanto âncoras mnêmicas. Ades e Botelho interpretam em termos cognitivos o papel privilegiado da informação que se relaciona ao " eu".

Fortes críticas de teor metodológico, a meu ver excessivas, foram dirigidas por Banaji e Crowder (1989) às abordagens autobiográficas, gerando controvérsia (Loftus, 1991). Não vejo ruptura epistemológica entre laboratório e campo, entre estímulos " abstratos" e estímulos tirados da vivência diária. Prestar atenção ao homem e às experiências da vida diária, buscando criar estratégias rigorosas para seu estudo, representa um exercício sadio e necessário, capaz de trazer a psicologia um passo mais perto do homem em situação e da atuação prática.

 

11.

Ecléa Bosi, ao nos trazer suas reflexões sobre a pesquisa em psicologia social da memória, também nos permite participar da démarche através da qual revê sua própria trajetória de pesquisadora. Fala acerca de lembrança, a partir de lembranças. Num movimento de recuperação marcado pela busca da consistência mostra-nos as influências assimiladas, a teoria da Gestalt com sua idéia de campos de sentido, essencial para entender tanto o subjetivo como o intersubjetivo; Bergson, que põe a memória em processo (ponta seletiva de contato com o real); Halbwachs que a situa, também dinâmica, na rede dos referenciais sociais, e, já no plano da crítica ideológica, Benjamin e Adorno. Estas influências confluem no trabalho sobre as lembranças de velhos (Bosi, 1979). O que, a meu ver, torna especial a abordagem proposta por Ecléa é seu modo de, ao mesmo tempo, aproveitar a " substância social da memória" e conferir-lhe características que a tornam individual. Os depoimentos permitem a reconstituição, não dos processos de memória através dos quais foi construída a lembrança, mas da representação social de um certo passado, moldada às exigências do presente.

 

12.

As concepções de Halbwachs, que Maria Luiza Schmidt e Miguel Mahfoud nos apresentam, prefiguram o interesse moderno por cognição social e continuam instigantes. Halbwachs defende resoluta e radicalmente o caráter social (nos processos constitutivos, nos conteúdos) da memória. " Um homem, para evocar seu próprio passado", escreve ele, "tem freqüentemente necessidade de fazer apelo a pontos de referência que existem fora dele e que são fixados pela sociedade" (1990, p.54). A lembrança não se estrutura e surge de dentro de uma cabeça, mas sempre, de modo mais ou menos direto, em função do testemunho de outrem, das noções partilhadas por grupos de referência. Se alguém se afasta de um grupo, acaba esquecendo as idéias que nele circulavam. Se tem a impressão de que algumas de suas lembranças são únicas e pessoais, é por não perceber que representam o cruzamento de séries de pensamentos pertencentes a grupos diferentes. Numa narrativa única, pode-se perceber -como bem notam Schmidt e Mahfoud - "uma orquestração de vozes coletivas, postas em cena pelo narrador". Daí a possibilidade de um duplo caminho de pesquisa: da narrativa individual, em direção à compreensão dos fenômenos grupais; do conhecimento do grupo, em direção à análise dos processos cognitivos do indivíduo.

 

13.

Fazer com que o professor resgate, através do relato autobiográfico, "os sonhos de infância e as desilusões", as interações marcantes, os sucessos e fracassos percebidos na prática de ensinar, o contato com alunos, é a estratégia que Bueno, Sousa, Catani e Souza propõem para formar bons professores de professores. Dar-se conta de sua própria história: o relato não é evocação passiva, traz a oportunidade de integração de lembranças aparentemente desconexas e de uma recomposição do senso de identidade. É criador de conflito, na medida em que imagens de tempos diferentes não necessariamente coincidam. A proposta tem certamente a ver com as idéias de Halbwachs (Bosi; Schmidt & Mahfoud) e talvez, em suas perguntas complementares ("por que nos lembramos de certas coisas e não de outras ?", "Qual o peso de certas lembranças ?", etc.) poderia articular-se com a pesquisa psicológica em memória autobiográfica. Mas também traz a tensão e os sistemas de valores próprios dos trabalhos de aplicação. A escrita autobiográfica, além de sua possível dimensão catártica, poderia servir, aquem escreve e relembra um novo senso de pertencer à categoria profissional e propiciando novas práticas. As diferenças entre estilos "feminino" e. "masculino" nos conteúdos de memória, que as autoras abordam, remetem a um contexto teórico mais abrangente, talvez até evolutivo. Diferenças cognitivas de gênero não são apenas estas, decorrentes do contexto histórico-cultural: enraizam-se em diferenças de funcionamento do cérebro (Kimura, 1992).

 

14.

Franco Cardini - com quem tivemos a oportunidade de interagir, por ocasião de sua visita ao Instituto de Psicologia da USP, em 1993 - aborda um tema de fronteira, por isso relevante em nosso contexto interdisciplinar, o das explorações a serem efetuadas pelo historiador no campo da memória, em quase contato com o psicólogo que se interessa por narrativas e representações sociais. Trata-se de " atingir o coletivo, o quotidiano, o que se modifica somente em tempos longuíssimos, o imaginário, as estruturas mentais (...)", através da coleta de testemunhos, tomados em sua complexidade e em seu dinamismo, até mesmo em sua incoerência. Cardini, examinando o método, chega à surpreendente conclusão que, na história das mentalidades, " a mentira desvelada enquanto tal será mais interessante do que a verdade; o erro identificado como tal, na comparação com uma realidade dada e conhecida, será mais revelador do que aquela mesma realidade". É preciso, evidentemente, que existam critérios independentes para captar a realidade " dada e conhecida". Estamos diante de um princípio que desponta nos diversos níveis em que é analisada a memória: o de ser ela reconstrução, um testemunho acerca de eventos e palavras que se deixa influenciar por informações irrelevantes, por afetos, por crenças e por interesses sociais.

 

15.

A batalha de Alcácer Quibir ocorreu a 4 de agosto de 1578, ao redor das onze da manhã, pondo em confronto os exércitos de D. Sebastião, rei de Portugal e de Abd el-Mâlik, rei do Marrocos. A precisão cronológica nos levaria a esperar precisão na descrição do evento, nos pormenores de ataques, recuos, número de mortos, etc. Mas o discurso histórico não se preocupa com a acuracidade, ou melhor, a transcende em função do desejo social. Há uma manipulação da memória coletiva que, segundo Lucette Valensi, cujo livro "Fables de la Mémoire, La-Glorieuse Bataille des Trois Rois" Sylvia Leser de Mello nos apresenta, pode ser interpretada em linhas freudianas. O que não pode ser desmentido ou fabricado passa para o plano legendário: a morte de D. Sebastião dá origem, entre os portugueses, a mitos de um retorno triunfante, em futuro não especificado. Será a memória produto de nossa imaginação ? indaga Sylvia Leser de Mello. Cabe apreender, contudo, por trás do imaginário, a dimensão de poder que se expressa na memória coletiva.

Sobre um possível mapa cognitivo

 

16.

Nem sempre existem condições para a assimilação dos conceitos ou métodos de cada tradição de investigação da memória pelas outras. Não acredito que todos as reflexões e contribuições empíricas reunidas no presente volume possam, por enquanto, ser trazidas para o aconchego de um único esquema teórico ou traduzidas de acordo com uma terminologia padrão; mas considero extreamente estimulante e criativo o confronto, por nos permitir idas e vindas entre um corpo de conhecimentos e outro, entre uma proposta e outra. Trata-se de estabelecer as ligações (como diz Cardini, "não uma estrada principal, mas sim um conjunto de trilhas") que permitirão que se forme, em nossa memória, um mapa cognitivo mais abrangente e criativo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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