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Psicologia USP

On-line version ISSN 1678-5177

Psicol. USP vol.5 no.1-2 São Paulo  1994

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A alteridade da arte: estética e psicologia

 

The alterity of art: aesthetics and psychology

 

 

João A. Frayze-Pereira

Instituto de Psicologia - USP

 

 


RESUMO

A questão da relação entre a Psicologia e a Arte é considerada tendo por referência os limites do campo estruturado pelas artes plásticas, fundado pela especificidade da "ordem humana", A teoria da arte como "formatividade" (Pareyson), a interpretação da pintura rupestre como "milagre" (Bataille) e a filosofia da pintura como "ontologia da visão" (Merleau-Ponty) fundamentam um pensamento que elabora uma concepção de obra de arte como campo reflexivo a solicitar do intérprete a abertura para o novo e, portanto, para a alteridade —postura fundamental na pesquisa em Psicologia Social da Arte.

Descritores: Arte. Pintura (Arte). Estética Percepção. Psicologia Social.


ABSTRACT

The problem of the relation between Psychology and Art is considered with reference to the limits of the field structured by the plastic arts and originated by the specificity of the "human order". Pareyson, Battaille and Merleau-Ponty lay the foundation of an idea of work of art as a reflexive field asking the interpreter to be opened to the new, thence alterity, a fundamental attitude for research in Social Psychology of Art.

Index terms: Art Painting (Art). Aesthetics. Perception. Social Psychology.


 

 

A aproximação entre a Arte e a Psicologia não é um movimento recente. Muito anterior ao próprio advento da Psicologia como disciplina científica, na verdade, em sua origens, foi a própria Estética que se abriu à Psicologia que estava por vir:

foi a perspectiva do Belo, como domínio da sensibilidade, imediatamente relacionado com a percepção, os sentimentos e a imaginação, que Baumgarten incorporou ao conteúdo dessa disciplina, o qual apareceu numa época em que a Beleza e a Arte eram geralmente, ou marginalizadas pela reflexão filosófica, que as tinha na conta de irrelevantes, ou consideradas apenas sob o aspecto racional das normas aplicáveis ao reconhecimento de uma e à produção da outra (Nunes, 1989, p. 12).

Formulada como disciplina no século XVIII por Baumgarten, a Estética baseava-se na idéia de que a Beleza e seu reflexo nas Artes representavam um tipo de conhecimento sensível, confuso e inferior ao racional, claro e distinto, isto é, ao conhecimento voltado para a verdade. Posteriormente, através da Filosofia de Kant, a questão do Belo irá converter-se na questão da "experiência estética" que acabará sendo diferentemente interpretada pelas diversas tendências teóricas do século XIX. E, paulatinamente, a Estética filosófica abandonará o domínio metafísico para se aproximar do domínio experimental e psicológico. Não é difícil encontrar as razões dessa aproximação da Psicologia. Na época, afirmava-se que toda "experiência estética" e, consequentemente toda a arte, se articulava segundo dois pólos: um subjetivo (o sujeito, isto é, o artista ou o espectador que sente e julga) e outro, objetivo (o objeto, isto é, aquelas manifestações que condicionam ou provocam o que sentimos e julgamos). A Psicologia nascente passou a se ocupar, quase exclusivamente, do aspecto subjetivo, valorizando seus elementos heterogêneos, como o prazer sensível, os impulsos, os sentimentos e as emoções.

Com efeito, em 1876, na sua Introdução á Estética, G.T. Fechner propôs, pela primeira vez, o termo "estética indutiva", "de baixo" (von unten), por oposição à antiga "estética metafísica" que deduzia "de cima" (von oben) a "determinação conceptual da essência objetiva do belo". O primeiro laboratório de Psicologia, fundado por Wundt em Leipzig (1878), assinalou um marco importante na história da Estética. Pode-se dizer que o reino específico da Psico-Estética Experimental nasce com Wundt, feita a ressalva de que muitos predecessores contribuíram para essa estética indutiva. Nessa mesma medida, também seria um exagero dizer que Fechner inventou a Estética Científica. De qualquer maneira, o que importa ressaltar é que o advento da Psicologia como disciplina está diretamente relacionado com a pesquisa de problemas cuja natureza é de ordem estética, tais como, os do limiar estético do crescimento, da unidade na variedade, da ausência de contradição, de clareza, de associação, de contraste, etc. Mas, no tocante ao conhecimento da Arte ou do Belo, Fechner reincide em teorias obscuras que nada possuem de experimental (Huisman, 1961). Aliás, também como observa Weber (1972, p.9) "apesar do inegável interesse de seus resultados, não parece que o método experimental tenha oferecido grandes contribuições à uma Ciência da Arte". Faltou a esses pesquisadores a condição essencial para a pesquisa de questões estéticas: a frequentação da arte. (Munro, 1969).

Por outro lado, as correntes que privilegiaram o aspecto objetivo da experiência estética focalizaram os elementos materiais (sons, cores, linhas, volumes), as relações formais puras (ritmo, harmonia, proporção, simetria), as formas concretas no espaço e no tempo, capazes de produzir efeitos estéticos. E entre essas correntes, as mais recentes, que consideram as obras de arte como objetos estéticos privilegiados, examinando-as do ponto de vista de sua estrutura, pretendem determinar-lhes características essenciais e, só com base nesse levantamento, estabelecer conclusões de ordem geral e objetiva, aplicáveis a todas as artes. Tal é a ambição de uma Ciência Geral da Arte, bem representada pelos teóricos da chamada Teoria da Pura Visibilidade.

Ora, se a tendência do pensamento alemão, desde o século XVIII, foi a de decifrar a natureza do fenômeno artístico (os estetas especulam sobre a natureza da arte e os historiadores da arte empenham-se em estabelecer biografias dos artistas, em atribuir e inventariar obras, datá-las, situá-las na evolução dos estilos), é da Áustria que partirá o impulso para aprofundar o campo de investigação da obra de arte. Assim, em Viena, surge um grupo de grandes historiadores da arte entre os quais E. Gombrich e E. Panofsky, cuja compreensão de seu objeto de estudo, curiosamente, foi secundada pelo fato de terem se inspirado nos psicólogos (os cursos de Psicologia da Universidade eram frequentados por esses historiadores), contribuindo para a elaboração do conceito de Gestalt. Foram os professores da Escola de Viena que fundaram o importante Instituto Warburg, transferido com a ascenção de Hitler, em 1933, para Londres. Ao mesmo tempo, R. Arnheim, que realizava estudos sobre cinema, parte de Berlim para Roma, em seguida para Londres e, finalmente, para os Estados Unidos, convidado a ocupar no Sarah Lawrence College, N.Y., uma cátedra de Psicologia da Arte criada para ele. Desenvolve-se aí o primeiro Laboratório de Estudos Gestálticos dedicado à Arte. Em Londres, recorrendo aos psicólogos (p.ex.: J. Gibson), Gombrich desenvolveu a idéia da Arte como "percepção solicitada", argumentando que uma ciência da Arte deve estar fundada na Psicologia. Também em Londres, outro membro do Instituto Warburg, Ernst Kris, dava continuidade ao trabalho que iniciara em Viena junto a Freud sobre as relações entre Psicanálise e Arte. Já na França, nessa mesma época, R. Huyghe (que era conservador do Louvre) resignifica a Psicologia da Arte (conhecida através de H. Delacroix) através de dívidas teóricas contraídas com os historiadores da arte Emile Mâle e Elie Faure (este também pressuposto pela Psicologia da Arte de Malraux), ocupando em 1951 uma cátedra de Psicologia das Artes Plásticas no Collège de France (Bazin, 1986). E, entre nós, é fundamental lembrar que já em 1949, o crítico Mario Pedrosa defende sua tese Da Natureza Afetiva da Forma na Obra de Arte para a cátedra de História da Arte no Colégio Pedro II, Rio de Janeiro. Esse fato é digno de nota, pois essa tese representa uma articulação pioneira entre Psicologia da Gestalt e o universo da artes, anterior mesmo à obra de Arnheim, assim como a prática terapêutica inaugurada pela Dra. Nise da Silveira no Hospital Psiquiátrico Pedro II (Engenho de Dentro, R.J.), nessa mesma época, realiza uma nova aproximação entre Psicologia Analítica e Arte para o tratamento de esquizofrênicos, distinta da análise mais freudiana que Osório César mantinha em relação à produção plástica dos internos no Hospital do Juqueri (Franco da Rocha, S.P.).

Em suma, vista em panorâmica, negligenciando nomes e a exata cronologia, a Psicologia da Arte, em suas várias vertentes (da experimental à psicanalítica), aprofunda-se e institucionaliza-se no início dos anos 50. E a maior contribuição que desse movimento resulta é que não basta considerar apenas os dois pólos da "experiência estética" — o subjetivo e o objetivo. Não é possível esquecer que o sentido inerente a ela não reside apenas nos estados psíquicos do sujeito, nem deriva dos objetos como direta consequência de suas qualidades físicas, pois a "experiência estética" tem um profundo "caráter valorativo". Nesse contexto, que significa isso — a "experiência estética"? E exatamente que contribuição é essa resultante da Psicologia que se aproxima da Arte? Para tematizarmos essas questões, retomaremos algumas idéias por nós mesmos elaboradas em outro momento (Frayze-Pereira, 1984;1994), redirecionando-as à luz de uma das célebres declarações de Marcel Duchamp — "São os espectadores que realizam as obras" (Junod, 1986, p.279) — frase de grande efeito que, em 1957, não foi compreendida e que se viu retomada posteriormente pelos estudos de Estética da Recepção (Jauss, 1978). Ora, o campo de implicações aberto por ela, entretanto, é mais fecundo do que se pode supor: O exemplo que daremos a seguir, retirado da mídia recente, é ilustrativo, nesse sentido.

Em março de 1991, o Caderno Ciência da Folha de São Paulo publicou um artigo intitulado: "Animais usam pintura para fugir do tédio", sugerindo que as pinturas produzidas por macacos e elefantes em zoológicos questionam a tradição que as separa das criações plásticas humanas. Esse tipo de comparação, embora possa parecer resultar de pesquisas recentes, não é uma novidade. Em 1961, desenhos de um primata foram expostos numa galeria em Milão por iniciativa do pintor Francesco D'Areno, exposição que deu lugar a uma discussão sobre as fronteiras da arte. E três anos antes, isto é, em 1959, em São Francisco, Califórnia, uma galeria de arte expusera quadros de um chimpanzé que foram comprados por pequenas fortunas (Maccaulay, 1968, p.49).

Ora, a tese subjacente a esses artigos e episódios é a mesma: os animais têm capacidade e motivação para as artes plásticas. Basta oferecer-lhes tintas e pincéis que eles, inicialmente, passam a explorá-los e, depois, a manchar telas quando estas lhes são oferecidas. O lúdico caracteriza essa atividade e, no artigo da Folha de São Paulo, o artista cuja pintura é comparada à dos primatas é Willen De Kooning, um dos grandes pintores do século XX, um notável do abstracionismo.

Praticamente um ano antes dessa notícia, portanto em maio de 1990, igualmente no Caderno Ciência, publica-se um artigo intitulado: "Pintura rupestre não é a pré-história da arte". O texto fala dos resultados das pesquisas da equipe que trabalha em Paris, no laboratório do Museu do Louvre. Isto é, que "as pinturas rupestres não são realizadas com meros pigmentos de base e sim com uma sofisticada composição de elementos que não tem nada de natural". Não só as técnicas utilizadas, mas a própria composição, conforme analisadas pela aparelhagem sofisticadíssima do Louvre, revelam a existência de "um projeto do artista anterior à pintura final, isto é, que esta pintura não era imediata, mas pensada e bem acabada". Por exemplo, além do óxido de ferro para obtenção do vermelho e do óxido de manganês ou carvão de madeira para o preto, esses primeiros artistas empregavam minerais adicionais (granito e talco) que se destinavam à conservação das obras, evitando as rachaduras da pintura ao secar. Além disso, foram identificados diferentes períodos de trabalho dentro de uma mesma caverna. Mais do que isso, os técnicos detectaram esboços em carvão por baixo das pinturas. E, em suma, o conjunto dessas descobertas acabaram por levar os especialistas a pensar que as cavernas, além de verdadeiros santuários, poderiam ser compreendidas como complexos ateliês de pintura.

 

 

Esses artigos de jornal são, evidentemente, muito simples. Mas por serem fundados em pesquisas científicas, podem ser levados a sério, surgindo da sua comparação uma série de questões básicas que permitem realicerçar as possíveis relações entre a Psicologia e as Artes. Ou seja, se os macacos são capazes da arte — assim afirmam alguns espectadores (especialistas) — por quê será que suas manifestações são comparadas à pintura abstracionista, resultado de séculos de história da arte? Por quê não são comparadas à chamada arte pré-histórica, por suposto muito mais próxima dos primatas, na vertente evolucionista? Será que é porque a figuração, tão elaborada já nas pinturas rupestres, não é possível da parte desses seres pré-humanos? E se a figuração é impossível no animal, se o primata só é capaz de "abstrações" e se na relação entre estas não se verifica nenhuma filiação plástica ou gráfica, seria o caso de usarmos o termo arte para designar aquele tipo de produção pré-humana? Será que podemos falar, nesse nível animal, de um estágio ou de uma etapa de um tipo de comportamento, o estético, que se verificaria de modo mais complexo no homem? Ou será que o próprio comportamento, suposto e implicado pela arte, é um tipo de comportamento inaugurado com a humanidade?

Pensando nessas questões, acabamos sendo levados a outra, mais geral e fundamental, para o início de qualquer debate sobre a arte. A pergunta é, justamente, o que se entende por Arte? E essa questão é fundamental porque a partir dela é que poderemos compreender o comportamento propriamente estético e especificar melhor a relação entre a Psicologia e a Arte.

Se cada leitor pensar individualmente em alguns exemplos de obras de arte, com toda certeza não hesitará muito. Todos nós concordamos que a Monalisa de Leonardo Da Vinci é Arte, que os Lusíadas de Camões é Arte, que um Noturno de Chopin é Arte, que as pinturas no teto da Capela Sistina são Arte. Mas se é fácil encontrar exemplos de obras de arte, o mesmo não ocorre quando se pensa nos critérios que levam alguém a dizer porque elas são Arte (Coli, 1981). Ou seja, é difícil dizer o que é Arte, sobretudo quando vemos num desses livros ilustrados e bem encadernados, os chamados livros de arte, referências aos trabalhos desse importantíssimo artista plástico contemporâneo, M. Duchamp, entre os quais um aparelho sanitário de louça, exatamente igual aos existentes no mundo inteiro — um objeto que passou a ser conservado em museu e exposto à visitação do chamado público de arte. No entanto, trata-se de um objeto que não corresponde exatamente à idéia que se costuma ter da Arte. E se esse tipo de objeto nos questiona, de qualquer maneira nossas incertezas acabam se acalmando quando, após ter buscado saber o que é arte na Teoria da Arte, percebemos que o campo semântico do termo é ele próprio incerto. E que os teóricos apontam como um dos aspectos da própria Arte as dificuldades que apresenta ao enquadramento numa definição fixa, positiva. Isto é, os teóricos encontram dificuldades para delimitar as fronteiras da própria Arte, pois, de um lado, a Arte não teve sempre, nem em toda a parte, o mesmo estatuto, o mesmo conteúdo e a mesma função. O que se verifica ainda hoje... De outro lado, independentemente de qualquer pressuposto sócio-cultural, desconfia-se hoje muito da palavra arte. O campo recoberto pelo conceito é extenso: entre "a obra-prima e o esboço, o desenho do mestre e o desenho da criança, o canto e o grito, o som e o ruído, a dança e a gesticulação, o objeto e o acontecimento", é difícil traçar uma fronteira e até poderíamos nos perguntar se vale a pena traçar essa fronteira. "Porque não são apenas as teorias da arte que hesitam em atribuir-lhe uma essência, mas a própria prática dos artistas é que desmente a todo momento qualquer definição". Assim, uma definição da arte não deve procurar contrariar esse "movimento de auto-contestação e de invenção" que orienta a arte e que "a torna literalmente inapreensível" (Dufrenne, 1982, p.8).

Um erro muito freqüente é considerar a Arte ou admitir como conceito geral e definidor da Arte um programa particular de arte, uma poética. Segundo o grande esteta italiano Pareyson (1984, p.24-5), esse engano é freqüente e consiste em tomar a parte pelo todo, por exemplo, quando se diz que a Arte é expressão do eu profundo do artista sem se dar conta que essa é uma idéia que surge com o Romantismo no começo do século XIX, e não antes. Para evitar esse equivoco, muitos estudiosos admitem uma definição que possua um caráter negativo, isto é, que impeça a busca de uma definição "real", de essência ou de qualquer ser oculto, como durante séculos fizeram todas as poéticas, afirmando que a arte é intuição ou forma, que é idéia ou expressão, que é isto ou aquilo, sempre na ilusão por parte de cada uma dessas posições de ter sido esta e não as outras a que capturou com sua rede conceptual "a própria universalidade da arte, toda arte e para sempre" (Formaggio, 1981, p.9).

No entanto, se considerarmos historicamente as definições da Arte, segundo Pareyson (1984, p.29-33), podemos ordená-las basicamente em três categorias: arte entendida como fazer, arte entendida como exprimir, arte entendida como conhecer. São concepções que ora se opõem, ora se combinam, mas que grosso modo apontam para contextos históricos bastante distintos.

Com efeito, a primeira concepção — a arte entendida como fazer — prevaleceu na Antigüidade, quando o aspecto fabril, manual, executivo, era acentuado. Com o Romantismo permaneceu a segunda — a beleza não era compreendida como adequação a um modelo exterior, mas pela íntima coerência das figuras artísticas com o sentimento que as inspirava e suscitava. E foi no Renascimento que prevaleceu a terceira maneira de conceber a arte — a arte como visão da realidade, ora da realidade sensível, ora de uma realidade metafísica superior, mais verdadeira, ou de uma realidade espiritual mais íntima, profunda, emblemática.

Seria possível dizer que a Arte encerra todos esses atributos. No entanto, é preciso observar mais de perto os próprios termos envolvidos nessas definições.

Se considerarmos a primeira definição, arte é expressão, teremos que admitir, no entanto, que todas as operações humanas são mais ou menos expressivas, isto é, que toda obra humana contém a espiritualidade e a personalidade de quem a realizou e a ela se dedicou e que, nesse sentido, a arte é, também, operação expressiva. E que não é esse aspecto que a caracteriza essencialmente. Dizer, por exemplo, que arte é expressão de sentimentos — pode ter sentido no plano de um particular programa de arte (isto é, no plano de uma poética), mas não no plano da estética, quer dizer, no plano de uma concepção geral de arte.

Esse mesmo tipo de reflexão vale para a concepção que diz ser a arte conhecimento, isto é, que há um componente cognitivo na arte. Mas, sabemos, se a arte pode chegar a se fazer ciência como em Leonardo Da Vinci, aquilo que se diz da arte — que ela é reveladora da verdadeira realidade das coisas — pode-se dizer de outras atividades humanas, que no seu concreto exercício, abrem portas sobre a constituição da realidade: a Filosofia, a Ciência, a Moral, a Religião...

Mas a arte é também um fazer. E também aqui é preciso observar que todas as atividades humanas têm esse lado executivo, que há criação em outros planos que não o artístico. E, nesse momento, ainda estamos no ponto zero, às voltas com a questão da qual partimos: o que é a Arte?

Pensar a articulação exprimir — conhecer — fazer, rompendo com a atitude isolante, que opera com positividades, é, através de Pareyson (1984), a maneira de nos aproximarmos de uma resposta que dê conta da concretude da arte.

Com efeito, a arte é necessariamente expressiva enquanto é forma, isto é, um ser que "vive por conta própria e contém tudo o que deve conter". E esta afirmação significa que "a forma é expressiva enquanto o seu ser é um dizer". Nesse sentido, ela não tem um significado, mas é um significado. E, a partir daí entende-se porque a arte é também um conhecer, pois ao revelar um sentido das coisas, o faz de modo particular, ensinando uma nova maneira de perceber a realidade. Esse novo olhar é revelador porque é construtivo, isto é, formador. Nessa medida é um olhar que se prolonga no fazer, "como o olho do pintor cujo ver já é um pintar" (Idem, p.31).

Conclusão: a arte é um fazer. Mas é um fazer específico. Ou seja, "é um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer". É uma atividade na qual execução e invenção caminham paralelamente, simultaneamente e de modo inseparável. Assim, na arte concebe-se executando, projeta-se fazendo, executa-se encontrando a regra, já que a obra existe só quando é acabada. Isto é, não há arte sem obra, entendida inicialmente como objeto sensível que é inventado ao ser feito. A sua realização não é um facere, mas um per-fícere, isto é, um acabar, um levar a termo de modo tão radical que o resultado é um ser inteiramente novo e irrepetível.

São essas, em suma, as características da forma: "exemplar na sua perfeição, singularíssima na sua originalidade". Portanto, a arte é uma atividade que é um formar, isto é, um executar que é um inventar. (Idem, p.32). Nesse sentido, se a obra de arte é forma, a atividade artística é formatividade, na medida em que é o resultado de um processo de perfeição. A obra é perfeita exatamente na medida em que o por fazer e o como fazer foram levados a termo plenamente.

Contudo, o modo como os homens concebem a arte e a atividade artística, isto é, a forma e a formatividade, concretamente, é uma outra história: a história da arte.

Uma maneira abrangente de se compreender a arte, portanto, teria que levar em conta a sua particularidade, definida pela sua historicidade. Assim, por exemplo, um outro pensador italiano importante — Formaggio (1981, p.9) — define arte dizendo o seguinte: "arte é tudo aquilo a que os homens na história chamaram e chamam arte". Como se pode observar, trata-se de uma definição que permite a própria verificação do conceito de arte, isto é, ela suscita uma série de interrogações que começa com a seguinte pergunta: como se constitui aquilo a que os homens chamam arte? E esta indagação gera outras: que significa "aquilo", que "homens" são esses, qual a "validade desses discursos" e, principalmente, "a que hoje os homens chamam arte". Trata-se, portanto, de um questionamento que nos leva necessariamente a admitir, lembrando Foucault (1972), que é somente na história que se poderá descobrir o único a priori concreto a partir do qual a arte assume seus contornos necessários.

Claro deve estar, a partir dessa breve apresentação da problemática conceituai encerrada pelo termo arte, que o terreno no qual se deve fundamentar qualquer pesquisa que envolve o processo artístico é o traçado pela história da arte. Esse é o ponto de partida indiscutível de qualquer pesquisa sobre a arte. E a partir dele fica impossível pensar a arte em geral. E isso porque, como já sabemos, falar sobre a Arte em geral é correr o risco de falar sobre o nada.

Nessa medida, quando o desejo é o de estabelecer um diálogo com a arte, há que se reconhecer o ponto básico do qual qualquer pesquisa deve partir: a obra de arte. Afinal, "a arte existe para ser percepcionada" (Argan, 1982, p.109). Contudo, percebemos muitos objetos que nada têm de artísticos. Quer dizer,

a percepção orientada para a arte, tenta comunicar-nos algo diferente do que nos é comunicado pela percepção normal, projeto que se evidencia no modo de elaboração das coisas que os artistas oferecem à nossa percepção, ou seja, nas técnicas artísticas (Idem).

Essas técnicas que só podem ser postas em prática tendo em vista certos materiais, junto com estes, variam conforme as épocas e os lugares. E esse fato — embora não seja decisivo na determinação de um objeto como obra de arte, pois para isso concorrem, além do artista e dos meios que emprega, também a crítica, o público, o mercado e, em suma, todos os espaços institucionais da arte (museus, galerias, etc.) — permite-nos observar novamente que é praticamente impossível definir para a arte um esquema ou um programa de realização universal e invariável. Vejamos um exemplo fundado na contemporaneidade quando, é bem evidente, é impossível manter a unicidade da arte para falarmos da Arte.

Com efeito, de um lado, encontramos os expressionistas abstratos dos anos 40-50 que reviveram

uma concepção romântica do artista, como um homem concomitantemente pertencente e contrário ao seu tempo e que dá forma aos conflitos mais profundos de sua época, e que além dessa concepção romântica do artista defendiam que uma era violenta exigia uma arte violenta (Lasch, 1986, p. 133).

De outro lado, há que se considerar a sensibilidade minimalista que se originou de um espírito de redução e reflete um sentimento de que não há espaço para a arte e de que a sociedade moderna, como a arte moderna, aproxima-se do fim do caminho. Se considerarmos esses dois movimentos, veremos que, de um ao outro, temos o contemporâneo e possibilidades de se pensar o indivíduo, os tempos modernos e a própria arte segundo modos distintos.

Numa conferência pronunciada em 1951, o pintor francês Jean Dubuffet antecipou os traços principais da sensibilidade minimalista, ao defender a "completa liquidação de todas as formas de pensamento, cujo conjunto constitui o que se designou 'humanismo' e que foi fundamental para a nossa cultura, desde o Renascimento". Segundo Dubuffet, o artista deve suprimir a assinatura pessoal de sua obra. Se ele pinta um retrato, insiste, deve procurar libertar o retrato de quaisquer traços pessoais. Trata-se de fazer uma arte impessoal que rejeita o primitivismo, o surrealismo e o expressionismo abstrato com veemência.

Nessa linha, Ad Reinhardt, pintor americano que de 1957 a 1967 não pintou outra coisa senão composições em negro, no texto Doze regras para uma nova academia (1957), dizia o seguinte:

nenhuma textura, nenhum trabalho de pincel ou caligrafia, nenhum esboço ou desenho (...) nenhuma forma, desenho, cor, luz, espaço, tempo, movimento, dimensão ou escala, nenhum objeto, nenhum sujeito; nenhum tema; nenhum símbolo; imagem ou signo; nem prazer, nem dor (Lasch, 1986, p.133).

De outro lado, Mark Rothko, com a série de trabalhos em negro semelhantes aos de Reinhardt, destacava estar interessado somente em "expressar as emoções humanas e em comunicá-las aos outros". Uma comparação entre as pinturas em negro de Reinhardt e as de Rothko

mostra a diferença entre uma arte que, tendo renunciado à esperança de impor a ordem do artista ao mundo, apega-se, no entanto, à individualidade, como a única fonte de continuidade num meio circundante de outro modo caótico, e uma arte que, por outro lado, renuncia à própria possibilidade de uma vida interior (Lasch, 1986, p.134).

 

 

Segundo Eliza Rothbone as pinturas em negro de Rothko "mantêm sua preocupação com uma experiência humanamente vivida". A única idéia desse artista é a de "uma experiência que possa se expandir na resposta do espectador, ao passo que Reinhardt recusa qualquer intercâmbio desse tipo entre possibilidades interpretativas". Para Reinhardt "a opção pelo negro foi o último passo para evitar qualquer uso da cor..." (Idem).

Porém, admitindo que é quase impossível manter a unidade da arte na contemporaneidade, dada a multiplicidade das poéticas existentes, como compreender que todas elas sejam arte, ou melhor, que Reinhardt e Rotko, por exemplo, representem modos diferentes de se fazer arte, ou diferenciações da arte, e que as expressões dos demais primatas não fazem parte desse processo que justamente admite tantas variações? Para compreendermos esta questão, será preciso entendermos que tipo de comportamento é esse, pressuposto e implicado pela arte, que se verifica na "ordem humana". E, nesse instante, a indagação não é mais histórica, cultural ou psicológica. Ela é, antes, uma questão filosófica. Entre os pensadores contemporâneos, Maurice Merleau-Ponty é talvez aquele que mais radicalmente considerou essa questão, elaborando uma Filosofia na qual o "comportamento estético" tem um valor ontológico fundamental.

Em A Estrutura do Comportamento (1942), o filósofo distingue a "ordem humana", a "ordem física" e a "ordem vital". E a "ordem humana" é definida por uma "estrutura simbólica" cujo equilíbrio não se verifica como conservação de uma ordem dada (ordem física), nem como adaptação através das virtualidades do organismo às condições atuais (ordem vital), mas em virtude da possibilidade de ultrapassar a imediatez das situações e criar uma situação nova tendo em vista algo que está ausente. O símbolo justamente é o que exprime esse tipo de estruturação onde a ação se orienta para o virtual, orientação que se presentifica na percepção, na linguagem e no trabalho. A "estrutura simbólica" define-se, então, por um movimento de transcendência que confere à existência humana o poder de ultrapassar o dado, encontrando para ele um sentido novo através de uma ação orientada em função do possível. "Por isso mesmo, diz Chauí (1974), somente nessa dimenção é que se poderá falar em história propriamente dita" .

Embora não seja possível tratar dessas distinções com a minucia que elas exigem, no espaço deste artigo, algo que já fizemos em outro trabalho (Frayze-Pereira, 1984), cabe citar deste apenas uma passagem para esclarecer um pouco mais a questão que nos interessa.

A transcendência já descoberta no plano vital é, na ordem humana, conservada e ultrapassada, pois a peculiaridade da 'estrutura simbólica' é ser reflexionante. Trata-se de uma reflexão que, como sabemos, ocorre primordialmente no corpo, propagando-se nas coisas e instaurando entre ele e elas uma relação expressiva. É o corpo reflexivo, portanto, que inaugura a 'estrutura simbólica', destruindo a oposição subjetivo/objetivo. É, nesse sentido, impossível distinguir nessa dimensão meios e fins como elementos separados. A ação humana só poderá ser apreendida concretamente através de uma estrutura que rompe com a exterioridade entre meios e fins. Diz-nos Merleau-Ponty (1942, p.188): 'sem dúvida, o vestuário, a moradia, servem para nos proteger do frio; a linguagem ajuda o trabalho coletivo e a análise do 'sólido inorgânico'. Mas, o ato de se vestir torna-se o ato de enfeite ou, ainda, o do pudor, e revela uma nova atitude para consigo mesmo e para com o outro. Somente os homens vêem que estão nus. Na casa que constrói para si, o homem projeta e realiza seus valores preferidos. O ato da palavra exprime, enfim, que deixa de aderir imediatamente ao meio, eleva-o à condição de espetáculo, e apodera-se dele (...) pelo conhecimento propriamente dito'. A estrutura que vincula meios e fins determina a gênese da ação como transformação do dado em fins, e destes, em meios para novos fins (Chauí, 1974). A ponte construída pelo castor reitera-se num processo cíclico a perdurar nas suas condições naturais. É um objeto que não tem sentido senão na sua relação vital com o comportamento do organismo. Do mesmo modo, se o chimpanzé é capaz de conferir valor instrumental a um galho de árvore, jamais chega a construir instrumentos a servir-lhe para repor outros. Ademais, no galho de árvore transformado em bastão, o galho é suprimido enquanto tal. 'Para o homem, ao contrário, o galho de árvore transformado em bastão permanecerá justamente um galho-de-árvore-transformado-em-bastão, uma mesma coisa com duas funções diferentes, visível para ele sob uma pluralidade de aspectos. O poder de escolher e de fazer variar os pontos de vista permite-lhe criar instrumentos, não sob a pressão de uma situação de fato, mas para um uso virtual e em particular para fabricar outros' (Merleau-Ponty, 1942, p.190). A ação propriamente humana não pode ser reduzida à ação vital. O galho transfigurado em bastão adquire para o agente a forma de um instrumento de trabalho, trabalho este que os consome no processo ao mesmo tempo que repõe novos instrumentos. E é dessa maneira que o galho de árvore dado desaparece no bastão. E é este o sentido do trabalho, isto é, o reconhecimento para além do mundo atual de um mundo de possibilidades (Merleau-Ponty, 1942, p.190). E estas são possibilidades do corpo e das coisas. Escreve Bosi (1977, p.55): 'morar é possível porque mãos firmes de pele dura amassam o barro, empilham pedras, atam bambus, assentam tijolos, aprumam o fio, trançam ripas, diluem a cal virgem, moldam o concreto, argamassam juntas, desempenam o reboco, armam o madeirame, cobrem com telha, goivo ou sapé, pregam ripas no forro, pregam tábuas no assoalho, rejuntam azulejos, abrem portas, recortam janelas, chumbam batentes, dão à pintura a última demão'. A casa não está em potência como forma indeterminada na matéria. Depende de um ato de violência através do qual se extraem da matéria, mediante a visualização de uma perspectiva (a casa), possibilidades que a transformam e viabilizam o seu uso. O ciclo natural se rompe na medida em que a ação humana — na qual o agente se encontra corporalmente engajado e com domínios ampliados mediante o uso de instrumentos — não é mera negatividade, mas negatividade formadora: projeta 'objetos de uso' ('a vestimenta, a mesa, o jardim') e 'objetos culturais' ('o livro, o instrumento de música, a linguagem'), que constituem o meio propriamente humano e fazem emergir um ciclo inédito de comportamentos (Merleau-Ponty, 1942, p. 175). São esses os objetos que inicialmente compõem o campo da percepção. E mesmo quando a percepção se orienta para 'objetos naturais' é, ainda, através de objetos humanos (por exemplo: a linguagem) que ela os visa. E isto é possível porque o homem não é uma coisa e nem um ser que se perde nas transformações reais que opera sem poder reproduzi-las: 'tem o privilégio de relacionar-se com outra coisa diferente dele próprio, porque não é simplesmente, mas 'existe' (Merleau-Ponty, 1966, p.227). Na 'estrutura simbólica', o corpo humano deixa, portanto, de aderir ao meio da maneira como o animal adere. Ademais, esse corpo já não está sozinho. Encontra-se situado entre outros corpos também situados, de sorte que a ação humana aqui referida é tomada no seu sentido particular e concreto. O agente não é a subjetividade, mas uma intersubjetividade , de modo que 'o conhecimento se encontra recolocado na totalidade da praxis humana e lastreado por ela' (Merleau-Ponty, 1966, p.237). Nesse sentido, 'o que define o homem não é a capacidade para criar uma segunda natureza — econômica, social, cultural — para além da natureza biológica, é sobretudo o poder de ultrapassar as estruturas criadas criando outras' (Merleau-Ponty, 1942, p.189). É um poder de transcendência que põe o agente humano como um ser histórico. Ou seja, 'a dialética humana é ambígüa: ela se manifesta inicialmente através das estruturas sociais ou culturais que faz aparecer e nas quais se aprisiona. Mas seus objetos de uso e seus objetos culturais não seriam o que são se a atividade que os fez aparecer não tivesse também como sentido negá-los e ultrapassá-los' (Merleau-Ponty, 1942, p.190 — grifos do autor omitidos). Assim, com a 'estrutura simbólica' marca-se o advento da lógica da expressão mediante a qual o significante e o significado não se vinculam com base numa associação empírica, por sua vez fundada na situação imediata e limitada que circunda o agente. Isto é, com a 'estrutura simbólica' abre-se a possibilidade de expressões variadas de um mesmo tema; 'multiplicidade de perspectivas' (Merleau-Ponty, 1942, p.133). (Frayze-Pereira, 1984, p. 191-4).

Em suma, a estrutura simbólica é polarizada pelo "corpo enquanto unidade de condutas e núcleo de significações e pelas coisas, enquanto qualidades expressivas, isto é, dotadas de sentido" (Chauí, 1974). Isto quer dizer que a estrutura simbólica é reflexionante, reflexão que ocorre primordialmente no corpo e não na consciência, situando-se o "para-si" num domínio que sempre, filosoficamente, pertenceu ao em-si.

O enigma é que meu corpo é simultaneamente vidente e visível. Ele, que olha todas as coisas, também pode olhar-se e reconhecer naquilo que vê o 'outro lado' de sua potência vidente. Ele se vê vendo, toca-se tocando, é visível e sensível para si mesmo. É um si, não por transparência, como o pensamento que só pode pensar assimilando o pensado, constituindo-o, transformando-o em pensamento, mas um si por confusão, narcisismo, inerência daquele que vê, naquilo que vê, daquele que toca naquilo que toca (...). Visível e móvel, meu corpo está no número das coisas, é uma delas, preso no tecido do mundo e dotado da coesão de uma coisa. Mas, porque vê e se move, mantêm as coisas em círculo ao seu redor, são um anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas em sua carne, fazem parte de sua definição plena, e o mundo é feito do próprio estofo do corpo (Merleau-Ponty, 1964, p. 18-9).

E comentando Merleau-Ponty, diz Chaui (1974):

a propagação da reflexão corporal nas coisas desdobra a ínteriorídade ou o sentido presente nelas como neles. Quando o pintor diz que é visto pelas coisas ao invés de serem as coisas vistas por ele, põe a visão no próprio mundo. Ou seja, há uma visibilidade secreta nas coisas que se torna visibilidade manifesta através de nosso corpo (...). A estrutura simbólica, portanto, põe a reversibilidade do sujeito e do mundo como uma relação expressiva. Não há coisas puras, mas coisas humanas, fisionomias, valores. Os outros e as coisas se oferecem como polos do desejo e a dialética humana nasce ai, na tentativa de apropriação e negação do mundo natural, fazendo emergir o mundo humano da linguagem e do trabalho.

Em outras palavras, diríamos, é aí que nasce o mundo da arte.

Com efeito, sabemos que a arte é um fazer formativo, isto é, trabalho. Mas, sabemos também que é um fazer expressivo, significante, quer dizer, linguagem. Ora, como o símbolo exprime justamente um tipo de estruturação onde a ação visa o que está ausente, a linguagem e o trabalho podem aparecer no mundo humano e com elas a dimensão do sentido. Nessa medida, percebemos que é desde o seu próprio corpo que o homem se diferencia dos outros seres. E mais, que é através desse corpo, vidente-visível, que se abre o campo das significações picturais, campo aberto desde o momento em que um homem surgiu no mundo. É, nesse sentido, que o historiador da arte Thévoz (1984, p.7) também pensa ser o homem diferente dos outros seres, isto é, por seu corpo, pois o homem é um ser que se situa numa relação ambígüa com sua própria imagem, ambigüidade que o leva a retocar seu corpo de múltiplas maneiras, deformando-o, mutilando-o, ornamentando-o através de tatuagens, escarificações, maquilagem, cirurgia plástica... E pode ser que essa tendência auto-plástica sugira a alguns a raiz vital da própria arte. No entanto, se o homem nasce prematuramente, com uma pele muito fina, muito frágil, muito pura e que, por isso, pede uma proteção artificial, esta não é apenas física, mas, sobretudo, simbólica. Quer dizer, ao nascer, o homem fica exposto num duplo sentido: aos perigos, mas também aos olhares. Ele é com toda certeza o único animal que nasce nú e que faz de sua pele uma superfície a pintar — superfície na qual gradualmente se inscreve sua identidade que, por exemplo, a tela, epiderme ultra-sensível, através da pintura e de toda a arte, irá ampliar. Assim, o que permitirá ao homem se dizer diferente de todos os outros seres, de um modo definitivo, assume na história a forma espetacular de um milagre, não o milagre grego, mas o "milagre de Lascaux" (Bataille, 1955, p.ll). Desse ponto de vista, que significa Lascaux ?

Lascaux constitui o primeiro signo sensível que nos foi legado do vínculo entre a humanidade e a arte. Há em Lascaux uma figuração inútil de signos que seduzem, que nasceram da emoção e ainda se dirigem a ela, através dos contornos de uma determinada Forma: trata-se de uma arte naturalista, mas de um naturalismo que atinge, exprimindo-o com exatidão, aquilo que no animal é maravilhoso, uma beleza sobrenatural. Para Bataille (1955), o homem de Lascaux tirou do nada-artístico, isto é, criou literalmente o mundo artístico e com este inaugurou a história da "comunicação dos espíritos". É em Lascaux que tem início a história da arte, pois os homens que aí viveram instauraram um sofisticadíssimo processo de comunicação, um laço intersubjetivo com uma longínqüa posteridade constituída por nós, uma humanidade que na condição de receptora faz outro uso dessa herança. É nas profundezas da terra, no oco mesmo de uma caverna, que podemos ver e pagar para ver uma espécie de ronda noturna, uma cavalgada animal que percorre paredes, signos da presença no mundo de seres dotados não apenas de uma inteligência utilitária, mas de uma vida interior, tão distante de nós, que apenas a arte pode dela nos aproximar e assumir a comunicação efetiva. Nesse sentido, pode-se dizer, retomando agora o pensamento de Merleau-Ponty (1975, p.347), que "os primeiros desenhos nas cavernas instauravam o mundo como a pintar ou a desenhar, invocavam um porvir indefinido da pintura e por isso nos falam e os evocamos por metamorfoses em que fluem conosco". E isto quer dizer que "o primeiro desenho nas paredes das cavernas fundava uma tradição unicamente por recolher outra: a da percepção" (1975, p.355).

Em suma, quer tratemos do desenho rupestre, quer da pintura contemporânea, o suposto é uma operação reflexiva que funda a unidade da pintura e que na pintura se amplifica.

Que significa isso?

 

 

Devemos observar, ampliando mais nossa reflexão e sempre com Merleau-Ponty, que:

a obra que se cumpre não é a que existe em si como coisa, mas a que atinge o espectador, convidando-o a retomar o gesto que a criou e, saltando mediações, sem outro guia que não o movimento da linha inventada, a alcançar o mundo silencioso do pintor... (1975, p.341).

Diferentemente do trabalho do escritor, o trabalho do pintor não é o da expressão de um sentido, mas o de sua impressão num suporte. Quer dizer: o pintor imprime um sentido na tela antes que esta o exprima — sentido que permanece cativo para nós "que não nos comunicamos com o mundo pela pintura" (p.343). E, no entanto, continua o filósofo,

esse dom se merece pelo exercício, e não é em alguns meses, não é tampouco na solidão, que um pintor entra na posse de sua visão. Não está nisso a questão: precoce ou tardia, espontânea ou formada no museu, (...) a sua visão só aprende vendo, só aprende por si mesma. O olho vê o mundo, e o que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele mesmo, e, na palheta, a cor que o quadro aguarda; e, uma vez feito, vê o quadro dos outros, as respostas outras a outras faltas.

E, mais adiante, Merleau-Ponty conclui,

o pintor é um homem em serviço que toda manhã detecta no aspecto das coisas a mesma interrogação, o mesmo apelo a que jamais terá conclusivamente respondido. Aos seus olhos, a obra não está nunca terminada, mas sempre em curso (...).

E quando ela chega a ser exposta a outros olhos é o trabalho de expressão dessa abertura impressa na tela que se verifica. Quer dizer, é somente aos olhos do espectador que a pintura é "expressão artística", sendo o trabalho do espectador o que leva a efeito a operação expressiva. Ora, no campo da pintura, mais evidente do que em qualquer outro, "a experiência é aquilo que abre para o que não é nós", para usar novamente as palavras do filósofo; é o que nos coloca em contato com tudo o que é outro, isto é, com tudo aquilo que "exige de nós criação para dele termos experiência" (Merleau-Ponty, 1971, p.187). No campo da pintura essa experiência é a da visão, pois

seja qual for a civilização em que nasça, sejam quais forem as crenças, os motivos, os pensamentos, as cerimônias de que se cerque e mesmo quando parece fadada a outra coisa, desde Lascaux até hoje, pura ou impura, figurativa ou não, a pintura jamais celebra outro enigma a não ser o da visibilidade (1975, p.281).

E o que é próprio do visível, como sabemos, "é ter um forro de invisível no sentido próprio, que ele torna presente como uma certa ausência"; e o próprio do olho é realizar "o prodígio de abrir à alma aquilo que não é alma, o bem-aventurado domínio das coisas, e seu deus, o sol" (Merleau-Ponty, 1975, p.298-9).

Ora, será que a partir dessas considerações que delimitam o campo da arte é preciso dizer algo mais para que os psicólogos percebam nesse campo um sentido para o seu próprio trabalho? No momento contemporâneo da modernidade, momento que abrange o século XX (Berman, 1986, p.16), no qual a arte se emancipa definitivamente de uma cultura totalizante, se desliga de valores religiosos, éticos ou sociais, adquirindo o poder de exprimir uma relação mais profunda, mais originária do homem com o mundo, relação que Dufrenne (1982, p.30) ousa chamar "pré-cultural ou pré-histórica", nesse momento contemporâneo em que surgem como questões, simultaneamente, o olhar e o desejo, o imaginário e o real, a arte possui "uma função e uma força insubstituíveis". Ora, exatamente por isso, não terá a Psicologia — com lugar interdisciplinar garantido entre a História da Arte e a Estética — algo a dizer?

Segundo Huyghe(1986)

enquanto para o historiador da Arte o fato é o documento, a peça de arquivo ou a marca característica que identificam a obra, estabelecendo seu estado civil e determinando sua posição na época, para a Psicologia da Arte ele reside na própria obra exposta à leitura e que permite decifrar, não só o que um homem dipôs nela intencionalmente, mas também o que nela colocou, inconscientemente, de si próprio e do grupo humano a que pertence (p.19).

A obra de arte não é o reflexo de um real recortado préviamente a toda intervenção humana, não constitui um sinal de uma realidade localizável por outras vias e exprimível por outras técnicas, não remete a um universo de formas imutáveis, mas dá inicio a um processo "de representação dialética entre o percebido, o real, e o imaginário. Ela não remete a um absoluto, mas aos devires humanos" (Francastel, 1973, p.17) Portanto, a perspectiva aberta pela Psicologia da Arte é a de evidenciar os princípios de uma conduta própria ao homem, reguladores de uma estrutura ao mesmo tempo material e imaginária, no quadro e limites de seus poderes e de seus conhecimentos, num certo momento de sua história e em determinado circulo de civilização. Por essas razões, Francastel (1973) conclui:

estou seguro que a ciência da Arte e a própria Arte têm muito a ganhar com uma apreciação melhor de seu papel psicológico e técnico na vida das sociedades. Apreciaremos melhor a Arte do passado e a do presente se lhe conhecermos melhor a significação humana (p.48).

Ora, a Psicologia Social tem se esforçado em todos os domínios — das comunidades às organizações , das classes populares às elites, das várias instituições às representações ideológicas — por descobrir e interpretar, segundo as modalidades mais adequadas , os fenômenos particulares que caracterizam e diferenciam a vida dos indivíduos em sociedade. Portanto, não há nenhum motivo para excluir as artes de suas preocupações. No entanto, com base nos balanços feitos por R. Huyghe, por P. Francastel, por G. Bazin e por inúmeras publicações recentes que fundamentam os estudos em Psicologia da Arte no contexto das Ciências Sociais, a abertura do psicólogo para a arte dependerá principalmente de sua disposição, como espectador da arte, para introduzir-se nesse campo abissal, de cujos limites tratamos aqui, correndo o risco da vertigem e o da perda de pontos fixos, risco que esse campo necessáriamente suscita. Afinal, relembrando com Huyghe (1986, p.19), "a obra não põe apenas em jogo a psicologia do artista, mas também a do espectador. Que procura nela, que recebe dela e por que razão a sente?" — são questões que o intérprete ao se abrir para o campo das obras, mais cedo ou mais tarde, terá que responder. E, conseqüentemente, se comprometer.

 

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