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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.5 n.1-2 São Paulo  1994

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

O conceito de representação social: a questão do indivíduo e a negação do outro

 

Social representation concept: the problem of the individual and the negation of the "other"

 

 

José Leon Crochík

Instituto de Psicologia - USP

 

 


RESUMO

O objetivo deste ensaio é o de refletir sobre o conceito de representação social e seu objeto, apontando que, na mudança da relação epistemológica sustentada pelo termo, a própria concepção de indivíduo se modifica. A base para esta reflexão é dada pela contraposição entre o ideal liberal de indivíduo e os seus limites apontados por Marx e Freud. Conclui-se que a tentativa de se entender um objeto, produto de duas esferas distintas, com um único conceito, retira as peculiaridades desta dupla mediação que o constitui

Descritores: Representação social. Subjetividade. Consciência. Psicologia Social. Filosofia.


ABSTRACT

This paper deals with the problem of the concept of social representation and the epistemological difficulties arising from its application to two distinct spheres of the same object, thus abstracting the peculiarities of the double mediation that constitutes it

Index terms: Social representation. Subjectivity. Conscience. Social psychology. Philosophy.


 

 

O conceito de representação social vem se desenvolvendo e ampliando o seu espaço dentro da Psicologia Social, mas não somente nela. Neste sentido pareceu-nos oportuno tecer considerações sobre este conceito e sobre o seu objeto, no intuito de contribuir com aquele desenvolvimento e, consequentemente, com a sua crítica. Para tanto, utilizaremos principalmente os capítulos que se referem diretamente à conceituação teórica de representação social do livro de Moscovici (1978), A Representação Social da Psicanálise, sem desconhecermos algumas das contribuições posteriores, que estão refletidas e sintetizadas em livros mais recentes (ver Spink, 1993). Esta estratégia delimita a intenção deste ensaio, mas pensamos que preserva a precisão do que inicialmente pretendeu-se na definição do conceito.

Em um primeiro momento, faremos considerações sobre a noção liberal de indivíduo para, a seguir, pensarmos sobre as condições da autonomia da consciência, que se funda na distinção Eu-Mundo. Na terceira parte, estes elementos serão utilizados como base da reflexão sobre o conceito misto que pretende ser a representação social, por sua sobreposição das fronteiras entre o psíquico e o social.

 

Sobre a noção de indivíduo

Certamente uma das tarefas da Psicologia Social é a de procurar entender a relação entre a constituição individual e a constituição da sociedade, considerando que a ausência de indivíduos marcados pela autonomia do pensamento e pela esfera da intimidade tornaria a sociedade estática e calcada em uma reprodução orgânica, e que a sociedade é a condição necessária para converter o substrato biológico em um ser que pensa e sente.

Mas a noção de indivíduo, dotado de autonomia de pensamento capaz de expressar a sua subjetividade através da apreensão dos universais — formas de pensamento e de linguagem — e passível de ser responsabilizado por seus atos, remonta ao período moderno (Cf. Horkheimer & Adorno, 1978b):

Esta predicação, que explora o singular e o particular, converte-se-á depois, com Duns Escoto, nos primórdios da Grande Escolástica, quando os estados nacionais começam se afirmando contra o universalismo medieval, na "Haecceitas", no princípio de individuação, mediante o qual Escoto procurou mediar a natureza humana geral, a "essentia communis, com a pessoa individual, o "homo singularis" (p.46).

o que não significa que no passado a expressão da subjetividade não existisse; basta pensar na Grécia Clássica e na sua produção técnica, artística e filosófica para desmentir tal significado. Que aquela noção de indivíduo seja recente na história da civilização ocidental não deve implicar também que o substrato do conceito indivíduo não existisse, pois os relatos de Homero sobre o seu personagem Ulisses já indicavam o surgimento do "eu burguês" (Cf. Adorno & Horkheimer, 1985). Contudo, diferentemente da antigüidade, o período moderno trazia o conceito de indivíduo como átomo social dotado de uma explicação própria sobre a sua constituição, ou seja, apontava para o espaço psíquico tal como podemos compreendê-lo atualmente.

Tal noção de indivíduo, embora estabelecesse um espaço de interioridade, pressupunha a sua verdade em um fator incondicional: para Leibniz (1979), a mônada perfeita, para Kant (1991) a esfera transcendental, de forma que se a variabilidade individual expressava o particular, este apontava para um mediador universal.

Com o surgimento da esfera privada dá-se a contraposição com o mundo público. Esta distinção entre as duas esferas tem como base a formulação da noção da liberdade, que deveria ser articulada à noção de autoridade. Como mostra Marcuse (1972), a submissão à autoridade implicava o consentimento dado por uma subjetividade que deveria ser livre, isto é, com uma verdade que se distinguia do mundo no qual a autoridade reinava: deve-se ser livre para se submeter; não era a liberdade que deveria surgir da submissão, mas o contrário. Não se deve esquecer que a luta, na época, era contra os dogmas religiosos feudais, que exigiam a submissão imediata, ou seja, sem adesão livre, e que, ao mesmo tempo, o surgimento da nova ordem econômica precisava de esteios seguros para se manter. Se as explicações religiosas garantiam o poder de mando à linhagem feudal, tendo os dogmas como a garantia de sua reprodução, era necessária a luta contra eles através de uma outra forma de dominação: a da consciência. Ou seja, o movimento que pretendia libertar e afirmar a liberdade da consciência individual como um dado a priori do homem aprisiona-o no momento em que o priva de objetividade. O sujeito expresso na subjetividade da consciência de si, para ser livre, deve libertar-se do mundo externo, entendido como empírico, contingencial, mas nesta libertação, a verdadeira opressão da consciência expressa pela nova forma de dominação é negada. É esta negação a base do surgimento do indivíduo moderno, que, o leva a se distanciar de seus interesses racionais, buscando dar racionalidade a uma sociedade que traz a desrazão na sua base. Em outras palavras, ao se buscar a liberdade em si mesmo, o mundo é um outro, que para servir ao sujeito deve se converter no mesmo, ou seja, ser dotado da racionalidade humana para ser dominado. Mas neste movimento, a própria dominação proveniente da necessidade da manutenção dos interesses da burguesia é negada: o homem colocado no lugar do senhor, esquece a sua condição de servo. Contudo, se o mundo da materialidade deve se manter intocável, enquanto relação de poder, os homens devem ser convencidos de seu poder sobre ele e, assim, a essência da consciência burguesa pode se exprimir: basta colocar as idéias em ordem para que o mundo fique ordenado (Cf. Horkheimer & Adorno, 1978a).

A noção da liberdade interior que surgiu com Lutero é a marca tanto da separação entre esfera privada e esfera pública, quanto da sua relação: o homem é livre, na sua intimidade, na procura da verdade divina. No trabalho de Kant surge algo semelhante em relação aos imperativos categóricos da razão prática. Ou seja, é-se livre para obedecer preceitos, quer religiosos, quer morais (Kant, 1992b). Como esses são de ordem divina ou transcendental, o mundo externo é contingente, ou pelo menos alheio à outra esfera. A verdade deve ser buscada dentro de si.

O acesso às verdades necessárias e eternas é o que permite ao homem conduzir-se enquanto tal e realizar a natureza humana em oposição à natureza, entendida como um outro que se contrapõe ao homem enquanto indivíduo. O Espírito, a razão são os empreendedores da tarefa daquele acesso. A ciência ou consciência daquelas verdades dá a direção do comportamento no mundo terreno, contingente. Ou seja, tornar-se indivíduo refere-se à possibilidade moral e cognitiva de ter acesso a verdades fincadas pela divindade ou pelos imperativos categóricos e proceder de acordo com elas.

Mas estes imperativos, quer teológicos, quer morais, pedem por uma vontade moral. O indivíduo pode ser responsabilizado por seguir ou não os preceitos. Não diferenciamos o comportamento religioso e o comportamento moral, pois ambos, pela ênfase na esfera da interioridade, rompem ao mesmo tempo com uma postura dogmática e com uma postura cética. O termo "fé racional", utilizado por Kant (1992b), mostra que cada um deve examinar por si só a racionalidade do objeto de fé, assim como Lutero determinava que cada um deve buscar dentro de si o universal. A razão subjetiva deve mostrar a racionalidade do mundo objetivo.

Desta forma, a contradição presente na constituição do sujeito moderno aponta para a liberdade no momento mesmo em que oprime, e se a base desta contradição é a negação da objetividade, sem esta última, o movimento tende a sustar a libertação. Ou seja, se a razão, a consciência, o pensamento e o próprio sentimento de desamparo, de carência são ontologizados e separados daquilo que lhes permitiu tomar forma, eles impedem a emancipação que visam.

Contudo, se o pensamento que visava à autonomia corria o risco, quando se julgava incondicional, de se resignar à realidade existente, ao menos não se convertia em devaneio, uma vez que mantinha a sua relação com o mundo objetivo. Para Kant (1992a), o entendimento não é possível sem a experiência; e embora não seja possível conhecer o objeto em si, mas apenas o seu aparecer, esta aparência residia no objeto e não no sujeito. Em Hegel (Cf. Marcuse, 1978), a verdade do objeto era alcançável pela razão, que permitia a modificação daquele; o mundo como um outro ainda era um outro, mesmo na sua conversão às categorias do sujeito, para que fosse dominado. A liberdade do pensamento só era possível pela sua relação com o objeto; na ausência desta relação, a razão ou tornava-se cética ou dogmática.

No Iluminismo, apesar das contradições que lhe eram inerentes, ao menos a promessa da liberdade do reino da necessidade se enunciava.

 

Sobre os limites da consciência

A autonomia da razão dizia respeito a pensar as categorias do mundo por si próprio. O mundo humano, porque racional, deve ser produto de uma consciência livre que deve a ele se submeter.

Esta consciência soberana e racional, pela qual o indivíduo pode se mostrar digno de felicidade, é delimitada por determinantes sociais, segundo Marx, e por determinantes inconscientes, segundo Freud. A idéia da consciência autônoma e, portanto, livre para se submeter, não desaparece, mas é sustada por fatores que podem produzi-la ou não.

O mundo "externo" não era aceito sem críticas por Lutero e por Kant (Cf. Marcuse, 1972), mas só afetava a consciência de forma contingente. Para Marx e Engels (1987), a consciência era fruto deste mundo, quer de suas estruturas dadas pelas relações de produção, quer de sua aparência. Em outras palavras, o mundo produz falsas consciências através da ideologia derivada de sua aparência, e se é possível ver o que produz esta aparência, é somente através da transformação social que a falsa consciência deixaria de ser produzida, uma vez que a ideologia é "aparência socialmente necessária" (Marx, 1978); ter consciência das contradições da realidade é ser obrigado a viver em contradição no trabalho e no pensamento. Como o indivíduo livre só pode existir num mundo livre, o indivíduo concebido pelo liberalismo e pelo iluminismo não pode existir.

Com a Psicanálise, a consciência só adquire alguma liberdade se fizer frente a seus determinantes inconscientes, oriundos, tanto do conflito entre biologia e cultura, quanto do conflito entre indivíduo e sociedade (Freud, 1981). No primeiro conflito residem fatores universais que estão presentes em todo tipo de vida, expressado pelo embate entre as Pulsões de Vida e as Pulsões de Morte; no segundo conflito, aparecem as marcas daquilo que a cultura não permitiu ao indivíduo realizar. A idéia da impossibilidade de uma consciência totalmente livre nasce da impossibilidade da dissociação total entre desejo e razão, pois de forma direta ou indireta o acesso à razão se dirige à realização de desejos.

Se, em Lutero, a relação entre a esfera individual e a esfera social era intermediada pela iluminação divina, e em Kant pela esfera transcendental, esta mesma intermediação passa a assumir outro lugar na constituição do indivíduo: a consciência não é mais determinada por uma vontade moral, mas por fatores alheios a esta vontade. Mas a relação que Marx e Freud estabelecem entre o indivíduo e a sociedade não é simétrica e nem da mesma natureza. Para Marx, os fatores materiais são primordiais, e somente uma ação coletiva poderia provocar as alterações necessárias ao surgimento do indivíduo livre; para Freud, não são fatores propriamente individuais que determinariam a sociedade, mas fatores universais e presentes no inconsciente — o inconsciente individual representa algo mais amplo, de forma que a cultura é impregnada de desejos reprimidos na espécie humana como um todo; se a alteração das condições materiais é importante para o aperfeiçoamento da cultura, ela não traz, por si só, a ausência de conflitos, nem o indivíduo autônomo (Freud, 1981). Assim, se há um ideal de homem e de sociedade expresso pelo Iluminismo, há também limites dados por interesses, quer sociais, quer "individuais", que delimitam aquele ideal.

A consciência deve ser entendida por uma dupla determinação que provém de esferas distintas, não sendo possível reduzi-las uma à outra, ou negar uma ou outra. Assim, a ideologia e a racionalização, no sentido psicanalítico, não devem ser confundidas, embora tenham um substrato comum que as expressa: a consciência (Adorno, 1968). Isto implica que a análise do conteúdo ideológico não dá conta de explicar o porquê da adesão dos indivíduos a ele, assim como a denúncia da racionalização, não desfaz a aparência necessária da ideologia. Devemos, portanto, falar de aspectos individuais, quando elementos inconscientes estiverem presentes, e de aspectos sociais, quando a ideologia estiver em questão. Isto não significa que nos aspectos individuais a mediação social não esteja presente, e nem que nos aspectos sociais não haja elementos inconscientes, mas que são elementos distintos que estão sendo analisados. Nos aspectos individuais, os conteúdos sociais servem para eles se re-apresentarem, não meramente como meio, mas através da dotação de sentido àquele que fala; é a relação entre os desejos individuais e o conteúdo que se tem como alvo, dando-se ênfase aos primeiros; nos aspectos sociais, o indivíduo reproduz o conteúdo social, mas nesta perspectiva se atenta principalmente a este conteúdo. Os aspectos sociais devem ser analisados com uma compreensão sociológica e os aspectos individuais pelo instrumental psicanalítico. Desta forma, o conteúdo social desvalido pela análise psicanalítica retoma a sua verdade, sem que os determinantes individuais deixem de estar presentes.

A cisão indivíduo-cultura do período moderno, que culmina no divórcio entre ambos, pode, através daquela dupla análise, ser compreendida, não por uma refusão, mas por uma relação que reconheça a diferenciação de cada um dos dois domínios: o psíquico e o cultural. Não é uma relação simétrica que se pretende, pois a força de ambos os determinantes não é semelhante e a opressão social colabora com a constituição do inconsciente. Se, nas profundezas do inconsciente, é possível localizar a sociedade, na estrutura social, o indivíduo desaparece, o que por si só marca a irracionalidade social. Mas uma sociedade irracional facilita a irracionalidade individual e, assim, quanto menos ela se volta para o indivíduo, mais suscita por parte deste comportamentos distantes dos ideais iluministas, de tal forma que a loucura individual corresponde à loucura social (Adorno, 1968).

A relação sujeito-objeto presente no Iluminismo mantém-se, embora não de forma similar, em Marx e Freud. Ambos mantêm os ideais iluministas, e se Freud, de certa forma, acentua a existência autônoma de uma parte da subjetividade, não deixa de mostrar que as fontes do sofrimento são objetivas (Cf. Freud, 1981); a possibilidade, ainda que relativa, do indivíduo livre não se desvincula da percepção da realidade objetiva como um outro. A falsa consciência, quer se esteie em determinantes objetivos ou subjetivos, ainda é uma percepção inadequada da realidade.

Na análise que Horkheimer e Adorno (1978a) fazem da ideologia liberal, a sua falsidade e a sua veracidade transparecem. A tentativa do espírito de se tornar independente do mundo e assim poder pensá-lo trazia simultaneamente a negação de sua dependência — e nisto residia a sua falsidade — e o movimento de sua independência — a sua veracidade. Com a eliminação da esfera da transcendência e, portanto, da possibilidade de visualizar as alterações do mundo social, a dependência foi afirmada de tal forma que se transformou em falsa ao perenizar a realidade existente. Quando tudo e todos tendem a se converter no seu valor de mercado, todo pensamento tende a se resignar a este, e os critérios para a sua avaliação passam a ter como base a sua eficácia, que se relaciona com interesses subjetivos; a contrapartida é que a origem deste pensamento é atribuído a um sujeito despossuído de subjetividade, caracterizado por variáveis tais como idade, profissão, classe social, sexo etc, que ao defini-lo externamente o anulam. Se as pesquisas de opinião pública conseguem prever os resultados de eleições com uma margem pequena de erro, é porque de fato nos reduzimos a estas variáveis.

Se o Idealismo marcava o primado do sujeito sobre o objeto e se Marx e Freud, embora de formas distintas, acentuavam o primado do objeto sobre o sujeito, a realidade, ao ser naturalizada e condenada a seguir as suas leis imanentes — naturalização esta expressa pelo Positivismo de Augusto Comte -, condena o sujeito também à naturalização e, portanto, à busca de suas verdades imanentes. Assim, se a verdade do sujeito é expropriada daquilo que ele pode expressar de distinto do que a sua natureza prevê e se os seus discursos são relativizados, não há mais como dirigi-los à realidade em busca da sua verdade, pois esta passa a se localizar numa interioridade desfigurada em diversas variáveis predicativas, tais como sexo, idade, profissão, escolaridade, etc.

A quebra da relação sujeito-objeto cobra o seu preço: a conversão do sujeito em objeto retira a própria possibilidade da objetivação humana, ou seja, tornar-se um outro frente à natureza. No entanto, a ausência do sujeito da dominação é aparente, assim como a mediação de fatores alheios a ele é preservada. No Positivismo o progresso deve ocorrer dentro da ordem, como já previa antes dele a hierarquia pré-estabelecida das mônadas de Leibniz, e como a totalidade configurada por relações sociais desiguais persiste, a conversão do sujeito em objeto afasta-o de seus interesses racionais, da mesma forma que o afastamento da ciência de suas determinações sociais, presente na sua aura de neutralidade, afasta-a da realidade. O sujeito converte-se ou em um objeto com uma verdade própria, verdade esta buscada por diversas vertentes da Psicologia, ou em um objeto definido por suas características predicativas. Em ambos os casos, o sujeito perde a sua objetividade: no primeiro, porque as condições objetivas são eliminadas; no segundo, porque aquilo que lhe permitiria a expressão através da apropriação dos universais existentes é desapropriado.

Se existem diversas percepções da realidade e se os critérios para avaliar a sua validade são precários é porque elas se fundam numa adesão imediata aos fatos, tal como a sociedade industrial e a sua expressão filosófica-científica positivista requerem, sem que com isso a mediação social deixe de existir. Assim, a percepção inadequada da realidade torna-se fruto de uma adesão imediata a ela, guiada pela necessidade de autoconservação.

O desterro do conceito como um elemento mitológico por tentar ir além dos fatos possibilitou a mitologia dos fatos e a crença em sua imediaticidade. A substituição da relação sujeito-objeto na busca da verdade pela opinião da maioria colaborou para converter a razão em seu contrário, e tornar a aparência da subjetividade em sua essência. Claro que nem por isso a opinião deve ser condenada à falsidade e a razão dogmática à verdade, mas ambas, por mutilarem a relação sujeito-objeto, cada uma em um polo distinto, mutilam a própria verdade.

 

Sobre a representação social

Tendo em vista o que foi escrito até aqui, a concepção de representação social, tal como é desenvolvida por Moscovici (1978), pode ser duplamente criticada. Em primeiro lugar, porque o autor atribui aos historiadores a tarefa de explicitar as dificuldades da conceituação do termo, quando é o próprio vácuo surgido historicamente, através da crescente separação entre indivíduo e cultura, que lhe permite criar o conceito para tentar sustar, pensamos que de forma ideológica, tal divisão.

O autor percebe este vácuo quando, ao caracterizar o conceito, aponta para a necessidade de se dar sentido àquilo que é distante, ou seja, tornar o estranho familiar (Moscovici, 1978). Mas não mostra como esta necessidade se origina da impotência social do indivíduo em nossa época, nem como essa impotência associa-se a necessidades infantis (Cf. Adorno et al., 1965), o que permite a segunda crítica: a de não apontar para os fatores subjetivos presentes na representação social, e quando o faz, ao dizer que a representação social não é mera reprodução de conteúdos sociais, não os localizar em lugar nenhum. A Psicanálise deveria ter-lhe servido não só como objeto da representação social, mas como instrumento que pudesse melhor delimitá-lo; sem ela a subjetividade entra como ator coadjuvante, num cenário que a despossui.

Assim, tanto o indivíduo pressuposto pelo liberalismo, que tinha consciência e vontade, quanto o indivíduo negado por Marx e Freud na sua consciência e vontade livres, são substituídos pela sua ausência. A estrutura vazia que ocupa o seu lugar, como base da representação social, é tomada como invariante universal e não como produto da realidade, que na atualidade pode prescindir de indivíduos produtores de cultura, indivíduos esses mediados pela estrutura social, mas não confundidos com ela.

Esta construção da cultura pelos indivíduos, no passado, não se dava, porém, por uma realidade a ser totalmente interpretada, construída, mas por uma relação com essa realidade que a pressupunha como limite ao delírio, possibilitado por um pensar livre do objeto. Desde Kant, ao menos, não existe pensamento livre da experiência que não recaia em aporias. E mesmo o pensamento destas deveria ser cuidadosamente limitado pela crítica da razão para não recair num delírio. Se no preconceito o objeto pode ser definido como uma prancha de Rorschach, na qual o preconceituoso projeta os seus desejos e necessidades, no pensamento livre a projeção deve ser distinta do objeto que serve como base àquele. Assim, o objeto na sua veracidade é contraponto necessário para o pensamento verdadeiro. Isto não significa uma relação linear entre sujeito e objeto, ou uma apreensão direta da realidade, mas que o sujeito possa ser pensado simultaneamente como sujeito e objeto (de seus desejos, de seus condicionantes sociais) para se distinguir do outro objeto da realidade que busca entender.

Da mesma forma, o surgimento do eu burguês ocorre no mesmo movimento necessário para a distinção entre cultura e natureza. A Odisséia de Homero já relatava que o enfrentamento da natureza por Ulisses necessitava o enfrentamento de uma outra natureza: a interna, que nos mitos era confundida com a externa, embora já guardasse características racionais. Na luta contra os desafios da natureza (os mitos), Ulisses, como protótipo da individualidade burguesa, sacrificou os seus desejos para a formação de seu eu, que se enrijecia à medida que os desafios cresciam. Mas na separação entre indivíduo e natureza, separação que prepara o surgimento de nossa cultura racional, a natureza se coloca como um outro ao sujeito do esclarecimento (Adorno & Horkheimer, 1985). Havia um perigo real a ser enfrentado e não cabiam representações falsas do objeto, assim como não cabem até hoje.

Se a razão dogmática preparada por Sócrates e Platão, e depois, de certa maneira, revivida por Kant e Hegel, deve ser relativizada, isso não significa que deva se tornar relativa, considerando, a priori, todos os objetos iguais e, portanto, passíveis de serem entendidos de forma similar pelo mesmo método de pensar que se hipostasia anulando aqueles e obrigando-os a ter o mesmo destino contraditório: submeter-se à lei científica ou à do pensamento e abrigar a arbitrariedade dada, quer pela postura de neutralidade, quer pela condenação a serem meras projeções de subjetividades.

O fato de a opinião ter ocupado o lugar da verdade tira o compromisso do sujeito de pensar o objeto segundo aquilo que esse é e se tornou, rompendo assim com a necessidade do pensamento subverter a realidade em seus próprios termos. Se nos parece que o pensamento de Kant é conformista, essa aparência é desmentida tão logo nos voltamos para as suas idéias sobre a criação de um mundo justo e livre, que ele sabia não ser aquele em que vivia. E, não obstante, o dever ser justo e livre era o ideal que pronunciava.

Aquilo que se opera na Filosofia, como dito antes, não é diretamente separável do que ocorre no plano individual. Se Kant separava o mundo empiríco do mundo transcendental, não desconhecia que o segundo deveria ser apropriado pelo primeiro. A cisão é histórica e não ontológica. Mesmo a separação entre o indivíduo e a cultura não implicava uma ausência de relações entre ambos, marcadas por critérios guiados pela razão. O termo com o qual caracteriza a natureza humana — sociabilidade insociável — e a forma que a cultura assume para transformá-la não são casuais, não são mero fruto da divisão de trabalho ou de relações contingentes, são imanentes ao homem. Ao contrapor a razão à natureza, Kant opõe a liberdade condicionante da razão à causalidade existente no reino da natureza; com isso a verdade é condição necessária a que o homem seja dono de seu destino.

Essa noção de verdade obrigava a uma relação com o outro e com o mundo calcada na razão, quer para o entendimento das leis da natureza, quer para o agir moral. Se, como visto antes, Marx e Freud apontaram os limites da consciência que busca a verdade, o Positivismo de Comte (Cf. Marcuse, 1978), adotado por Durkheim, antecessor de Moscovici, torna homem e sociedade objetos naturais a serem entendidos pelas suas leis imanentes. Nesta transformação, a razão toma a sua forma subjetiva e instrumental; tornando-se relativa, despoja-se da possibilidade de enunciar valores e julgamentos que não provenham dos fatos examinados, sem se dar conta que estes não são naturais, no sentido de serem interpretados segundo as necessidades históricas do homem; a razão some de cena ao se converter em método.

Mas se o pensamento de Kant e de Hegel estão relacionados ao Estado Racional visualizado na Revolução Francesa, o Positivismo de Comte relaciona-se com o progresso dentro da ordem entendida como natural e, desta forma, os espaços sociais para as criações, quer culturais, quer da produção de objetos para a sobrevivência imediata, são limitados pelo crescente processo de racionalização social descrito por Weber. Este processo que reduz a racionalidade das diversas esferas sociais à racionalidade da esfera da produção só pode se dar num mundo e numa realidade naturalizados, ou seja, aprisionados pelas suas próprias leis. Além disso, neste processo a naturalização necessária à dominação da natureza leva o indivíduo e a sociedade a seguirem cada qual as suas próprias leis. O espaço da interioridade proposto por Lutero transforma-se numa vazia conformação às leis da sociedade, e mesmo o ego e o superego examinados por Freud não encontram na realidade objetos para a identificação que os gera. Portanto, a separação entre indivíduo e sociedade, que o termo "representação social" tenta negar quando o remete às necessidades grupais que reinterpretam aquilo que é veiculado por agências oficiais, é histórica e não superável pela ideologia.

Os objetos de análise do psicanalista e do sociólogo, embora possam estar presentes no mesmo discurso, são distintos, e nesta distinção aparece a ruptura entre indivíduo e sociedade. Criar um conceito intermediário para explicar esse discurso é tentar superar essa cisão negando os objetos cindidos. Examinemos mais detidamente o conceito de representação social, agora sob este ângulo.

Moscovici aponta que uma das dificulades de se conceituar a representação social dá-se porque esse conceito se estabelece numa encruzilhada de conceitos psicológicos e sociológicos. Os conceitos de índole psicológica que ele examina são os de conceito e percepção, apontando que a representação social não é o intermediário entre ambos, mas: "(...) um processo que torna o conceito e a percepção de certo modo intercambiáveis, uma vez que se engendram reciprocamente" (Moscovici, 1978, p.57).

Claro que esses dois conceitos não são puramente psicológicos — o conceito só é possível através do símbolo, que é social, e a percepção depende do modo pelo qual os objetos são dados pela cultura, de forma que aquilo que lhes resta de psicológico são os desenvolvimentos individuais que lhes permitem se apropriar do mundo estabelecido por uma compreensão social. O caráter particular de apreensão do real através da representação social é, portanto, na origem, repleto de interpretações sobre aquele, interpretações estas que, como não são remetidas aos desejos individuais ou às contradições sociais, tornam-se metafísicas. O que por si só é uma crítica semelhante àquela feita por Adorno (1968) ao neofreudianos.

Tal Metafísica pode ser visualizada quando o autor apresenta a atitude (posição) frente a um objeto como sendo anterior à informação e a representação que o indivíduo busca e forma a seu respeito. Como esta atitude não é sustentada por nenhum fator anterior, parece ser incondicionada, deixando-se de levar em consideração tudo aquilo que a Psicologia pode conhecer sobre a formação da atitude. Mas esta mesma afirmação do autor é verdadeira, quando o indivíduo é levado a não se afastar de si mesmo e tornar o estranho familiar. Contudo, esta regressão individual é histórica e não ontológica, pois o indivíduo e seu conceito se constituem, não são constituídos a priori, de forma que os mecanismos que levam o indivíduo a perceber o mundo de tal ou qual maneira não podem ter a ênfase voltada somente para a sua função social (Adorno, 1968), mas, justamente, para as circunstâncias e entidades que refletem, que são colocadas pelo autor em segundo plano.

O fato de o indivíduo dar o caráter de estranheza ao objeto, mostra que ele lhe é alheio e tal alienação é um produto social. Se a ciência e a política nos tornam estranhos a elas é porque não nos consideram o seu objetivo último, o que as torna independentes de nós, e é esta independência que as faz irracionais. De outro lado, a nossa tentativa de torná-las familiares, para que possam estar integradas ao mundo que configuramos, já é reação à angústia gerada por um mundo que nos despossui (Adorno, 1968).

A distinção eu-mundo não pode prescindir da projeção no sentido psicanalítico, que também se reflete na compreensão do mundo segundo as nossas necessidades. O controle daquilo que foi projetado é o que dá a possibilidade da diferenciação. Perceber, neste sentido, é projetar (Adorno & Horkheimer, 1985). Elementos de nossa sensibilidade, tais como o tempo e o espaço, são a prioris projetados sobre o mundo para que possamos apreendê-lo, mas é necessária a distinção entre essas categorias do sujeito e as características do objeto sobre as quais elas se projetam: os objetos podem existir fora do tempo e do espaço, mas estes não podem prescindir daqueles (Kant, 1991). Os mecanismos de adaptação humana para a compreensão do real são distinguidos por Kant dos objetos apreendidos. De forma similar, a experiência possibilita-nos distinguir entre o que o objeto é e o que desejamos que ele seja.

Assim, de um lado, as categorias de compreensão do real são fundadas em um indivíduo que se diferencia através delas e, de outro lado, a estranheza frente ao real se funda na crescente objetivação da realidade que despossui o sujeito. Um se afasta e é afastado do outro. A angústia suscitada por esta separação que é real leva os indivíduos a compreender o mundo por categorias que pervertem o seu sentido. É porque os indivíduos não podem se reconhecer no mundo que eles são levados a tentar torná-lo familiar, deturpando-o. É o processo de infantilização social que não nos permite tentar compreender o mundo como um outro que, além de ser fonte de satisfações, é também fonte de sofrimentos. Os "formadores de opinião" e a Pedagogia que reduzem o conhecimento às capacidades e motivações do indivíduo para conhecer os fenômenos, ao invés de apresentá-lo como passível de ser entendido por todos, reduzem-no às características do indivíduo, colaborando com aquele processo. Desde a infância, a criança é levada a se defender da angústia causada por um mundo ameaçador através de explicações ilusórias, reduzindo tudo a elas (Freud, 1981). Se não é possível perceber a angústia, não é possível conviver com o estranho.

Trabalhar o real segundo a razão (a frase de Hegel citada por Moscovici) não é reduzir o real aos desejos ou a atitudes individuais ou grupais, mas torná-lo racional, ou seja, em conformidade com aquilo que o objeto deve ser, e não com o que se deseja que ele seja. A razão, embora subjetiva, permite ao homem se objetivar, através de sua objetivação do/no mundo. A incompreensão que o autor demonstra da citação de Hegel é iluminada pelo que diz sobre o preconceito:

Os preconceitos raciais e sociais, por exemplo, jamais estão manifestamente isolados, eles assentam num fundo de sistemas, de raciocínio de linguagens, no tocante à natureza biológica e social do homem, suas relações com o mundo. Esses sistemas são constantemente interligados, comunicados entre gerações e classes, e os que são objeto desses preconceitos vêem-se mais ou menos coagidos a entrar no molde preparado e a adotar uma atitude conformista. De modo que retomando a fórmula de Hegel, se tudo o que é racional é real, isso deve-se ao fato de o "real"— a mulher, o negro, o pobre etc. — ter sido trabalhado para torná-lo conforme ao "racional" (Moscovici, 1978, p.49).

Não há na citação nenhuma menção à deturpação do real causada pela desrazão social vinculada ao preconceito, e o conformismo atribuído aos que são vítimas dele é menos um objeto que se amolda às categorias que lhes impõe, ou seja, uma atitude passiva, do que a reação frente a ameaça. A mulher, o negro, o pobre não são trabalhados para que venham a se tornar o que são, da forma que podem ser apreendidos pela razão, mas para que sejam desvirtuados em função da ameaça que representam no nível imaginário, de forma similar ao que ocorreu com o anti-semitismo (ver Adorno & Horkheimer, 1985). Aquilo que é percebido como o "real" não o é, e aquilo que é chamado de razão é o seu oposto, produzido pelo exagero que despossui o objeto. Este é despossuído quando não tem mais características próprias que permitam confrontá-lo com o sujeito lógico do pensamento.

A ciência moderna procede desta forma ao tratar todos os objetos da mesma forma, através de um mesmo método. O conceito de representação social procede também desta maneira por não distinguir o objeto daquilo que é representado. Assim, à indiferenciação do sujeito que não consegue perceber o objeto como distinto de si une-se a indiferenciação dos objetos apreendidos entre si. Conceituar a representação social independentemente do que é representado é fortalecer a tendência ideológica presente na neutralidade científica para a qual todos os gatos são pardos (Cf. Horkheimer, 1983).

Moscovici, por dar ênfase ao processo e não ao que é processado (no duplo sentido deste termo) e ao seu resultado, coloca num mesmo plano a verdade e a ilusão, e o conceito passa a ter funções ideológicas. A vulgarização da Psicanálise, como de resto do saber "oficial", ou seja, a sua apreensão através do cotidiano, faz mais do que tornar o estranho familiar, deturpa o estranho. Reduzir o preconceito a esta vulgarização é não compreender, de um lado, o que o acarreta e, de outro lado, o que ele encobre. Além do que, como a própria Psicanálise mostrou, o estranho enquanto objeto de preconceito é bastante familiar.

Para esta o que é familiar, enquanto consciente e egóico, é estranho como segunda natureza, e o que é estranho é aquilo que é negado no próprio indivíduo. Mas esta negação se estende, já em Freud, para a cultura produtora da segunda natureza e para a espécie. A cultura é constituída como expressão da natureza humana, que entra em conflito com a natureza. O conflito individual internalizado como conflito natureza-cultura funda o indivíduo de tal forma que é pela contraposição indivíduo-cultura que se estabelece a possibilidade de uma compreensão simbólica do real. A representação social como um conteúdo misto nega aquela separação e a distinção entre a verdade do discurso psíquico e a verdade do discurso social. Se esta distinção não é passível de ser ontologizada, ela não deixa de ser fundante, e a sua superação não é possível na realidade que a fortalece, embora o conceito de representação social não vise tal superação, pois não percebe a história daquela cisão e auxilia a perpetuá-la ao dá-la como um fato perene.

A critica que Moscovici (1978) faz à Durkheim, por este não explicar a diversidade das representações sociais, mostra que se o termo representação social tem origem neste autor, o conceito não. A coletividade continua a fazer a mediação na diversidade de representações estabelecidas, decorridas da crescente divisão do trabalho, num mundo cada vez mais especializado, na diversificação maior do consumo que a propaganda não se cansa de alardear ao transformar o mesmo em outro, além do que, a diversidade não significa, por si só, singularidade. Se esta diversidade pode ser associada aos desejos que se colocam no lugar da realidade (Moscovici, 1978, p.52). tampouco estes desejos configuram a individualidade. A coerção social que se dá pela satisfação de desejos infantis é típica de nossa época (Marcuse, 1981), embora a angústia persista. Se a individualidade não se constitui através da totalidade, ela se torna metafísica, o que não significa que as duas sejam inseparáveis.

Um outro trecho de Moscovici traz de forma explícita o ideal do indivíduo:

Entretanto, eles revelam-nos que os indivíduos, em sua vida cotidiana, não são apenas essas máquinas passivas para obedecer os aparelhos, registrar imagens e reagir às estimulações exteriores, em que os quis transformar uma Psicologia Social sumária, reduzida a recolher opiniões e imagens. Pelo contrário, eles possuem o frescor da imaginação e o desejo de dar um sentido à sociedade e ao universo a que pertencem (1978, p.56).

Sem dúvida, o indivíduo não deve ser reduzido a mera recepção e reação mimética e deve reaver a imaginação que lhe permita compreender o real; no entanto, é a adaptação exigida em nossos dias que reduz o indivíduo a quase um autômato e não a Psicologia Social que recolhe as suas opiniões e imagens; e dar um sentido a uma sociedade que perdeu o seu sentido é pedir por uma imaginação alucinatória, e não por uma imaginação que permita reencontrá-lo. O que permite reencontrar o sentido perdido é a compreensão de que a sociedade é um produto humano que deveria propiciar a diversidade humana, mas que, no entanto, lhe serve como obstáculo. Buscar este sentido na história é tentar tornar o real racional. Tal compreensão precisa da imaginação reflexiva do real para que tanto este como o desejo individual possam ter o seu lugar.

O contraste entre a representação social da Psicanálise e o que a Psicanálise é aponta para a preservação do objeto, mas que é diluída tão logo pede-se para a ciência adaptar-se às necessidades sociais e essas àquelas:

A fim de evitar esses efeitos indesejáveis, uma mudança de nível e de organização dos saberes, dos métodos intelectuais, no sentido anteriormente descrito, parece responder à necessidade de adaptar a ciência à sociedade e a sociedade à ciência, e às realidades que ela descobre (Moscovici, 1978, p.77-8).

Ora, a ciência e a sociedade não podem ter uma relação mutuamente adaptativa, pois, caso contrário, a primeira estaria subjugada à segunda e aos interesses mais fortes nela presentes, o seu compromisso com o real seria desvirtuado em função da opinião pública e a verdade nem sempre é compatível com os interesses sociais dominantes; seria sobrepor um cunho ideológico, fundado na maneira como os homens estão atualmente organizados e desenvolvidos, à ciência que se tornou ideológica, justamente por não se aperceber de seus limites sociais e tornar as suas descobertas a máscara do real. A ciência já é ideológica por se julgar independente das relações de produção; tentar relacioná-la aos interesses sociais, esquecendo-se que a sociedade não é uniforme e que a sua diversidade não é só contingente, mas estrutural, é desconhecer a sua primeira ideologia. Mas esta primeira ideologia ainda guarda relação com a verdade, por preservar uma pretensa autonomia inexistente, mas desejável em uma sociedade racional. Já a segunda ideologia, a ser dada pelos interesses sociais explícitos, nega até esta pretensão.

Que todos os indivíduos deveriam ter acesso ao saber da ciência, da filosofia e da arte, é um ideal iluminista que deve ser defendido, mas este acesso não deve ser feito pela redução daquele saber às necessidades imediatas. Além do que, estas últimas não representam necessariamente o que o indivíduo pode ser, mas o que se tornou.

Tal análise do conceito de representação social parece-nos coerente com as noções de sociedade e de ideologia que o autor expressa. A ideologia reduz-se a um sistema de metas ou justificativas de atos sem qualquer relação com a sua produção material e espiritual (Moscovici, 1978, p.77) e a sociedade é reduzida a critérios sócio-econômicos e a critérios profissionais (Moscovici, 1978, p.74). Isto explicaria porque Moscovici (1978) considera a representação social um: "(...) processo autônomo, que obedece a um bom número de exigências próprias do espírito humano, quando se defronta com os eventos de seu universo imediato (p.80)."

Explicaria também porque as suas perguntas — "Quem se representa?" e "Quem produz uma representação?" — não são primordialmente consideradas e associadas à outra pergunta: "Por que se produz uma representação?". Em primeiro lugar, uma representação do universo imediato só pode ser feita se for reduzida a mera reprodução, pois o imediato não pede reflexão, mas apenas constatação. Se não é considerada como reprodução é porque se associam a esta reprodução caracteres individuais e grupais que por si só pouco têm de autônomos, mas muito de autômatos, assim como as possibilidades de pensamento e de percepção atuais, que foram reduzidas a sua instrumentalização como forma de sobrevivência. Em segundo lugar, as respostas às duas primeiras questões revelariam os conflitos que explicariam porque se produz uma representação enquanto ideologia.

A representação social, sobretudo enquanto reação ao imediatamente dado, deveria antes ser criticada do que referendada. Se a teoria e o pensamento podem ter presença nessas representações é somente de forma pervertida, e não se deve deixar de criticar tal perversão. Se a opinião abriga em si a possibilidade da opinião individual endurecida (Adorno, 1969), o mesmo deve ocorrer com a representação, de forma que ela não pode ser entendida com neutralidade científica que a isente de ser adequada ou não ao objeto. Mas a crítica a esta isenção não deve ser somente epistemológica, mas calcada no fato de que o acesso ao pensamento e, portanto, ao objeto, é obstado por relações de poder.

O elogio de Moscovici à criação do universo consensual sobre o material fornecido pelo universo reificado (Sá, 1993), que pode ser inferido tanto no momento em que ressalta o caráter que transcende a reprodução, quanto na proposta de adequação da ciência à sociedade, desconsidera a própria relação sujeito-objeto necessária ao pensamento e, portanto, à verdade. Se, de um lado, o saber popular não pode ser desprezado, ele também não pode, a priori, ser tido como índice do real. Se, de fato, as pessoas agem em conformidade com o conceito de representação social, reduzindo o estranho ao familiar, através da objetivação e ancoragem (Sá, 1993), a realidade que permite que isto aconteça deve ser criticada, pois é sobre o pensar imediato que se dá no cotidiano que se configuram os movimentos totalitários (Adorno & Horkheimer, 1985); mesmo os movimentos não-totalitários que podem surgir deste cotidiano não devem ser apoiados de imediato, embora tenham um caráter humano, pois podem estar ocultando o seu contrário.

Pelo menos desde o Iluminismo, o pensamento e a experiência são as bases do saber que pretende emancipar o homem de um estado de minoridade; a representação que expresse uma experiência irrefletida é o seu oposto. Não deveria ser, portanto, "uma das tarefas da psicologia social (...) a de coletar tais representações e descrevê-las sistematicamente (...)" (Moscovici Apud Sá, 1993, p.43), mas, sim a de coletá-las e interpretá-las de acordo com a realidade que as promove, para que o seu significado possa ser refletido; o significado não só daquilo que é representado, mas da própria representação.

Se a representação social, enquanto objeto, marca o empobrecimento do pensamento e da experiência e o enfraquecimento do ideal de universalização da razão, à Psicologia Social resta a tarefa de desmistificar o conceito que a engloba, o qual não deixa de manter para si algo do próprio objeto que estuda.

Para que o estranho não tenha que ser subsumido às necessidades daquele que o torna familiar, este último deve procurar dar conta da própria estranheza que o impede de conhecer a si mesmo e ao outro.

 

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