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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.5 n.1-2 São Paulo  1994

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

O outro em Lacan: conseqüências clínicas

 

The "other" in Lacan: clinical consequences

 

 

Jussara Falek Brauer

Instituto de Psicologia - USP

 

 


RESUMO

Neste artigo procuramos explicitar, considerando a álgebra lacaniana, as articulações estruturais entre os seguintes termos: Outro, signiflcante, sujeito do inconsciente, objeto pulsional, Deste trabalho de leitura, procuramos extrair conseqüências para a clínica com crianças consideradas difíceis.

Descritores: Psicanálise. Lacan. Jacques, 1901-1981. Inconsciente (Fator de personalidade). Psicose infantil.


ABSTRACT

This paper outlines the relationships among the following terms of Lacanian algebra: other, significant, unconscious subject, pulsional object. It further inquires into their clinical consequences.

Index terms: Psychoanalysis. Lacan, Jacques, 1901-1981. Unconscious (Personality factor). Childhood psychosis.


 

 

O presente texto trata do Outro, tal como o concebe Lacan, autor que inaugurou o trabalho de elucidação epistemológica da obra de Freud, conforme Althusser (1979) no texto Freud e Lacan.

Para desenvolver este trabalho Lacan pensou um modelo estrutural que desse conta do trabalho analítico de pesquisa do inconsciente.

O Outro é concebido por Lacan como um elemento desta estrutura. Para falar do Outro em Lacan não há outra saída possível senão enveredar pela teia que constitui a estrutura que ele concebeu.

O trajeto é árido, como o leitor irá perceber, se for paciente.

Pessoalmente tenho preferido, em minha transmissão, apresentar essa rede de conceitos a posteriori. Ou seja, introduzo toda essa teoria após a clínica, como descrição possível do trabalho que se veio de acompanhar. O próprio Lacan, no texto A significação do falo afirma: "É somente sobre a base de fatos clínicos que a discussão pode ser fecunda (....)" (Lacan, 1978c, p.262). A psicanálise é uma teoria que se constitui a partir da prática clínica. Para interrogá-la é necessário partir também da prática.

Neste artigo, no entanto, irei deter-me inicialmente na parte conceituai. Ela constitui a ferramenta que manejamos ao conduzir uma análise.

Não tenho evidentemente a pretensão de esgotar aqui o assunto. Limito-me a introduzi-lo, esboçando seus contornos e demarcando os elementos de que necessito para falar do assunto a que me propus neste artigo. Vou ficar inicialmente colada a alguns textos de Lacan que selecionei, em pontos onde ele trabalha este elemento da estrutura inconsciente.

Na segunda parte do texto relatarei as conseqüências que esta leitura estrutural da psicanálise produziu em meu trabalho clínico com crianças muito comprometidas que freqüentam a clínica psicológica do IP-USP.

"Eu é um outro" (Rimbaud)

 

A palavra

Pode-se falar da psicanálise de várias formas.

Lacan (1979a) escreve no Seminário 1 que aquilo a que assistimos no trabalho analítico é a emergência de uma palavra verdadeira.

O esquecimento seria, neste sentido, uma manifestação de degradação da palavra em sua relação com o outro.

É da essência da palavra o agarrar-se ao outro. A palavra é mediação entre o sujeito e o outro, e ela implica na realização do outro dentro desta mesma mediação.

A palavra pode ter ainda uma outra face, que é a de revelação. A palavra do inconsciente é palavra de revelação. É palavra que não se diz diretamente, já que o inconsciente só se expressa por deformação, distorção, transposição.

A revelação é, para Lacan, o móvel último daquilo que procuramos na experiência analítica.

A resistência seria, sob esta ótica, aquilo que faz com que a palavra de revelação não seja dita. Uma conseqüência da resistência é a transferência. Então, se a palavra não funciona como revelação ela funciona como mediação. O analisante se dirige então ao analista tomando-o como pessoa, aqui e agora.

A questão é então saber em que nível a palavra se agarra ao outro, em que nível o outro é realizado, como ele é realizado, em que função, em que círculo da subjetividade de quem fala, a que distância se encontra.

Ao longo da experiência analítica, essa distância varia sem cessar. Seria então inútil querer considerá-la como correlativa a um certo estado do sujeito. O analista pode ser tomado a um dado momento como testemunha, mais adiante poderá ser alvo de sedução, para que mais tarde se fale a ele no sentido mais propriamente simbólico.

Lacan formula, dentro deste sentido, a oposição palavra vazia — palavra plena, onde a palavra vazia faz com que o sujeito se perca no aqui e agora com seu analista, enquanto palavra de resistência, e a palavra plena realiza a verdade do sujeito.

Resistência e transferência não são portanto sequer concebíveis sem uma referência ao outro.

O nível no qual o outro é vivido situa exatamente o nível no qual o eu existe para o sujeito. O eu é referente ao outro, ele se constitui em relação ao outro, é seu correlato.

Vamos arrolando desta forma elementos da estrutura que Lacan propõe para a análise: o sujeito, o eu, o outro.

 

A imagem

Se no Seminário 1 Lacan (1979a) desenvolve sua argumentação na linha de marcar a especificidade da palavra que interessa ao trabalho analítico, apontando a relação ao outro como referência importante para a constituição do sujeito, no Seminário 2 (Lacan, 1985) introduz a distinção entre dois "outros". Aparece aqui a distinção entre o outro com A, que é o Outro de que se trata na função da fala, e o outro com a, que é o eu, ou mais exatamente a imagem do eu.

O eu é uma construção imaginária. Lacan (1966b) desenvolveu no texto Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je, datado de 1949, esta idéia de que o eu é imaginário, de que se constitui a partir do espelho. O espelho foi neste texto a metáfora usada para marcar este ponto. No Seminário 2 (relativo às reuniões dos anos de 1954 — 1955) ele vai estender-se ainda mais sobre o assunto. Vou tentar resumir aqui algumas de suas idéias.

O sujeito analítico não é o sujeito em sua totalidade, é o sujeito em sua abertura. Lacan vai introduzindo aí, na estrutura do inconsciente, mais um elemento que será marcante na técnica analítica pós — lacaniana. Este elemento é a temporalidade do inconsciente. Temporalidade esta ligada à contraposição abertura — fechamento. Se o início da análise se dá em um tempo de fechamento (afânise) de que falaremos mais adiante, a emergência do sujeito vai estar ligada a um tempo de abertura.

Falamos de tempos, e se estamos falando de uma estrutura estamos falando também de lugares. O sujeito (S), o eu (a), o outro (a'), o Outro (A) são lugares.

 

 

Ainda, se o sujeito fala, como marcávamos acima desenvolvendo algumas da idéias do Seminário 1, no qual fica desenvolvida a já tão conhecida idéia do autor relativa à palavra, ao inconsciente estruturado como linguagem, se o sujeito fala ele também se vê. Isto é algo que Lacan vai desenvolver no Seminário 2.

O sujeito se vê, não em S, mas em a, no outro, num outro lugar. É por isso que ele tem um eu, que é imaginário, constituído à imagem e semelhança do outro.

O eu é uma forma fundamental para a constituição dos objetos. Em particular, é sob a forma do outro especular que ele vê aquele que, por razões que são estruturais como estamos acompanhando, Lacan chama de seu semelhante. Esta forma do outro tem a mais estreita relação com o seu eu, ela pode ser superposta a ele, e nós a escrevemos a'. a' é um objeto.

Existem pois o plano do espelho e o mundo simétrico dos iguais e dos outros homogêneos ao eu. Seus objetos de identificação.

É necessário distinguir deste, um outro plano que vamos chamar de muro da linguagem.

A linguagem, o simbólico, é anterior ao imaginário e ao real. É em relação a ela que o imaginário e o simbólico se caracterizam enquanto tal. É assim, a partir da ordem definida pelo muro da linguagem, que o imaginário toma sua falsa realidade.

Esta falsa realidade é contudo uma realidade verificada. Verificada "objetivamente".

O eu, o outro, o semelhante, todos estes imaginários são, neste contexto teórico, objetos. Porém são objetos devido ao fato de serem assim denominados num sistema organizado que é o da linguagem.

Quando o sujeito fala com seus semelhantes, fala na linguagem comum, que considera os eus imaginários como coisas não unicamente exteriores a ele, mas reais também. Note-se que se fala aqui em eus.

Por não poder saber o que se acha no campo em que o diálogo concreto se dá, ele lida com um certo número de personagens, a', a". Na medida em que o sujeito os põe em relação com sua própria imagem, aqueles com quem fala são também aqueles com quem se identifica.

Ele se endereça de fato aos A1, A2, que é aquilo que ele não conhece, verdadeiros Outros, verdadeiros sujeitos, que estão do outro

lado do muro da linguagem, lá onde em princípio o sujeito jamais alcança. Eles são fundamentalmente aqueles que são visados cada vez que o sujeito pronuncia uma fala plena, mas o sujeito sempre alcança a', a", por reflexão.

O sujeito está separado dos Outros, os verdadeiros, pelo muro da linguagem.

Se a fala se fundamenta na existência do Outro, o verdadeiro, a linguagem é feita para remeter-nos de volta ao outro objetivado, ao outro com o qual podemos fazer tudo o que quisermos, inclusive pensar que ele é um objeto.

Quando fazemos uso da linguagem, nossa relação com o outro funciona o tempo todo nesta ambigüidade. Em outros termos, a linguagem serve tanto para nos fundamentar no Outro como para nos impedir radicalmente de entendê-lo. E é justamente disto que se trata na experiência analítica.

Esta concepção de Lacan é, como se vê, uma espécie de mito da caverna transposto para o plano da psicanálise. Serve a este contexto para mostrar que o sujeito se sabe a partir do exterior, que o sujeito se trata como se ele fosse um outro, o que cria um empecilho para que os verdadeiros outros, os Outros, sejam acessíveis ao sujeito. É em última análise da subjetividade que se trata aqui.

O sujeito não sabe o que diz porque não sabe o que é. Mas ele se vê. Ele se vê do outro lado, de maneira imperfeita, devido ao caráter fundamentalmente inacabado da imagem especular, que é, não apenas imaginária, mas também ilusória.

 

A letra na imagem

No seminário 11 Lacan (1979b) desenvolve o processo através do qual o sujeito surge do Outro. Ele afirma:

Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem de aparecer (p.193-4).

Tudo surge da estrutura significante. Essa estrutura se funda no que Lacan articula aqui como função topológica da borda.

A relação do sujeito ao Outro se engendra por inteiro num processo de hiância, ele diz, o que quer dizer literalmente abertura de uma boca, abertura de uma fenda.

Os processos que ocorrem entre o sujeito e o Outro se articulam de forma circular: o sujeito é chamado ao Outro1, o sujeito a si mesmo aparecer no campo do Outro, o Outro lá retorna. Esse processo é circular, mas, por sua natureza, não é recíproco. Por ser circular, é dissimétrico.

O significante (o sujeito é chamado ao Outro) , produzindo-se no campo do Outro, faz surgir o sujeito de sua significação.

Mas ao funcionar como significante o Outro reduz o sujeito a ser apenas um significante, petrificando-o pelo mesmo movimento com que o chama a funcionar como sujeito.

Aí está a pulsação temporal que é característica do ponto de partida do inconsciente como tal — o fechamento — a afânise, o desaparecimento, ou o fading do sujeito.

No momento do nascimento do sujeito no campo do Outro, sua característica é de estar, sob o significante que desenvolve suas redes, suas cadeias e sua história, num lugar indeterminado.

A interpretação deve limitar-se por esta razão a apenas designar uma única série de significantes, pois o sujeito pode ocupar aí diversos lugares, conforme se ponha sob um ou outro desses significantes.

Fica fundamentada nesta lógica a pontuação como técnica de análise. Se estamos trabalhando em um tempo de fechamento, com um sujeito petrificado, que está em um lugar indeterminado, não há o que interpretar. Trata-se da primazia do significante aqui. A significação é posterior. Pontuar a cadeia de significantes é demarcar os lugares possíveis para o sujeito, para que ele possa aí tomar posição, ou seja, sair desse estado de imobilidade, circular pelos significantes que o marcaram, fazer sua escolha a partir desta oferta significante.

Lacan introduz duas operações que articulam a relação do sujeito com o Outro.

Para demonstrar essas operações lança mão da linguagem utilizada na teoria dos conjuntos e na lógica simbólica. Vai falar então em vel.

À primeira operação ele dá o nome de alienação. O vel da alienação é o ou simbolizado na lógica por um V.

 

 

A alienação consiste nesse véu2 que condena o sujeito a só aparecer no seu início no campo do outro (o sujeito se vê), de um lado como sentido, produzido pelo significante falo. Do outro lado como afânise. Ou seja, do lado do Outro, no desenho, o sujeito aparece como sentido, como significação. Do lado do ser ele aparece como afaâise, não está, está petrificado. Então, ou ele se aliena na significação que é dada pelo Outro, se identifica com esta imagem, ou ele não é. Ambos, o ser e o Outro, estão ligados por uma região de não-senso. O ser e o Outro estão reunidos (a operação lógica é a reunião) . A região de não-senso é o que pertence aos dois conjuntos.

Aí está um vel que vale a pena ilustrar, para diferencia-lo dos outros usos do vel. Há dois deles. Há o vel exaustivo — eu vou ou para lá ou para cá. Tenho que escolher. Há também outra maneira de empregar o vel — vou para um lado ou para outro, tanto faz, dá na mesma. São dois vel que não são a mesma coisa.

Uma coisa é adicionar coleções e outra coisa é reuni-las. Se neste círculo, o da esquerda, há cinco objetos, e se no outro, há também cinco, adicioná-los faz dez. Mas há os que podem pertencer aos dois. Se há dois que pertencem a ambos os círculos, reuni-los consistirá no caso em não reduplicar seu número, só haverá na reunião oito objetos.

O vel da alienação se define por uma escolha cujas propriedades dependem do seguinte: que há, na reunião, um elemento que comporta que qualquer que seja a escolha que se opere, há por conseqüência um nem um, nem outro. A escolha aí é apenas a de saber se se pretende guardar uma das partes, a outra desaparecendo em cada caso. O que significa que algo se perde, algo cai.

Ilustremos isto pelo ser do sujeito, aquele que está ali sob o sentido. Escolhemos o ser, o sujeito desaparece, ele nos escapa, cai no não-senso. Escolhemos o sentido e o sentido só subsiste decepado dessa parte de não-senso que é, falando propriamente, o que constitui, na realização do sujeito, o inconsciente.

Em outros termos, é da natureza desse sentido, tal como ele vem a emergir no campo do Outro, ser eclipsado, numa grande parte de seu campo, pelo desaparecimento do ser induzido pela função mesma do significante.

A alienação tem por conseqüência que a interpretação não consegue liberar as significações. A interpretação não visa tanto o sentido quanto reduzir os significantes a seu não-senso, para que possamos reencontrar os determinantes de toda a conduta do sujeito.

Esse ou alienante não é de modo algum uma invenção arbitrária. Ele está na linguagem. Este ou existe. É o que afirma Lacan, e a clínica nos confirma. Ele contém em seu interior aquilo que Lacan chama de um fator letal.

No processo de análise esse momento é um momento de terror.

A segunda operação termina a circularidade da relação do sujeito ao Outro, mas aí se demonstra uma torção essencial.

Enquanto que o primeiro tempo está fundado na subestrutura da reunião, o segundo está fundado na subestrutura que chamamos interseção ou produto. É simbolizado por um ^ (e).

A interseção de dois conjuntos é constituída pelos elementos que pertencem aos dois conjuntos. É aqui que se vai produzir a operação segunda, a que o sujeito é conduzido por essa dialética. Esta operação segunda é tão essencial de ser definida quanto a primeira, porque é aí que vamos ver despontar o campo da transferência. Lacan a denominou separação.

A interseção surge do recobrimento de duas faltas.

Uma falta é encontrada pelo sujeito no Outro, na intimação mesma que lhe faz o Outro por seu discurso. Nos intervalos do discurso do Outro, surge na experiência da criança o seguinte: ele me diz isso, mas o que é que ele quer?

Nesse intervalo que fica entre os significantes, que faz parte da estrutura mesma do significante, reside a metonímia. É lá que desliza o que chamamos desejo. O desejo do Outro é apreendido pelo sujeito naquilo que não cola, nas faltas do discurso do Outro, e todos os por ques da criança falam menos de uma avidez da razão das coisas, do que constituem uma colocação em xeque do adulto, perguntam pelo enigma do desejo do adulto.

Para responder a essa pergunta o sujeito traz como resposta a falta antecedente ao seu próprio desaparecimento, que ele vem aqui situar no ponto da falta percebida no Outro. O primeiro objeto que ele propõe a esse desejo parental, cujo objeto é desconhecido, é sua própria perda. A fantasia de sua morte, de seu desaparecimento, é o primeiro objeto que o sujeito tem a pôr em jogo nessa dialética, e ele põe, com efeito.

Uma falta recobre a outra. Daí a dialética dos objetos do desejo, no que ela faz a junção do desejo do sujeito com o desejo do Outro (o-Outro lá retorna). Essa dialética passa pelo seguinte: que aí ele não é respondido diretamente. É uma falta engendrada pelo tempo precedente que serve para responder à falta suscitada pelo tempo seguinte.

Dois elementos devem ser marcados nessa operação lógica fundamental: a não-reciprocidade e a torção no retorno.

Aquilo que se desprende e que cai nesta operação é o objeto a, a que Lacan vai chamar objeto causa de desejo, o objeto pulsional.

Voltemos agora a um parágrafo que extraí dos Escritos, e que condensa tudo aquilo que foi dito até aqui.

Lacan (1978c) no texto A significação do falo escreve:

Isso (ça) fala no Outro, dizemos, designando por Outro o próprio lugar que evoca o recurso à fala em toda relação onde ele intervém. Se isso (ça) fala no Outro, que o sujeito o escute ou não com seus ouvidos, é que é lá que o sujeito, por uma anterioridade lógica a todo despertar do significado, encontra seu lugar significante. A descoberta do que ele articula nesse lugar, isto é, no Inconsciente, permite-nos apreender a custa de qual divisão (Spaltung) ele assim se constitui (p.266).

Para introduzir este termo tal como Lacan o desenvolve há que articular alguns operadores.

— O isso, indeterminado, onde está o objeto a, de onde vem o mandato e a demanda, que operam a divisão (Spaltung) que constitui o sujeito.

— O lugar onde fala o isso — o Outro. O lugar do sujeito.

— O significante.

O que a psicanálise propõe não é algo que possa ser objeto de um conhecimento, mas que remete ao ser, ente cujo ser é ser segundo o significante, do qual se dá testemunho a partir de caprichos, aberrações e fobias, todos ligados ao objeto pulsional.

Nesta perspectiva o alvo do trabalho analítico é o inconsciente concebido como sendo a subjetividade, aquilo que constitui o objeto.

Cabe à psicanálise lidar com as manifestações aberrantes, equívocos produzidos pela expressão metafórica do desejo.

Partindo do Outro, dada a excentricidade do inconsciente em relação à consciência, a intervenção analítica não pode ser interpolação de sentido, ela é jogo sobre o equívoco significante.

Coube a Freud incluir no campo da ciência a pesquisa do irracional.

Claro está que não se trata aqui da ciência concebida como ciência positiva. A psicanálise descoberta por Freud subverte o método científico para constituir-se como método de pesquisa do subjetivo.

Posto desta forma, concebe-se que a pesquisa deste inconsciente no trabalho de análise supõe a presença de alguém que possa ocupar este lugar de Outro para que na transferência possa emergir o inconsciente. A alteridade condiciona a possibilidade do trabalho do inconsciente.

Decorre também que a subjetividade assim pesquisada já aparece, ela mesma, como um produto da própria pesquisa, uma vez que ela é uma conseqüência deste trabalho.

 

Conseqüências

Vou relatar, a título de conseqüências, um trabalho que venho desenvolvendo na Clínica Psicológica do IP-USP.

Este trabalho só pode ser concebido por mim como conseqüência clínica destas concepções que acabo de expor.

Vou fazer inicialmente algumas articulações teóricas que permitam contextualizar minhas hipóteses para este trabalho que desenvolvi com crianças que apresentavam problemas graves e que procuravam atendimento em nossa clínica.

Início citando Lacan:

Não devemos retroceder diante da Psicose (Lacan, 1977).

Esta frase assim tirada do contexto permite várias leituras. Vou me servir deste artificio, de tirar a frase de seu contexto, para desenvolver meu raciocínio.

Podemos ler a frase no sentido de lembrar a história disto que constitui a loucura, de como diante dela as pessoas retrocederam, do tratamento de exclusão que o louco sofreu ao longo da história, e afirmar então que não devemos retroceder diante da psicose.

Esta é uma postura que algumas correntes têm tomado já há algum tempo, mas se paramos aí estamos apenas no começo e nos restam ainda muitas questões, já que trabalhar clinicamente com o paciente psicótico é muito difícil.

Não seria supérfluo lembrarmos que o próprio Freud retrocedeu diante da psicose, uma vez que caracterizou a psicanálise como forma de tratamento da neurose.

Parece-me fundamental discutirmos neste ponto a questão do diagnóstico de psicose.

Herdamos uma visão médica da loucura. A medicina é um saber teórico que se constitui para procurar soluções em relação a tudo aquilo que cause a morte do corpo, as doenças, visando sua cura. É desta forma, enquanto doença, que a loucura é tomada pela medicina.

Enquanto doença ela é categorizada, são arrolados os sintomas e ela é trabalhada no sentido da eliminação destes sintomas.

O próprio Freud, médico por formação, toma a Psicopatologia como ponto de partida em seu trabalho. Acaba no entanto por criar a psicanálise, concluindo a uma dada altura que esta disciplina, por lidar com palavras, pede muito mais uma formação em letras do que uma formação médica.

A psicanálise rompe com a ordem médica para lidar com formações que tem uma estrutura de palavra, uma estrutura de poesia, Dichturtg em alemão, uma estrutura de condensação, Verdichtung como Freud a batizou.

É preciso que nós, enquanto psicanalistas, façamos nós também esta ruptura radical com a ordem médica e deixemos de nos preocupar, diante da loucura, com o seu diagnóstico, de concebê-la como algo que se deve curar.

Eu me explico.

Lacan (1978c) na abertura do texto A significação do falo, disse que

(...) o complexo de castração inconsciente tem função de núcleo na estruturação dinâmica dos sintomas no sentido analítico do termo, isto é, do que é analisável nas neuroses, perversões e psicoses (p.262).

O sintoma é definido como formação inconsciente, característica da estrutura neurótica.

Pode no entanto aparecer também nas outras duas estruturas clínicas, a perversão e a psicose, possibilitando, na medida do seu aparecimento, o trabalho de análise.

Postos diante da questão que consiste em saber se como psicanalistas devemos ou não retroceder diante da psicose, entende-se agora, à luz desta segunda frase de Lacan, que não devemos retroceder diante dela na medida em que estejam presentes sintomas com estrutura de metáfora, sintomas que sejam da ordem das palavras e satisfazendo esta condição sejam sintomas passíveis do trabalho de analise.

Lacan não diz nada de novo, mas o diz de uma forma que abre uma nova perspectiva para o trabalho do analista.

A partir deste tipo de formulação já não se trata mais de diagnosticar o quadro psicopatológico, mas de diferenciar a estrutura do sintoma.

Ao lado destas considerações nunca é supérfluo lembrar que nem tudo aquilo que tem uma aparência de loucura corresponde a uma estrutura psicótica, tal como a psicanálise concebe esta estrutura.

Falar em estrutura é muito diferente de falar em comportamento.

A psiquiatria é neste sentido fenomenológica, ela parte da descrição do fenômeno. A psicanálise, em Lacan é estrutural.

Já posso dizer então que meu trabalho de pesquisa não visa exclusivamente crianças psicóticas. Tenho trabalhado, na linha do que expus acima, com crianças que apresentam problemas graves, em um recorte que irei precisando a seguir.

Novamente:

Não devemos retroceder diante da Psicose.

Vou torcê-la em:

Não é possível retroceder diante da Psicose.

Vou colocá-la ao lado desta outra citação de Lacan (1978a) retirada do texto A instância da letra no Inconsciente ou a razão desde Freud. Diz Lacan:

Vê-se que a metáfora se situa no ponto preciso em que o sentido se produz no sem sentido, isto é, nessa passagem da qual Freud descobriu que, transposta ao contrário, ela dá lugar a essa palavra que em fiances é le mot por excelência, a palavra que não tem aí outro patrocínio senão o significante do chiste, e em que se vê que é o seu próprio destino que o homem desafia pela derrisâo do significante (p.239).

Aqui já se pode notar que esta história de retroceder e de transpor deve ser lida, no contexto da teorização de Lacan, de uma forma mais específica.

Diante do significante deve-se retroceder, recomenda Lacan nesta frase, transpor ao contrário, diz ele, e eu leio, voltar para a história. Eu diria então, a partir desta leitura, que diante do significante devemos retroceder, transpor esta passagem ao contrário, reconstruindo pela associação livre a história do paciente, à qual o significante envia.

Que quererá dizer ele então com este não devemos retroceder?

Poderia dizer que o psicótico não está na diacronia, ele não tem passado, e também não tem futuro. O importante a marcar é justamente a sincronia, a relação particular com a dimensão temporal. A simultaneidade.

Se resgatamos esta dimensão, podemos dar contexto a uma dificuldade que se encontra para trabalhar com a estrutura psicótica.

Se o discurso do psicótico é tal que ele não se dispõe de acordo com a dimensão de presente, passado e futuro, se ele é simultâneo, ele não permite a aplicação do método psicanalítico que consiste justamente em retroceder o plano da escuta para a história do sujeito em análise, para a outra cena, a cena inconsciente.

Estamos então agora diante de um problema que já não se prende mais a uma questão de postura ou de atitude. Estamos agora diante de um problema ligado à técnica.

Voltando à frase de Lacan, ele diz que a metáfora se situa no ponto preciso em que o sentido se produz no sem sentido.

Se o discurso de nossos pacientes psicóticos se caracteriza pela falta de sentido, isto não deve por si só consistir em problema. A metáfora se situa no ponto em que o sentido se produz no sem sentido. Partimos pois do sem sentido, por definição.

Gostaria de voltar ainda uma vez à frase:

Não devemos retroceder diante da Psicose.

Do exposto acima pode-se depreender também que a inscrição da loucura no simbólico pode transformá-la, ora em doença, ora em algo que o homem habita como poeta, ou em que é habitado pelo demônio. A loucura vai se constituir nessa relação de alteridade do louco com seu terapeuta. O lugar dado ao louco vai constituí-lo de uma ou de outra forma.

Dito de outra maneira, a representação que se faz das desordens mentais tem variado ao longo da história sob influência da cultura, da ciência e dos valores vigentes em cada época.

Na antigüidade, onde é marcante uma visão sagrada do mundo, a doença era associada ora a divindades destruidoras existentes na natureza ou a demônios especializados em determinadas doenças que se apoderavam do doente, ora ao castigo infligido pelos deuses.

Na transição da Idade Média para a Renascença a forma como se concebe a vida e o corpo, e em conseqüência também a doença, perde seu tom sagrado.

Começa a expandir-se a ciência. O homem deve adaptar-se agora à ordem e às leis da natureza.

A partir daí, e mais acentuadamente na época clássica, os distúrbios mentais serão cada vez mais tratados enquanto "mal moral" do qual o indivíduo precisa redimir-se. Os métodos usados para isso são punitivos ou corretivos.

Substituindo-se a fé pela natureza abre-se espaço para a concepção dos distúrbios mentais a partir do modelo médico organicista. Esses distúrbios residem agora em desordens químicas, ou localizadas no sistema nervoso.

Seja exorcisando demônios (Babilônia), seja através da prática cirúrgica que visava libertar o doente de seu sofrimento (Egito), seja vendo no sonho uma manifestação divina e provocando "sonos de incubação" como forma de obter orientação divina (Egito), seja através de banhos de purificação e dietas especiais ministrados por médicos sacerdotes (Hebreus) etc., desde a antigüidade existem os loucos e os tratamentos para os loucos.

Só isso já diz do fato de que a loucura não é uma doença, mas um fato humano, que se reveste de significações diversas segundo época e local.

Nesse sentido podemos tomar a frase de Lacan como indicando que devemos, enquanto psicanalistas, assumir em relação ao louco uma relação de alteridade. Lê-lo segundo os postulados da teorização psicanalítica.

Lacan (1966a) no texto D'une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose depreende-se que a questão preliminar que se coloca para que seja possível um tratamento analítico da psicose consiste no estabelecimento daquilo que Lacan denominou a metáfora delirante. Estabelecida a metáfora, está posta a possibilidade do trabalho de análise.

Acho que já montei o contexto onde se colocavam minhas questões quando iniciei meu trabalho de pesquisa.

Como aplicar o método psicanalítico a um discurso com estas características? Como estender os benefícios da psicanálise para este tipo de criança?

Construí para solucionar minhas questões uma hipótese que também partia das formulações de Lacan.

Em seu Dos notas sobre el ninõ ele disse: "(...) o sintoma da criança se situa de forma a corresponder ao que há de sintomático na estrutura familiar" (Lacan, 1991, p.55).

A partir desta afirmação concebi um recorte da situação de atendimento destas crianças com problemas graves tal que englobasse uma escuta analítica à criança e a seus familiares, que era oferecida de forma individualizada, respondendo à disponibilidade espontânea destes familiares ao nosso trabalho.

Este recorte se mostrou bastante fecundo, permitindo a tal produção de sentido de que se falava acima.

Pudemos observar que ao ouvirmos criança e pais individualmente algo ocorria de muito interessante: havia uma simultaneidade, um paralelismo entre os discursos, ou seja, falava-se sobre as mesmas coisas nas sessões da criança e dos pais, e de tal maneira que pudemos tentar ainda uma segunda hipótese que foi a seguinte: tomamos o discurso fragmentado da criança como pontuação do discurso de seus pais, como significante. Pontuado o significante isto dava ensejo a que alguma história se contasse e que retornando esta história à criança e vice-versa, podíamos fazer rolar o trabalho de análise. Uma análise que englobava agora a família, instrumentalizando então a alteridade que a psicanálise pressupõe.

Se a mãe ocupa no início o lugar do Outro para a criança, a criança pode também estar ocupando este lugar para a mãe (isto será ilustrado no caso relatado a seguir).

Daí duas coisas puderam acontecer ainda segundo aquilo que nós observamos: ou bem em um dado ponto deste trabalho o nó se desatava e passávamos a ter duas análises independentes, de sujeitos que apareciam agora separados um do outro, ou bem a criança ia se configurando psicótica, ou seja, não se descolando do discurso da mãe, não desfazendo esta simultaneidade, não se transformando em suma. O que temos feito é seguir trabalhando neste segundo tipo de caso da mesma forma, reconstruindo a partir dos significantes apontados no discurso fragmentado da criança sua história que é rememorada a partir das associações da mãe ou dos pais, uma história que ela não tem enquanto registro, dada a estrutura clínica que a caracteriza.

A partir do trabalho com 45 crianças com problemas graves, somente quatro configuraram-se desta forma que eu acabei de descrever, como estruturalmente psicóticas.

Destas quatro, apenas uma encontra-se ainda em atendimento.

Trata-se de um menino que chegou com 7 anos de idade e um problema de fala que resistia ao tratamento fonoaudiológico tentado por um período de 3 anos. Ele ainda não falava quando chegou a nós.

Hoje, após 7 anos de trabalho conosco este menino está falando, ainda com uma fala característica. Ele estuda em uma escola especial no município de Osasco. Está sendo alfabetizado. Já não apresenta um comportamento agitado que o caracterizava no início do tratamento. Não está medicado. Está tranqüilo. Sua mãe segue seu trabalho de análise.

Vocês devem ter notado que eu dei um salto. Comecei falando de família e acabei falando só das mães.

Este é um outro fato que observamos. A grande maioria dos casos teve este percurso. Embora convocássemos a família, na maior parte dos casos compareceram apenas as mães.

Pudemos observar que trazer o filho para consulta é, em certas mulheres, uma forma de demandar análise.

Neste sentido, o fato de termos ampliado nosso recorte de tal forma que as mães fossem incluídas deu ensejo a que chegássemos a este tipo de constatação.

Em muitos casos pôde-se observar uma evolução muito rápida, na qual havia uma grande melhora da criança logo no início do trabalho, de tal forma que rapidamente estas crianças abandonavam o atendimento, restando então suas mães em análise.

Assim, se começamos com a pretensão de desenvolver uma pesquisa sobre a psicose na infância, logo nosso objeto se desvaneceu, já que a maioria dos casos de descaracterizou como casos de psicose, e acabamos desembocando em um trabalho muito mais ligado à mulher e à sexualidade feminina.

Nosso achado já estava previsto na teoria.

No Seminário sobre a carta roubada diz Lacan (1978b):

Pois este signo é de fato o da mulher, pois que ela aí faz valer seu ser, fundando-o fora da lei, que a contém sempre, pelo efeito das origens, em posição significante, e mesmo de fetiche. Para estar à altura do poder desse signo, ela deve somente permanecer imóvel na sua sombra ai encontrando além do mais, tal a Rainha, essa simulação do controle do não agir que só o "olho de lince" do ministro pôde penetrar (p.39).

Essas mães que atendemos escondiam-se à sombra do significante mãe, mães de seus filhos "doentes", que estavam respondendo a elas como espelho. A intervenção analítica quebrou a cumplicidade das crianças, permitindo que elas se reposicionassem e trouxe a tona a sexualidade de suas mães.

Vou relatar agora um dos casos que atendemos.

A criança em questão não é psicótica. Trata-se de um menino que tem o diagnóstico de paralisia cerebral. O que me levou a escolher este caso foi o fato de que ante a paralisia cerebral do menino também se poderia ter retrocedido.

G. veio à Clínica do IP-USP procurando Psicodiagnóstico com queixa familiar e escolar de que teria algum "bloqueio emocional" que o estaria impedindo de ir além das limitações que a paralisia cerebral lhe trazia.

Submetido ao processo Psicodiagnóstico concluiu-se que era impossível constatar bloqueio emocional pois o problema orgânico não permitia acesso a isto.

O caso foi encerrado. Mãe e escola não se contentaram com este resultado e a criança foi trazida novamente para consulta no ano seguinte.

Decidimos então tentar um vínculo terapêutico com G., colocando como condição a participação de mãe.

A queixa consistia basicamente no fato de ele não saber ler nem escrever, apresentar um discurso e reações que muitas vezes eram inadequadas ao contexto, ser muito agressivo, apresentar comportamentos bizarros na escola (como comer o cocô dos animais de criação da escola), apresentar um desenvolvimento motor inadequado para a idade, não aceitar os limites que se tentava colocar para ele, ter um comportamento estereotipado, ter apego a rituais rígidos, ser dependente de forma quase generalizada, inclusive no que tange a cuidados básicos.

Ao iniciar o atendimento a mãe discorre sobre aquilo que ela entende sejam os fatores responsáveis pelo bloqueio emocional do menino. Esse bloqueio dever-se-ia aos diversos golpes sofridos por G. Ele sofrera muitas perdas. A morte do avô que adorava, a separação dos pais e a posterior morte do pai, o fato de ter sido expulso da escola que freqüentava, ocasião em que foi encaminhado para a escola especial em que se encontrava naquele momento. A mãe acrescenta ter ela também sofrido muito pelas mesmas coisas. Refere-se à excepcionalidade do filho como sendo um fardo muito pesado.

No início do trabalho G. precisa ser forçado pela mãe a entrar na sala, onde permanece por pouco tempo, demonstrando uma linguagem pouco articulada, expressando-se por meio de sons incompreensíveis.

As alterações mais visíveis de G. deram-se justamente nesses pontos que englobam sua relação com a analista.

Evolui de um contacto inicial onde explora a sala de atendimento, depois a caixa de ludo, passando então a um brincar onde basicamente quebra, separa e corta tudo o que é passível deste tratamento. Sua fala neste momento tem as mesmas características, é fragmentada. Tudo é transformado em fragmentos. Num terceiro momento deita-se e fala. Seu discurso agora tem um caráter descritivo. Conta o que fez durante o dia e o que fizeram com ele. Fala muito sobre a mãe, a avó e as irmãs, e depois sobre o pai e o avô já falecidos. Passa a trabalhar a conexão morte — ausência. Fala do medo que sente e que não tem um objeto definido. Demonstra não ter claros seus limites nem mesmo os corporais. O não é um jogo difícil para ele, pois ao mesmo tempo em que expressa um limite entrelaça a questão da morte e da ausência.

Evolui bastante no seu falar, mostrando um vocabulário mais enriquecido que no início, um raciocínio mais sofisticado, organizações gramaticais mais complexas.

Se no início seu discurso parecia com uma enumeração de palavras sem a conexão de um fio lógico, passa em seguida a repetir discursos dos outros como um eco. Centraliza-se depois em suas relações mais significativas, passa a relatar cenas. Ao lado disto vai estabelecendo uma relação cada vez mais estreita com a terapeuta, chamando-a pelo nome.

Passa de uma posição onde é objeto, e onde repete, para outra onde esboça uma posição de sujeito.

No início do atendimento da mãe, G. era o tema central de seu discurso. No decorrer do trabalho ela vai se enganchando em sua própria análise e falando mais de si. Questiona-se sobre o sentido deste filho excepcional em sua vida, que buracos ele teria vindo preencher.

Teve um casamento muito difícil, que era particularmente insustentável por ocasião da gestação e nascimento do menino. Seu marido era muito ciumento e atacava-a com violência. Nestas circunstâncias, a única saída para ela foi apegar-se muito ao filho, seu único sustentáculo.

Sustentava-se no filho que não podia se sustentar sozinho. G. ocupa o lugar de Outro para sua mãe nesse momento.

Questiona-se sobre seu casamento e o que a teria levado a apaixonar-se por este homem louco e violento. A única justificativa que encontra é que seu marido tinha muito bom papo. Este papo aparece então como algo que atrai a mãe.

Importante notar aqui o laço com a pseudo-dificuldade de fala apresentada por G., que foi se desfazendo tão logo ele começou o trabalho de terapia.

No que se refere à sua relação com seu pai (portanto, o avô de G.) diz que sempre o admirou por suas capacidades e perfeição, de tal sorte que ela acabou por encarnar esse papel de perfeita. Sofre agora por constatar o fracasso, a imperfeição no casamento e no filho deficiente. Aqui a deficiência do menino mostra-se sobredeterminada pelo significante perfeição, que conecta a mãe a seu pai. na imperfeição o laço edípico da mãe. Daí seu gozo no cuidado deste filho imperfeito. Daí o estranho fato de ser esse o filho mais querido dos três que essa mãe tem. Trabalhar isto já permite ao menino começar a falar, desmontando o sintoma que o trouxe até nós.

Em seu trabalho a mãe ora avança, ora recua.

Vai saindo da posição de mãe de G., daquela que relata os fatos que se referem ao filho para ser a C, uma pessoa.

Fala de seus pais, principalmente de seu pai, a quem sempre admirou pela perfeição, fala de seu casamento, sua profissão, seus filhos em relação aos quais está agora em uma outra posição. Nesse sentido avança, pode separar-se de G. que agora aparece como um outro.

Em outros momentos recua, deprimida, resistindo em criar para a sua vida outro sentido que o de cuidar deste filho deficiente: "90% da minha existência vivo para ele", ela diz.

Embora capaz de refletir sobre o que diz e faz, chegando a tomar atitudes ativas e concretas no sentido de modificar certas regras domésticas e passar a trabalhar como professora, esforça-se em manter intocável a situação. Empenha-se por um lado. Desanima por outro. Alterna estados de mania e de depressão. Acaba por encerrar o atendimento procurando outra terapia mais próxima de sua casa.

Poderíamos questionar agora se no caso desta mãe, aquilo que paradoxalmente a impede de prosseguir em sua análise é uma vontade de manter o filho nas condições de deficiência de que ela se queixa, e por cuja razão procura insistentemente por atendimento.

A resistência desta mãe recobre por outro lado sua depressão, esta sim difícil de transpor.

No filho imperfeito fica expressa e inacessível a depressão, posta à devida distância, distância que a deixa a salvo. Cuidar do filho é uma forma ritual de tratar de sua depressão e, ainda, manter-se imaginariamente em relação com o pai já falecido. Há portanto um luto a trabalhar aqui, o que reenvia à depressão.

Na pseudodeficiência G. aprende com sua mãe a expressar seu medo da morte.

Ele parece no entanto mais capaz de lidar com esse medo que sua mãe.

O comportamento bizarro do menino pode ser lido desta forma como obra conjunta destas duas criaturas, mãe e filho, co-autores na criação deste personagem de ficção.

Se é criação, então não é deficiência real, apenas aparência, ilusão.

Apesar da grande dificuldade de se lidar com este tipo de caso, essas evoluções nos têm indicado que não devemos retroceder diante deles, marcando a especificidade do trabalho analítico, trabalho com o significante, que deixa de fora as implicações a que 0 dado biológico pode conduzir.

Intervindo analiticamente nesta intrincada rede de alteridades foi possível dar início a um trabalho que já teve como efeito por a nu a relação significante da imperfeição do filho ao avô falecido, sua deficiência de fala ao traço significante que ligou sua mãe a seu pai.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Optarei por utilizar no texto esta forma de expressão que é sem dúvida um galicismo. Escolho, como aparece neste trecho, "em relação ao outro", ao invés da forma usual, "na relação com o outro", pois aquela parece-me mais adequada para enfatizar o fato de que o outro é somado neste texto como elemento de estrutura e não enquanto outra pessoa. Sigo nisto a opção que fizeram os tradutores dos três seminários citados.
2 No Seminário 11 Lacan vai usar o termo vel, que ele extrai da lógica matemática, para constituir o algoritmo do fantasma. Este termo é um deslizamento significante dentro da obra deste autor. Optamos por usar também no texto a palavra véu, como aparece no texto D'une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose, ou mesmo na Significação do falo numa tentativa de clarear a idéia, remetendo o leitor ao falo, termo a que se refere metaforicamente ao falar em vel, sem entrar no mérito da vertente lógico-matemática que ela implica.