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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.5 n.1-2 São Paulo  1994

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Tempo e indivíduo no mundo contemporâneo: o sentido da morte

 

Time and individual in the contemporaiy world: the meaning of death

 

 

Maria Helena Oliva Augusto

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP

 

 


RESUMO

As relações que os homens compartilham na sociedade, entre elas a própria forma como percebem o tempo, permitem-lhes atribuir significados específicos a várias dimensões de sua existência. O que se pretende nesta comunicação é refletir sobre o sentido que a morte adquire para os indivíduos na sociedade contemporânea e, através dessa reflexão, discutir o próprio significado que atribuem à vida. Com essa finalidade, discorrer-se-á sobre alguns traços da vida social na modernidade, principalmente sobre a emergência do indivíduo livre e sobre as alterações que se fizeram sentir na noção de tempo. Em seguida, os mesmos traços serão identificados no mundo contemporâneo. A percepção das alterações de significado que a vida e a morte sofreram na vivência contemporânea das pessoas emergirá, espera-se, da comparação entre os dois momentos.

Descritores: Morte. Percepção do tempo. Sociedade. Individualidade.


ABSTRACT

This paper considers relationship of men in society, including the perception of time. It considers also the meaning of death in contemporaiy society and, through history, the related meaning of living.

Index terms: Death and dying. Time perception. Society. Individuality.


 

 

As representações compartilhadas pelos membros de uma sociedade são de fundamental importância para caracterizá-la, para dar conta do seu verdadeiro perfil e possibilitar, ao mesmo tempo, o reconhecimento de seus integrantes como participantes dela. Por um lado, essa consideração deixa claro que o conjunto de significações compartilhadas, o conjunto de representações que os homens têm a respeito de "sua" sociedade, a maneira como a pensam e como a vêem, é o que permite que a mesma permaneça, com um determinado contorno, identificável e reconhecível; por outro, possibilita esclarecer que o perfil dos participantes de uma dada sociedade deriva dessas representações: é através delas que a sociedade cria homens e mulheres adequados a suas necessidades; é a partir delas que se desenvolvem os processos de introdução dos que nascem nos meandros da sociedade que os recebe.

Isso significa dizer que as visões que os homens e as mulheres portam sobre sua sociedade são formas através das quais ela permanece, para cada um individualmente e também para o conjunto. Trata-se da maneira pela qual a sociedade se representa diante de seus membros, criando significações que lhe são específicas. Os membros de uma dada sociedade tornam-se seres sociais através da incorporação dessas mesmas representações/significações. O processo de socialização, por meio do qual as internalizam, permite-lhes "tornarem-se humanos". Ao mesmo tempo, todas as instituições particulares da sociedade a que se referem também concretizam em si essas significações.

Estas exercem, portanto, uma tríplice função: a) estruturam as representações do mundo em geral, sem as quais não podem existir seres humanos; b) designam as finalidades das ações a serem por eles desenvolvidas, indicando o que deve e o que não deve ser feito e, finalmente, c) estabelecem os tipos de afetos, de inclinações, que são característicos de uma dada sociedade (Castoriadis, 1990, p.125).

A mais importante de todas as significações que são dessa forma produzidas é aquela que diz respeito à própria sociedade, sua representação de si como alguma coisa: esta representação está indissociavelmente ligada a um desejar-se como esta sociedade, a um amar-se como esta sociedade. É esta significação que permite a cada indivíduo identificar-se com um "nós", com uma coletividade em princípio imperecível.

Sentido que concerne à auto-representação da sociedade; sentido participável pelos indivíduos; sentido que lhes permite criar para seu proveito pessoal um sentido do mundo, um sentido da vida e, finalmente, um sentido da sua morte (Castoriadis, 1990, p.127-7).1

No final do século XVIII, início do XIX, eram duas as representações fundantes da forma como a sociedade era vista por seus membros e de como esta se representava. A primeira referia-se à crença na possibilidade de um progresso sem limites, conduzido pela razão humana. Esse progresso, proporcionado pelo desenvolvimento da ciência e da tecnologia, envolvia, por sua vez, a crença na possibilidade de um desenvolvimento contínuo do processo de produção industrial e da acumulação. Tal visão trazia a perspectiva de que a humanidade poderia deixar de ser vítima de processos desconhecidos e passar a dominá-los: supunha um progressivo domínio da natureza por parte dos seres humanos e também o abandono de idéias consideradas supersticiosas que colocavam fora deles o domínio de suas próprias vidas, entre elas, por exemplo, as crenças religiosas. Dava-se por suposto que o referido desenvolvimento possibilitaria um domínio total dos processos naturais, o que conduziria, em conseqüência, à satisfação das necessidades humanas fundamentais.

A segunda dessas representações era a crença na capacidade humana de criação, na possibilidade de as pessoas crescerem em liberdade, de atingirem o bem através da livre participação nos negócios e atividades públicos e nos processos coletivos. Esta significação referia-se à autonomia individual e social, à liberdade, à pesquisa de formas de liberdade coletiva, correspondendo a um projeto democrático, emancipatório, revolucionário (Castoriadis, 1990, p.127). Portanto, de um lado, a crença no progresso; de outro, a crença no ser humano e em sua liberdade. Podemos chamar a essas duas representações de significação capitalista e significação da autonomia individual.

Por um lado, ambas as representações são antinômicas entre si, conduzindo a direções opostas: a primeira, a significação capitalista, aponta para a centralização e o disciplinamento; a segunda, a significação da autonomia individual, conduz à idéia de uma democracia participativa. Por outro lado, à medida que ambas se efetivam ao mesmo tempo, sendo assim contemporâneas, acabam por se contaminarem reciprocamente (Castoriadis, 1990, p.127).

Assim, a representação de si que a sociedade moderna apresenta deriva dessa dupla significação. Concebe-se, por um lado, como o tempo e o lugar do progresso e da racionalização ininterruptos, conduzindo a um processo ampliado de produção e acumulação. Ao mesmo tempo, apresenta-se como um espaço onde é possível uma realização mais bem-sucedida do ser humano do que em formas anteriores de relacionamento social. O sentido produzido é o de que a convergência de progresso, razão, produção e acumulação traz como conseqüência implícita a possibilidade da existência de seres humanos mais plenos, livres e felizes.

No momento contemporâneo, essa representação e esse sentido sofreram abalos. É importante perceber a forma pela qual a dupla e contraditória significação, instituída com a modernidade, se atualiza no momento presente; da mesma maneira, é necessário avaliar em que medida a efetivação atual da noção de tempo a ela vinculada interfere na possibilidade de realização do ser humano, que trazia presente quando de sua emergência. Certamente, se houve alterações no que diz respeito às representações e à noção de tempo predominantes, entre o momento da emergência da sociedade moderna e o momento atual, o sentido da vida e a percepção da morte que então prevaleciam também sofreram alterações.

Merecem ser destacados alguns aspectos envolvidos nessa discussão, que apenas analiticamente podem ser vistos de forma isolada, uma vez que mantêm entre si relações de recíproca determinação e influência.

 

Tempo, indivíduo e modernidade

Não se pode esquecer, os seres humanos são constituídos pela sociedade onde se inserem. A importância desse vínculo é ressaltada na teoria social pela indicação de que a sociedade "fabrica" aqueles que dela participam conformes às significações que a caracterizam, dando-lhe — e a eles — uma identidade. Somente no momento histórico em que as noções de progresso, razão, produção e acumulação adquirem tanta ênfase é que se pode perceber o aparecimento da idéia de que são indivíduos isolados, independentes de seu grupo familiar ou de localidade, os que constroem o mundo.

A concepção de indivíduo é, assim, contemporânea do mesmo processo que fez emergir a dupla significação acima apontada. Ao mesmo tempo que supõe a competência humana para delinear projetos de vida, essa noção sugere capacidade de auto-controle e de auto-regulação. Refere-se a alguém cujas potencialidades não estão impedidas de realização por quaisquer espécies de vínculos com o passado, alguém capaz de construir uma história pessoal, independente do grupo ao qual pertença. Ao mesmo tempo, aponta para a possibilidade de auto-constituição e de projeção de um futuro, o que requer a crença de que inexiste, para a vida humana, qualquer predeterminação. O que está implícito nesta forma de conceber é que a vida de cada um é sua propriedade e o ser humano será aquilo que fizer de si próprio.

Quando se fala de individualidade, está implícita, portanto, a possibilidade de auto-reflexão, de crítica, de liberdade. Nesse sentido, o traçado da vida do indivíduo é, ao menos em parte, eleição. Seu destino não está fora dele, não é determinado externamente: é seu destino, no sentido forte. Como conseqüência, a realização individual exige que cada pessoa deixe marcas de sua passagem, marcas estas que caracterizarão a plenitude ou o vazio de uma existência.

A forma histórica de sociabilidade que emergiu no período moderno e que possibilitou o surgimento do conceito de indivíduo livre, bem como sua existência empírica, concretizou também a vigência de uma nova noção de tempo. Não mais o tempo circular, mas o tempo linear, percebido como fluxo mensurável, divisível, homogêneo, uniforme, aritmetizado; também, tempo progressivo, de acumulação, de racionalização, de conquista da natureza, vivido como sendo de crescimento ilimitado, de aproximação cada vez maior de um saber exato total (Castoriadis, 1982, p.244).

Esse novo tempo possibilita a clara distinção entre um "antes", um "agora" e um "depois"; essa temporalidade já supõe, tanto para os seres humanos tomados individualmente, como para a sociedade em seu conjunto, a existência de um passado, de um presente e de um futuro. O presente aparece, ao mesmo tempo, como momento de passagem entre o passado e o futuro e como ponto de partida para novas experiências. A vida surge como espaço de construção — das próprias pessoas, da sociedade, do futuro, de um projeto — possibilitado pela experiência fornecida pelo passado (Heller, 1982, p.141-62).

A orientação para o futuro, que tende a prevalecer, e a ausência de liames com o passado que essa concepção envolve, estão vinculadas à forma pela qual a humanidade passou a encarar o destino: este não é algo derivado da vontade dos deuses, não lhe é impingido de fora, mas um resultado que decorre da própria ação humana (Heller, 1982, p. 141-62). Entretanto, essa história pessoal só pode ser construída no interior de um período de tempo determinado: o tempo de vida de cada pessoa. Este coloca balizas, que não podem ser transpostas, para que cada um possa traçar seu próprio caminho e deixar marcas em sua passagem que garantam que sua vida foi bem-sucedida.

Alterações na percepção do tempo e consciência do fim da vida terrena como limite definitivo: a noção de indivíduo é, assim, contemporânea das alterações que se processam na noção de tempo (e na vivência dessa nova temporalidade) e do reconhecimento da finitude da vida. Essa convergência envolve, em conseqüência, profunda alteração no significado da morte. A morte deixa de ser o momento da passagem para outra existência, onde se terá o retorno — positivo ou negativo — da vida que se teve, e adquire o sentido de fim inexorável. O reconhecimento desse processo contrapõe a idéia de eternidade, que norteava a vivência anterior, à constatação da finitude humana. Da mesma forma, faz ressaltar a noção do tempo como dimensão irreversível, em oposição à sua percepção como repetição cíclica de situações, presente anteriormente. A perspectiva desse limite, que aponta para a necessidade de vivência integral do momento presente, visto que é irrepetível, torna urgente o aproveitamento máximo do tempo disponível, no sentido de preenchê-lo com acontecimentos e obras. Viver converte-se em utilizar o tempo disponível de forma a extrair dele em realizações o quanto seja possível.

Reconhecendo esse processo, Weber afirmou que, no mundo contemporâneo, os seres humanos podem sentir-se fartos, esgotados ou cansados da vida, nunca plenos dela (Weber, 1958, p.140). Há também quem afirme que, se não existisse a morte, as pessoas em sua maioria seriam honestas porque, freqüentemente, a desonestidade é uma conseqüência da falta de tempo: o temor de perder para sempre o que não se tenha obtido hoje (Heller, 1987, p.387). De certa forma, é a consciência do fim que alimenta o presente. Neste sentido, a relação com a morte expressa a maneira como é assumida a relação com a vida, tanto quanto seu significado.

É neste ponto que se entrecruzam as representações que a sociedade moderna constrói com relação a si própria — seu desejo de ser, o tipo humano que a caracteriza e a noção de tempo que está nela presente.

 

Vida e morte no momento contemporâneo

Depois de quase dois séculos e duas guerras mundiais, a persistência da miséria e da fome, conjugada à percepção de que a desigualdade entre as pessoas continua presente, conduziu a que essas representações sofressem certas transformações. Além disso, percebe-se, hoje, que não são estranhas entre si as formas pelas quais as pessoas estabelecem suas relações e as maneiras pelas quais levam a termo a exploração que fazem da natureza; percebe-se também que não é possível um domínio ilimitado da natureza, uma vez que esta não é inesgotável. Há um limite para sua exploração, a partir do qual esta como se revolta: o buraco na camada de ozônio, o esgotamento das fontes naturais de energia, as conseqüências da destruição indiscriminada das florestas, o aquecimento da temperatura da Terra, a inversão climática que temos assistido, todos esses fenômenos atestam a necessidade de alteração das formas pelas quais a natureza é explorada.

Em nossos dias, acontece um divórcio entre a percepção, que ainda permanece, da possibilidade de um progresso ininterrupto e a constatação de que esse imenso e irrefutável desenvolvimento nem sempre corresponde à melhoria da qualidade de vida das pessoas. Observa-se um surpreendente desenvolvimento científico e tecnológico que a cada dia atinge conquistas há muito pouco tempo consideradas inatingíveis e que são, por sua vez, logo superadas por novas conquistas. Entretanto, o que fica patente é que, se de um lado, ocorre a possibilidade de desenvolver experiências as mais avançadas do ponto de vista científico e técnico, de outro, há um aumento progressivo das distâncias econômicas e sociais que separam os diferentes estratos sociais.

Temos, em conseqüência, que das duas vertentes apresentadas anteriormente — quais sejam, a significação da autonomia individual e a significação capitalista-, apenas esta última é verdadeiramente presente e dominante, no momento contemporâneo. Entretanto, o que esta propõe agora é a expansão indefinida da matriz pretensamente racional, esvaziada de qualquer conteúdo humanístico que lhe outorgava vitalidade no passado. O exercício da razão não se faz em função da melhoria da vida da humanidade, mas em busca de maior riqueza ou do progresso pelo progresso. Cabe aqui uma questão: trata-se de saber se, realmente, em muitos casos, pode-se falar em exercício da razão ou de sua negação. A própria ideologia do progresso ininterrupto, que dava uma direção tanto à história quanto aos projetos de futuro, bem como permitia às pessoas a percepção de viverem um "novo tempo", está sendo questionada ou, para muitos, perdeu hoje o sentido.

A outra representação, aquela que prenunciava a possibilidade da emergência de uma humanidade livre, capaz de, de forma autônoma, construir uma história que, no mesmo movimento, propiciasse a felicidade individual e o bem comum, sofre um visível processo de estiolamento.

Em conseqüência, a vivência do momento presente, para grande parte dos homens e mulheres contemporâneos, antes de possibilitar a percepção de serem seres completos, indivíduos na extensão do termo, fá-los sentirem-se como seres desconectados, sem raízes e sem perspectivas.

Disto decorre — uma vez que se perdeu o sentido do pertencimento, de participação em um "nós" — que, hoje, para a maioria das pessoas, a tradução subjetiva da significação da autonomia individual e da realidade que a sustenta é um profundo individualismo em que cada um se volta egoisticamente para seus desejos e expectativas e não reconhece no outro um semelhante. O resultado desse processo não é outro senão o crescimento contínuo do consumo e do lazer, tornados fins em si mesmos, a fragmentação da vida em um conjunto de atos sem sentido, e a extrema solidão que persegue os homens, ainda que vivam em sociedade.

Este processo encontra alguma explicação na forma pela qual a temporalidade vem sendo vivida, no significado assumido, hoje, pelo tempo. As características que apresentava no momento de emergência da sociedade moderna são levadas às suas últimas conseqüências, destituídas agora das virtualidades transformadoras que apresentavam. A lógica dominante e as exigências da ordem social fazem com que o tempo apareça, agora, marcado quase exclusivamente pela linearidade, pela ênfase no quantitativo em detrimento do qualitativo, pelo acento utilitarista. Trata-se, fundamentalmente, de um tempo progressivo, centrado na eficiência, na necessidade do esgotamento exaustivo das virtualidades do presente, mas que de alguma forma já não carrega a perspectiva de um domínio global da natureza, a possibilidade de um conhecimento total, a idéia da humanidade construindo seu próprio destino.

Ocorre uma inversão: os seres humanos, atomizados, passam a ser dominados pelo ritmo externo, tornam-se suas vítimas, ao invés de regularem seu próprio tempo. Já não se percebem como construtores da sua vida e de seu mundo; antes, sentem-se suscetíveis a ameaças das quais não detectam as origens, nem controlam o desenvolvimento. Com isto, surge a tendência a disciplinarem-se de um modo completo e uniforme, em quase todos os aspectos e ocasiões. A disciplina apresenta-se como característica do modelo de auto-controle da sociedade contemporânea. Seu modelo de civilização é representado pela regulação do tempo que lhe é típica: já não é pontual e particular, mas penetra toda a vida humana, sem permitir oscilações. Este traço é uniforme e inevitável (Elias, 1989a, p.162).

Ao lado deste, há um outro traço que caracteriza o mundo contemporâneo: nas sociedades mais desenvolvidas, as pessoas pensam a si próprias como seres individuais e independentes, separadas umas das outras por uma espécie de muro invisível. Para elas, em conseqüência, sua vida que é isolada da vida dos outros, que é hermeticamente separada do mundo, deve ter um sentido em si própria. Quando não são capazes de encontrar esse tipo de sentido, a existência humana lhes parece absurda e se sentem desiludidos. Entretanto, segundo Elias, é importante destacar que a:

categoria de sentido não se pode entender quando se refere a um ser humano individual ou a um universal dele derivado. É constitutiva do que chamamos sentido a existência de uma pluralidade de seres, interdependentes deste ou daquele modo e que se comunicam entre si.

Ou seja, o "sentido" é uma categoria social e o sujeito a ela correspondente é uma pluralidade de seres humanos (Elias, 1989b, p.66-8). Por essa razão, à medida que os homens tendem a se ver como seres individuais e independentes, dissociados de e indiferentes àqueles com os quais convivem, sua vida (e sua morte) é vivida como sendo destituída de qualquer sentido.

É importante pensar, neste momento, a relação existente entre os elementos que foram destacados; é necessário enfatizar os nexos que articulam as significações sociais atuantes, a individualidade possível, a noção vivida de temporalidade e a percepção da morte.

Como foi dito anteriormente, cada momento histórico, cada sociedade, constitui seu tipo humano específico. Considerando todas as mudanças que ocorreram na representação que a sociedade e o ser humamo contemporâneos fazem de si, o caráter típico de nossa época vem sendo apresentado por vários autores como sendo a união artificial e passageira de um conjunto disperso de traços que não chegam a constituir um claro perfil humano.

Alguns referem-se à individualidade possível, no mundo atual, como sendo um patchwork heteróclito ou de colagens (Castoriadis, 1990). Outros comparam-na à identidade do videoclipe (Lipovetsky, 1986). Outros, ainda, afirmam algo que chega a ser paradoxal: apesar do individualismo progressivo que se instaura, a percepção de si que os seres humanos têm passa pela forma como julgam estar sendo percebidos pelos outros. As pessoas utilizam-se como que de radares para tentarem captar a percepção que os outros têm a seu respeito e amoldar-se às expectativas externas (Riesman, et al., 1964). Ou seja, sua medida está fora de si.

O que surge em decorrência, ao invés de autonomia, é a manifestação de um conformismo generalizado. Por outro lado, a possibilidade de regerem sua própria vida, de proverem seu próprio futuro e o de seus filhos, de deixarem marcas duradouras de sua passagem pelo mundo, fica cada vez mais distante para as pessoas. Em suas vidas, prevalece a insegurança, a incapacidade de prever o dia de amanhã (Horkheimer, 1976, p.168-9).

Como foi bem descrito por Foucault, nesta forma de sociabilidade em que o produzir tem um tão grande destaque, instituiu-se progressivamente uma divisão cada vez mais esmiuçante do tempo, que tende a possibilitar seu aproveitamento integral. Da mesma forma, tornou-se crescentemente necessária a garantia da qualidade do tempo empregado. Trata-se, nesse processo, de constituir um tempo integralmente útil, que ao penetrar os corpos e ao impor-lhes eficácia e rapidez, apresente como possibilidade sua utilização teoricamente sempre crescente. O que ocorre, em conseqüência, é a aceleração cada vez mais intensa do ritmo do tempo (Foucault, 1977, p.136-41).

As pessoas, hoje, têm a percepção de que "o tempo voa". A celeridade do tempo torna obsoleto, senão quase impossível, o planejamento do futuro; da mesma maneira, acaba por tornar absoluto o agora e a necessidade de consumi-lo exaustivamente. "Ganhar" tempo e não "perdê-lo" tornou-se uma obsessão das pessoas: elas são esmagadas pelos ritmos e pelos programas que se lhes impõem através de todas as malhas sociais, tanto no trabalho quanto fora dele. A necessidade de uma boa gestão do tempo é internalizada, como o são todas as regras sociais mais importantes. Converte-se em imperativo. O indivíduo deve adequar seu próprio comportamento ao "tempo" estabelecido pelo grupo ao qual pertence (Elias, 1989a, p.135). A temporalidade pessoal, cujo ritmo não acompanha o pulsar célere do tempo exterior, é por ele sobrepujada, converte-se em sua "colônia". Homens e mulheres tornam-se, assim, seu próprio relógio interior e o instrumento de sua própria servidão temporal. A pressão por uma programação rígida do tempo penetra o cotidiano da vida, tanto social quanto individual (Chesnaux, 1983, p.40).

Por outro lado, o "império do efêmero", a ênfase no instantâneo, que se tornou dominante, a importância de um "agora" despojado de significado, acabam por retirar toda a importância do passado, ao mesmo tempo que esvaziam a possibilidade de futuro. A noção de história, individual e social, que informou a emergência desta sociabilidade, desta temporalidade e desta individualidade, a própria possibilidade da constituição de uma identidade esfacelam-se juntamente com a perda de sentido que a vida social apresenta, com a fragmentação cada vez maior do tempo e com a importância que a instantaneidade assume.

Cada época da história elabora, da melhor forma que lhe seja possível, seus próprios mecanismos, visando enfrentar o problema da morte. Como já foi dito, foi a consciência da própria finitude e da necessidade de se "eternizar" através das obras realizadas durante sua vida, que propiciou aos homens e mulheres da modernidade a forma de se depararem com ela.

O momento da morte aparecia como um momento temido mas também como um momento grandioso. Na contemporaneidade, a morte se retira para o silêncio dos hospitais e aparece como um momento solitário e vergonhoso.

No momento contemporâneo, como a vida perdeu o sentido — na própria medida que desapareceu o sentido da própria história ou o próprio sentido da história —, também não há significado para a morte. Há vários mecanismos que tentam afugentá-la, como se negá-la de alguma forma fosse garantia de sua não-aproximação. Trata-se dos mesmos mecanismos envolvidos no "fazer passar" a vida: o refugio no imediato, a compartimentação entre gerações, a perda do senso de continuidade. No mundo contemporâneo, o indivíduo vive uma corrida alucinada para esquecer que vai morrer e que tudo o que faz não tem, estritamente, nenhum sentido. Sucumbe, assim, enquanto indivíduo, uma vez que o seu sentido de pertencimento é obnubilado e anulada a vivência de sua singularidade.

Ao mesmo tempo, e em conseqüência, há cada vez maior insensibilidade quanto à forma pela qual a vida é vivida e pela qual a morte se apresenta. Esta é o modo de ser dominante, ainda que permaneçam, em pontos isolados, rituais e comportamentos que relembram velhos padrões de sociabilidade. No Brasil, em regiões distantes, entre caboclos e indígenas, ou em alguns pontos dispersos das cidades, nas favelas e nos subúrbios, permanecem ritos funerários e concepções de morte bastante distintas daquelas que são prevalecentes (Martins, 1983, p.9). Entretanto, insidiosamente, estas últimas vão conquistando terreno. A tentativa de implantação e a manifestação popular sobre a pena de morte, ao lado da maneira indiferente como os jovens assaltantes homicidas referem-se ao ato de tirar a vida a outrem; a forma pela qual a infância — "promessa do futuro"— é tratada, seu abandono e até extermínio; a falta de respeito pelos idosos, que inclui desde o desprezo por sua experiência até a negação de um final digno de vida, expressa na dificuldade que têm para auferirem uma aposentadoria razoável, depois de muitos anos de trabalho, refletem, de certa forma, essa constatação.

Por outro lado, pode-se perceber, no momento contemporâneo, um processo paralelo: à medida que, na atualidade, tem aumentado a insegurança da sociedade, dificultando cada vez mais aos indivíduos a previsão de seu próprio futuro a largo prazo, e de governá-lo até certo ponto, como se acreditou na emergência da sociedade moderna, voltam a crescer as necessidades de proteção sobrenatural (Elias, 1989b, p.15). Há como um "reencantamento" do mundo, constatável pela grande vitalidade com que surgem (ou ressurgem) novas formas de religiosidade e proliferam as experiências místicas de todos os tipos. Para Lipovetsky, o ressurgimento das espiritualidades e esoterismos de todo o tipo não é antinômico à lógica principal de nosso tempo; antes, é uma forma de realizá-la, "permitindo um coquetel individualista de realização" (Lipovetsky, 1986, p.119).

 

Conclusão

O apresentado revela um momento crítico: perda do sentido da vida, perda do sentido da morte, vida social sem significado, individualidade impossibilitada. Haverá alguma forma de refazer significações, de reprojetar sentidos, de reconstruir a promessa de indivíduos livres?

Alguns autores apontam para o redimensionamento do tempo presente como uma possibilidade de caminho. Tal redimensionamento exige a redescoberta do futuro, uma nova relação com a tradição2 e também com a morte, bem como um enfrentamento diferente do tempo, pelos indivíduos.

Relembra-se a necessidade de uma reação das pessoas, trazendo a "luta pelo tempo" para o campo político. Essa reação deve estar presente tanto no lugar do trabalho — pela organização interna e pela duração do tempo de trabalho — quanto na vida privada — através de uma gestão do tempo pessoal, que dê lugar ao imprevisto, impeça o aprisionamento que o compromisso com a agenda ocasiona, e que recuse também os mecanismos consumidores de tempo (Chesnaux, 1983, p.52-3).

Acredita-se que a sociedade possa fazer emergir outras significações se for capaz de ajudar-nos a reconhecer nossa finitude. Aqui está suposta uma outra maneira de ver o mundo e a mortalidade humana, bem como o reconhecimento da obrigação que os homens e mulheres do presente têm em relação aos que os antecederam e aos que os seguirão. Nossas dívidas em relação às gerações futuras são semelhantes àquelas que temos com as gerações passadas, uma vez que nenhum dos homens ou mulheres contemporâneos seria o que é não fossem as centenas de milhares de anos de trabalho e de esforço daqueles que nos antecederam (Castoriadis, 1990, p.134).

Por outro lado, afirma-se ser inconcebível uma nova criação histórica que possa se opor, eficaz e lucidamente, a este informe e caleidoscópico mundo, espécie de bazar no qual vivemos, se não for instaurada uma relação nova e fecunda com a tradição. Esta não significaria a restauração dos valores tradicionais como tais, ou porque eles são tradicionais, mas uma atitude crítica capaz de reconhecer valores que foram perdidos (Castoriadis, 1990, p.135). Em outra abordagem, o passado é visto como a única referência concreta da qual podemos dispor para considerar a possibilidade de outras formas de organização social, o que significa que nele se podem procurar referências para um outro futuro. Aqui se encontra também a idéia de que o passado pode ajudar a enfrentar o presente (Chesnaux, 1983, p.53-4).

Qualquer das duas considerações supõe a vinculação do passado ao futuro, através do presente, e resgata a observação que, já no século XIX, Tocquevile fez a esse respeito: "Desde que o passado deixou de lançar luz sobre o futuro, a mente do homem vagueia nas trevas".

 

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1 "(...) Sens qui concerne l'autorepresentation de la société; sens participable par les individus; sens leur permettant de monnayer pour leur compte personnel un sens du monde, un sens de la vie etc., finalement, un sens de leur mort (...) ".
2 Este traço deve ser destacado, à medida que significa uma reorientação na forma como o passado é considerado. O pensamento iluminista apresentava como um sinal de progresso o rompimento de quaisquer vínculos com o passado, o que vai ser extremamente criticado pelo pensamento conservador, que encara o passado como fonte de vida e sabedoria. A exigência da utilização do passado como referencial para novas experiências, expressa por autores que, certamente, não podem ser identificados com o pensamento conservador, é algo que merece análise mais atenta.