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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.5 n.1-2 São Paulo  1994

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A subjetividade à luz de uma teoria de grupos

 

Subjectivity from the viewpoint of a group theory

 

 

Maria Inês Assumpção Fernandes

Instituto de Psicologia - USP

 

 


RESUMO

O propósito deste trabalho é refletir sobre a problemática referente à construção do sujeito na interação social A partir da apresentação dos pressupostos de uma Psicologia Social entrelaçada a uma teoria/técnica sobre os grupos, discutiremos a concepção de subjetivo que dela se depreende. Por intermédio e da própria problematizaçâo, a linha de pensamento que vai se concretizando procura instalar, no âmbito da Psicologia, a exigência de se considerar nuclear o papel determinante da experiência vincular social na constituição da subjetividade. Nessa perspectiva discutiremos o grupo como horizonte imediato da experiência e lugar privilegiado de investigação. Os "processos" psíquicos que definem a maneira de perceber o mundo e as condutas daí decorrentes são pensadas como produzidas a partir de duas ordens: a biológica e a histórico-social.

Descritores: Subjetividade. Grupos sociais. Interação social. Psicologia Social.


ABSTRACT

This paper deals with the problem of the construction of diate horizon of social experience and as an exceptional place for investigation. The psychic "process" that usubjectivity in social interaction. The group is discussed as the imenderlies the way the world is perceived, as well as the issuing behaviour, is originated by two orders of phenomena: the biological and the socio-historical.

Index terms: Subjectivity. Social groups. Social interaction. Social Psychology.


 

 

Abordar a temática da subjetividade nos anos 90 convida-nos inicialmente a sair de algumas categorizações, a burlar certos limites.

A crise mundial, com a tendência ao desaparecimento dos Estados Nacionais, à fragmentação política e com o retorno de ódios étnicos e religiosos nos anos 80, sinaliza constantes interações entre o político, o social, o econômico, o mass-mediatic, o religioso, o cotidiano, etc.

A crise do petróleo, na década de setenta, por exemplo, não pode ser pensada independentemente da existência de milhares de homens massacrados pela pirâmide social da força coletiva de trabalho. Tal situação dá origem a uma problemática que nos interpela e nos obriga a repensar as nossas "antigas" teorias. O indivíduo e o grupo, nesta perspectiva, encontram sua consistência funcional através do agenciamento — de componentes semióticos muito diversos, como afirma Guattari. Para dar conta deste tipo de fenômeno não é suficiente dizer, como se fazia há alguns anos, que "é necessário levar em conta o contexto, o implícito (...). E que as relações de força, as hierarquias e as mutações tecnológicas (...) fazem parte intrinsecamente dos 'agenciamentos' de enunciação" (Guattari, 1980, p.128).

Pela noção de agenciamento, mais ampla que a de estrutura, sistema e forma, busca-se dar conta de componentes heterogêneos, tanto de ordem biológica, quanto social, maquínica, gnoseológica, imaginária (Cf. Guattari & Rolnik, 1986, p.317).

Ora, os modos de produção, além do funcionamento no registro dos valores de troca, alcançariam um modo de controle sobre a subjetivação? Poderíamos então dizer que pelo eixo da sociedade capitalista passa uma tomada de poder sobre a subjetividade. A conseqüência dessa submissão é o

estreitamento do campo simbólico, pela redução dos valores à categoria das necessidades reais onde os sujeitos da modernidade ocidental parecem vivenciar as contradições sociais como meramente quantitativas (Calligaris, 1994).

Reivindicam-se bens, como se naturalmente daí se seguisse o alcance do estado de direito e a cidadania. Ora, a comida no prato, embora necessária, não é condição suficiente para o alcance da cidadania, pois a urgência exige uma redução do social ao individual. Calligaris diz que tal situação "reflete o estado de nosso individualismo, onde se evita todo recurso aos ideais (suspeitos, por serem sempre herdados), fundando nossa razão em um valor concreto" (Calligaris, 1994).

Assim como um privilégio não se universaliza criando direitos, tampouco a miséria poderia criá-los e exercê-los. Assim, na ausência de valores que orientem nossos atos, ficamos condenados a lutar pela subsistência e a conduzir nossa existência na direção da contabilização de perdas e danos. "A grande novidade do direito internacional é o direito da ingerência por ajuda humanitária (...) o humano se reduz ao humanitário desde que a significação se resuma à sobrevivência" (Calligaris, 1994 p.13).

Desconsideram-se as dissimulações ideológicas nessa tragédia da submissão e da dependência e. nosso destino torna-se a satisfação das necessidade básicas reduzidas à "felicidade privada" do alcance de bens. Pela infelicidade, somos "convidados" a lutar pelo ressarcimento dos danos concretamente sofridos. Pensamos assim recuperar nosso rosto na multidão. Ao lutar pelos "direitos" e eliminar a "hierarquia", desfiguramo-nos, perdemos a diferença e o diálogo de valores.

Voltamos à hegemonia do olhar sobre a escuta e não mais se solicita o trabalho da memória. A lembrança, diluída pelo esforço dispendido no imediatamente ocorrido, não é buscada, mas evitada. Não há tempo. Inventa-se um fato e congela-se a ação, pede-se indenização. Já,

a troca social se resume assim em uma contabilidade de perdas e danos reais (...): Criam-se mecanismos adequados... e a contabilidade de culpas e de suas compensações torna-se o princípio regulador do espaço social (Calligaris, 1994, p.13).

Pensamento semelhante encontra-se nas análises de Cristopher Lasch sobre a vida americana, em A Cultura do Narcisismo. Ele identifica nas relações sociais não mais conflitos de significações ou diálogo de valores, porém uma rede de danos e indenizações concretas, e isto numa sociedade onde resta à coisa pública algum valor (Lasch, 1983).

O horror à velhice, o culto do esporte, a intensificação da guerra entre os sexos, a trivialização das relações pessoais, segundo Lasch, são sinais que denunciam um sistema de controle rigoroso, sob a aparência de permissão e direito à palavra aos cidadãos. Multiplicam-se os "sistemas de ajuda" e assim se evita o confronto direto e a evidência de contradições. Como conseqüência temos a redução do político ao humanitário: a necessidade urgente de enfrentar a fome crônica e a miséria material não permite pensar um projeto social que mobilize uma transformação das relações sociais. Como resgatar o símbolo, escapar da banalidade do factual e alcançar o homem em sua integralidade? Qual o caminho para se escapar dessa morte silenciosa que nos atinge e faz sucumbir nossa criatividade? Certamente não será deixando de lutar contra a fome. Trata-se de reencontrar, como revela Bachelard em A intuição do Instante, os termos gerais do processo de criação,

quando uma alma sensível e cultivada recorda os esforços que realizou para traçar, segundo seu próprio destino intelectual, os lineamentos da razão; quando estuda, valendo-se da memória, a história de sua própria cultura ela se dá conta de que na base das certezas íntimas permanece sempre a lembrança de uma sábia ignorância essencial (Bachelard, Apud Pichon-Rivière, 1986, p.97).

Pela poesia, buscará desvendar alguns mistérios, no anseio de identificar o momento da síntese fundadora: o poema deve dar uma visão do universo e o segredo de uma alma:

Se simplesmente segue o tempo da vida, a poesia é menos que a vida; somente pode ser mais se a imobilizar, vivendo em seu lugar a dialética das alegrias e pesares. É o princípio de uma simultaneidade essencial, na qual o mais disperso conquista unidade (Garcia, 1989, p.9).

Assim, o criar se dá sobre um eixo diferenciado daquele no qual a vida escorre superficialmente enquanto realidade. Ou seja, o "tempo vertical" do poético recusa o tempo horizontal organizado enquanto duração.

A realidade, na vigília, é um motivo de ordenação. Obriga a vista a esperar pela fala, o que resulta em pensamentos objetivamente coerentes. Assim, fala-se o que se vê e se vê o que se fala.

No sonho, ao contrário, imagem recorrente, é a desordenação dos tempos que permitirá os deslocamentos para fora do campo da realidade cotidiana, para se mergulhar nos mistérios do oculto, fonte de criação.

É sobre o movimento de reordenação desse material desalinhado, do tempo perpendicular ao tempo transitivo, ao tempo do mundo e da matéria, que se pode dar a consolidação da atividade que institui o sujeito já desembaraçado e não mais entregue ao arrebatamento do tempo transitivo.

Ora, a partir deste caminho perguntamo-nos: há lugar neste panorama para se atribuir ao indivíduo a produção de uma subjetividade singular? Qual o trajeto de uma Psicologia Social e de uma "teoria de grupos", no sentido de contribuir para a compreensão da constituição do sujeito psíquico? Nestes termos os pequenos grupos constituiriam lugares privilegiados de ressignificação, no sentido que ora utilizamos? Algumas interrogações postas pelos filósofos frankfurtianos da Teoria Crítica nos auxiliam na investigação e compreensão dos chamados fatos sociais, atribuindo à cultura uma dimensão fundamental no movimento histórico bem como na preservação e reconhecimento da individualidade.

Os estudos sobre a relação entre personalidade e ideologia vinham, desde o início do século, encadeando essa discussão. A Teoria Crítica voltada para a compreensão do papel das forças de esquerda na Alemanha durante a I Guerra, da Revolução Russa, do Nazismo e da chamada "sociedade administrada", mostra o esforço em decifrar o

fracasso da revolução proletária ante a ditadura nazi-fascista e depois face ao milagre econômico — produto de um capitalismo sedimentado — que determinaria o abandono das esperanças revolucionárias e as análises das tendências à total administração na sociedade moderna (Matos, 1989, p.307).

A perplexidade, decorrente da incompreensão de tais acontecimentos, veio trazer "a subjetividade à tona, como tema de reflexão política e pesquisa científica" (Carone, 1991, p.112). A Psicologia de Massas do Fascismo, de Reich, e A Personalidade Autoritária, de Adorno, são, obras que expressam a intensa preocupação com o destino do sujeito e da sociedade, lida a partir de uma abordagem histórico-materialista.

A esfera psíquica assim abordada passa a "espelhar a sua anulação frente à irracionalidade das forças 'objetivas'". Nessa perspectiva,

a história do indivíduo e a história da Cultura estão interligadas entre si e com as relações de produção, o que significa dizer que as alterações sociais que implicam em maior controle da natureza acarretam também alterações de personalidade (Crochík, 1990, p.143).

De acordo com diversos autores, Reich foi pioneiro ao analisar a relação entre configuração psíquica e estrutura social. Começou então a abertura de um diálogo entre Freud e um Marx revisitado: "... Sem negar a determinação externa ou societária da ideologia ..." Reich aponta para uma outra determinação menos visível, mas tão material quanto a primeira, e investiga dessa forma a mediação subjetiva do processo histórico. Tais estudos associados aqueles realizados pelo Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt (Adorno), desenvolvem a idéia segundo a qual a relação entre o particular e o "universal" não se dará pela mediação do ideológico, mas através da estrutura psíquica.

Nessa perspectiva, encontramos em Pichon-Rivière como objeto de estudo o desenvolvimento e a transformação da relação dialética que se dá entre estrutura social e fantasia inconsciente do sujeito, fundada sobre suas "relações de necessidade" — a relação entre estrutura social e configuração do mundo interno, abordada por Pichon, através da noção de vínculo Pichon-Rivière (1986). Seu pensamento procura recuperar as determinações que constituem a subjetividade, reconhecendo sua "base natural" (biológica), mas enfatizando, que as formas iniciais do desenvolvimento humano devem situar a natureza na trama histórica e social, dando contribuição a uma linha de investigação aberta pela Teoria Crítica no que diz respeito à relação indivíduo — totalidade.

Nela, o homem configurar-se-ia numa atividade transformadora, numa relação de reciprocidade dialética, modificadora de si e do mundo, relação cujo motor é a "necessidade". A ação, a práxis, a atividade criadora são entendidas como fundadoras da subjetividade.

Conjugando essas perspectivas, a Psicologia Social proposta por Pichon-Rivière torna-se específica: ela é intersubjetiva, analisa o interjogo dos sujeitos por meio de um interacionismo que não desdenha a análise do acontecer intrasubjetivo e a eficácia dos processos inconscientes.

O específico de sua postura ou perspectiva intersubjetiva é o fato de afirmar que a dimensão intra-sujeito, os processos internos, não são compreensíveis per se, isolados da dinâmica vincular, na qual se dá a experiência do sujeito, não se isolando da ação significante e eficaz do outro, do objeto (Quiroga, 1985, p.54).

Da mesma forma, os processos intersubjetivos não podem ser compreendidos sem nos voltarmos à análise da estrutura do mundo interno. São relações mutuamente determinantes entre sujeito e objeto, entre mundo externo e mundo interno. Nessa perspectiva, indaga-se o que é um grupo, o que o define, qual a substância desse processo interacional.

Segundo a abordagem pichoniana,

a subjetividade é determinada histórica e socialmente, enquanto o sujeito se constitui como tal no processo de interação entre sujeitos, do qual o vínculo, como relação bicorporal, e o grupo, como rede vincular, constituem unidades de análise (Quiroga, 1984, p.80).

Não se fala unicamente de uma "psicologia dos grupos", mas de uma reflexão sobre o sujeito psicológico, feita a partir de uma perspectiva que determina a maneira de abordar este sujeito, a rede vincular: "O sujeito não é só um sujeito relacionado, é um sujeito produzido em uma práxis. Nele não há nada que não seja a resultante da interação entre indivíduo, grupos e classes" (Pichon-Rivière, 1986, p.174).

A conduta individual fica entendida como um conjunto de operações materiais e simbólicas através das quais um organismo em situação tende a realizar suas possibilidades e a reduzir as tensões que ameaçam sua unidade e o motivam:

Com o termo "homem em situação" procuramos caracterizar um objeto de conhecimento, em uma tarefa que reintegre o fragmentado por um pensamento dissociante, que obscurece as relações entre sujeito, natureza e sociedade (Pichon-Rivière, 1986, p.173).

O conceito de necessidade é retomado nesta sistematização teórica pichoniana como aquele que "abre o jogo" entre o "sujeito e o contexto". Queremos dizer que a necessidade é experimentada pelo sujeito enquanto tensão interna e o envia ao mundo externo em busca de gratificação. Ela determina a primeira contradição experimentada pelo sujeito: necessidade x satisfação. Para superá-la, este "sujeito da necessidade" opera sobre a realidade material e simbolicamente, e se transforma transformando o contexto externo:

Essa unidade fundamental, que é o vinculo, se constitui, durante o desenvolvimento infantil, sobre a base das necessidades corporais que promovem o reconhecimento das fontes de gratificação, mediante técnicas mais ou menos universais. Definimos o vinculo como a estrutura complexa que inclui o sujeito e o objeto, sua interação, momentos de comunicação e aprendizagem, configurando um processo em forma de espiral dialética, processo este, em cujo começo, as imagens internas e a realidade externa deveriam ser coincidentes. Isto não acontece, visto que o objeto atua em duas direções: para a gratificação (constituindo assim o vínculo bom) e para a frustração (configurando o vínculo mau). Assim surge a estrutura bivalente no sistema vincular com objetos parciais; um deles vivido com uma valência totalmente positiva, pelo qual o sujeito se sente totalmente amado e ao qual ama; o outro objeto é marcado por uma valência negativa: o sujeito sente-se totalmente odiado, sendo recíproco esse vínculo negativo, do qual necessita desfazer-se ou controlar. Creio que aqui cabe uma definição de fantasia inconsciente: ela é o projeto ou a estratégia totalizante de uma ação sobre a base de uma necessidade (Pichon-Rivière, 1986, p.48).

Assim, o sub-jectum, o sujeito subjugado da necessidade se metamorfoseia a partir do pro-jectum, ou seja, a ação realizada para obter a satisfação dá início a uma tarefa concreta pela qual há uma projeção das fantasias e conseqüentemente modificação das relações com o mundo externo.

Nesse sentido o grupo é objeto de estudo para a compreensão desse sujeito e da articulação entre suas determinações internas e as determinações externas. O grupo passa a ser a unidade de interação, a unidade de análise:

O campo operacional privilegiado é o grupo, que permite a investigação do interjogo entre o psicossocial (grupo interno) e o sócio-dinâmico (grupo externo), através da observação das formas de interação, dos mecanismos de atribuição e assunção de papéis. A análise das formas de interação permite-nos estabelecer hipóteses sobre seus processos determinantes (Pichon-Rivière, 1986, p.48).

Qual a essência dessa interação? A pergunta, neste momento, dirá respeito aos "princípios organizadores" desse processo interacional que constitui o grupo. Somente a partir do conhecimento desses organizadores internos, os definidores da estrutura do grupo, é permitido pensá-lo como lugar de intervenção nas relações entre indivíduo, grupo e instituição e de indagação sobre a construção da subjetividade.

Numa situação de interação, estabelece-se um processo de comunicação, uma troca de signos (de um código) através dos quais se descrevem e se expressam emoções. Dá-se a interação quando a resposta do outro é incluída e antecipada na conduta de cada sujeito. Inclusão e antecipação definem o processo de interação:

O desenvolvimento de expectativas reciprocas, o intercâmbio de mensagens, permitem afirmar que interação implica em processo de comunicação, ao mesmo tempo que fenômenos de aprendizagem, enquanto se dá uma modificação interna de cada um dos atores, modificação que emerge do reconhecimento do outro, de sua incorporação, o que terá como efeito um ajuste em maior ou em menor grau do comportamento de ambos a essa realidade que significa a presença concreta do outro (Quiroga, 1986, p.54).

É do fato desse outro aparecer como significativo que se pode falar de uma ação direcional. Há uma unidade interacional que se caracteriza por uma integração de tempo, espaço e sujeitos que se percebem mutuamente, articulados por leis definidas nessa estrutura. Nesse sentido, cabe afirmar que essa unidade interacional pode ser definida como um sistema. Assim, o grupo é um sistema no sentido de possuir organização interna que articula suas partes. Compartilhar tempo, espaço e até objetivo, não é condição suficiente para o estabelecimento de uma relação vincular. É necessário haver uma organização interna, o que requer um fundamento motivacional, ou seja, a necessidade a que nos referimos anteriormente. A necessidade está na base, é o "Motor" da relação com o outro, é o que lhe confere sentido. Ela coloca a idéia da ação direcional (mútua internalização), que nasce com uma tarefa. Segundo Pichon-Rivière, não há vínculo (e, como conseqüência, não há grupo) sem tarefa, já que em toda relação há operatividade, ação de intervenção.

O grupo define-se, pois, com a "tríade": necessidade x objetivo x tarefa. A tarefa é o conjunto de ações que permite chegar ao objetivo e satisfazer a necessidade. A tarefa é transformação de uma ausência, representada pela necessidade. A constelação de necessidades, objetivos e tarefa define um dos princípios organizadores do grupo, enquanto estrutura (Quiroga, 1986, p.54).

O outro princípio organizador está diretamente ligado ao primeiro, e consiste no que Pichon denomina "mútua representação interna". Na análise desse segundo princípio, a ênfase recai sobre aquilo que se convencionou chamar de eficácia da interação, ou seja, sobre o fenômeno da internalização enquanto efeito da interação. É em uma internalização recíproca, ou inscrição intra-sujeito da trama interacional, que se estabelece o vínculo como tal, da mesma forma que se constitui, a partir do mesmo princípio organizador, a trama ou rede vincular mais complexa que é o grupo. É a partir dessa inscrição interna em cada um dos sujeitos da situação interacional que se dá coerência à trama e à estrutura.

Está perspectiva histórico-materialista, na qual as condições de sobrevivência e vivências se entre-exigem, requer que entendamos a produção da subjetividade como um processo contínuo e de determinações recíprocas:

Assim, o particular, o subjetivo individual, não parece ser uma totalidade, mas parte da totalidade que afirma o todo, ao ser seu índice, e o nega, por não ser idêntico a ele; necessita do todo para se constituir e para negá-lo (Crochík, 1990, p.145).

Hoje em dia, o que se expressa como atual,

são os efeitos psíquicos ligados aos obstáculos para a formação do sujeito como sujeito singular neste espaço intersubjetivo onde ele se constitui, neste tecido de desejos, de palavras, de interdições, de recalques ou de recusas. O sofrimento psíquico moderno descobre um deslocamento, uma internalização recíproca e uma continuidade entre o espaço interno e o espaço psíquico intersubjetivo: ele não pode mais se "localizar", por escolha teórica, somente no espaço intrasubjetivo (Kaës, 1993,p.315)

O esforço da "hermenêutica" pichoniana através do grupo operativo tem como tarefa pôr a descoberto a totalidade do sentido na multilateralidade das relações. Desta forma, os diferentes momentos parciais de apreensão do que se busca conhecer (objetivo) não podem ser vistos como enganos, mas sim como aspectos da "verdade" daquele momento que serão incorporados na verdade seguinte, como parte constitutiva da mesma.

Os múltiplos significados, capturados na interação grupai pelo esforço de compreensão (hermenêutica), revelam-se pela eterna tensão entre dois tempos que a constituem: o simbolizado (representado) e o real. Recuperam-se, pela ênfase na relação intersubjetiva, sujeitos capazes de palavra e ação, de simbolização e criação, isto é, de pensamento autônomo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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