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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.4 n.1-2 São Paulo  1993

 

RESENHA

 

Memória ou memórias?

 

 

Lucette Valensi, FABLES DE LA MÉMOIRE. LA GLORIEUSE BATAILLE DES TROIS ROIS. Paris, Seuil, 1992

 

D. Sebastião

Esperai! Caí no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.

Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura
É Esse que regressarei.

Fernando Pessoa - Mensagem

 

No dia 4 de agosto de 1578, perto de 11 horas da manhã, dois exércitos defrontaram-se, para uma única batalha, que durou cerca de quatro horas, ao lado do rio Wâd al-Makâzin, no Marrocos. Conhecida no ocidente como a batalha de Alcácer Quibir (ou al-Kassar el-Kebir), nela pereceram três reis: D. Sebastião, de Portugal, Abd al-Mâlik, seu adversário e soberano do Marrocos, e o príncipe Muhammad al-Mutawakil, sobrinho de al-Mâlik e aliado de D. Sebastião. Num trabalho cuidadoso e bem documentado, Lucette Valensi vai reconstituir as diferentes sagas a que a batalha deu origem, pois além do fato bruto da luta e de seu resultado, todos os relatos variam. As datas, o nome do local, a designação do ano - o tempo simbólico, portanto, - que é o calendário ocidental, o ano judaico ou o ano muçulmano, tudo é diverso nas narrativas das testemunhas ou nas histórias elaboradas a partir dessas narrativas.

Mesmo a memória imediata não é imparcial. Os relatos mais próximos ao acontecimento tendem a explicar ou justificar o resultado da batalha segundo as preferências, políticas e pessoais, do narrador. Ou, como afirma a autora, "um texto histórico contém sempre elementos potenciais do legendário." (p. 44)

Pertencendo ao fecundo grupo de historiadores franceses mas preocupada com problemas que se aproximam da psicologia social, como a chamada memória coletiva, Lucette Valensi vem se dedicando à história do Islã. E é nesta história que ela encontra a matéria de que se vai apropriar para discorrer sobre as relações entre ocidente e oriente.

O livro se abre com a questão fundamental do restabelecimento dos fatos históricos em face da falsificação e da manipulação da memória, por vezes deliberada, para reconstruir acontecimentos históricos, favorecendo grupos políticos no poder ou ideologias dominantes, no esforço que é parte da elaboração da chamada " consciência histórica". Esta, tão perfeitamente integrada à nossa identidade nacional, só merece questionamento quando a própria sociedade se transforma, carreando consigo novas visões do passado, restabelecendo a importância de outros atores e de outros segmentos sociais.

A hipótese, que dá ordem à farta documentação apresentada, é que as operações que estão na base da construção da memória individual são, em princípio, as mesmas que regem a construção da memória coletiva, e que estas operações podem constituir-se em objeto histórico: "Sabe-se que quando se trata de psicologia individual o par memória/esquecimento não esgota as operações que se fazem sobre a experiência vivida, e que a produção de lembranças não é o único processo ativo que entra em jogo. Silêncio, censura, obliteração, recalque, amnésia, denegação e mentira também são parte da formação da memória" (p.16). Este jogo complexo que é o processo de transformação das lembranças, Lucette Valensi vai encontrar em Freud, utilizando-o para desenrolar o novelo da construção das memórias coletivas.

Como se deu o trabalho dessas operações sobre o evento da batalha? Para responder essa questão a autora propõe um trajeto de pesquisa que deve encontrar, nos documentos históricos, soluções para três ordens de perguntas.

Primeiramente trata-se de seguir a mesma história, interpretada de modo diverso por vencidos e vencedores, em diferentes momentos do tempo.

Em segundo lugar trata-se de estudar a mnemotécnica, os meios de produção e de transmissão da lembrança, ou seja, a mesma história contada sob formas diversas.

E, por fim, "resta-nos procurar onde estão colocados os guardiães da lembrança, quem pronuncia as palavras de passe e para quais destinatários. Questão difícil, pois ficarão de fora aqueles que escutaram silenciosamente, aqueles que murmuraram as histórias ouvidas, os que leram as narrativas sem nos deixar seus comentários. Mas essa questão nos incitará a prestar atenção àquilo que Mikhail Bakhtine chama a 'plurivocalidade' dos textos, à diversidade das vozes individuais que neles ressoam" (p.18).

Inspirado nessa ordem de problemas, o trabalho da autora só nos pode impressionar pela farta documentação de que se utiliza e pelo cuidadoso empenho em colocar, diante do leitor, todos os elementos que permitirão reconstruir o som e a fúria da batalha, que é parte da nossa própria história, da nossa origem lusitana e de leitores cativos de Camões e de Vieira. Mas não apenas o momento do embate entre os dois exércitos. Tudo o que foi lembrado e fabricado, todos os contares e cantares que ai tiveram sua origem , tudo é material de trabalho para a autora. Esse cuidado na reconstrução e a abundância de literatura tornam muito difícil dar conta , numa breve resenha, de todas as leituras que a autora nos propõe. É com a liberdade de minha escolha pessoal, portanto, que vou acolher, na minha reconstrução do livro, alguns momentos dentro de toda a história que ela vai desvendando, tanto a portuguesa e ibérica, como a história da África do Norte, da região do Maghreb, das relações entre o sultão turco e os poderosos locais. História islâmica e história ocidental confrontam suas verdades, como se ocidente cristão e oriente muçulmano nunca pudessem encontrar um valor comum.

Acompanhamos a tendenciosidade das diversas testemunhas mais próximas do acontecimento, inclusive dos participantes da batalha, que encarecem o heroísmo e a valentia dos vencidos ou dos vencedores, segundo a sua própria apreciação sobre o evento. Acompanhamos a introdução, através da circulação oral e escrita das notícias, das personagens em torno das quais os mitos vão ser criados: o rei português e os reis marroquinos, e o príncipe al-Mutawakil, aliado para uns, traidor para outros.

Em Portugal, o destino de D. Sebastião, desaparecido na batalha, é tratado como um mistério, suscitando a criação do mito do Encoberto. A lenda de seu esperado retorno, para uma vitória final das forças cristãs, responde à dor da derrota e vai sendo construída através do tempo. A tragédia de Portugal é imensa. Perde seu rei, a maior parte de sua juventude é morta ou feita prisioneira, o exército é destruído e para finalizar o trono sem herdeiros passa à coroa da Espanha. Durante os séculos XVI e XVII a literatura historiográfica vai acentuar a versão mítica e mística dos fatos, e nela desfilam visões e profecias sobre o destino de Portugal e de seu rei.

Deus está do lado dos vencidos, nessa última cruzada do ocidente cristão contra os mouros, e os relatos proféticos e místicos retomam o caráter sagrado da luta pela fé verdadeira. As visões são proféticas, precedem o acontecimento e o justificam. Desde Santa Teresa, na Espanha, até o padre José de Anchieta, no Brasil, as versões religiosas da derrota vão ser recapituladas na historiografia portuguesa, oficial ou não. E as aparições sobrenaturais contêm sempre uma promessa divina: os mortos portugueses são os mártires do Senhor e estarão com ele em sua glória. Até mesmo Antonio Conselheiro, no longínquo Canudos, vai encontrar na lenda inspiração para o seu povo:

Em verdade, eu vos digo, enquanto as nações lutam com as nações, o Brasil com o Brasil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prússia com a Prússia, D. Sebastião emergirá das ondas do mar com todo o seu exército.

Desde o começo do mundo ele sofre um encantamento com todo o seu exército e com ele retomará a guerra .

E quando ele foi encantado, enfiou sua espada até à copa na pedra e disse: 'Adeus mundo, tu talvez chegues a mil e pouco, mas nunca a dois mil.'

No dia em que ele sairá com sua armada, ele passará todos ao fio da espada, todos aqueles que têm um papel na República (p.183).

Assim, D. Sebastião não apenas combaterá os infiéis sarracenos, senão todos os anti-cristo, como os republicanos do Brasil.

Mas, ó maravilha, Deus está, também, do lado dos vencedores que fazem a guerra santa contra os infiéis. Os relatos árabes dão ao acontecido uma dimensão sobrenatural onde proliferam narrativas de fatos milagrosos ocorridos durante a luta. O tom dessas narrativas é de exaltação dos vencedores, sobretudo de Moulay Ahmed, que assume as glórias da vitória, assim como assume o trono com a morte de seu irmão Abd al-Mâlik. Os mesmos testemunhos execram o príncipe traidor al-Mutawakil e o rei português, que nem mesmo é nomeado. É a construção da lenda de Moulay Ahmed como o vencedor da grande batalha entre os crentes verdadeiros e os infiéis.

Parte da reconstrução da história é a dificuldade de Portugal elaborar o seu luto. O primeiro escrito em português sobre a batalha só aparece em 1607, vinte e nove anos depois do acontecimento, com o objetivo de responder aos testemunhos desfavoráveis ao rei português. "Exata ou não, a relação de Mendonça irá servir de matriz aos textos ulteriores que se situam numa linha favorável aos seus concidadãos. (...) Produzindo uma versão dos fatos aceitável pelos portugueses, esse livro devolvia à consciência deles a lembrança recalcada, a realidade dolorosa; ele lhes fornecia, talvez, um meio de acabar, também, o trabalho de luto que os absorvia há trinta anos" (p.35). Esse trabalho, como lembra a autora, tem as características que Freud aponta para a reconstrução das lembranças individuais. Tentamos viver, agora, com maior ou menor sucesso, a elaboração de luto que o período da ditadura militar nos impôs, devolvendo a dignidade histórica aqueles que lutaram por um Brasil melhor e mais justo.

Mas a história não se faz apenas com a memória imediata. Como muito bem salienta a autora, a memória dos feitos relativos aos grandes momentos da nacionalidade, ou aqueles momentos de maior risco à mesma nacionalidade, deve ser periodicamente renovada, com monumentos, com festas cívicas, com espetáculos públicos. Assim como a vida quotidiana continua, sem grandes alterações para a maior parte da população, assim a história continua a ser tecida, quer na derrota, quer no sucesso. É a conservação e modificação da memória que vai se inscrevendo em novos símbolos e adquirindo novas significações. É espantosa, por exemplo, a tentativa portuguesa de modificar o resultado histórico da batalha, mais de trezentos anos depois, enviando, em 1942, enquanto o norte da África ainda estava dominado pelas forças do Eixo, um corpo de alunos oficiais da marinha portuguesa, sob o comando de um general, numa peregrinagem patriótica, refazendo o caminho de D. Sebastião, e de seu exército. O périplo: partir de Lisboa, chegar a Tanger e ai celebrar uma missa, como o rei havia feito, e chegar a Alcácer Quibir em 4 de agosto. Ali, desfiles e discursos com a pretensão de recompor a história, dar-lhe um resultado diverso. "Parada brilhante, nos dois sentidos do termo: no sentido próprio, um desfile militar; no sentido figurado, uma nova artimanha para disfarçar a derrota de Alcácer Quibir. Dos descendentes dos vencedores ela fez figurantes desarmados; e dos vencidos, combatentes de novo exaltados" (p.139).

No Marrocos, o afã de reconstruir a história não é menos notável. Mitologias nacionais se desenvolvem tendo a dinastia de al-Mansur como um princípio quase mítico. À sua extinção e à elevação de novos poderosos, novas mudanças na história se fazem necessárias: a batalha é um marco nacional e os atuais detentores do poder são alegoricamente responsáveis por aquela vitória: "Assim, para gravar a batalha dos Três Reis na memória dos marroquinos, contam-se histórias, orais ou escritas. Para torná-las memoráveis, selecionam-se episódios marcantes, que se repetem à vontade. (...) cada uma das narrativas acaba por se individualizar como uma história inteira, uma bela fábula, com seu momento de suspense e seu brilhante resultado. Nas obras ilustradas, algumas vezes na imprensa, nos manuais escolares, esses episódios são, agora, traduzidos em imagens e vinhetas que representam a grandeza de uma alma e a coragem de uns e a teimosia estúpida e a desonra de outros." (p.258)

Em ambos os lados, e por meios semelhantes, a batalha acaba por habitar a memória coletiva. Derrota e luto para uns, ufanismo e exaltação para outros, os povos recolhem e engrandecem esses momentos da nacionalidade do modo como as múltiplas tonalidades das memórias os vão recriando. E são esses os tons que ressoam na memória coletiva, até que mais um paciente trabalho de recriação dê origem a versões novas, com novos mitos e novos heróis.

Resta ainda dar conta das múltiplas vozes com que pode contar a memória para ser evocada, e uma das mais impressioantes, neste livro, é aquela que Lucette Valensi vai denominar a memória auditiva, a memória sonora da batalha. Citando o grande escritor português Oliveira Martins, escreve a autora: "Voltemos agora ao texto de Oliveira Martins. Descrevendo os preparativos de guerra do lado português, ele termina essa seqüência com esta frase, da qual sublinha as últimas palavras: 'Após a derrota encontrou-se nos despojos (do campo) dez mil guitarras.' Uma pequena frase colocada num fim de parágrafo, a ênfase colocada sobre as três últimas palavras. Não se poderia expressar mais ferozmente o despreparo do exército português e as ilusões cultivadas pelos combatentes. Essa frase incisiva conta assim, também, em poucas palavras uma fábula. Ela faz ver milhares de soldados embarcando com seus instrumentos de música; ela faz escutar seus cantos no caminho que os conduzia à batalha; ela nos obriga a ouvir o silêncio depois da derrota, quando as guitarras jazem ao lado dos corpos dos combatentes." (p.220)

O livro de Lucette Valensi é um livro poderoso porque coloca em movimento, também dentro de nós, a idéia dos riscos contidos nos recontares da história e o temor de verificar quantas de nossas aspirações e daqueles sonhos que nos movem não serão, apenas, meros fantasmas que poderão ser modificados como matéria plástica da história. É certo que somos, ao mesmo tempo, os leitores e os escritores da nossa história e, eventualmente, isso poderá nos servir de consolo. Ou podemos, ainda, para nossa maior tranquilidade, indagar, como Andrè Breton, se a memória não é somente um produto da nossa imaginação.

 

Sylvia Leser de Mello
Instituto de Psicologia - USP