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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.5 n.1-2 São Paulo  1994

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A ação teatral: espaço da ambivalência, tempo da reciprocidade

 

Theatrical action: space of the ambivalence, time of reciprocity

 

 

Vera Lúcia Gonçalves Felício

Escola de Comunicações e Artes - USP

 

 


RESUMO

A Junção teatral no imaginário de Mallarmé, não pode ser compreendida separadamente à da dança. Ê através da relação com a exterioridade que a inferioridade se apreende. A cisão metafísica tradicional é questionada quando, na figura da bailarina, "anjo-mulher", a esfera celeste e a terrestre se interpenetram: mulher e idéia, oferta e recusa, ela é a metáfora do Polemos Heraclitiano ou da unidade concebida enquanto "luta dos contrários". O "entreaberto" e o "entrevisto" celebram o "estar em suspenso", noção dialética que percorre todo o seu imaginário. Analogamente, na esfera teatral, o ator se possuí somente após passar pela dispersão do olhar múltiplo que é o público. O teatro só existe nesta relação de reciprocidade. Tempo de oscilação, o teatro (juntamente com a dança) traça uma espiral ascensional, deslanchando um gesto perpétuo de fuga de um centro imóvel. É a proposta de Mallarmé através de uma Estética da "ambivalência".

Descritores: Teatro. Dança. Imaginação. Reciprocidade. Ambivalência.


ABSTRACT

The function of theater, in the imaginary of Mallarmé, can not be understood separately from that of dance. It is through the relation with the exteriority that the interiority is perceived. The traditional metaphysical scission is questioned, when, in the figure of a ballerina, the "woman-angel", the celestial spheres and the terrestrial interpenetrate. Woman and idea, offer and refuse, she is the metaphor of the polemos heraclidan or of the unity conceived while "struggle of the opposites". The "interval" and the "obscured view" celebrate the "suspended feeling" the dialectic notion that traverses all imaginary. Analogically, in the theatrical sphere, the actor becomes possessed only after he passes through the dispersion of the multiple eye, that is, the audience. The theater only exists in this relationship of reciprocity. Oscilating in time, the theater (together with dance) draws an ascending spiral, lauching a perpetual gesture of escape of a motionless center.

Index terms: Theatre. Dance. Imagination. Reciprocity. Ambivalence.


 

 

Que função preenche o teatro no Imaginário de Mallarmé? Ao referir-se à cortina sobre o palco, ele a considera em sua função de proteção e de retração íntima, facilitada pelas dobras do tecido.

O espaço teatral é, também, o espaço da dança. Por esta via Mallarmé distingue a existência de duas mulheres rivais: a que anda, a primitiva, e a que dança, a fada (Mallarmé, 1951, p.306). Esta dicotomia é a metáfora de um mundo metafisicamente dividido, que pede uma fusão ou uma reconciliação das duas rivais. O cruzamento entre os dois universos: o terrestre e o celeste se faz, por um lado, através da qualidade celeste infiltrada na mulher carnal e, por outro lado, por uma sorte de semi-encarnação da mulher celeste. É assim que surge a figura de um "anjo-mulher", um "fantasma carnal", tecido de vento.

A figura da mulher integral, preservada da "queda" temporal, surge num mundo já todo penetrado pela morte (Mallarmé, 1951, p.269). Terra empoeirada, céu pálido que se "parte com as nuvens", sol que mergulha nas águas, simbolizam a sinfonia da desolação espelhada no brilho do esplendor carnal do corpo feminino tornado pura violência, pura convicção. A "nudez sangrenta" jorra em direção ao alto, ainda que suas pernas, mergulhadas no "sal do mar primitivo" sustentem uma continuidade temporal e prolonguem um contacto com o mundo do começo. Virgem e fecunda, esta mulher projeta-se violentamente para um futuro, assim como se liga suavemente a um passado. É lembrança e promessa.

A bailarina é uma personagem privilegiada; mulher e idéia, oferta e recusa, ela suscita o temor pela luta dos contrários: o desejo de se ver bastante, mas não em demasia, de modo que é no jogo contínuo de uma revelação/ocultamento que a bailarina existe no imaginário de quem a olha. O olhar contenta-se em ver insuficientemente, ancorado numa falta, num ir-além; daí a importância da figura do véu, pois a bailarina "te entrega através do último véu que sempre permanece, a nudez de teus conceitos" (Mallarmé, 1951, p.307). A relação entre a inteligência e a idéia será análoga à ligação entre o olho e o corpo entre-percebido. A função do véu, feita de timidez e de hesitação, recusa a descoberta brusca e transparente disto que não é ainda; o véu pede pudor. Assim, o véu identifica-se imaginariamente à cortina do palco teatral.

O "velado" e o "entrevisto" ligam-se à temporalidade, pois trata-se de adivinhar o futuro através do "véu" do presente. O "véu" é uma preparação, metáfora do tempo que escoa como o rio Heraclitiano, ou como diz Bachelard: "metamorfose ontológica essencial entre o fogo e a terra (...) a morte cotidiana é a morte da água" (1942, p.9).

A dança, no teatro, cria um espaço de festa. Esta, para Mallarmé, é um fenômeno social, explosão pública de ser, orgia dionisíaca. À festa exterior opõe-se a festa interior, que cada um se dá a si próprio e da qual o teatro será a metáfora. As "festas solitárias" ou "ideais" são aquelas em que se celebra intimamente o dom da poesia. No imaginário de Mallarmé o poeta é aquele que leva a festa para si e para os outros, pois ele "desperta, pelo escrito, o ordenador de festas em cada um" (Mallarmé, 1951, p.330). O gosto pelas festas se espelha nas grandes cerimônias sociais, ligadas aos fogos de artificio. Em sua interioridade, o poeta deve saber festejar. Festa que será organizada como uma cerimônia regrada por um para todos. A "festividade", pública ou íntima, falta nas sociedades divididas em classes, impedindo o nascimento de uma explosão comunitária, que retomaria o sagrado na existência. É deste modo que Mallarmé pensa resolver o conflito social no prodígio da Festa.

A bailarina é uma figura privilegiada, pois é vista como um objeto mágico que jorra a partir de um ponto, síntese do estático e do dinâmico. Assim, segundo Mallarmé, a dança se define enquanto "asas, trata-se de pássaros e de partidas para nunca jamais, retornos vibrantes como flecha" (Mallarmé, 1951, p.304). São partidas e retornos sugeridos pelo mesmo gesto. A bailarina faz coincidir carnalmente nela um movimento de expansão com um movimento de inflexão. É, ainda, Mallarmé que nos lembra o nome de Loie Fuller, a bailarina que, ao se expandir através da dança em seu espaço, reconduzia tecidos esvoaçantes em direção a si (Mallarmé, 1951, p.307). A propagação realiza-se, portanto, pelo mesmo gesto que se retrai, reconciliando dinamicamente centro e periferia; tudo é origem. O movimento dos tecidos da bailarina parece escoar a partir de uma fonte, ao mesmo tempo que converge do exterior para o interior, num vai-e-vem contínuo. Esta unidade aparentemente estática constitui-se enquanto duplo dinamismo, formada por dois contrários que se chocam. A imagem da bailarina é a metáfora, por excelência, da ambivalência.

Loie Fuller é exemplar na medida em que esclarece a condição de toda bailarina. Pela dança une-se o vôo aéreo à raiz terrestre, dissolução da cisão metafísica clássica entre espírito/corpo, alto/baixo. Em cada um dos gestos da bailarina coexistem uma ascensão e uma queda, um encadeamento e uma ruptura. A dança se faz na tensão; a bailarina torna-se pétala, borboleta, espuma... Sua temporalidade é a de um infinito, circularmente extraído de um centro, embora continue sempre ligada à sua origem1 . A dança se tece da contradição que constitui a própria consciência: um interior que quer viver em seu próprio exterior. A dança termina por resolver essa contradição ou ambivalência, na medida em que aparece, segundo Mallarmé, como uma "felicidade do pensamento". Resolução totalmente ambígua porque se faz na ambivalência. O momento-chave da dança é o de seu ápice, instante em que a tensão explode a todos os olhares como harmoniosamente satisfeita, como "distendida". Lóie Fuller é o triunfo do Polemos Heraclitiano.

A "orgia" teatral apóia-se, na ótica de Mallarmé, sobre dois pressupostos. Por um lado, o público teatral descontínuo constitui-se a partir de uma justaposição de indivíduos, com "mil cabeças" (Mallarmé, 1951, p.390). O pensamento espelha-se diante deste público comparável aos pingentes de um lustre de brilho múltiplo. Por outro lado, esta descontinuidade social é utilizada com a finalidade de uma redução e de um retorno a si. Este movimento, assim como na dança, implica na expansão e retração, ao mesmo tempo. O diverso é colocado em oposição consigo mesmo a fim de dobrá-lo sobre si e de ultrapassar, com este movimento, a contingência. O público (multidão), organizado em pares rigorosamente antitéticos, anular-se-á por auto-reflexão. Aos olhares que espelham o palco em sua dispersão substitui-se um princípio de vida ainda indiferenciado. A unidade se faz na multiplicidade, sem se desintegrar e sem se reduzir a uma homogeneidade geométrica. Unidade e multiplicidade conciliam-se através da noção de público teatral.

Analogamente, a dançarina (bailarina) é um jorro em cena, tornada um fluxo leve e aéreo, "forma superior de andar que se denomina dançar, a divindade aparecida em sua nuvem" (Mallarmé, 1951, p.797). Na dança, um puro jogo de formas se superpõe de exterior ao indefinido sonoro, pois formas corporais encarregar-se-ão de sugerir um conteúdo conceituai. Para Mallarmé, a bailarina "ilustra o sentido de nossos êxtases e triunfos entoados na orquestra" (1951, p.296). Ela inscreve, sobre o tecido musical, um discurso silencioso de gestos, desenhando, ativamente, uma écriture, imediatamente significativa, susceptível de "traduzir o fugaz e o súbito até à Idéia" (Mallarmé, 1951, p.541). Esta fugacidade é tomada à música, embora transposta numa forma desenhada (coreografia), reunindo Dionisius e Apoio num só gesto. A bailarina é este ser ambíguo que conjuga "uma opacidade carnal e um projeto de expressão". É o instante em que a forma física torna-se sentido e este, por sua vez, torna a "descer" na forma. A bailarina é a metáfora deste ponto focal onde significante e significado se unem para constituirem-se em signo; ela se torna uma "grafia". A coreografia figura as equações sumárias de toda fantasia, curso rítmico que exprime a forma humana em toda a sua mobilidade ou "desenvolvimento". É assim que toda coreografia, mesmo a mais abstrata, postula a levitação de suas figuras.

Através da bailarina unem-se os dois movimentos contrários: de corporificação e de vaporização, pois, diz-nos Mallarmé:

a bailarina não é uma mulher que dança, por estes motivos justapostos que ela não é uma mulher, mas uma metáfora resumindo um dos aspectos elementares de nossa forma, gládio, taça, flor, etc..., e que ela não dança, sugerindo, pelo prodígio de retrações ou de impulsos, com uma escritura corporal isto que seriam necessários parágrafos em prosa dialogada tanto quanto descritiva, para exprimir, na redação: poema separado de todo aparelho do escriba (1951, p.304).

Fenômeno de transposição, o corpo da bailarina, através de uma linguagem sensível, revela a figura de uma idéia, que não se reduz a uma simples abstração. O que nos diz a gestualidade da bailarina é um saber das formas e dos ritmos, através de uma "esquemática". Ela figura a lei constituinte do objeto, sem modelos prévios, constituindo a razão genética de sua aparição. A dança, "escritura" por excelência, fala a abertura, o novo, a modificação; é ela que nos faz perceber esta verdade. Do canto monolítico à dança hieroglífica e metafórica, há uma abstração dinamizada. Todavia, Mallarmé recusa reduzir o diverso à fixidez de uma definição, mas, pelo contrário, a arquitetônica musical da dança permite reunir diversos elementos desta dispersão na clareza modificável de uma relação. Seja na horizontalidade sonora, através de uma linda melódica, seja na verticalidade ou simultaneidade sonoras, através da harmonia de um acorde, o sentido musical permanece precisamente desenhado, mas livre. Se a música nos fala, ainda que imperiosamente, ela nunca nos diz isto que nós lhe desejaríamos fazer dizer. Portadora de significações, ela apenas sugere. Novamente há uma ambivalência; um objeto se dissolve e se recompõe, ao mesmo tempo. A alternância do positivo e do negativo propõe um movimento giratório em espiral ascensional, semelhante a um turbilhão. Analogamente, o giro da bailarina termina num impulso interrompido, seguido de uma fuga aérea invisível. É o momento de síntese que reúne os dois princípios: noturno e diurno, bem como as duas mulheres: terrestre e aérea. Os dois modos antitéticos reaproximam-se pela dança. Esta, ao mesmo tempo que provoca este encontro, deslancha um gesto de fuga, o "nascimento de um movimento de transcendência". Em lugar de anular sua oscilação num centro, ou de se imobilizar, a bailarina propõe o "arrancar-se" indefinidamente.

À abstração do devaneio dualista, a dança fornece-lhe um aspecto sensível e sedutor, erótico. A dança reenvia a uma imagem arquetípica (no sentido empregado por Jung e por Bachelard) da unidade na contrariedade, ou da unidade enquanto ambivalência fundamental. A dança é viagem e retorno, androginia da imagem arquetípica, união dos amantes. A dança dá-nos a consciência de um espaço irresistivelmente reduzido, até abolir toda possibilidade de espaço, ao mesmo tempo que propõe a embriaguez de uma expansão que tende a se negar enquanto tal, contraindo-se num só ponto, mas, num ponto que seja também, a síntese de espaço e nova origem de expansão, "identidade concreta do fim e do começo".

Entre a bailarina-estrela e o corpo de ballet há análoga relação com a dialética do centro uno e do circuito múltiplo que caracteriza a relação teatral2. O espetáculo total, embora nos pareça consonante e circular, deve procurar o apoio e a confirmação de uma outra totalidade: a de um público ao qual é necessário se endereçar, no qual apenas a bailarina poder-se-á equilibrar definitivamente. É a partir desta interpretação que se pode falar da dança enquanto uma "síntese móvel", ad infinitum. E é assim que, no imaginário de Mallarmé, espelham-se as figuras do "espetáculo ideal", da "gruta", do "diamante" e do "lustre".

O movimento-chave da bailarina é o do turbilhão, forma-ideal do impulso (élan), "espiral genial", "torsão sublimada da serpente". Se a bailarina é "turbilhonante", ela o é na medida em que simboliza a relação entre o céu e a terra. E, assim como a sereia, ela se liga, mitologicamente, à espuma. Este turbilhão, que é um jorro ou um jato, liga-se, segundo Mallarmé, à noção de "consciência criadora" de artista em geral, e não apenas à dança. Ele fala em "jato inicial do poema" (Mallarmé, 1953, p.151), e define a literatura como um "jato imediato do espírito". Este jato, por sua vez, liga-se à noção de "estar em suspenso", pois o equilíbrio se constitui na coexistência de duas realidades paradoxalmente contrárias, que jamais repousarão numa síntese estática. É a oscilação entre olhar e não olhar, o suspenso da dança, temor contraditório de desejar ver bastante e não demais, entre cair e não cair da "queda em suspenso" dos painéis de Igitur (Mallarmé, 1951, p.450), entre afundar e não afundar (Mallarmé, 1951, p.473), entre o dia e a noite, entre o tempo e a eternidade, ou o lábio entreaberto (suspenso) de Herodíade (Mallarmé, 1959, p.161). Ou, ainda, o lustre, "a perpétua suspensão de uma lágrima que não pode jamais se formar totalmente nem escoar" (Mallarmé, 1951, p.296). É a hesitação, a oscilação ou o balanceamento móvel e simétrico, como se o sim e o não se mantivessem em estado latente, numa perpétua "anti-síntese"3 . Há uma "metafísica do suspenso" que contém o absurdo, implicando-o, embora ele não seja nem afirmado, nem negado. O centro de suspensão vibratória aparecerá, nitidamente, nas imagens do diamante, da gruta, da renda, da rosácea, da teia de aranha, do poema e da metáfora no Imaginário de Mallarmé.

Quanto ao espaço teatral, ele se constitui numa relação que tenta harmonizar um exterior e um interior, uma expansão e uma retração, analogamente à figura da bailarina, da árvore, do leque, da corola e da borboleta. Se o exterior não possui validade ontológica, no entanto, ele pode ser atravessado pela consciência e re-utilizado pelo projeto humano. E embora o mundo exterior permaneça privado da potência de inspirar, ele existe diante de nós como uma opacidade resistente e teimosa, o que lhe confere um certo grau de realidade. Se Mallarmé vai ao mundo, é para procurar um signo que confirme seu saber. Apesar de negar ao mundo exterior sua validade objetiva, a consciência deseja verificar-se nele. O mundo é seu espelho e o lugar onde Mallarmé reclama sua "imagem"4. Na relação teatral, Mallarmé procura, através do público (multidão) os traços de um outro verdadeiro, tal como o amante (na figura do fauno) coloca-se a questão sobre a irrealidade da mulher amada e há necessidade de provas, através de signos, para reivindicar a existência do outro.

O elemento feminino assegura a existência do amante; da mulher amada ao amante ecoa uma segurança de ser. Relação análoga se passa no teatro. Da mulher ao público haverá diferença de grau, para Mallarmé, mas não de natureza. A agitação de uma exterioridade humana, múltipla, despertará a idéia de uma responsabilidade original e de uma iniciativa por parte do autor. O choque com o outro (o público) cria um "contra-choque"; o imediato é atingido pela mediação, bem como à proximidade a si se cria numa distância. Mallarmé é o "poeta do espelho", necessitando da prova de um "reflexo múltiplo" (Mallarmé, 1951, p.369). A multidão (o público) será denominada de "divindade esparsa". Portanto, toda a experiência poético-teatral reclamará a presença de um público, espelho unânime do poeta, embora este último seja o único possuidor da iniciativa. O ego se possui passando pelo outro, pela mediação.

Originalmente solitário, o poeta se prolonga fora de si, no olhar múltiplo de uma multidão, que o reenvia a si mesmo. Desnudado pelo olhar múltiplo, o "amante-histrião" apresenta a seu público uma idéia totalmente nua; por um lado, por seu caráter original e, por outro lado, pela travessia que esta idéia efetua neste mesmo espelho coletivo. Analogamente, a mulher exibida (bailarina) realiza as condições mais privilegiadas da revelação, pois, necessariamente simples, ela faz fulgurar a partir desta simplicidade o brilho de uma glória oferecida e protetora. A nudez da virgem se une ao ardor da mulher-volúpia. O poeta prova sua própria certeza através do público.

Mas não é suficiente a Mallarmé repercutir seu pensamento sobre a superfície de um outro múltiplo. A prova almejada deverá ser atingida através da profundidade deste outro. É assim que, antes de retornar a si, o pensamento deverá aderir à multidão, penetrá-la em profundidade, assimilando-se nela. O ego escolherá arriscar modificar-se. O coletivo (o múltiplo) transformará todo o equilíbrio interno da relação, através de uma troca. Se, por um lado, num primeiro momento, havia uma unidade emissora que utilizava como espelho uma multiplicidade receptora, por outro lado, num segundo momento, é a multidão que se torna criadora, e o poeta se transforma nela, embora o público só exista graças ao ego que nela converge e se apreende. Portanto, a uma relação puramente reflexiva sucede uma relação de reciprocidade, onde cada termo se anula no outro, a fim de se recuperar nele.

A estética de Mallarmé pede um público no qual o ego se projeta e se nega; é o sonho de um teatro perfeito, morte e ressurreição de si. Se morremos no exterior, é a fim de nos recriarmos em nós, através do outro5 . Tudo pertence a todos. Nem absolutamente emissor, nem absolutamente receptor, o poeta se constitui no indivíduo mediador que uma "personalidade múltipla" deve atravessar, a fim de morrer para si, e, através desta morte, atingir a sua verdade. Esta "personalidade múltipla" (público) é o meio necessário para o poeta se abolir, a fim de se metamorfosear em si mesmo. A relação teatral é de reciprocidade e de "co-pertencimento".

Um se projeta em todos pelo texto lido, falado, ou pela melodia cantada; mas todos, por sua vez, em troca, concentram-se sobre um, que multiplica a idéia para todos. O diamante é uma das imagens escolhidas enquanto metáfora desta relação entre unidade e multiplicidade, pois ele concentra num único ponto ativo a difusão coletiva do "público-deus". Pelo corpo do ator o público se acha reunido numa unidade encarnada, embora se atravesse em direção a um "aquém" inapreensível. Através da música (dança), o outro encarna e multiplica o uno pelo olhar do público. A criação recíproca do Herói (típico) e do público (no teatro) opera-se por meio de um poema, latente no último (público), mas que o ator (celebrante) faz passar da virtualidade ao ato, a fim de se criar a si próprio por esta invenção, e, posteriormente, reenviá-la em direção ao público múltiplo que, por sua vez, a reintegra nele. A personagem é uma espécie de ator ambíguo, portador de uma dupla presença: de um lado, figura o eu anterior à metamorfose; de outro lado, simboliza o eu metamorfoseado. O ator torna-se o herói no qual cada um se perde e se reconhece. O público de teatro não assiste nem testemunha, mas participa integralmente. A relação entre o nós e o ele aparece como uma espiral, um vai-e-vem que se desloca e se descentra para melhor se ganhar. O despertar é uma morte; o triunfo, um desastre.

Descontínuo, o público teatral se constitui de uma justaposição de indivíduos; é uma adição de olhos, "rubis luzidios", ou de rostos: "as mil cabeças" (Mallarmé, 1951, p.390). O pensamento faz espelhar diante de si, como iluminaria os pingentes de um lustre, o pontilhismo deste brilho múltiplo. E, por fim, esta descontinuidade social visa um retorno a si, a fim de ultrapassar a contingência6. O público (multidão), segundo Mallarmé, é definido como o espaço em que se projetam os signos familiares da origem. Aliando-se à música, a multidão é este "elemento virgem, ou nós mesmos" (Mallarmé, 1951, p.390). O ator simboliza o indivíduo mítico no qual a coletividade se assume e se abole. Não apenas túmulo, o público dá conta da neutralidade da personagem que emerge fora dele. Primeiro atributo do coletivo, a indiferenciação aí se recolhe e se fixa numa única consciência sem rosto. Há uma dialética ente o eu e o público, que constitui a relação teatral. Sua dramaturgia define-se pela ambivalência. Comparável ao uníssono litúrgico, a relação teatral pressupõe "a existência de uma personalidade múltipla e una" (Mallarmé, 1951, p.395). E, do ponto de vista da conversação, a iniciativa não está nas palavras senão a fim de estar também entre os homens.

O teatro é a imagem da relação do pensamento colocado em suspenso, oscilante, constituindo-se numa reciprocidade entre ator e público ou numa fusão, e que se repete em outros níveis, como o poético. E é a bailarina que prepara o evento da relação teatral, pois mais do que um teatro institucional, Mallarmé pensa num teatro novo, metáfora de nossa própria existência.

Há uma apologia de uma volúpia ou de uma embriaguez dionisíaca, através do "motivo" musical, tão ressaltado por Mallarmé. O sacerdote cede seu lugar ao maestro, à barbárie, ao herói dramático e ao poeta; estes são figuras que sintetizam o público (múltiplo), ao mesmo tempo que a ele se expõem. Lógica da ambivalência, a relação teatral implica num movimento de ida e volta, num gesto de dilatação e de concentração, relação dialética entre o uno e o múltiplo. É assim que a imagem do lustre simboliza, para Mallarmé, esta unidade que recebe uma consciência múltipla de olhares e que figura "por suas múltiplas facetas, uma lucidez para o público, relativamente a isto que se acaba de fazer" (Mallarmé, 1951, p.388). Seu espelhamento infinitamente descontínuo evoca o olho múltiplo e o espaço de um público oculto na sombra, pois o lustre é um "tufo" de pedrarias e, segundo Mallarmé, o olho é análogo a uma pedra preciosa. Este público, por sua vez, é lúcido e é relacionado, por Mallarmé, a "cristais perspicazes" (Mallarmé, 1951, p.321) e voyeur; pois Herodíade, no instante de sua dança, lamenta "o lustre ausente para o ballet" (Mallarmé, 1959, p.79), sendo o olhar coletivo substituído pelo olhar moribundo do santo. Assim sendo, o lustre é, também, a sala, o público, o outro.

Tendo sua forma quebrada e poliédrica, o lustre não simboliza somente o público, mas o próprio ato teatral. O lustre é o olho e isto que o olho observa: uma imagem da ação teatral, "evocador múltiplo de motivos" (Mallarmé, 1951, p.393). Ele nos propõe um sentido quebrado, evanescente. Por sua estrutura prismática ele é a imagem da intimidade de Mallarmé, que se volta para o exterior e se torna "excêntrica". Analogamente, o lustre pode ser um prisma visto do exterior, uma diamante invertido ou uma gruta à inversa. Portanto, o lustre é uma das metáforas privilegiadas da significação da ação dramática. O ator necessita da presença do lustre (do público, do olhar múltiplo), para enfatizar o devaneio do "suspenso". Comparável a "mil gritos", o lustre significa, também "o perpétuo suspense de uma lágrima que não pode jamais se formar nem escoar (ainda o lustre) cintila em mil olhares" (Mallarmé, 1951, p.296). Esta oscilação cintilante acolhe "camadas" que se refletem umas às outras e se abolem7.

Há uma dupla dialética do múltiplo e do uno, da obscuridade, genial e muda, e da consciência, clara e literária; os dois trajetos se superpõem um ao outro. Esta função de transposição se reencontra, por um lado, no ballet que transcreve formas, e, por outro lado, no órgão, que purifica uma matéria. A imagem do órgão, para Mallarmé, funcionará como mediação entre voz e orquestra, pois é individual como a voz, mas informe e coletivo como a orquestra. O universo teatral só tem existência imaginária; e é neste nível que se poderá aceder a ele, por um arrancar-se do mundo cotidiano e pela travessia sonhada de um intervalo. E será a imagem do vidro que Mallarmé privilegiará, pois tudo se transforma no teatro e tudo permanece semelhante. A Beleza, segundo Mallarmé, é uma gloriosa ilusão, criação da imaginação. Tal é a tarefa da arte, ao tratar de tornar "Verdadeira" esta ficção, devendo colocá-la teatral ou artisticamente, sob o signo do vidro. O espelho, por sua vez, torna-se o campo sensível da ilusão, e convida-nos a uma miragem ou a um outro universo. Se o teatro vitrifica seus personagens, e se a arte torna o mundo límpido, se a literatura torna o objeto aéreo pela linguagem, através da metáfora, nós poderemos realizar esteticamente nossa verdade.

O ego em Mallarmé apresenta-se como abóbada, quiosque, rosácea, diamante e teia de aranha, imagens que ilustram a relação que liga o espírito às coisas, numa relação necessária de reciprocidade entre ambos. O equilíbrio ideal é o que se estabelece entre dois elementos opostos, ambivalência tão bem constituída pelo teatro. O mundo se organiza pelo comércio das antíteses complementares, tão análogo à estrutura da ambivalência da "Imaginação dinâmica" em Bachelard. O teatro apresenta-nos esta dupla e recíproca metamorfose no outro, que constitui o mecanismo da oscilação ou da alternativa e que nos permite sonhar. O teatro ensina-nos o trajeto pendular, reunindo os termos opostos na unidade de um movimento que é "Polemos", ou, como diria Bachelard a propósito da arte e da ciência, fazendo-as coexistir enquanto "dois contrários bem feitos". E é a bailarina, enquanto heroína da alternativa, que nos faz perceber as "virtudes" imaginárias da oscilação e do balancear. A dança serve de exemplo a Mallarmé para viver dinamicamente esta nova dualidade, fazendo-a desembocar num sentimento final de unidade, jamais estática, mas sempre em perpétuo movimento de arranque de seu centro. A partir de dois princípios inimigos: dia e noite, vida e morte, sugere-se a reconciliação enquanto ambivalência. Embora reaproxime dois modos antitéticos, a dança, no instante mesmo deste encontro, deslancha um gesto de escape, que se faz movimento de transcendência. É assim que, um lugar de deter sua oscilação num centro, Herodíade, a bailarina, acelera o movimento relacional, arrancando-se a um ponto fixo.

A relação teatral ensina-nos que somos um centro de "suspensão vibratória", realidade bifurcada e oscilante que Herodíade nos mostra:

Pelo único sonho da alternativa, a bailarina imóvel atinge portanto à identidade, à existência consciente e neutra que a dança real lhe teve dinâmica e dialeticamente permitido realizar nela. Novo triunfo da virtualidade, mas também do devaneio de abolição: pois o corpo de Herodíade torna-se então um "lugar nulo", um sítio anônimo e puramente espiritual. Real ou virtual, oscilante ou imóvel, sua dança consegue em suma metamorfoseá-la em si mesma, a fazê-la tornar-se sua própria síntese. No centro de seu balancear fisgado, ela continuará talvez a viver, mas será de uma vida abstrata, essencial, perfeitamente equilibrada, no entanto "transtornada", assim como esta do santo decapitado, "numa idéia" (Mallarmé, 1957, p.137).

A imobilidade "voluptuosa" da bailarina é este equilíbrio momentâneo e duplo, análogo ao vôo, duplo da experiência teatral, que só existe enquanto "reciprocidade dinâmica".

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACHELARD, G. L 'eau et les rêves. Paris, José Corti, 1942.        [ Links ]

COHN, R.G. L'oeuvre de Mallarmé. Un coup de dès. Trad. René Arnaud. Paris, Librairie les lettres, 1951        [ Links ]

MALLARMÉ, S. Le livre. Paris, Gallimard, 1957.        [ Links ]

MALLARMÉ, S. Les noces d'hérodiade mystère. Paris, Gallimard, 1959.        [ Links ]

MALLARMÉ, S. Oeuvres complètes. Annoté par Henri Mondor et G. Jean-Aubiy. Paris, N.R.F., 1951. (Bibliothèque de la Pléiade)        [ Links ]

MALLARMÉ, S. Propos sur la poésie. Monaco, Rocher, 1953.        [ Links ]

MONDOR, H. Histoire d'un faune. Paris, Gallimard, 1948.        [ Links ]

 

 

1 Analogamente, no plano da linguagem, Mallarmé proporá metáfora enquanto reunião do movimento de concentração e de expansão, tal como o da dança.
2 Ampliando-se esta figura, pode-se dizer que, em todos os níveis da arte, repete-se a mesma estrutura de reciprocidade e o princípio de uma abstração totalmente relacionai, que ultrapassa a própria materialidade da obra-de-arte.
3 O termo é empregado por R.G.Cohn, L 'oeuvre de Mallarmé. Un Coup de dès. Paris, Librairie les Lettres, 1951, p. 40-42 e 364-365. É o que Cohn denomina de "virtualidade da virtualidade" ou "anti-síntese" .
4 Assim como em Bachelard há necessidade de um sustentáculo material na pesquisa de uma base sólida para a operação imaginária e poética.
5 Para Mallarmé toda literatura é "endereçada" ; o que muda é o receptor: de um pequeno grupo de iniciados à dimensão de uma multidão anônima, unânime. O teatro fornece-lhe a base; o público aí está presente, verificável, concretamente provado a cada noite pelo ator que lhe confia seu texto. "Herodíade" e o "Fauno", no início, haviam sido concebidos para o teatro. Assim também o "Livro" pressupunha uma correspondência de estrutura estabelecida entre o texto e seu público, entre a coisa lida e estes para os quais era lida.
6 Processo análogo se dá no poema.
7 Perspectiva análoga aparece no "Livro" pois, para satisfazer o nosso espírito, é necessária a equivalência da luz que contém um lustre. Esta será a posição de Mallarmé a partir de 1870.