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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.5 n.1-2 São Paulo  1994

 

COMUNICAÇÃO

 

Uma breve reflexão sobre o outro

 

A brief reflexion about the other

 

 

Roberto Gambini

Sociedade Internacional de Psicologia Analítica

 

 

Minha trajetória revela de imediato que tenho sempre estado à procura do Outro em mim mesmo. A formação que eu alcançava no decorrer de meus estudos não me satisfazia, pois parecia não corresponder nunca ao todo, mas apenas a um aspecto do que eu era; assim fui passando do Direito e das Ciências Sociais, da Política e da Sociologia aplicada à área pública, à pesquisa etnológica e por fim à formação analítica no Instituto C. G. Jung de Zurique. Mesmo tendo finalmente ancorado numa área específica de reflexão e atuação profissional (que me permite integrar tudo o que atravessei), sinto que a busca do Outro não tem fim. Agora, soma-se à procura básica, pessoal, aquela que diariamente realizo com meus parceiros de trabalho, meus pacientes eles chegam exibindo uma face que sofre a encobir outra, que esperamos ambos ser diversa.

O tema proposto — o outro na Clínica — corresponde exatamente à experiência que tenho neste momento: falar para um Outro múltiplo, expectante e desconhecido, que me ouve, me olha e pensa o que não sei; eu que perdi o hábito de falar em público e me acostumei, nas manhãs de domingo como esta, a ficar muito quieto e recolhido. E eis-me aqui de repente metido na experiência da troca de palavras por audição crítica. Fazendo e pensando ao mesmo tempo, percebo que o Outro — vocês — pode facilmente ficar tão grande que me esmague, ou tão diminuto que eu não o veja. Escolho então proceder assim: diante do Outro desconhecido, fonte de tremendo mistério, apostemos na coragem de ser, sem garantia alguma. Minha única realidade é meu ser; se ocultá-lo, não comungo com vocês. Só posso, então, falar o que me reflete e colocar sobre a mesa o que trago no bolso (mesmo porque outra coisa não tenho).

Talvez esse procedimento, coletiva ou individualmente, seja de fato algo fundamental — e isso inclui a terapia, que não deixa de ser uma arte do encontro. Não é verdade que o Outro — o próximo, o grupo, o mundo — é sempre visto através do filtro da projeção? Não é por acaso esse o modo mais comum e corrente de funcionarem os relacionamentos? O alheio, o não-eu, vem sempre carregado de qualidades pertencentes a quem vê reconhecidas, não como suas, mas do outro, onde aparecem. O que se vê não é o que está lá, mas espelhos desdobrados de quem olha.

A questão da alteridade na clínica corresponde ao trabalho com as projeções. O assunto, talvez não explicitado, mas vivido entre os dois parceiros do ritual terapêutico, consiste no aprendizado (um começa a descobrir, o outro já sabe um pouco e deverá sempre procurar saber mais) de que a mente humana funciona de uma forma tal que onde não há conhecimento objetivo há um pseudo-conhecimento projetivo. E mais: os conteúdos da psique aparecem primeiro projetados; essa é sua forma natural de aparecer para a consciência. A primeira lição, portanto, é saber que o estado de consciência é um estado de reconhecimento das projeções, quer dizer, o reconhecimento da incompleta objetividade de nosso conhecimento do Outro (isto, aquilo, ele, o grupo, o mundo e, por fim, aquele Eu ou Self que é um Outro para mim).

O reconhecimento e a possível desarticulação de uma projeção, fazendo um conteúdo psíquico retornar para casa, abandonando o Outro onde se alojou e assentando-se no eu ao qual veladamente sempre pertenceu, equivale, portanto, a um desvelamento do Outro, à retirada do véu que nubla a objetividade de minha apreensão de tudo o que me é alheio. O efeito prático desse feito é a desobstrução dos canais de relacionamento. Então, aquelas figuras terríveis de pai, mãe, cônjuge, chefe, vizinho, adversário ou seja lá quem for, ou mesmo certos objetos detestados, situações e atitudes inadmissíveis, espaços ou lugares evitados (ou isso tudo ao contrário, querido e valorizado demais), vão aos poucos perdendo arestas que impedem a comunhão, o convívio ou a mera consciência de que somos todos passageiros do mesmo barco.

Foi precisamente esse o tema que escolhi para minha tese no instituto C. G. Jung: sob que signo plasmou-se uma sociedade a partir da relação inicial entre o europeu conquistador-civilizador e o Outro representado pela população indígena1. O material empírico que analisei foram as cartas enviadas do Brasil no século XVI pelos primeiros jesuítas encarregados da catequese. Meu objetivo, ao estudar cerca de 200 cartas, era extrair e analisar a imagem de índio que se configurou na mente do jesuíta, que outra não era senão a descrição inconfessa da própria sombra da consciência cristã. Como essa sombra, no século XVI e ainda agora (avanço existe, mas circunscrito), não podia ser aceita como parte integrante de uma consciência coletiva que se pretendia apenas luminosa, ela tinha que aparecer em algum lugar, e, de fato, apareceu: do outro lado do oceano, projetada sobre os índios. Quando Nóbrega ou seus irmãos falam dos habitantes da terra, eles não falam de um desconhecido que se esforçariam por conhecer, mas de alguém que admiravelmente já conhecem a priori: os missionários já vêm de Lisboa sabendo que o índio não tem alma e que precisa ser batizado para adquiri-la; que é um devasso necessitado de orientação e um ignorante carente de instrução.

A grande obra catequisadora passa, então, a ser feita em cima da sombra projetada e nunca no lugar devido — na própria consciência européia, da qual uma sombra diabolicamente destrutiva era parte essencial. O jesuíta passa, então, à semelhança de Deus, com quem despudoradamente se identificava, a moldar o barro, visto como disforme, do índio brasileiro, até transformá-lo numa réplica inferior do escultor.

O resultado desse processo histórico sobre o qual se funda nossa sociedade, desse modo de lidar com o Outro que é ensinado a nossos filhos nas escolas como sendo uma obra civilizatória, é o progressivo extermínio da alma indígena. Ou seja, nossa sociedade se constrói sobre os escombros de um genocídio psíquico que vai da quebra da cultura e das relações sociais até a quebra da mitologia e das representações da alma. Quer dizer, em suma: no próprio processo histórico brasileiro podemos ver desde o começo como é tratada a questão da alteridade — não há reconhecimento, mas quebra do Outro.

Talvez estejamos assistindo ao fim dessa história, com o progressivo extermínio das últimas nações indígenas no Brasil. Hoje desponta entre nós um princípio de consciência do que significa essa perda, nós que somos uma sociedade pluralista: nossa riqueza é nossa variedade. Nosso terreno é a alteridade. No entanto, somos uma sociedade incapaz de reconhecer o Outro que poderia torná-la única. A síntese é nossa tentação coletiva, nossa possibilidade de resposta ao mundo do conquistador, mas parecemos fadados à fragmentação.

No meu trabalho diário de encontrar-me com alguém que pede ajuda, sinto-me eu também participante de uma busca: a do Outro que existe nele e em mim, uma dimensão além do ego cotidiano, que só vê até onde seu olhar alcança. Se o todo do ser for uma esfera, o ego não passa de uma pequena mancha na superfície externa dessa esfera. Há, portanto, muito mais que não é conhecido, nem isado, nem reconhecido. Na visão de Jung, ou da antiga sabedoria védica, há um centro nessa esfera que transcende as limitações do ego, sendo por natureza ilimitado, absoluto, atemporal e imanifestado. Ora, qual seria a relação entre esse centro (Atman, Ser, Self) e o ego? A relação é um eixo, um raio que une o ego a esse centro mais profundo, tornando possível a evolução do ego de um estado de arrogante inconsciência de si para outro em que ele se percebe como instrumento de expressão ou veículo de manifestação relativa do Self. Este é um ego maleável, conhecedor de sua fragilidade e de seus limites, democrático a ponto de poder mudar seu prisma, se isso for necessário para expressar um conteúdo central, que na verdade é sua base, é a vida que o anima. Aí temos um caminho para o homem: a busca incessante da possibilidade de expressar algo maior do que esse ser fraco e inseguro que todos somos, o começo da certeza de que um Outro oculto anseia por despertar.

 

 

1 Gambini, R., O Espelho Índio. Os jesuítas e a destruição da alma indígena. RJ., Espaço e Tempo, 1988.