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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.6 n.1 São Paulo  1995

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A escavação do solo pela fêmea da saúva (Atta sexdens rubropilosa)1

 

Seil digging by the female ant

 

 

Fernando José Leite Ribeiro

Instituto de Psicologia - USP

 

 


RESUMO

Após o vôo nupcial, a fêmea da saúva escava um canal vertical de uns 15 cm e uma câmara dentro da qual fica encerrada cuidando da cultura de fungo e da ninhada. Apresentam-se aqui uma descrição da escavação observada em laboratório e diversos experimentos visando a elucidar aspectos causais. Freqüência, amplitude, orientação e velocidade das ações ajustam-se às características do substrato, dando conta de chegar a resultados funcionais. De algum modo, a içá deve medir o comprimento do canal e essa medida é o determinante mais forte da transição entre escavação de canal e escavação de câmara.

Descritores: Formigas. Comportamento de escavação animal. Comportamento instintivo animal. Etologia animal.


ABSTRACT

After its nuptial flight, the female ant Atta sexdens rubropilosa excavates the soil, digging a vertical tunnel some 15 cm deep. At its end, the ant builds a chamber where it remains taking care of its fungus garden and brood. By means of laboratory observations and experiments, a description of the excavation and analysis of some of its causal factors are presented. Frequency, amplitude, orientation and speed of the ant’s behaviour are adjusted to the features of the substrate and functional consequences are achieved. In some way, the female ant must measure tunnel depth and that is the strongest determinant of the transition from tunnel digging to chamber digging.

Index terms: Ants. Animal excavation behavior. Animal instinctive behavior. Animal ethology.


 

 

I. Introdução

Este artigo é uma síntese de algumas partes da tese do doutoramento do Autor, em 1972, sob orientação do Professor Walter H.A. Cunha, e de alguns trabalhos posteriores inéditos. Foi dele a idéia básica de todo o estudo. Naquela ocasião, este Autor apresentou a ele, impresso na tese, um agradecimento que vai aqui repetido:

Para o Professor Walter Hugo de Andrade Cunha, orientador desta tese, vai meu agradecimento maior. Ele acompanhou a pesquisa com amizade e dedicação; ajudou até nas tarefas mais simples, porém árduas, de preparação do material. Nesta tese, e, mais amplamente, em todo meu início de vida profissional, sempre pude contar com sua experiência. (RIBEIRO, 1972).

Normalmente, numa colônia de saúva, nascem, em determinada época do ano, milhares de machos e fêmeas, ambos alados. Essas formas sexuadas abandonam o formigueiro coletivamente, no que constitui a revoada ou vôo nupcial. Após esse vôo, o macho logo morre; a fêmea também desce ao solo, livra-se de suas próprias asas e em seguida escava, durante horas, um buraco no chão. É um canal aproximadamente vertical, de alguns centímetros, no fundo do qual o inseto escava uma pequena câmara. Com parte da terra retirada durante a ampliação dessa câmara, a içá obstrui o acesso à superfície, entupindo o canal de alto a baixo. Encerrada, ela expele uma pequena pelota de fungo trazida do formigueiro que lhe deu origem numa cavidade infra-bucal. Passa a tratar esse fungo com fezes e outros cuidados, e inicia a postura de ovos. Desenvolvendo-se o fungo, a içá organiza-o em forma de bandeja e aí coloca os ovos. Logo aparecem as primeiras larvas que recebem da fêmea alimentação e outros cuidados. Diversas semanas depois da revoada, começam a nascer as obreiras que dão início à expansão da colônia (cf. Autuori, 1942; algumas observações anteriores em Sampaio, 1894; Ihering, 1898; Goeldi, 1904; Huber, 1908).

As observações e os experimentos sintetizados neste artigo visaram a conseguir uma descrição da escavação do solo e a contribuir para o entendimento da causação de alguns de seus aspectos.

 

II. Método

Os trabalhos de laboratório realizaram-se no Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, e os de campo na Cidade Universitária dessa instituição.

Os animais utilizados, Atta sexdens rubropilosa, Forel, 1908, foram quase todos capturados na Cidade Universitária, e alguns em outros locais da cidade de São Paulo. As capturas foram feitas em dias de revoada.

A maioria dos sujeitos foi pega após a revoada, no momento em que o animal andava no solo, após haver destacado suas próprias asas. O modo de pegar era simplesmente prender o tórax do inseto, com delicadeza, entre o polegar e o indicador e colocá-lo num frasco de captura, ou, então, empurrá-lo, com cuidado, diretamente para dentro desses frascos.

Desde o momento da captura até a ocasião em que fosse utilizada, a içá era mantida individualmente, no frasco de captura.

A içá mede aproximadamente 2,5 cm de comprimento. As patas maiores são as posteriores, com cerca de 2 cm de comprimento; as médias têm cerca de 1,5 cm e as anteriores cerca de 1,3 cm. As antenas cerca de 0,7 cm. O tórax tem cerca de 0,7 cm de altura. As mandíbulas, bastante denticuladas (8 dentículos) têm pouco mais de 3 mm de comprimento; a borda denticulada cerca de 2 mm. A maior largura da mandíbula é cerca de 1 mm, junto à extremidade proximal da borda denticulada. As mandíbulas são acentuadamente curvadas formando uma concavidade ventral. A ponta da mandíbula é fina e dura.

Pode-se afirmar, com alguma segurança, que os sujeitos capturados sem asas são fêmeas fecundadas.

Material

Os frascos de captura são frascos cilíndricos de vidro marrom escuro, com 5,5 cm de altura e 4 cm de diâmetro. Têm tampa de plástico, que se encaixa por pressão. As tampas foram dotadas de um pequeno orifício para ventilação.

Para conservar a içá por muitos dias nos frascos de captura, basta fornecer-lhe umidade. Nos casos em que essa conservação prolongada foi necessária, encaixou-se um pedaço de papel absorvente na face interna da tampa, vertendo-se aí, periodicamente, algumas gotas de água. Nessas condições muitas içás desenvolvem a colônia inicial nos frascos.

As caixas experimentais são recipientes com terra calcada. Foram usados vários tipos de caixas de vidro, acrílico ou madeira. São caixas abertas em cima e em baixo em forma de paralelepípedo ou cilindro com lado ou diâmetro de 10 cm e altura variável desde 3 cm até 15 cm. Foram usadas individualmente ou empilhadas para formar colunas de terra de mais de 15 cm. O vidro e o acrílico usados são incolores e transparentes. Placas de acrílico funcionam como tampa e fundo quando necessários.

A terra utilizada foi solo vegetal comum, retirado de um local da Cidade Universitária que não sofrera terraplanagem nem nenhum outro tratamento. Algumas içás foram vistas escavando no local. A terra, transportada para o laboratório, recebia uma cuidadosa limpeza que consistia em retirar folhas, raízes, gravetos, pedras, animais e outros materiais. Na ocasião do uso, essa terra era umedecida e colocada nas caixas, pouco a pouco, e prensada por uma placa metálica presa a uma haste perpendicular. Com prática, consegue-se tal homogeneidade nesse procedimento que a quantidade de terra pré-determinada para dar a densidade desejada entra na caixa sem sobrar nem faltar. Essa densidade foi de 1,55 a 1,60 (g/cm3), em razão de ter sido essa a densidade encontrada no local de onde provinha a terra, a partir do exame de 5 blocos. As observações foram feitas em temperatura ambiente de primavera, que esteve quase sempre entre 20° e 25°.

 

III. A técnica de escavação

Por inspiração do Prof. Walter Cunha foi feita uma descrição pormenorizada de todas as etapas da escavação. Por brevidade, aqui estão uma síntese geral das observações e algumas características dessa prolongada seqüência de comportamentos.

Toda escavação, por animal ou máquina, impõe, basicamente, duas tarefas: 1) uma porção do substrato (terra, areia, rocha) precisa ser destacada e 2) esse material precisa ser transportado. Na prática, freqüentemente interpõe-se uma terceira tarefa: os fragmentos resultantes da primeira tarefa precisam ser agrupados antes do transporte. As alternativas a essa atividade intermediária são: a) transportar diretamente cada porção destacada, evitando, assim, o acúmulo de fragmentos; b) transportar varrendo os fragmentos; c) transportar os fragmentos, um a um. A possibilidade de empregar essas alternativas depende da forma pela qual a primeira tarefa é desempenhada, do tamanho dos fragmentos destacados, das propriedades do instrumento de transporte e das características geométricas do buraco escavado.

Todas as espécies animais, nos diversos grupos2 em que a escavação apareceu, independentemente, no decorrer da evolução, têm que desempenhar aquelas tarefas ao escavar. Em muitos casos a escavação não é profunda, e o animal simplesmente destaca uma porção do substrato e o transporta com movimentos contínuos sem locomoção. Nos casos em que a escavação se aprofunda, a separação entre as tarefas aparece nitidamente.

O trabalho da içá, escavando um canal vertical, relativamente extenso (diversas vezes mais comprido que seu corpo) e estreito (cerca de 1 cm de diâmetro), ampliando uma câmara e entupindo o canal, inclui-se, com certeza, entre os casos de escavação mais complexa.

O Prof. Walter Cunha (1968) distinguiu quatro operações na técnica de escavação da içá: furar, juntar, pegar e transportar. Naturalmente, cada etapa inclui diversos movimentos de diversas partes do corpo. Temos então, resumidamente, dois tipos de problemas: a) é preciso saber como o inseto realiza essas tarefas; quais são os movimentos empregados? e b) o que faz com que esses movimentos ocorram? O que leva o animal a desempenhar este ou aquele movimento nesta ou naquela ocasião?

As operações serão divididas assim:

a) retirada de uma porção de terra

b) agregação do torrão

c) compressão do torrão

d) transporte

e) deposição do torrão

f) retorno.

Essa é a ordem mais freqüente de ocorrência durante o aprofundamento do canal e parte da construção da câmara. Quando se inicia o entupimento do canal, o item e desaparece, sendo substituído por colocação do torrão. Terminado o entupimento, essa seqüência se modifica: o conjunto de operações então realizado recebe o nome de acabamento da câmara.

A ocorrência do conjunto a ... f é uma viagem.

As operações b e c, juntas, são denominadas formação do torrão ou da carga.

Não há uma separação nítida, no tempo, entre a e b nem entre b e c.

Nos casos em que a içá encontra uma carga pronta, ocorre claramente a operação pegar; nos outros casos, em que ela forma a carga, o pegar confunde-se com a compressão do torrão.

A retirada de uma porção de terra

A mordida mandibular é o comportamento mais diretamente responsável pela escavação. É ela que desprende porções de terra do local onde o inseto trabalha. O mesmo acontece em todas as obreiras (por ex. Formica lemani) observadas por Sudd (1969). A içá enfia as mandíbulas na terra, abduzindo-as previamente. Na terra, as mandíbulas são fechadas e o corpo todo é movido um pouco para trás, sem locomoção, isto é, sem que as patas se levantem do substrato. Simultaneamente, a cabeça move-se um pouco no sentido ventral. O resultado desses movimentos é a retirada de uma porção de terra que se quebra em fragmentos.

Um fato curioso, visível apenas raramente na içá, e com certeza muito difícil de ver, se é que ocorre, nas obreiras de Sudd, é o aparecimento da língua (maxila e lábio) logo antes de a mordida iniciar-se. Quando as condições de observação favorecem, vê-se que a língua se projeta um pouco para fora no momento em que a içá abre as mandíbulas. Talvez isso não ocorra sempre, porém não é uma decorrência necessária de qualquer abertura das mandíbulas, pois nas aberturas agressivas, que são ainda maiores do que as de escavação, não se vê a língua (cf. Wheeler, 1910, p.19 acerca da independência entre os movimentos de mandíbulas e maxilas e lábio). É possível, assim, que a língua exerça um papel sensorial durante a escavação.

Como vimos, a mordida da içá não consiste em pegar grãos de terra, mas em puxar uma porção, que se quebra em fragmentos pequenos. Em seguida, seu corpo avança novamente, sem locomoção, e ocorre outra mordida; enquanto as mordidas se sucedem, as patas anteriores iniciam a formação do torrão.

A agregação do torrão

Durante a sucessão de mordidas, a içá inicia, com movimentos das patas anteriores, a formação do torrão:

a) A terra retirada pelas mandíbulas se acumula sob toda a face ventral do tórax (e não apenas sob o protórax), porém não exclusivamente aí. Espalha-se também para os lados do tórax e da cabeça.

b) Os movimentos das patas anteriores não são apenas para a frente e para trás, em linhas paralelas ao corpo do animal, mas também em linhas inclinadas em relação ao eixo longitudinal da içá. O grau dessa inclinação varia muito.

c) Aparentemente a junta mais ativa não é a primeira, coxo-pleural, porém aquela entre o fêmur e a tíbia. Essa é uma impressão muito forte do observador, apesar de as patas moverem-se rápida e repetidamente durante o processo.

d) O ângulo fêmur / tíbia varia muito, isto é, a amplitude dos movimentos é extremamente variável.

e) As patas anteriores movem-se independente, alternada e também sincronicamente. Os movimentos mais freqüentes são os alternados, que são também mais amplos. Os sincrônicos ocorrem ao fim da agregação do torrão e também na compressão.

f) Com esses movimentos, as patas puxam os fragmentos para baixo do corpo. Forel (1921-1923, V.3, cap. IV) atribui às patas anteriores das formigas o principal papel no que está sendo chamado aqui de "retirada de uma porção de terra." (cf. também citações de Forel por Sudd, 1969 e, literalmente, por Wheeler, 1910). Wallis (1962) afirma o mesmo.

Sudd teve inicialmente alguma dificuldade quanto à função dos movimentos das patas anteriores, mas concluiu, depois de fazer análises de transição, que elas não fazem a escavação propriamente dita.

É provável que a dificuldade de Sudd se deva principalmente a problemas técnicos de observação, em especial às pequenas dimensões dos animais, pois, na içá, mesmo com uma observação sumária, conclui-se, sem qualquer dúvida, que os movimentos têm a função de formar o torrão.

Vê-se, inequivocamente, que os tarsos puxam a terra. A amplitude dos movimentos vai diminuindo no decorrer da formação da carga, e se porventura o torrão se desfaz antes do transporte, a amplitude aumenta e os tarsos vão buscar os fragmentos espalhados.

A independência dos movimentos, quando ocorre, decorre de uma das patas ocupar-se de um fragmento particular. Nas raras vezes em que a içá encontra um torrão natural aproximadamente do tamanho dos que ela prepara, as mandíbulas prendem-no e o transporte é iniciado sem que ocorram os movimentos de patas, e o mesmo acontece quando lhe é dada uma carga artificial de tamanho adequado.

Wheeler (1910, p.195), sem informar qual a espécie observada, afirma que formigas sem as patas anteriores "são incapazes de escavar ou construir sem grande dificuldade e logo abandonam completamente o trabalho." Em nossas observações, uma içá mutilada na junta entre a tíbia e fêmur das duas patas anteriores foi capaz de escavar um canal mais curto (6 cm) e de diâmetro enorme (2 cm) e deu início a uma câmara, antes de morrer. A agregação dos torrões: a terra era juntada por um conjunto complicado de movimentos dos fêmures, da cabeça, das patas médias e do abdomem. A maioria desses movimentos parece um uso improvisado dos comportamentos de compressão do torrão.

A compressão do torrão

a) No fim da formação do torrão, as patas anteriores realizam outro tipo de movimento. A tíbia é dobrada sobre o fêmur, de modo que o ângulo, interno, ventral, entre essas duas partes da pata passa a ser menor do que 50° e assim as garras perdem contato com a superfície do substrato. Nessa posição, com a tíbia agora imóvel em relação ao fêmur, a pata move-se em direção ao corpo do animal. Como as duas patas movem-se sincronicamente, a terra que se encontra sob o tórax é comprimida dos dois lados por tarsos, tíbias e fêmures. Essa compressão, esse aperto que as patas anteriores exercem sobre o torrão em formação, repete-se cerca de três vezes antes de iniciar-se o transporte; ao repetir-se o movimento, o ângulo entre a tíbia e o fêmur praticamente não se altera; apenas o conjunto tarsos / tíbia / fêmur é afastado um pouco do torrão e o comprime novamente. Note-se que esse conjunto, essas três partes, compreende quase toda a extensão da pata. Dessa forma, desprezando-se as partes superiores, poder-se-ia dizer que a pata fica "dobrada", assim como os braços de um homem podem dobrar-se e, nessa posição, comprimir uma carga que esteja junto ao peito, com a diferença principal que, no homem, os cotovelos apontariam para baixo, para os pés, e, na içá, eles apontam para a frente.

b) Também as patas médias participam da formação do torrão. Sua intervenção se dá a partir do fim da agregação da carga, de maneira muito semelhante à descrita em (a), com referência às patas anteriores. Há flexão acentuada da tíbia sobre o fêmur, imobilização de ambos, um em relação ao outro, movimentação da pata, assim dobrada, em direção ao corpo, com a conseqüente compressão da terra. Esses movimentos são também sincrônicos e ocorrem cerca de três vezes antes do transporte.

c) O tórax e a cabeça também participam da compressão. Quando as patas anteriores e médias executam os movimentos de compressão, as garras dessas patas não mais se apoiam no substrato. A cabeça, curvada ventralmente, fica por baixo do torrão e a face ventral do tórax repousa sobre o torrão.

O transporte

Durante a escavação do canal, e no início da construção da câmara, a içá, após alguns movimentos de compressão, faz o transporte do torrão, isto é, vai de onde se encontra até a superfície. A certa altura da escavação da câmara, começando o entupimento do canal, o ponto final do transporte deixa de ser a superfície. E quando o inseto já está encerrado na câmara o transporte, naturalmente, é apenas interno.

a) Durante a escavação do canal, o primeiro indício que o observador tem de que a compressão do torrão foi concluída e que vai começar o transporte é um pequeno empinamento do gastro do inseto. No entanto, esse empinamento é quase sempre precedido por um período de um segundo, ou pouco mais, de total imobilidade do animal, no que talvez seja a compressão máxima.

b) Em seguida ao empinamento, as patas médias e anteriores esticam-se e tocam o substrato, a locomoção para trás começa e a cabeça se ergue, saindo de sua extrema flexão ventral.

c) A carga fica quase toda abaixo das mandíbulas, estendendo-se para trás, para a frente e para os lados delas.

d) As mandíbulas, um pouco abduzidas, prendem o torrão. No fim da compressão, o torrão não é solto; as mandíbulas, que participam da compressão, já o seguram.

e) As antenas se mantêm esticadas, pouco móveis, acima do torrão, um pouco inclinadas para cima, apontando direções divergentes.

f) Foram feitas algumas observações com cargas artificiais:

1) pelotas de isopor, aproximadamente esféricas, com diâmetros que variavam de 5 a 8 milímetros.
Seis dos sete sujeitos usdos pegaram, em todas as vezes, as pelotas com as mandíbulas e as transportaram para a superficie, depositando-as como o fariam com cargas naturais. Em nenhuma vez essas seis içás executaram movimentos de agregação ou compressão com as patas. O outro sujeito comportou-se da mesma forma nas duas primeiras vezes, porém, na terceira, agiu assim: chegou ao fundo, mordeu a terra após dois ou três segundos, moveu as patas anteriores em agregação, pegou a pelota com as mandíbulas, executou um movimento de compressão com as patas anteriores e médias, e iniciou o transporte. Em quinze vezes subsequentes ela comportou-se como nas duas primeiras, isto é, os movimentos de patas.

2) miçangas comuns em forma de argola, de 3 milímetros de diâmetro e um orifício de menos de 1 mm. Em nenhuma vez, o único sujeito usado levou uma só miçanga à superfície, realizando, em todas as vezes, os movimentos de escavação que freqüentemente agregavam a miçanga a um torrão. Quando meio centímetro do canal foi enchido com miçangas, o animal executou repetidamente todos os movimentos de escavação, chegando diversas vezes a comprimir grupos de miçangas como se fossem um torrão. Porém, quando o transporte começava, a carga imediatamente se desfazia, é claro, e a içã retomava seus trabalhos vãos. Contudo, um pouco de terra logo se misturou às contas, possibilitando a agregação, e a içá começou a transportá-las em pequenos "torrões" que, algumas vezes, eram duas miçangas grudadas com terra.

g) No laboratório ou no campo, durante toda a escavação do canal e o início da câmara, a içá caminha para trás, ao subir à superfície. Chegando lá, quando seu corpo está inteiramente fora do canal, ela faz cerca de um quarto de volta a mais, volta para a esquerda ou para a direita e, em seguida, anda para a frente e deposita a carga.

h) Algum tempo depois do início da escavação da câmara, a içá deixa de subir andando para trás, passando a fazê-lo de frente. Essa alteração depende, naturalmente, do tamanho da câmara em construção. Parece que o animal se vira logo que há espaço suficiente, sendo este, portanto, uma condição não só necessária como também suficiente para aquele comportamento.

A deposição do torrão

O fim do transporte, durante a escavação do canal e início da câmara, é a deposição da carga na superfície. A içá abre as mandíbulas, eleva as duas patas anteriores e, tocando o torrão com as garras dessas patas, empurra-o para a frente, com movimentos alternados, um empurrão de cada pata. A abertura das mandíbulas e o empurrão ocorrem simultaneamente. A cabeça, que permanece erguida durante o transporte, continua assim no momento da deposição. Esses empurrões são funcionais e se modificam de acordo com as dificuldades. Por exemplo, se a superfície disponível para a deposição é experimentalmente reduzida, o animal empurra com insistência os torrões contra a parede da caixa.

O retorno

Quase sempre, terminada a deposição, a içá retorna imediatamente para o canal. Quase sempre, ela faz meia volta, virando-se no sentido oposto ao do giro feito no fim do transporte; não completa a volta iniciada com aquele giro. Ela desce rapidamente o canal, andando de frente. Quando, já iniciada a construção da câmara, ela sobe de frente, o retorno ocorre da mesma forma.

O entupimento do canal

A certa altura da construção da câmara, a içá pára de depositar os torrões na superfície, passando a colocá-los junto às bordas do canal. Depois de algumas viagens, a entrada do canal está vedada e a içá continua a transportar torrões, colocando-os sob os torrões já colocados, até entupir todo, ou quase todo, o canal. Ela usa as patas dianteiras e a face dorsal das mandíbulas para prender o torrão contra a gravidade. Os movimentos variam em freqüência, amplitude, orientação e velocidade para dar conta da tarefa e impedir ou reduzir as perdas de fragmentos que possam cair.

A escavação e o acabamento da câmara

Os trabalhos de construção da câmara podem ser divididos em duas fases. Uma vai desde o fim do aprofundamento do canal até o fim do entupimento. A segunda fase - o acabamento - parece ter um fim gradual.

A primeira fase consiste principalmente em escavar, com orientação variável, crescentemente horizontal. Na segunda fase, a içá acerta e alisa a superfície interna da câmara, com pequenas mordidas em saliências e preenchimento de reentrâncias, assumindo, às vezes, posições retorcidas ao cuidar do teto.

É possível, em laboratório, fazer um arranjo que permita colocar miçangas dentro da câmara onde uma içá esteja instalada, cuidando de seu jardim inicial de fungo e de seus ovos e larvas. Foram colocados dois conjuntos de 10 miçangas em duas câmaras. Nos dois casos, as miçangas foram pegas, uma a uma, pelas mandíbulas e levadas para longe do fungo. Em muitas horas de observação não foi visto nenhum movimento de agregação.

A velocidade da escavação

Autuori (1942), observando a construção do ninho em condições naturais, que a içá gasta de 6 a 10 horas desde o início da escavação até o início do entupimento.

No laboratório, a içá gasta, nessa primeira parte da escavação, de 7 a 11 horas. Foram cronometradas cerca de 300 viagens durante o aprofundamento do canal. Duram, em geral entre 1 e 2 minutos. A içá progride cerca de 3 cm por hora, em média.

 

IV. O comprimento do canal

O comprimento final do canal é conseqüência, evidentemente, do fato de a içá deixar de aprofundá-lo, passando a abrir a câmara. Quais são os fatores causais que produzem essa alteração em seu comportamento? Dada uma içá que tenha iniciado a câmara quando o canal media x centímetros, trata-se de saber por que parou de aprofundá-lo nessa ocasião, e não antes, com um canal menor que x, ou depois, com um canal maior.

Visando a iniciar a exploração desse problema, foi realizado um pequeno conjunto de experimentos e observações cujo relato será dividido aqui, em itens, numa ordem de apresentação que não acompanha, exatamente, a seqüência cronológica dos trabalhos.

Em primeiro lugar, serão apresentadas as medidas encontradas por Autuori.

Os canais naturais medidos por Autuori

Autuori (1942), trabalhando no campo, encontrou, em onze casos, canais com profundidade que variavam de 85 a 150 milímetros. Esses valores incluem a altura da câmara.

Tomando-se apenas o comprimento do canal, isto é, subtraindo-se a altura da câmara, a distribuição vai de 65 a 130 milímetros; a média é 92,5 mm.

O comprimento do canal nas caixas experimentais

O comprimento do canal foi medido tomando-se, em milímetros, a profundidade em que a câmara se encontrava, menos sua altura, isto é, a medida do comprimento do canal era a distância, na vertical, entre o teto da câmara e a superfície. As medidas foram arredondadas para centímetros.

Os canais não são sempre perfeitamente verticais; os desvios encontrados - nunca superiores a 15° - tornam imprecisa a medida definida acima. A correção, geométrica ou física, foi aqui desprezada por ser irrelevante para as demonstrações.

Em algumas dezenas de medidas, o comprimento médio foi de 18,5 cm, significativamente maior que o de Autuori.

Em colônias naturais, encontradas no campus da Cidade Universitária da USP, temos 14,5 cm em média. Essas diferenças se devem à dificuldade da primeira tarefa da seqüência de escavação. Em solo argiloso varia muito a facilidade de se destacar uma porção de terra. Em nosso laboratório encontramos desde canais muito curtos até fracassos completos quando colocamos içás em caixas com terra endurecida, ainda que a densidade fosse a mesma das caixas experimentais normais. Stein e Xavier (1984), investigando, em ambiente natural, especificamente a relação entre densidade do substrato e comprimento do canal, encontraram uma correlação negativa significante entre essas medidas, com uma amostra de 16 içás.

Escavação no escuro

Em ambiente natural, a içá recebe pouca luz quando está dentro do canal, durante a escavação. E quando vai à superfície recebe ou não recebe luz, dependendo de quanto tenha logrado fazer até o fim do dia. No laboratório, trabalhando junto à parede transparente das caixas, ela recebe luz artificial o tempo todo, mesmo depois de iniciar o entupimento do canal.

Essas diferenças de iluminação não afetam o comprimento do canal. Colocadas em total escuridão, as içás escavam canais e câmaras em nada diferentes dos que são feitos no laboratório iluminado.

Escavação 30 e 240 horas após a captura

Ao investigar as causas do comprimento do canal, não se deve esquecer que a içá, após deixar o formigueiro onde nasce, passa por uma longa seqüência de atividades muito diferentes: voar, copular, pousar, destacar as asas, escavar canal e câmara, limpar-se, regurgitar fungo etc. Certamente, todos esses comportamentos dependem de processos endógenos neurais e hormonais.

Segundo Autuori (1942), 48 horas após o início da escavação a içá já expeliu o fungo3. Em laboratório, 30 horas após a captura, muitos animais mantidos nos frascos de captura já regurgitaram. O fato de o animal não escavar, portanto, não impede a regurgitação. Por outro lado, se, em condições naturais, a içá regurgitar antes de estar na câmara, é claro que a colônia não pode se desenvolver, pois o fungo é indispensável para estas formigas. É crítica, portanto, a relação temporal entre escavação e regurgitação.

Oito içás que, 30 horas após a captura, já haviam regurgitado o fungo e dedicavam-se a cuidar dele nos frascos de captura, foram postas para escavar e fizeram canais de 17 cm, em média.

Essas içás realizaram uma etapa de seu comportamento reprodutivo - escavação do ninho - após a realização de outra - regurgitação do fungo - que ocorre antes na seqüência normal. Além disso, o comprimento do canal não foi afetado - ou, pelo menos, não foi drasticamente afetado - pelo fato de o animal ter regurgitado, nem pela longa permanência no frasco de captura.

Içás postas na superfície das caixas experimentais, dez dias depois da revoada, também escavaram canais e câmaras; os canais ficaram com 6,5 cm, ou seja, muito pequenos. É claro que essa escavação tardia não tem significado funcional. A içá não tem uma segunda porção de fungo para regurgitar e fica na câmara até morrer.

Escavação após escavação completa de canal e câmara

Em sua longa vida, a içá escava canal e câmara somente no dia do vôo nupcial. No entanto, retirada de sua câmara, 30 horas após a captura, e colocada na superfície, ela escava de novo e a câmara é normal e bem acabada, embora inútil. O canal, contudo, fica significativamente mais curto que o anterior.

Escavação após escavação parcial do canal

Interrompeu-se a escavação de 8 içás, exatamente quando o canal atingia o 10° ou 11° centímetro. Colocadas imediatamente na superfície de outras caixas, elas recomeçaram a escavação. Os canais atingiram 18,1 cm, ou seja, foram iguais aos de içás que estejam escavando pela primeira vez.

Escavação com perda de trechos do canal

Empilhando caixas de 3 cm de altura, é possível ir retirando trechos do canal durante a escavação. Isto foi feito com 10 içás. Sempre que a içá atingisse aproximadamente o 9° centímetro, o experimentador retirava uma caixa (a 2ª para não alterar a superfície), e o animal continuava a escavação, agora com 6 centímetros de profundidade. O resultado foi que as içás escavaram de 30 a 76 cm no total (a soma de todas as caixas), com média de 61 cm. O procedimento terminava quando a içá parasse de aprofundar o canal e começasse, finalmente, a construir a câmara.

Escavação com ganho de trecho do canal

Usando trechos de canal escavados para outras içás, é possível aumentar artificialmente o canal de uma içá que esteja escavando. Nesse caso, as içás aceitaram os 10 cm de trecho introduzidos, continuaram a escavar, e cessaram o aprofundamento quando o canal total atingiu 23 cm, em média. Ou seja, escavaram 13 cm, muito menos do que o normal do laboratório.

Escavação com perda de trecho do canal após o início da câmara

Foram retirados 10 cm de canal de 8 içás que estavam com a câmara em construção (já saíam de frente) e cujos canais tinham, em média, atingindo 17 cm. Elas ficavam, portanto, com canais de 7 cm em média. O resultado foi que 3 desses animais continuaram a construir a câmara, e os outros 5 aprofundararam apenas 7 cm, ficando, portanto, com canais menores que o normal.

 

V. Conclusão

As observações mostram parte da complexidade dessa prolongada seqüência instintiva de comportamento. A vida natural da içá simula um experimento de isolamento e permite afirmar que toda a fundação de nova colônia é feita sem experiência prévia. Essa afirmação é plenamente corroborada por observações da escavação de obreiras nascidas em cativeiro e controladamente desprovidas de contato com a terra. A seqüência instintiva da içá não é um "esquema básico" herdado para ser aperfeiçoado, tornado plástico pela experiência e intercalado com seqüências adquiridas por aprendizado. Não obstante, é um conjunto de comportamentos suficientemente maleáveis para dar conta do contato organizado e manipulador de um ambiente complexo como é a terra em fragmentação. É claro que é possível - mediante intervenção experimental adequada - desorganizar o comportamento da içá, levando-a a fazer absurdos, do ponto de vista funcional. Isso é sempre possível, seja qual for o animal. A plasticidade exibida pela içá, no entanto, mostra que a teoria psicológica precisa tornar verdadeiramente científicos conceitos como "objetivo", "valor de busca" etc.

O comprimento do canal parece ser determinado, predominantemente, por alguma mensuração que a içá deve obter ao percorrê-lo, seja ao subir ou ao descer ou ambos. Brockmann (1980), estudando a vespa Sphex ichneumoneous, acredita que esse inseto escava até conseguir um certo comprimento ou alguma condição do substrato. Na içá, pelo menos, a questão não é tão simples. O comprimento do canal varia em função das dificuldades da escavação da fase do comportamento reprodutivo em que se encontre a içá, e da fadiga (inferida) ou da quantidade de escavação que já tenha feito. Muito particular e significativo nesses efeitos é o fato de eles se darem sobre algo que tem de ser chamado de comportamento de aprofundar o canal, e não sobre o comportamento de escavar, pois o que acontece é que o inseto pára de aprofundar o canal e continua a escavar na construção da câmara. Todos os comportamentos continuam a ocorrer; o que muda é a orientação média da retirada dos fragmentos de terra. A teoria, portanto, precisa dar conta de unidades comportamentais desse tipo, que não se definem de maneira simples.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Parte da tese de Doutorado em Psicologia - área de concentração: Psicologia Experimental - IPUSP, 1973. Orientador: Walter Hugo de Andrade Cunha.
2 Por exemplo, insetos, mamíferos, crustáceos, moluscos, répteis, pássaros e outros.
3 Autuori investigou o desenvolvimento do sauveiro inicial, condições naturais, marcando os locais de penetração de içás no solo e abrindo alguns ninhos por dia, todos os dias.