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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.5 n.1-2 São Paulo  1994

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

O outro no trabalho: a mulher na indústria1

 

The "other" at work: woman in industry

 

 

Arakcy Martins Rodrigues

Instituto de Psicologia - USP

 

 


RESUMO

Este artigo analisa dados obtidos em cinco fábricas de tamanhos e ramos diferentes, levantados com o objetivo de revisitar as tarefas femininas depois da introdução de novos campos para as mulheres na indústria e novas tecnologias. Apesar de algumas regularidades encontradas (dicotomia produção-embalagem, apropriação masculina da tecnologia etc.), uma visão mais global impõe a conclusão de que, em relação à tarefa, existe uma busca da diferença e da inferioridade feminina, construída a partir da utilização dos recursos materiais e técnicos disponíveis em cada caso. Modelos teóricos sociológicos e psicanalíticos são evocados para explicar a produção social da alteridade no trabalho a partir do gênero, que se revela muito forte, confundindo-se mesmo, ao que parece, com o ato fundador da cultura de uma sociedade.

Descritores: Trabalho feminino. Diferenças sexuais humanas. Indústria


ABSTRACT

This paper analyses data obtained in five factories, of different sizes and activities, with the objective of revisiting women's tasks after the introduction of new spaces for women in industry and new technologies. Although some regularity was found (production-packing dicotomy and masculine appropriation of technology) a more extensive perspective enforces the conclusion that, as regards the task, in each case there is a search for the differences and for the inferiority of women. Sociological and psychoanlytic theoretical models are employed to explain the social production of alterity at work by gender, which seems very strong and may even be entangled in the act of foundation of a society's culture.

Index terms: Working women. Human females. Human sex differences. Industry.


 

 

Este artigo visa discutir o trabalho feminino a partir de duas perspectivas: na primeira, analisa a natureza das tarefas e postos de trabalho habitualmente atribuídos às mulheres e, na segunda, as representações que informaram as diretrizes e práticas da chefias de diferentes níveis hierárquicos, relacionados à diferenciação entre tarefas "masculinas" e tarefas "femininas".

Os dados apresentados foram coletados através de uma pesquisa qualitativa realizada em 1982 em cinco fábricas localizadas na Grande São Paulo. Foram escolhidas, sem nenhuma pretensão de representatividade, empresas bastante diversificadas em termos de tamanho, tipo e estágio de desenvolvimento tecnológico, ramo e localização (bairro), que empregavam mulheres, e homens2 . As empresas serão aqui denominadas segundo seu ramo: AF — Artefatos de Feltro; IFB — Indústria Farmacêutica Brasileira; MCI — Multinacional de Canetas e Isqueiros; PEC — Perfumaria e Cosméticos; e APC Artefatos de Papel e Cadernos3 .

 

As tarefas - clivagens no interior de uma empresa

Em nenhuma das indústrias investigadas encontramos homens e mulheres realizando exatamente a mesma tarefa dentro da fábrica4. Em cada unidade industrial havia uma rígida fronteira invisível separando as tarefas "masculinas" e as "femininas", coisas que "as mulheres fazem". No entanto, como pudemos observar, essa separação entre tarefas que seriam mais adequadas às mulheres, quer dizer, tarefas que as mulheres "sabem fazer melhor do que os homens", só é válida para o interior de uma mesma empresa, de vez que uma tarefa tida aqui como típica ou exclusivamente feminina é alhures alocada a homens.

Não seria necessário insistir no fato de que essa separação é muito mais antiga e que não existe apenas na organização industrial do trabalho. A Antropologia aponta uma clivagem semelhante em estudos de sociedades primitivas. Cada grupo possui sua divisão sexual do trabalho. Embora possamos encontrar grandes contraste entre trabalhos masculinos e femininos de um para outro grupo, dentro de cada um deles a clivagem é um fato irredutível.

Gubbels (1967) faz essa associação entre os achados antropológicos e o trabalho feminino em nossa sociedade, lembrando Mead (1971): em cada sociedade, a "fronteira" entre o masculino e o feminino passa num lugar diferente. Também as justificativas para explicar o porquê das diferenças de gênero variam de uma para outra. Entretanto, as diferenças existem em todas as sociedades.

Ademais, a divisão sexual do trabalho é quase sempre a primeira forma de organização do grupo (Moscovici, 1972), sendo instituída tão precocemente que se confunde com o ato fundador de uma sociedade.

A apreensão das oposições básicas — e a dos princípios que as regem — poderia nos poupar de construir longas listas de tarefas masculinas e femininas que, em si mesmas, estariam revelando muito pouco.

Depois de construir um quadro bastante detalhado arrolando tarefas femininas e masculinas, Bourdieu (1980) propõe, concluindo seu estudo sobre os Kabyla:

Podemos explicar a distribuição das atividades entre os sexos combinando três oposições cardinais: a oposição entre o movimento para dentro (e, secundariamente, para baixo) e o movimento para fora (ou para o alto); a oposição entre o úmido e o seco; a oposição entre as ações contínuas, que visam fazer durar e gerar os contrários reunidos, e as ações breves e descontínuas, que visam unir os contrários ou separar os contrários reunidos (p.457).

Evidentemente, princípios gerais foram propostos pelos estudiosos para explicar a divisão sexual do trabalho industrial: a oposição pesado-leve, o trabalho feminino como sendo sempre, de alguma forma, continuação do trabalho doméstico, o duro e o mole, a apropriação masculina da tecnologia etc.

Entretanto, talvez ainda estejamos na busca das oposiçoes básicas de um nível mais alto de abstração, que possam ser transpostas de um estudo empírico para outro e de um estágio de avanço tecnológico para outro.

Por essas e outras razões, como, por exemplo, a total impossibilidade de pensar o trabalho industrial feminino como continuação das tarefas domésticas, depois da entrada vigorosa da mão-de-obra feminina em novos setores industriais (como a eletroeletrônica), tivemos, no presente estudo, a clara intenção de encontrar o menor número possível de oposiçoes básicas por detrás das diferenças empiricamente constatáveis.

 

As tarefas "femininas"

Não foi fácil, dada a diversidade encontrada, discriminar os traços comuns das tarefas desempenhadas por mulheres no conjunto dos casos estudados. Nem mesmo a questão do uso da força física se comportava conforme o esperado, embora fosse um argumento enfaticamente evocado nas fábricas onde as mulheres não faziam nenhum trabalho pesado. Por exemplo, na MCI a encarregada da seção de montagem do corpo da caneta (apesar da presença do chefe do Departamento de Pessoal durante a entrevista), esclareceu ao entrevistador que a questão do "trabalho pesado" não era exatamente como os seus chefes haviam descrito:

É, mas nós temos as meninas que fazem... não é tão delicado assim, você já foi lá?... Tem máquina que não é tão delicada. Tem uns serviços que são delicados, outros que não, né? Seria até serviço para homem, mas eles dizem que isso é... que deve ser para mulher. Então tem serviço que eu acho que deveria ser para o homem fazer porque é um pouco pesado. Você vai na seção depois e vê.

Em todas as visitas que fizemos posteriormente a seu setor, essa supervisora não estava. Mas foi possível compreender que ela se referia principalmente aos carrinhos muitos pesados empurrados pelas mulheres, cheios de caixas com canetas. Não descobrimos quais as máquinas que "não são tão delicadas" mencionadas em sua entrevista.

Muito comumente, existe uma diferenciação no tocante ao grau de mecanização da tarefa. Na maioria das vezes, as mulheres não lidam com máquinas, ou não estão diante das mais automatizadas. As "proezas" da máquina se somam à imagem masculina, engrandecendo-a ainda mais.

Hirata e Rogerat (1988) apontam a "invisibilidade" das mulheres quando se trata do tema "tecnologia e divisão do trabalho" e definem uma "apropriação masculina da tecnologia". Essas pesquisadoras analisam o impacto do desenvolvimento tecnológico em diversos setores de atividade e concluem:

Enfim, se os movimentos de desqualifícação consecutivos à introdução de novas tecnologias estão longe de ser lineares — e mesmo que possamos contestá-los — a análise desses ramos industriais indica que eles se comportam de maneira sensivelmente diferente, se se consideram os efeitos que têm sobre a mão-de-obra masculina e feminina; e a divisão do trabalho — atual e passada — segundo os sexos nesses ramos é um viés particularmente heurístico para o conhecimento dos "efeitos" sobre a qualificação das novas tecnologias. Todo estudo dessa questão nos ramos mistos, que não leve em conta a variável sexo, pode aliás ser muito discutível, na medida mesmo em que as conseqüências das inovações técnicas podem ser opostas... para as mulheres e os homens (p. 193).

E indiscutível, como já afirmamos, a presença dessa "apropriação masculina" da tecnologia. Entretanto, mesmo esse fator, embora muitas vezes construído e cultivado no mundo interno da fábrica, encontrou exceção entre o reduzido número de casos estudados. Assim como o avanço tecnológico não pode ser pensado fora de um campo de relações de força — e devemos estar atentos para os casos em que ele desqualifica postos anteriormente qualificados (e os feminiza), ao mesmo tempo em que qualifica postos anteriormente desqualificados (e os masculiniza) — a própria tecnologia e seus avanços devem talvez ser pensados como componentes de um campo mais amplo, e sujeitos à lógica desse.

Referimo-nos a um caso em que não pudemos explicar a divisão sexual das tarefas de produção através de apropriação masculina da tecnologia e tivemos que reconhecer um elemento ainda mais dotado de prestígio e legitimidade do que a qualificação técnica. É o caso do que encontramos na IFB, onde apenas mulheres se ocupavam das duas máquinas mais sofisticadas: umas delas procedia à embalagem de comprimidos, num sistema de alumínio de um lado e plástico em relevo de outro; a outra operária operava a máquina que enchia e fechava as ampolas de injeção. Nessa mesma fábrica, homens estavam alocados numa tarefa muito pouco mecanizada, que consistia em encher cápsulas. Esses dados contrariam tudo o que parece bastante claro a respeito da questão tecnológica nas outras indústrias estudadas. Depois de muitas visitas a todos os setores produtivos da IFB, apareceu o "divisor de águas" entre o masculino e o feminino nessa fábrica: as mulheres só lidavam com embalagem, mesmo as mais sofisticadas e as que eram processadas nas máquinas mais modernas, e só os homens lidavam com o produto. A diferenciação entre produto e embalagem era difícil de ser feita em alguns casos, como o da capa plástica que cobre as cápsulas; finalmente pudemos perceber que tudo aquilo que ia ser ingerido pelo usuário era tocado pelos homens, mesmo que exigisse tarefas simples, diante de máquinas simples; e tudo o que iria ser jogado fora (ampola de injeção, embalagem de comprimido) estava a cargo das mulheres, mesmo nos casos em que o grau de mecanização fosse alto e a máquina relativamente sofisticada. Revisitando a fábrica depois dessa "descoberta", não encontramos exceção alguma a esse critério em todo o setor produtivo da IFB.

Nesse caso, parece estar presente um fator de legitimidade ainda mais forte que a apropriação tecnológica: em se tratando de remédios, o que realmente atua, cura, é feito pelo homem. Esse é o critério.

O nível de mecanização parece fazer parte, com raras exceções, desse critério, embora possa estar ausente. O mais importante é que, uma vez instituído um critério (tácito), ele não será transgredido em todo o universo de uma mesma fábrica.

Evidentemente, ao critério que preside à clivagem estão sempre associados significados, e esses é que devem ser buscados. Uma listagem de tarefas "femininas" e "masculinas" seria de muito pouca ajuda, devido às reformulações e "correções" que cada universo cultural de cada unidade produtiva deve forçosamente realizar, em função da realidade física de que dispõe.

No conjunto de significados, a minimização ou invisibilização da contribuição feminina ocupa lugar predominante, mas não único. Em torno desse traço fundamental, o da "minoridade" feminina, acrescentam-se os demais atributos femininos, que devem estar representados na tarefa. Na MCI, a grande divisão se dava entre "metais" e "plásticos". Os homens se ocupavam dos metais, onde o critério de mecanização — o torno — está presente; a minimização do trabalho feminino inclui um mecanismo de nomeação interessante: o tubo da caneta é chamado de "embalagem". O preenchimento da tinta no tubo plástico é feito por uma máquina relativamente complexa, operada por mulheres, mas a grande divisão conteúdo vs. embalagem e a divisão metais vs. plásticos encobre esse fato. A própria divisão metais — plásticos parece estar subordinada à divisão produto — embalagem: a tampa plástica é fabricada por homens e não é considerada embalagem; todos a chamam de "tampinha"; parece gozar de estatuto de "coisa", enquanto o tubo plástico é apenas "embalagem de coisa". Nesses casos, a invisibilização da máquina operada pelas mulheres e do produto transformado por elas está a serviço da minimização da contribuição feminina segundo critérios de classificação e de importância do produto, construídos segundo as imposições do sentido que se quer atribuir aos elementos objetivos disponíveis. A mulher está ou produzindo a embalagem ou embalando o produto. Mas nessa configuração aparecem, além da inferioridade, outros traços "femininos" que já encontramos atribuídos à mulher no universo doméstico; a dicotomia conteúdo — embalagem remete às atividades e preocupações consideradas supérfluas (próximas de desnecessárias) no âmbito doméstico5 e social6.

Outra questão presente nas discussões sobre divisão sexual do trabalho se refere à articulação entre a esfera produtiva e a reprodutiva.

Inicialmente, essa articulação foi pensada em termos de um prolongamento das atividades domésticas da mulher no mundo do trabalho: educação, indústrias têxteis de vestuário e indústrias alimentícias eram os redutos femininos no mercado formal de trabalho. Stolcke (1983) Apud Bruschini (1985, p.48) sugeria que "a experiência física do trabalho doméstico as predispõe para trabalhos que exigem mais destreza e paciência na indústria". Kergoat (1982) assinalava:

os empregos femininos são freqüentemente uma prolongação das tarefas domésticas: serviços, indústrias agroalimentícias, confecção (...); as tarefas femininas assalariadas se assemelham em muitos aspectos às tarefas domésticas (...); quanto mais o trabalho assalariado se assemelha ao trabalho doméstico, por exemplo limpeza da casa, mais ele é desvalorizado, menos ele é remunerado (p 15).

Até mesmo em relação ao trabalho feminino altamente qualificado, de nível superior, a idéia desse "prolongamento" do universo doméstico prevalecia. Num estudo sobre as engenharias, Peslouan (1974, p.51), ao tentar explicar a porcentagem maior de mulheres na Engenharia Química, entre as diversas especialidades em Engenharia, sugere que esse fato está ligado a uma certa associação entre química e preparo de alimentos, tarefa tipicamente feminina no âmbito doméstico.

Mais tarde, com a entrada maciça das mulheres nos ramos "modernos" como eletrônica, siderurgia etc., os estudiosos do assunto foram levados a uma revisão desse tipo de explicação: não só as novas tarefas femininas na indústria nada tinham a ver com a esfera doméstica, como as próprias atividades que se realizam em casa são feitas de uma maneira muito diferente daquela vigente na fabrica (Pena, 1981).

A associação feita por Kergoat entre o trabalho doméstico e o industrial em outro trecho de seu trabalho (1982, p.55-6) nos parece muito esclarecedora: a aparente não-qualificação feminina, as tarefas que a mulher pretensamente realiza graças à sua "natureza feminina" são, de fato, habilidades adquiridas ao longo de toda a sua vida.

Como se as meninas, pela sua educação específica de futuras reprodutoras, e mais tarde a jovem, pela aprendizagem de um oficio tipo costura, enfim a jovem mulher, pela passagem numa fábrica de confecção, não tivesse adquirido a agilidade necessária, a destreza manual, a minúcia, a rapidez necessárias para dominar esses postos de trabalho. Não há, portanto, nenhuma necessidade de levá-las em conta no quadro de classificação ou no cálculo do salário.

Em outro trabalho (1987), a autora sintetiza:

As operárias não são operárias não-qualificadas ou trabalhadoras manuais porque são malformadas pela escola, mas porque são bem formadas pela totalidade do trabalho reprodutivo (p.84).

Segundo Le Doaré (1987), "é justamente explorando o caráter tradicionalmente desvalorizado do trabalho feminino que o capital pode negar uma qualificação real" (p.58).

Tudo o que pudemos captar no estudo empírico das cinco empresas estudadas nos leva a concordar com a existência de uma qualificação feminina, produto de um longo treino ao longo de toda uma vida, que é invisibilizada no contexto do trabalho remunerado.

Como isso não aparece no quotidiano da fábrica? Em primeiro lugar, porque não são encontráveis homens e mulheres executando a mesma tarefa. A preocupação em escolher fábricas mistas é importante, mas não porque iremos encontrar nelas homens e mulheres executando a mesma tarefa com classificações de cargo diferentes, ou salários desiguais. Mas como o que é "feminino" aqui pode ser "masculino" alhures, são os números agregados, nas estatísticas ou em trabalhos que estudam os diversos setores industriais, que apontam a manipulação dos critérios de classificação e as desigualdades salariais conforme o gênero, entre ocupantes dos mesmo cargos.

Em segundo lugar, porque todas as mulheres executam bem as tarefas para as quais o treinamento para futuras donas-de-casa as dotou. Esse fato torna muito fácil o trabalho de "naturalização" dessas habilidades. Quanto há tentativas de colocar homens nesses cargos, eles não os aceitam ou não os realizam a contento, o que reforça a idéia de que o homem, "por natureza", é avesso ao seu desempenho.

A gradativa perda de uma cultura doméstica, cujos prenúncios já podemos verificar nas gerações de mulheres mais jovens, talvez venha a pôr em xeque, no futuro, toda a manipulação do trabalho feminino e suas "explicações" naturalistas.

Mas a articulação entre produção-reprodução, embora com alguns de seus aspectos bem delineados pelos especialistas contemporâneos, está longe, em nossa opinião, de constituir um corpo sistemático de explicações coerentes.

Se o treinamento doméstico, como vimos, é imprescindível à obtenção das habilidades requeridas por certos postos de trabalho em certos setores industriais, a mesma evidência não está presente em muitas outras afirmações (que já se tornaram estereótipos) que estão na moda sobre o trabalho feminino na indústria.

Uma das teses mais inadequadas, a nosso ver (e que temos lido e ouvido freqüentemente), refere-se à semelhança entre o trabalho doméstico da dona-de-casa e o trabalho tipicamente feminino na fábrica. Chega-se, com freqüência, à asserção de que o trabalho doméstico é igual ao trabalho taylorizado da fábrica, uma vez que é monótono, repetitivo (deve-se realizá-lo todos os dias), solitário, sujeito a prazos etc. Na nossa opinião, essa idéia peca por vários erros. O trabalho doméstico é repleto de variâncias, exige um replanejamento a cada momento (um telefone que toque, uma campainha, altera tudo. Se algum membro da família cai doente, todas as prioridades têm que ser reordenadas etc.); a ordem de prioridades é totalmente definida pela executante da tarefa, assim como o processo de trabalho e os instrumentos utilizados.

O argumento segundo o qual todos os horários são definidos em função dos outros membros da família tampouco assimila o trabalho doméstico à tarefa sujeita aos "tempos" de taylorismo. Aqui (na organização científica do trabalho) todos os minutos são preenchidos, no mesmo ritmo: cada movimento é especificado no Departamento de Planejamento. O tempo no sentido de "prazo de entrega", isto é, um objetivo colocado para o término da tarefa (seja ele em função das necessidades da própria executante ou das de outro membro da família) existia, obviamente, no trabalho artesanal e no putting-out system, no qual todos reconhecem que o processo produtivo não havia sido expropriado do executante da tarefa.

Referindo-se ao trabalho artesanal, pré-taylorizado, diz Dejours (1987):

A organização do trabalho, concebida por um serviço especializado da empresa, estranho aos trabalhadores, choca-se frontalmente com a vida mental e, mais precisamente, com a esfera das aspirações, das motivações e dos desejos. No trabalho artesanal que precedia a organização científica e, ainda hoje, rege as tarefas muito qualificadas, uma parte da organização do trabalho provém do próprio executor. A organização temporal do trabalho, a escolha das técnicas operatórias, os instrumentos e os materiais empregados permitem ao trabalhador, dentro de certos limites, é claro, adaptar o trabalho às suas aspirações e às suas competências. Em termos de economia psíquica, esta adaptação espontânea do trabalho ao homem corresponde à procura, à descoberta, ao emprego e experimentação de um compromisso entre os desejos e a realidade. Em tais condições, podemos perceber um movimento consciente de luta contra a insatisfação ou contra a indignidade, a inutilidade, a desqualificação e a depressão, graças aos privilégios de uma organização do trabalho deixada, em grande parte, ao discernimento do trabalhador. Num trabalho rigidamente organizado, mesmo que ele não for muito dividido, nenhuma adaptação do trabalho à personalidade é possível (p.51-2).

A "simultaneidade de tarefas heterogêneas para executar, típica do trabalho doméstico", é apontada por Hirata e Rogerat (1988) como aprendizagem necessária para as atividades do terciário, nas quais a presença da mulher é maciça, como as vendedoras de lojas. Poderíamos lembrar igualmente as secretárias "esposas de escritório", estudadas por Schvinger, Prado e Castro (1985).

Certos aspectos do trabalho doméstico explicam igualmente, para Hirata e Rogerat (1988, p.189), o emprego feminino em certos postos de trabalho automatizados: "capacidade de atenção e vigilância, associada a uma certa passividade".

Entretanto, dentro do próprio setor secundário, detectamos nesta pesquisa dois tipos básicos de atividade feminina: os não-taylorizáveis e os extremamente taylorizados. Assim, as mulheres ocupam as franjas do taylorismo: a) lá onde ele foi bem-sucedido (até excessivamente), gerando postos de trabalho que se assemelham às caricaturas criadas pelo cinema: total ausência de qualquer atividade mental voltada para a tarefa, ciclos de repetição que duram segundos, ausência de mecanização ou máquinas que requerem do trabalho humano apenas seu prolongamento, ritmo de trabalho não absorvido pelo equipamento — o que leva a necessidade de supervisão humana mais rígida -, posto de trabalho onde não há, por maior que seja o número de anos que se passe neles, a possibilidade alguma de aperfeiçoamento profissional, nenhuma promoção possível; b) nas tarefas não-taylorizáveis. Embora não muito complexos, chamaram-nos a atenção, nas cinco fábricas estudadas, certos postos de trabalho femininos onde um resultado, mesmo relativamente pequeno, depende inteiramente de uma única operária. Os casos mais notáveis são os dos "lacinhos", "colarinhos de renda" e "cartuchinhos" utilizados nas embalagens de luxo da PEC, e o caso da espiralização de cadernos na APC — ou, mais precisamente, a tarefa das operadoras dessas máquinas de espiralar.

Em ambos os casos, temos observações interessantes dos superiores:

Você já imaginou um homem fazendo um lacinho? Vai ficar horrível. Não sai lacinho. Só mulher sabe fazer o lacinho assim fofo, a rendinha também, fica lindo.

A máquina [de espiralização] é toda cheia de graxa, mas elas conseguem não sujar o papel, sai limpinho, se fosse homem ficaria tudo preto.

São tarefas onde o princípio taylorista — de parcelizar o trabalho da tal maneira que, mesmo ficando para cada trabalhador um fragmento mínimo, exeqüível sem nenhuma competência especial, o resultado final seja perfeito — não pode ser aplicado.

Obviamente, entre os cargos masculinos, mesmo em indústrias semi-automatizadas e automatizadas, existem aquelas em que uma habilidade muito especial, individual, é requerida. Por exemplo, a verificação manual da temperatura num certo estágio do processamento da borracha, o cargo de colorista nas indústrias de tinta, onde um homem especialmente sensível iguala as cores das tintas em processo tendo como referência um padrão etc.

Embora existam tais tarefas não-taylorizáveis para homens, no caso desses isso resulta numa valorização muito grande da tarefa e de seu executante, em termos de salário, prestígio, situação privilegiada de "insubstituibilidade" etc. Ao colocar uma mulher nesse tipo de tarefa, não se corre o risco de nenhuma dessas conseqüências.

Aliás, vista globalmente, isto é, levando em conta todos os setores de atividade, a inserção feminina no trabalho se dá com grande freqüência nesse tipo de tarefa. No comércio, a participação feminina se concentra exclusivamente entre as balconistas e vendedoras (Bruschini, 1985, p.42).

Como vimos, a variação, de uma indústria para outra, do tipo de tarefa delegada às mulheres, embora dificulte a possibilidade de encontrar um denominador comum entre as tarefas, reforça a hipótese que aponta as "franjas" da taylorização, ou seus pólos opostos, como o lugar por excelência da mulher no mercado de trabalho. Tal oposição básica parece explicar não só o que encontramos nas cinco fábricas estudadas, como as regularidades encontradas em outros setores.

 

Imagem da mulher na produção

Na seção anterior, a análise esteve concentrada no papel reservado às mulheres no processo produtivo, tal como o observamos nas cinco empresas estudadas. Agora tentaremos destacar os principais argumentos fornecidos pelas chefias das empresas para explicar os motivos pelos quais determinadas tarefas são atribuídas a mulheres, através da análise das respostas fornecidas pelos ocupantes dos diversos níveis hierárquicos da empresa para as quatro perguntas do roteiro.

Dois esclarecimentos se fazem necessários antes da análise do material levantado.

Numa das fábricas, a MCI, todas as entrevistas com as chefias intermediárias se deram na presença do chefe do Departamento de Pessoal, que chegou a intervir muitas vezes; em outra empresa, a IFB, o chefe geral de produção esteve presente em todas as entrevistas, com exceção da do diretor de laboratório e a da encarregada do Departamento de Pessoal.

Embora tivéssemos escolhido empresas onde a produção incluía tanto homens como mulheres, não pudemos captar as comparações, por parte das chefias intermediárias, entre homens e mulheres operárias, devido às fronteiras que já analisamos: fronteira de tarefa, de localização no espaço, de seções, de chefias. A quase totalidade dos supervisores entrevistados lida ou só com homens ou só com mulheres. Portanto, as avaliações comparativas da chefia direta não puderam aparecer.

Em nenhum dos casos a mão-de-obra foi mencionada nas respostas à primeira pergunta, sobre os principais problemas que o entrevistado tem enfrentado na empresa; na resposta à segunda pergunta ("Gostaria que Sr. me falasse sobre a mão-de-obra"), os respondentes de nível hierárquico mais alto só se referiam ao aspecto recrutamento da mão-de-obra. Quando solicitados a dissertar sobre outros lados da questão, diziam sempre que não havia problemas, porque contavam com chefias muito boas e, por isso, não tinham com que se preocupar. Aqui é interessante notar que se expropriam os trabalhadores até da decantada "docilidade" da mão-de-obra brasileira, atribuindo-se o bom andamento da fábrica, do ponto de vista dos recursos humanos da base, à competência de sua chefia. Os supervisores e os ocupantes de outros níveis mais próximos dos trabalhadores (encarregados etc.) respondiam a essa pergunta com um vago "tudo bem". O gênero não apareceu entre as "diferenças que existem no conjunto da mão-de-obra" (terceira pergunta). Na verdade, a análise a seguir se baseia nas respostas dadas à quarta pergunta ("Quais as diferenças entre a mão-de-obra masculina e a feminina? Fale um pouco sobre a mulher operária").

As explicações sobre a alocação de mulheres em certas tarefas é bastante confusa. Evidentemente, o argumento que está na ponta da língua das chefias é o da força física. O segundo argumento, inquestionável aliás, é o da proibição legal do trabalho noturno para as mulheres. Evidentemente, o capricho e a paciência da mulher são muitas vezes lembrados.

Mas para uma grande parte das tarefas esses argumentos não possuem poder explicativo. Aí aparecem as incoerências, as longas explanações um tanto sem sentido, às vezes um tom meigo e comovido ao falar de mulheres, como quando se fala de bichinhos, de criancinhas indefesas, ou de doentes, ou de flagelados... Freqüentemente, uma razão alegada é desmentida logo depois, como quando se afirma que trabalhos que exigem "inteligência" são atribuídos aos homens. Os trabalhos que não requerem "intelecto" são oferecidos às mulheres, mas não porque elas sejam burras. O trecho abaixo dá uma idéia da confusão reinante:

A mão-de-obra não-qualificada é um emprego para mulheres, não porque a mulher ganhe menos, porque ganha igual, mas é que na seção de embalagem, que tem muita gente, para fechar caixinhas, abrir caixinhas, pregar rótulos... e nesse serviço, enfim, que não requer nada de intelecto, a maioria é mulher, não é porque a mulher seja burra, não, é porque a mulher é mais aplicada, falta menos, trabalha mais, desvia menos a atenção do serviço... (Diretor-Proprietário, IFB).

A inteligência e um certo grau de escolaridade aparecem como atributos masculinos:

Nessa linha é sempre mulher, porque é um serviço leve, não é pesado, é um serviço que não depende de muita inteligência também, depende de força de vontade... (Supervisor da Linha de Aerosol, PEC).

O torno é prá homem, já que é um serviço de medição. Então precisa de um estudo de um ginásio qualquer, para conhecer o que é milímetro... (Chefe do Departamento de Pessoal, MCI).

As contradições abundam nesse discurso confuso. A mulher é mais cuidadosa, há quase um consenso em torno disso. Ao mesmo tempo, a alegação que se utiliza para o fato de ela não estar operando certas máquinas é a de que essas são perigosas, há risco de acidente, "se o operário se descuida perde o dedo".

É comum a pessoa inquirida transferir para outras instâncias a opção pela mão-de-obra feminina em alguma tarefa, ou generalizá-la, tornando-a imperativa, fugindo assim de uma explicação:

Isso nós copiamos da matriz... que toda a parte de metais, de peças metálicas, são de homens, é claro. (Diretor, MCI).

É um consenso geral. Pelo menos nas indústrias de perfumaria ou farmacêuticas, o número de mulheres é muito maior, em especial na linha de embalagem. (Gerente de Produção, PEC).

É, porque na linha de aerosol é sempre mais mulher que trabalha. Em todo lugar que eu trabalhei é sempre mais mulher. (Supervisor da linha de aerosol, PEC).

Numa certa passagem da entrevista com o diretor de planejamento e proprietário da APC, o entrevistador diz: "Você disse que em tarefas mais repetitivas você coloca a mulher"; imediatamente, e um tanto irritado, o entrevistado interrompe:

Não, eu não coloco. O sistema é que há muito tempo coloca, e a tentativa de fazer diferente tem se mostrado desastrosa...

O caso mais interessante de transferência da opção se verificou igualmente com o diretor de planejamento e proprietário da APC. Explicou a presença feminina em determinadas tarefas da seguinte maneira:

Primeiro: paciência. Segundo: às vezes o porte físico, não é? As máquinas... algumas máquinas são projetadas mesmo... elas são pequenas, tá? Eu não sei se o fabricante fez isso como erro de projeto, ou se, coincidentemente, porque ele sabia que mulheres é que operariam aquelas máquinas...

As desvantagens da mão-de-obra feminina parecem ser plenamente compensadas pelas vantagens. Muitos entrevistados se referem aos problemas de gravidez, de saúde em geral, à questão do cuidado dos filhos etc., colocando-os entretanto como um mal necessário, que não abala a necessidade de se ter mulheres naqueles cargos:

Na nossa embalagem, a mão-de-obra feminina é melhor que a masculina, porque são serviços, assim... delicados. Agora, a mulher traz uma série de problemas: intrigas, inveja, rusguinhas... isso aparece bastante... acho que mulher traz mais problema de casa para o trabalho, acho que bem mais que o homem... (Psicóloga, PEC).

Sendo mulher, essa psicóloga atribui os problemas apontados mais à classe social das operárias do que à "natureza feminina":

A mulher traz mais problema da casa para o trabalho, acho que porque, além de ser funcionária, ela tem os deveres da casa dela e não dá para separar, ainda mais com o nível cultural um pouco mais baixo, não separa mesmo... os problemas delas, também, são violentos, são sérios... é marido que bebe, está desempregado... problema de creche, não tem onde deixar o filho...

Muitas vezes, a explicação para a alocação de mulheres está fundamentada na impossibilidade de se colocarem homens nessas tarefas:

Eu não poderia, por exemplo, colocar numa manipulação, ou no transporte de produto, uma mulher. Então o homem aceita muito bem essa tarefa, agora ele jamais aceitaria, eventualmente a gente provoca isso, se eu tenho que colocar um homem no meio da linha, eu já vou tê-lo de nariz torcido, ele já vai ver essa operação e dizer: isso é coisa de mulher, eu não posso fazer isso, não me sinto bem fazendo... então cria realmente... é um tabu, sabe, o homem não se presta para uma linha de embalagem, de forma alguma. (Gerente de Produção, PEC)

Fizeram um teste à noite para só trabalhar homem, mas não deu certo. (Encarregada da Seleção de Pessoal, APC)

O nível de aspiração à promoção, muito mais elevado no homem, é outro fator impeditivo para sua alocação em certas tarefas:

O homem... eu acho que é por uma questão de aspiração... parece que a mulher brasileira, ela ainda é mais acomodada, o homem está sempre querendo sair. O homem está sempre trabalhando e olhando para a próxima função dele, e a mulher geralmente não... as aspirações dela são mais fora da empresa do que as do homem. (Diretor de Planejamento, APC)

Quando se trata das vantagens da mão-de-obra feminina, além da paciência, adaptação às tarefas monótonas e repetitivas, capacidade e "jeito" (natural) para certos trabalhos delicados, encontramos outras virtudes femininas que nos surpreenderam, uma vez que não são referidas, até onde temos conhecimento, em outras pesquisas sobre trabalho feminino. Incluem-se nesse caso: assiduidade, responsabilidade, honestidade, e até mesmo produtividade.

Esse fato reforça uma idéia que, muitas vezes, ao longo deste trabalho, nos ocorreu: pelo menos atualmente, a mulher não constitui, na indústria, um exército de reserva. Ao contrário, tem seu lugar, por mais inferiorizado que seja, onde é insubstituível. Acreditamos que, mesmo em momentos de desemprego masculino, não se cogita colocar homens em certos tipos de tarefa.

Por outro lado, comparado à mulher operária, o homem é muitas vezes considerado mais problemático:

Homem é malandro, né? O homem geralmente só quer moleza, então não tem condições, a gente arruma um cara para trabalhar um mês, dois meses ele trabalha bem, depois de um ano ele fala "eu estou bem, a firma não vai me mandar embora, porque eu sou bom lá e tal" e já... já não produz o que devia. (Chefe de Produção, AF).

Eu acho que trabalhar com mulheres é gostoso até. Porque com homens dá muito mais problema, porque homem é machão, algum problema que dá é com homem... (Supervisor do Departamento de Pessoal, AF).

Esse chefe chega a preferir a mulher casada:

Na nossa empresa nós temos um número de mulheres casadas muito maior que as solteiras... são pessoas, são mulheres que têm seus filhos e responsabilidades, né?... para cuidar deles, né? Então seria isso, a mulher, eu vejo um índice muito bom de produtividade nela, né?

Evidentemente, existem outros casos em que as solteiras são mais valorizadas, e até mesmo as menores:

Então, normalmente, eu dou preferência para o auxiliar, para esse tipo de pessoa que nunca trabalhou, que vem do interior e tal, pessoal novo que está começando, as meninas... as meninas, é muito fácil você manter uma que nunca trabalhou ai, que tem uma faixa de 14, 15, 16 anos, para você treinar é muito mais fácil do que pegar uma de 18, que já passou a oportunidade de treinamento, é mais difícil com esse pessoal. (Encarregado de Fábrica, APC).

Um diretor de planejamento, que é também proprietário, chegou a apontar as vantagens que existem no fato de as moças ficarem pensando no "príncipe encantado":

O homem está sempre se colocando numa posição de passageiro pela função [isto é, pensando em promoção]. E a mulher está se colocando numa posição de.. não definitiva também, porque elas estão sempre achando que vão casar; elas sabem que vão trabalhar depois de casar, mas elas acham o seguinte: "Olha, por enquanto não importa se estou fazendo isso ou aquilo, o fato é que existe na minha vida o antes e o depois do casamento..." isso é notório, esse tipo de aspiração... (Diretor de Planejamento-Proprietário, APC).

Dada a demarcação de uma fronteira entre o masculino e o feminino, rígida em cada empresa, embora intercambiável interempresas, qualquer explicação sobre o salário feminino se torna muito fácil:

se as mulheres estivessem nos cargos masculinos, ganhariam a mesma coisa. Na embalagem é um trabalho de fechar caixinha, pôr rótulo, nisso mulher é muito melhor do que homem, porque homem não gosta de fazer isso também, né?... Mas nem pense que elas estão lá porque ganham menos, porque o ordenado seria o mesmo... (Diretor-Proprietário, IFB).

Isso traz à tona o problema da qualificação-desqualificação, já apontado por outros autores (ver, principalmente, Kergoat, 1982). Mas tanto o salário como a qualificação são variáveis que só podem ser conhecidas através dos números agregados dos dados secundários, uma vez que, como já vimos, a demarcação entre feminino e masculino dentro de cada empresa invisibiliza, de certo modo, as diferenças salariais e a manipulação das classificações.

 

Conclusão

Que papel atribuir às diferenças de tarefa? Seriam elas conseqüência ou reflexo daquilo que ocorre primariamente na família, no que se refere à dominação masculina? Ou, bem ao contrário, poderíamos tomá-las como o fundamento primeiro de uma (re)construção — na fábrica — da dominação, e, conseqüentemente, passíveis de serem tomadas como um ponto de partida, cujos desdobramentos podem ser buscados?

Nesse caso, as semelhanças encontradas entre o que ocorre na fábrica e em qualquer outro locus (inclusive a família) não deveriam ser visualizadas como numa relação causal, mas numa relação de paralelismo. Se lembrarmos que, em cada fábrica, encontramos uma maneira de contrapor o masculino e o feminino, diríamos que qualquer lugar traz a potencialidade de servir como cenário, e todos os recursos materiais e humanos a de servirem para uma instrumentalização de algo incessantemente reiterado, que é próprio de um todo social e de todas as sociedades: a diferenciação sexual e a dominação masculina.

Diríamos ainda que nenhuma relação de poder se dá de uma vez por todas. Ela tem que ser reafirmada, ou reiterada, a cada momento, a cada situação. Tem que invadir todos os poros da situação vivida, infiltrar-se por toda parte. Assistimos quase a uma atualização, onde a mesma coisa deve ser repetida infinitamente. Para Foucault, falar de poder não é falar de uma propriedade, mas de uma estratégia, de disposições, de manobras. Não é atributo, mas relação; é o conjunto de relações de força que passa tanto pelas forças dominadas como pelas dominantes.

Nunca terminaríamos de arrolar as ações sexualmente diferenciadas de diferenciação sexual, que visam acentuar em cada um os sinais exteriores mais imediatamente conformes à definição social de sua identidade sexual, ou a encorajar as práticas que convêm a seu sexo, proibindo ou desencorajando as condutas impróprias, principalmente na relação com o outro sexo (Bourdieu, 1990, p.13-4).

Existem características que se estendem do trabalho doméstico para o fabril? Parece, antes, que encontramos, transpassando todas as esferas (família, sociedade, fabrica), o mesmo trabalho social: invisibilização do trabalho feminino, invisibilização da qualificação feminina, consagração da diferença sexual, aí incluída a superioridade masculina.

Essa última idéia — consagração da diferença, aí incluída a superioridade masculina — mereceria todo um trabalho dedicado apenas a ela, e que talvez já tenha sido esboçado no artigo de Zaltzman (1976) "Du sexe opposé ". Ela inicia seu trabalho com o seguinte texto, retirado de um livro de Botânica, sobre evolução e sexualidade das plantas:

Caro especialista — escreve um jardineiro amador numa revista botânica -, o Ruscus aculeatus que cresce no meu jardim nunca produziu baias vermelhas. Assim, eu não sei se se trata de um pé macho ou fêmea. O senhor poderia me ajudar a resolver meu problema? (p.183).

— Fizemos uma pesquisa junto aos horticultores para saber como esses vegetais se diferenciam. Parece que os produtores nunca se preocupam com o sexo dessas plantas. O mesmo ocorre com a maioria das espécie dióicas. Considera-se que elas são decorativas devido à sua folhagem. Nós lhe sugerimos, para determinar o sexo de seu Ruscus, plantar próximo a ele outro Ruscus, escolhido ao acaso na seu viveirista. Assim como ocorre com inúmeras outras árvores dióicas, só a presença de uma outra planta poderá revelar seu respectivo sexo; pela sua floração, se são do mesmo sexo, pela frutificação, se são de sexos opostos (p. 183).

A autora continua, depois de dar o exemplo de outra planta:

Portanto, o botânico não pode se pronunciar sem circunlóquios: no mundo vegetal, sem linguagem, sem inconsciente e sem fantasma, a determinação do sexo de uma planta e a atualização dos tempos sucessivos de sua evolução são inevitavelmente inseparáveis da presença de uma outra planta. A identidade genérica de uma planta viva e o ciclo completo que caracterizam essa identidade não dependem apenas de seu equipamento genético e biológico. A autodeterminação é impossível. A alteridade é uma condição necessária e prévia à identidade (p.184).

E mais adiante:

Cada sexo se constitui contra o outro e com aquilo que o outro constitui para ele. Cada um dos pólos se enriquece e se empobrece ao ritmo dos investimentos delegados ao outro pólo (p.193).

Do ponto de vista individual, o que explica o empenho com que cada um de nós se engaja nessa luta e procura seu lugar nessa ritualização que consagra a cada instante a diferença sexual? É ainda Zaltzman (1976) quem — na nossa opinião — melhor responde: "o inconsciente, a diferença dos sexos não tem status quo decisivo" (p. 186). E mais adiante:

Nada pode garantir um homem, ou uma mulher, contra o risco de uma "gagueira genital" (...) tempo e lugar atuais da angústia de castração, origem da força coercitiva que os impele a perseguir essa busca por representações estáveis, definitivas, radicalmente discriminatórias entre o masculino e o feminino. Entretanto, nada pode protegê-los de fato contra a mobilidade sempre possível de sua identidade sexual (...) As teorias sexuais inconscientes da idade adulta são as teorias que visam fixar essa permanência (p. 196).

Uma das questões principais que Du sexe opposé visa trazer à tona é o da produção relativamente escassa sobre as fantasias sexuais da fase genital, comparada à farta literatura sobre as fases pré-genitais do desenvolvimento sexual. Acreditamos que, do ponto de vista psicanalítico, são essas as fantasias presentes na fabrica, tanto simbolicamente como através de uma "verdadeira ação psicossomática" (Bourdieu, 1990, p. 14).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Uma outra versão, mais ampla, deste trabalho, encontra-se, sob o título "Lugar e imagem da mulher na indústria", em Albertina de Oliveira Costa e Cristina Bruschini, orgs., Uma Questão de gênero, Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos-São Paulo, Fundação Carlos Chagas, 1992. p.266-88.
2 A metodologia empregada na pesquisa consta como Anexo em "Lugar e Imagem da Mulher na Indústria" em Costa e Bruschini (1992, p.285-7).
3 A caracterização mais detalhada das empresas mencionadas pode ser encontrada em Costa e Bruschini (1992, p.266-8).
4 Encontramos homens e mulheres realizando a mesma tarefa apenas em postos de trabalho extremamente desqualificados: uma vez, em serviço de faxina (portanto, fora da produção); a segunda vez, na retirada de fiapos das rodelas de feltro na AF. Nos dois casos, esses eram os postos mais baixos da empresa.
5 Os maridos entrevistados em pesquisas anteriores, em abordagem domiciliar, utilizavam entre outros o argumento de que a contribuição econômica da esposa (salário ou outras rendas) era utilizada apenas na compra de bens supérfluos, em contraposição à sua própria contribuição, que incidia sobre o "básico". A dicotomia básico-excedente sofria, evidentemente, todos os tipos de manipulação. Mais de um marido referiu-se à compras de sapatos para as crianças como uma "mania da mulher". Num caso extremo, uni pai de família declarou que a mulher trabalhava, mas o básico estava por conta dele: um saco de arroz e outro de feijão por mês.
6 Goffman (1977) aponta a freqüência com que, nas fotos publicitárias, as mulheres tomam objetos entre as mãos: "Vemo-las tocando-os de leve, como se temessem que deles a elas possa passar uma corrente elétrica. Existe aí um toque ritualizado, que convém distinguir da variedade utilitária, aquela que toma, manipula e retém" (p.40).