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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.5 n.1-2 São Paulo  1994

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Rumo a uma nova barbárie

 

Towards a new barbarism

 

 

Annateresa Fabris

Escola de Comunicações e Artes - USP

 

 


RESUMO

Na Bretanha e no Taiti Gauguin busca uma concepção de arte que lhe permita recuperar o mito da infância e o mito de origem e contestar a tradição artística ocidental, mesmo em suas formas modernas. A partir de sua definição da pintura como sugestão, não como descrição, o artista combate a idéia de escola e o mito da obra acabada, recuperando a dimensão misteriosa da criação e propondo uma nova compreensão da existência.

Descritores: Arte. Pintura (Arte). Mitos. Primitivismo. Anticlassicismo.


ABSTRACT

In Britain and Taiti Gauguin looks for an art conception able to regain the childhood myth and the origin myth and to contradict the western artistic tradition, even in its modern shapes.

Index Terms: Art. Painting (Art). Myths. Primitivism. Anticlassicism.


 

 

Se quisermos encontrar uma chave de interpretação para o significado que a procura do outro assume em Gauguin, é na análise de Argan que encontramos uma resposta bastante fecunda. Escreve, de fato, o historiador italiano:

Seu entusiasmo pela natureza e pelas pessoas de países distantes não é uma retomada do exotismo romântico: na Martinica e na Polinésia não busca algo diferente, mas a realidade profunda do próprio ser. Não é o mundo que explora em busca de sensações novas, é a si mesmo que explora para descobrir as origens, os motivos remotos das próprias sensações (Argan, 1978, p.154).

Vista nesta perspectiva, a procura do outro configura-se como a procura de um outro eu, longe da civilização ocidental, longe do sistema artístico vigente (tanto o estabelecido quanto a "oposição" impressionista), em busca de dois elementos essenciais: a reedição do mito de origem, próximo da reavaliação do "primordial" feita por Rousseau e da recuperação do mito da infância; a discussão da tradição artística ocidental para além dos códigos clássicos e de toda academia.

Este segundo aspecto é claramente explicitado por Gauguin num texto de 1902, "Histórias de um borrador de telas", cuja publicação só ocorreu em 1951, por ter sido recusado pelo Mercure de France a que se destinava. No escrito autobiográfico, Gauguin faz referências à própria procura de "uma arte sem limites precisos, rica de técnicas, capaz de expressar todas as emoções da natureza humana, ligada às alegrias e às angústias de indivíduos e épocas particulares" (1983, p.92-3), em luta contra todas as academias, contra todas as escolas, inclusive impressionistas e neoimpressionistas, contra o velho e o novo público.

Gauguin, deste modo, posiciona-se contra um método de trabalho baseado em regras precisas — estudo do natural, esboço, acabamento minucioso -, que retiram da obra a cintilação do momento criador, que dobram a inspiração às necessidades de uma realização escrupulosa por ele vigorosamente rechaçada. Contra o que considera um receituário, ergue-se sua definição da pintura como sugestão, não como descrição, e a partir dela trava-se seu combate com a idéia de escola e com o mito da obra acabada:

É próprio de nosso tempo este vício de tratar tudo como uma pintura de cavalete ou, o que acontece a outros, a Gustave Moreau por exemplo, de reparar a falta de imaginação, ou de idéias se preferirem, com um trabalho cuidadoso de acabamento, com a perfeição do metiê; isto é, uma renúncia a toda promessa por excesso de evidência. A promessa não evocará o mistério, posto que nossa natureza não pode atingir o absoluto? (Gauguin, 1972, p.90-1).

É em nome da evocação do mistério que se distancia de impressionismo e neoimpressionismo. "Artistas oficiais de amanhã, odiosos como os de ontem", os impressionistas são por ele criticados por atingirem a dimensão científica — a "física" em contraposição à "metafísica" -, por se pautarem pela verossimilhança, por serem um "olho harmonioso, mas sem um objetivo preciso", por cairem no "maneirismo científico", com sua busca "em volta do olho, não no centro misterioso do pensamento". Quanto ao neoimpressionismo, Gauguin reprova nele o dogma, "monstruoso" porque científico, que produziu uma pintura "parecida com a fotografia colorida", embora reconheça "notável talento" a seus seguidores, esquecidos de que "não é o sistema que faz o gênio" (Gauguin, 1983, p.72-3, 92).

Ao perigo inerente em impressionismo e neoimpressionismo — a transformação da criação em sistema —, Gauguin opõe sua concepção de arte, que faz consistir na recuperação dos elementos lúdicos ("doçura, alegria e ingenuidade"), do mito da infância que se confunde com a busca do mito de origem, como transparece de uma entrevista concedida a Lécho de Paris em maio de 1895, em que explica as razões de sua preferência por Taiti: "Fiquei fascinado, tempos atrás, por esta terra virgem, por sua gente simples e primitiva; fui para lá e estou preste a voltar. É preciso procurar o novo remontando às origens, à infância da humanidade" (Gauguin, 1983, p.134, grifo meu).

Mas sua busca não é apenas ditada por razões artísticas. Em desacordo com a atitude positivista da França de fins do século passado, que esquecera a "simplicidade" em prol da "análise exacerbada", que fizera da máquina a realidade suprema em detrimento da criação, Gauguin faz coincidir primitivo e primordial, unindo num mesmo gesto arte e vida. O salto para fora da dimensão industrial explicita-se claramente numa entrevista concedida a Jules Huret em maio de 1891:

Parto para viver tranqüilo, livre da civilização. Quero fazer uma arte simples, muito simples; por isso necessito reencontrar minhas forças em contato com a natureza ainda virgem, ver apenas selvagens e viver a sua vida, sem nenhuma outra preocupação que a de traduzir com a simplicidade de uma criança as fantasias da mente pelos únicos meios verdadeiros e eficazes: aqueles da arte primitiva (Gauguin, 1983, p.131).

O termo primitivo, na verdade, reveste-se de vários significados nas considerações de Gauguin:

1. designa o estado de natureza, diferente dos modos da civilização ocidental, caracterizando-se por uma vivência estética, que transforma todo gesto em beleza, pautando-se por um ritmo lento, não ativo e, assim mesmo, variado;

2. refere-se ao mito da "natureza regeneradora", na qual mergulha um artista que discorda das normas do comportamento burguês para reencontrar as forças primordiais, aquelas forças estioladas em sua sociedade de origem. Longe dos centros artísticos, no isolamento da natureza, Gauguin está pronto a fazer sua profissão de fé artística: "Aqui a poesia se propaga sozinha, basta abandonar-se ao sonho enquanto se pinta, para sugeri-la" (Gauguin, 1972, p. 102).

3. denota a busca dos elementos primordiais da criação — instinto e imaginação, o que implica uma concepção não imitativa da arte, a proposta de uma expressão que seja o "retrato" de seu criador.

Ao tentar ativar a imaginação fora da civilização ocidental que não lhe concede mais espaço, Gauguin não se guia apenas por um comportamento de oposição ao sistema artístico em vigor. Atinge a dimensão ética, como aponta acertadamente Argan:

Sua vontade de "rejuvenescer" numa mítica barbárie é uma sugestão ao mundo "civilizado" para que inverta a rota. E a sugestão era particularmente tempestiva num momento em que o mundo "civilizado" sustentava o próprio progresso com a não-civilização, com o escândalo moral do colonialismo. Como não ver que, indo procurar e não levar a civilização entre os mitos indígenas da Polinésia, Gauguin condenava a substancial barbárie do colonialismo? (1978, p.155).

O argumento de Argan ecoa naquele de Pierre Daix, que confere dois significados ao salto cultural de Gauguin para fora de sua época, nele destacando a percepção da dimensão humana do selvagem e uma nova compreensão da vida e da arte, numa singular aprendizagem que lhe permite pôr em questão os fundamentos morais e artísticos da sociedade francesa de fins de século XIX (Daix, 1984, p.74-5).

Os traços da nova cultura fazem-se patentes em sua pintura, marcada pela simplicidade, pelo hieratismo, por uma ingenuidade que Goldwater (1988, p.80), considera "um tanto desajeitada e angulosa", pelo arabesco decorativo, pelo sentido de harmonia, que descobre nas Ilhas Marquesas, capaz de ordenar uma forma irregular, sem deixar "um vazio ou um desequilíbrio". Como Segalen (1986, p.139-40) percebe agudamente um ano após sua morte, são várias as contribuições dos "seres-crianças" a Gauguin. Deles o pintor derivou "formas esplêndidas", que "ousou deformar"; "motivos"; "atitudes", sabendo ser "animalista" perante seus modelos.

As concepções e a prática artística de Gauguin entram em choque com as visões correntes na Europa, e mesmo um autor como Strindberg demonstra-se incapaz de compreendê-las. O dramaturgo, a quem Gauguin solicitara um prefácio para a exposição de fevereiro de 1895, declina o convite por vislumbrar nele

...o selvagem que odeia uma civilização chorona, uma espécie de Titã que, ciumento do Criador, faz sua própria, pequena criação nas horas de lazer, a criança que quebra seus brinquedos para fabricar outros a partir dos decstroços... (Apud Goldwater, 1988, p.80).1

O significado que Gauguin atribui ao primitivo reveste-se de um quarto significado, abarcando uma dimensão quase intemporal. Com este termo, de fato, Gauguin designa ainda tudo aquilo que considera anti-clássico, isto é, tudo aquilo que se pauta pela deformação que busca a beleza simbólica, significativa, que privilegia a estilização e os efeitos de superfície. Se este ideal de beleza o leva a preferir todas as expressões não-clássicas na antigüidade e as manifestações pré-rafaelistas nos tempos modernos, avulta dentro dele a figura de Giotto, que Gauguin admira por sua "extraordinária riqueza de concepção", mesmo se inatural ou inverossímil, por sua "ternura e amor absoluto", pelo código antiperspético e antitradicional (Gauguin, 1983, p.67-8).

Se tivermos em mente esta acepção mais ampla de primitivismo, diremos que a busca do primitivo por parte de Gauguin começa, na verdade, na própria França, na Bretanha, onde viveu em 1886 e ainda entre 1888 e 1890, atraído por sua atmosfera arcaica, rude e primitiva. Na Bretanha, Gauguin entrevê um lugar "inocente", que opõe às "complicações" e às hipocrisias da civilização urbana, cujas crenças identifica com aquelas do cristianismo originário (Morosini, 1972, p.xxiii).

 

 

As influências da arte popular bretã fundem-se com aquelas das imagens de Épinal e com a linguagem das gravuras japonesas, dando lugar a largas superfícies de cor sem relevo e muito contrastadas, a contornos nítidos, ao predomínio de tons claros (A visão após o sermão, O Cristo amarelo, A bela Ângela, 1889).

A partir deste contato, Gauguin é capaz de perceber os aspectos planimétricos e decorativos da arte primitiva não-européia, que transpõe para a própria linguagem, caracterizada pela tradução geométrica e irregular dos contornos, pela estilização, pelo traço incisivo e sem refinamento, pela harmonia cromática, por "falhas" construtivas, volumétricas e luminosas voluntárias, pela visão antinaturalista {Ta Matete, 1892; O cavalo branco, 1893).

Ciente de estar engajado numa nova concepção de arte, Gauguin adota um comportamento peculiar perante seus críticos e detratores. Numa carta a André Fontainas (março 1889), concorda com algumas críticas feitas a suas obras — violência, monotonia de tons, cores arbitrárias — apenas para justificá-las a partir de seu ponto de vista: enquanto busca consciente e voluntária de um novo tipo de percepção, em grande parte moldado pela cor, capaz de captar o que há de mais universal e indefinido na natureza, a sua "essência íntima".

Gauguin responde, deste modo, à crítica que Fontainas fizera a De onde vimos? Quem somos? Para onde vamos? (1897), exposto na galeria de Vollard em 1898. Fontainas criticara no quadro sua abstração e seu sentido alegórico, as formas "mal acabadas de uma imaginação canhestramente metafísica, cujo sentido é arriscado e cuja expressão é arbitrária", críticas que Gauguin rechaça em nome do "sonho num cenário sugestivo com toda a essencialidade que me foi possível, renunciando a todo meio literário" (Gauguin, 1983, Apud Venturini, 1970, p.307).

Octave Mirbeau, Charles Morice, Claude Roger-Marx compreendem, entretanto, o significado de sua expressão diferente, capaz de captar, como escreve o último, "a severa beleza das imagens primitivas de encarnar em seu ritmo e sua grandeza hierática o gesto dos camponeses e dos homens simples" (Gauguin, 1972, p.xxx).

Roger-Marx, com estas palavras, aproxima-se de um dos núcleos da poética de Gauguin: a busca de uma consciência temporal ampliada, que engloba passado e presente, que transforma o motivo irracional em energia vital, que procura o eu no outro e, por isso mesmo, se aproxima melhor de sua essência. Gauguin percebe-se "selvagem" entre os selvagens, sabe que pertence a um outro sistema cultural e tenta superar a diferença adaptando-se a um novo ritmo de vida, consciente de ser ainda parte da Europa, com a qual continua mantendo um intercâmbio ativo, com a qual continua dialogando para mostrar as possibilidade de uma nova compreensão da existência e da criação.

 

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ARGAN, G. C. L'arte moderna: 1770-1970. Firenze, Sansoni, 1978.        [ Links ]

DAIX, P. L'ordre et l'aventure. Paris, Arthaud, 1984.        [ Links ]

GAUGUIN, P. Noa-Noa e altri scritti. Milano, Mondadori, 1972.        [ Links ]

GAUGUIN, P. Scritti di un selvaggio. Milano, Guanda, 1983.        [ Links ]

GOLDWATER, R. Le primitivisme dans l'art moderne. Paris, Presses Universitaires de France, 1988.        [ Links ]

MOROSINI, D. Introduzione. In: GAUGUIN, P. Noa-Noa e altri scritti. Milano, Mondadori, 1972.        [ Links ]

SEGALEN, V. Essai sur l'exotisme. Paris, Le Livre de Posche, 1986.        [ Links ]

VENTURI, L. La via dell'impressionismo. Torino, Einaudi, 1970.        [ Links ]

 

 

1 A carta-recusa de Strindberg é assim mesmo usada por Gauguin como prefácio ao catálogo.

 

 

APÊNDICE

Itinerário de Gauguin "selvagem"

1886:

reside em Pont-Aven (Bretanha) entre junho e novembro.

1887:

viagem ao Panamá e à Martinica.

1888:

1890: reside, em períodos intermitentes, em Pont-Aven e Le Pouldu.

1891:

viagem ao Taiti, onde chega no início de junho. Decepcionado com o ambiente de Papeete, que considera uma "imitação grotesca" do Ocidente, transfere-se, a princípio, para Pacca e depois para Mataiea.

1893:

volta a Paris. Expõe na galeria de Durand-Ruel e começa a redação de Noa-Noa com a colaboração de Charles Morice.

1894:

viagem a Pont-Aven e a Le Pouldu.

1895:

volta ao Taiti e se estabelece na região de Punavia. Ilustra e reelabora Noa-Noa.

1901:

transfere-se para as Ilhas Marquesas, estabelecendo-se em Hiva-Oa, onde morre a 8 de maio de 1903.