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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.6 n.2 São Paulo  1995

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Winnicott e o pensamento pós-metafísico1

 

Winnicott and post-metaphysics thought

 

 

Zeljko Loparic

Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica - PUC/SP - Departamento de Filosofia - UNICAMP

 

 


RESUMO

O propósito do trabalho é o de esboçar uma leitura heideggeriana de Winnicott. Partindo do fato de que o convite para tratar filosoficamente certos problemas fundamentais da psicanálise vem do próprio Freud, o autor tenta mostrar que seu pensamento pode ser proveitosamente aproximado do pensamento de Winnicott. Enquanto o filósofo postula a diferença entre os múltiplos sentidos de ser das coisas do mundo e o sentido de ser do homem, o psicanalista propõe que o processo de constituição do sentido de ser, ignorado pela psicanálise tradicional, é uma tarefa que faz parte dos problemas intrínsecos ao existir humano desde o início e que essa questão não pode mais ser acomodada no interior da metafísica da representação. O texto não se propõe a estabelecer uma unidade sistemática entre os dois pensadores, senão, antes uma afinidade conceitual que se situa não apenas na área da epistemologia, mas sobretudo na da ontologia.

Descritores: Winnicott, Donald W., 1896-1971. Psicanálise. Metafísica. Metapsicologia.


ABSTRACT

The aim of this article is to sketch a Heiddegerian reading of Winnicott. Starting from the fact that the invitation to deal philosophically with fundamental problems of Psychoanalysis comes from Freud himself, the author tries to show that Heideggers ideas might be close to Winnicott's. While the philosopher presents the difference between multiple senses of being of objects and of being a man, the psychoanalyst states that 1) the process of constitution of sense of being, although it is ignored by traditional Psychoanalysis, is a task that makes part of intrinsical problems of the human being, since the very beginning; 2) this question cannot be accommodated inside the metaphysic of representation. The author does not intend to state a systematical unit between the two thinkers but only to show a conceptual affinity not only in the area of Epistemology and but also in the area of Ontology.

Index terms: Winnicott, Donald W., 1896-1971. Psychoanalysis. Metaphysics. Metapsychology.


 

 

1. SOBRE ALGUMAS RESISTÊNCIAS POSSÍVEIS A LER WINNICOTT A PARTIT DA FILOSOFIA

O meu propósito no presente trabalho é o de esboçar uma leitura heideggeriana de Winnicott. À primeira vista, tal empreendimento poderia parecer problemático. Para começar, não são poucos os psicanalistas que, levados pela crença de que a psicanálise é a instância intransponível para se avaliar a cultura ocidental no seu todo, imaginam-se dispensados de confrontação com a filosofia. A fim de fundamentar tal atitude, recorrem a Freud. De fato, em certos textos, Freud dá a impressão de querer reduzir a filosofia a um ou outro tipo de formação patológica. Uma vez ele a aproxima da paranóia, outra, da esquizofrenia. Em Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1933), ele opõe a psicanálise, enquanto saber que progride passo a passo, à filosofia que tenderia a oferecer a solução geral de todos os problemas do mundo e da vida humana.

Os limites dessas observações não são difíceis de detectar. Se Freud hesita quanto à patologia que caracterizaria os filósofos, é porque não sabe especificar essa patologia. Quanto à idéia de que a filosofia se proporia a resolver todos os problemas do mundo, ela se aplica tão somente a sistemas do tipo hegeliano, desprezados por Freud e pela ciência dos seus dias, mas não à filosofia em geral. A marca registrada de toda a filosofia crítica é precisamente a tese de que o ser humano padece de problemas inevitáveis e, no entanto, comprovadamente insolúveis. Freud conhecia muito bem a diferença entre o hegelianismo e o criticismo, tendo feito repetidas referências positivas a filósofos da linhagem crítica. Em mais de uma oportunidade, ele discute seriamente com Kant: em 1915, por exemplo, quando recorre a Kant para apresentar a tese da incognoscibilidade do inconsciente, ou, em 1920, quando, opondo-se a Kant, reafirma a atemporalidade do inconsciente. Em 1926, na sua Selbstdarstellung, Freud admite que existe "uma ampla concordância entre a psicanálise e a filosofia de Schopenhauer" (Schopenhauer conhecia, diz ele, "o primado da afetividade, a significação predominante da sexualidade e até mesmo o mecanismo do recalque"). Quanto a Nietzsche, "as suas antecipações e idéias coincidem freqüentemente e da maneira mais surpreendente com os resultados trabalhosos da psicanálise". Em 1933, ao examinar mais uma vez a tese da atemporalidade do inconsciente, Freud diz que esse resultado altamente estranho "ainda aguarda uma apreciação pelo pensamento filosófico". Não resta a menor dúvida de que, para Freud, a filosofia não era, tal como a religião judaico-cristã, uma ilusão disciplinadora ou consoladora, mas um elemento da cultura ocidental aparentado, assim como a própria psicanálise, com a ciência, mensageira do Deus Logos.

O convite a tratar filosoficamente certos problemas fundamentais da psicanálise vem, portanto, do próprio Freud. Mesmo assim, ainda poderia restar uma dúvida quanto ao projeto de tentar filosofar sobre Winnicott. O que poderia um psiquiatra, formado em medicina, ter a ver com a filosofia, sobretudo com a filosofia de Heidegger, pensador do fim da metafísica? Uma primeira resposta a essa pergunta é que Winnicott não é um pediatra qualquer: para se fazer entender, ele recorre muitas vezes não somente aos poetas, teólogos e místicos, mas também aos filósofos. Por outro lado, Heidegger, pensador pós-metafísico, tampouco pratica a filosofia do tipo meramente acadêmico. A sua pergunta básica referente ao sentido do ser é, ao mesmo tempo, a mais teórica e a mais concreta. Embora seja, sem dúvida, o mais abstrato dos grandes pensadores ocidentais, Heidegger é, não obstante, um filósofo da concretude. É precisamente esse fato que nos permitirá estabelecer, no que segue, uma conexão absolutamente surpreendente, a saber, que a tarefa principal de um bebê winnicottiano é, no fundo, a mesma que a do estar-aí humano entendido à maneira de Heidegger. Desde a primeira mamada até a última tragada, o ser humano tem o mesmo problema central identificado por Winnicott e Heidegger como o problema do sentido do ser.

Disse que, para se fazer entender, Winnicott recorre freqüentemente a fontes distintas da psicanálise propriamente dita. Cito um exemplo. Na Introdução a uma das principais coletâneas de seus artigos, Brincar e realidade, escrita em 1971, pouco tempo antes da sua morte, Winnicott queixa-se da incompreensão dos psicanalistas acerca de uma das suas descobertas principais, os fenômenos transicionais. Ele escreve:

Quando volto o olhar para a última década, fico cada vez mais impressionado pela maneira como essa área de conceitualização tem sido negligenciada não só na conversação analítica que está sempre se efetuando entre os próprios analistas, mas também na literatura especializada. Essa área de desenvolvimento e experiência individuais parece ter sido desconsiderada, enquanto a atenção se focalizava na realidade psíquica, pessoal e interna, e sua relação com a realidade externa ou compartilhada. A experiência cultural não encontrou seu verdadeiro lugar na teoria utilizada pelos analistas em seu trabalho e em seu pensar. (Winnicott, 1971, p.xi; tr. br. p.9).

Sabe-se de que analistas se trata: de kleinianos e de freudianos, que disputavam entre si o controle da Sociedade Britânica de Psicanálise. Está claro, também, a que teoria Winnicott se refere: à metapsicologia, tanto na versão kleiniana como na freudiana. Embora dividissem internamente os dois grupos, essas versões selam a sua união contra as outras teorias da vida humana. Além da amargura de Winnicott, é ainda digna de nota a gravidade da sua queixa: tendo cedido ao reducionismo metapsicológico da experiência humana (transformada num campo de relações pulsionais com objetos externos ou internos), a psicanálise teria encoberto aquilo que faz com que a vida humana valesse a pena de ser vivida, a criatividade cultural. Reconhecendo-se incompreendido e até mesmo desprezado no seu próprio ambiente profissional, Winnicott identifica, na seqüência do texto, um grupo cultural onde, imagina, seria bem-vindo, grupo composto de filósofos, teólogos e poetas:

Bem entendido, é possível ver que aquilo que pode ser descrito como uma área intermediária tem encontrado reconhecimento na obra dos filósofos. Na teologia, assume forma especial na eterna controvérsia sobre a transubstanciação, aparecendo com plena força na obra característica dos chamados poetas metafísicos (Donne e outros). (1971, p.xi; tr. br. p.9).

Texto desconcertante: a questão da transiência do lactante, passagem pela qual o que parece ser um pedaço de carne se torna uma pessoa humana, teria sido antecipada pela tese da transmutação do pão e do vinho em corpo de um deus vivo! Eis uma afirmação sem sentido metapsicológico algum, uma afirmação controvertida mesmo na teologia, na qual Winnicott, auscultador dos paradoxos do existir humano, soube reconhecer, entretanto, um sentido ontológico fundamental2.

Ler Winnicott a partir de filósofos, bem como de teólogos e poetas, significa, portanto, em primeiro lugar, questionar a metapsicologia, obstáculo principal à compreensão da sua obra3. Sabemos que, nos seus escritos, Winnicott evitava cuidadosamente qualquer confronto aberto com a psicanálise tradicional que ele mesmo chamava de "ortodoxa" (Cf. p.ex. Winnicott, 1971, cap.6). Nas suas cartas, ele critica Fairbairn por querer "abater" Freud e substituir a sua obra por algo radicalmente diferente. "A meu ver, quaisquer teorias originais que eu possa ter só são valiosas enquanto crescimento da teoria psicanalítica freudiana comum", escreveu Winnicott em 1954. Essa convicção não o impediu de excluir das suas teorias a peça central da psicanálise freudiana comum, a metapsicologia. É também nas cartas que Winnicott se abre mais sobre esse assunto. Em 1952, ele confessa ter inibições em ler Freud. Que significa isso? Uma carta de 1960 traz a resposta explícita: Winnicott se diz "absolutamente incapaz" de tomar parte em discussões metapsicológicas. Alguns anos antes, ele se perguntava porque era tão profundamente desconfiado dos termos metapsicológicos: "Será que é porque eles podem oferecer a aparência de serem compreensíveis por todos quando tal compreensão não existe? Ou será que é por causa de algo dentro de mim?" Winnicott conclui: "Pode ser, é claro, que sejam as duas coisas"4. Está assinalado aqui um ponto de mutação teórica: as idéias de Winnicott não cabem mais na camisa-de-força da metapsicologia ortodoxa5. Essa, sem dúvida, é a razão por que recorreu, de modo sistemático, a uma "linguagem própria" para formular as suas descobertas clínicas6.

Por que essa rejeição da metapsicologia? Os textos citados indicam que as considerações do tipo metapsicológico vedam o acesso ou mesmo desfiguram momentos essenciais do processo de amadurecimento da natureza humana. Trata-se de opor o que se manifesta ao que meramente se pensa, observações a construções, fenômenos a ficções, em resumo, a descrição à especulação metapsicológica. Esse fato explica o seu recurso a outras áreas de pensamento, inclusive à filosofia. Tudo indica que Winnicott buscou e aparentemente encontrou, entre os filósofos, aliados contra a metapsicologia. Mas, poder-se-ia objetar, que teriam os filósofos a ver com a metapsicologia? Existe uma resposta simples a essa pergunta: a metapsicologia é a metafísica da psicanálise e todas as teorias filosóficas que refutam a metafísica são também, necessariamente, contrárias à metapsicologia.

Uma análise que vai nesse sentido encontra-se num artigo de Home, lido numa sessão da Sociedade Britânica de Psicanálise, em 1964, em que Winnicott pode muito bem ter estado presente. Home aponta Ayer e Ryle como filósofos a serem lidos pelos psicanalistas. Ambos defendem posições antimetafísicas do empirismo inglês, sendo que Ryle, no seu The Concept of Mind (1949), empreende uma crítica decidida da metafísica de origem cartesiana que domina a teoria tradicional da mente. Ryle investe contra a reificação da mente e a sua investigação em termos do cogito, isto é, contra a teoria da representação ou, como diz ele mesmo, contra o ghost in the machine. No mesmo artigo, Home critica a metapsicologia como a forma psicanalítica da metafísica e a acusa de desconhecer o significado da vida humana por descrevê-la em termos do modelo metafísico, citando as experiências clínicas de regressão apresentadas por Winnicott como exemplo de fenômenos que não podem ser encaixados na metafísica metapsicológica (Cf. Home, 1966).

À luz dessas observações, tentaremos, no que segue, aproximar Winnicott de Heidegger, um filósofo que mais do que qualquer outro contribuiu para que o pensamento do nosso século possa ultrapassar a metafísica. Faremos isso mostrando 1) que Winnicott descobre o fato de que a tarefa de elaborar um sentido do ser (ignorada tanto pela metafísica tradicional como pela psicanálise comum) faz parte dos problemas internos ao existir humano desde o seu início (seção 2); 2) que essa questão não pode mais ser acomodada no interior da metafísica da representação, aceita pela metapsicologia (seção 3); 3) que Winnicott reconhece diferentes sentidos do ser das coisas intramundanas e os distingue do sentido do ser do ente humano, oferecendo uma teoria original não representacional da constituição de todos esses sentidos (seção 4); 4) que essas teses winnicottianas podem proveitosamente ser aproximadas da hermenêutica heideggeriana dos múltiplos sentidos do ser das coisas intramundanas e da diferença entre estes e o sentido do ser do homem, hermenêutica formulada de maneira a revelar o esquecimento da pergunta pelo sentido do ser, característico da metafísica ocidental (seção 5); 5) que, sendo assim, fica aberta a perspectiva de uma leitura heideggeriana de Winnicott (seção 6)7. Não tentaremos estabelecer uma unidade sistemática entre os dois pensadores, antes uma afinidade conceitual que se situa não apenas na área da epistemologia, mas sobretudo na da ontologia8.

Como se pode notar, o estudo que estamos propondo estender-se-á sobre uma série de tópicos que vão muito além dos fenômenos transicionais que nos serviram de primeiro convite para uma leitura filosófica de Winnicott. Tal projeto pode surpreender os que consideram os fenômenos transicionais a descoberta principal, senão a única, de Winnicott. Descritos já em 1952, esses fenômenos foram, sem dúvida, os primeiros a chamar a atenção para a originalidade e a força do pensamento do psicanalista inglês. No entanto, a teoria winnicottiana do amadurecimento da natureza humana, isto é, da criação de amostras temporais dessa natureza, emprega muitos outros conceitos, vários deles formulados em datas posteriores a 1952 - entre estes o do sentido do ser, o de objeto subjetivo e o da fase de destruição primária - que desempenham um papel teórico essencial e permitem, inclusive, compreender melhor e completar a primeira teoria winnicottiana da transicionalidade.

 

2. WINNICOTT E A PERGUNTA PELO SENTIDO DO SER

O primeiro capítulo de um livro de Winnicott com título aparentemente despretensioso, Os bebês e as suas mães (1988a), traz um trecho que convida à reflexão sobre o sentido do ser, exemplo de um assunto independente e mesmo anterior à questão da transicionalidade. Winnicott escreve:

Dizemos que o apoio do ego materno facilita a organização do ego do bebê. Com o tempo, o bebê torna-se capaz de afirmar a sua própria individualidade, e até de ter um senso de identidade. Tudo parece muito simples quando vai bem, e a base de tudo isso encontra-se nos primórdios do relacionamento, quando a mãe e bebê estão em harmonia. Não há nada de místico nisso. (1988a, p. 11; tr. br. p.9).

Seria um engano pensar que se trata aqui de uma descrição ingênua da relação mãe-bebê. O conceito de senso de identidade não tem nada de ingênuo. Uma frase depois, as coisas se complicam mais ainda. Winnicott diz: "Do ponto do vista do bebê, nada existe além dele próprio e, portanto, a mãe é, inicialmente, parte dele." De repente, fica introduzido o conceito de ponto de vista do bebê sobre o que existe e o que não existe. Para que não se pense tratar-se de uma figura de estilo, Winnicott arremata: "Isto é o começo de tudo, e confere significado a palavras muito simples, como ser."(Cf. Winnicott, 1988a, p.11; tr. br. p.9)9.

De repente, num contexto que parecia dizer respeito apenas à maternagem, aparece o problema de identidade que consta entre os mais difíceis da filosofia. E isso não é tudo. Surge também a idéia de que no dois-em-um da mãe e bebê decidem-se questões de semântica. Não da semântica de mamilos ou de leite, nem mesmo do seio bom ou mau, mas de uma semântica que a metapsicologia tradicional desconhece, a semântica de palavras simples, como a palavra "ser". Tudo se passa como se até mesmo para um filósofo que pensasse seriamente, isto é, não academicamente, sobre o que quer dizer a palavra "ser", o seu sentido originário se determinasse somente num retorno à simplicidade originária do ser humano, inicialmente experienciada na intimidade da relação entre mãe e bebê. Na seqüência do texto, Winnicott faz uma observação que parece ir nessa direção: "Poderíamos usar a palavra "existir" (existing), à moda francesa, e falar em existência, poderíamos transformar tudo isso numa filosofia e chamá-la de existencialismo, mas de qualquer forma preferimos começar pela palavra 'ser', e em seguida pela afirmação eu sou." (Cf. Winnicott, 1988a, p.11-2; tr. br. p.9). Winnicott sabe que, em inglês, "ser" e "existir" soam diferente. Não é por acaso que Hamlet se pergunta: "to be or not to be?" e não "to exist or not to exist". Ao ver-se concernido pelo problema do valor da sua vida, o herói de Shakespeare usa as expressões do inglês coloquial, isto é, da sua língua materna, aquela que aprendeu na intimidade originária, e não as do inglês erudito, de origem latina. Ao preferir being em vez de existing, Winnicott está querendo indicar que o problema do sentido do ser tampouco é de origem erudita e que se coloca para todo ser humano "naturalmente", sem qualquer influência da tradição filosófica. Esse distanciamento da filosofia acadêmica - no caso, do existencialismo - não significa de modo algum o afastamento da problemática do sentido do ser, pelo contrário, constitui-se numa tentativa de apreender essa problemática na sua origem. Winnicott prossegue: "O importante é que eu sou não significa nada, a não ser que, no início, eu seja juntamente com outro ser humano que ainda não foi diferenciado. Por essa razão, é mais verdadeiro falar em ser do que usar as palavras eu sou, que pertencem ao estágio seguinte." (Winnicott, 1988a, p.11-2; tr. br. p.9). Antes de existir o problema do eu, já existe o problema do sentido do ser. A semântica da palavra "ser" depende do amadurecimento dos modos de ser do bebê. É na temporalização do ser do bebê que se decide a significação da palavra "ser". No estágio de identificação primária, no qual o bebê não existe como tal, mas apenas um dois-em-um, ainda não se pode falar em ser em primeira pessoa, isto é, individualizado, mas apenas em ser impessoal, em ir sendo. É errado, portanto, tentar compreender Winnicott como mero continuador da psicologia do eu. Winnicott se encarrega, ele mesmo, de descartar tal abordagem do seu pensamento: "Não é exagero dizer que o ser é o início de tudo, sem o que o fazer e o ser a meta de um fazer não têm significado." (Winnicott, 1988a, p.11-2, tr. br. p.9)10. O ser do bebê é anterior ao fazer do bebê. Mais ainda, o ser do bebê antecede qualquer coisa que a mãe possa vir a fazer para ou ao bebê. Aqui o ser do bebê significa continuidade do ser do bebê, primeira manifestação da natureza humana no tempo11. Qualquer coisa que o ambiente facilitador faça ou deixe de fazer ao bebê pressupõe que o bebê continue sendo. Isto, por seu turno, significa que antes de fazer qualquer coisa para ou ao bebê, a mãe tem que deixar que este seja, que constitua uma "quantidade do simples ser" e que continue sendo, isto é, que aconteça. Essa e nenhuma outra é a primeira tarefa da mãe winnicottiana que, por essa razão, pode ser chamada de "acontecencial"12. O texto que acabamos de analisar parece-me paradigmático para se compreender a maneira como Winnicott lida com a filosofia e as questões "filosóficas" inerentes à vida humana. Essas questões cobrem, repito, um campo muito mais amplo que o dos fenômenos transicionais, fenômenos que constam entre aqueles que, para poderem acontecer, dependem da constituição anterior da continuidade do ser do bebê. Dito de outra maneira, a semântica da palavra "ser" é pressuposta na semântica da expressão "fenômeno transicional". O convite de diálogo que Winnicott faz aos filósofos concerne, portanto, a todos os modos de ser dos indivíduos humanos, tanto aqueles que antecedem como aqueles que se sucedem à fase da transicionalidade. Fica claro também que esse convite não está dirigido à filosofia "erudita", como a praticada pelos existencialistas franceses. É provável que Winnicott queira distanciar-se, em particular, do existencialismo de Sartre que ele conhecia bem, senão diretamente, ao menos através dos livros de Ronald D. Laing. Por outro lado, Heidegger sempre enfatizou a diferença que o separava do existencialismo sartreano, sublinhando, em particular, que o seu problema do sentido do ser não foi entendido pelo filósofo francês. O que vou querer mostrar é que o parentesco entre Winnicott e Heidegger vai muito além da comum reserva relativa ao existencialiasmo sartreano, que ela abrange um assunto essencial para os pensadores: o assunto do sentido do ser.

 

3. O SENTIDO DO SER NA PSICANÁLISE ORTODOXA

Para explicitar melhor a originalidade da problemática do sentido do ser elaborada por Winnicott, examinarei, na presente seção, a compreensão do sentido do ser na psicanálise tradicional. Para começar, é preciso lembrar que a psicanálise surgiu numa determinada tradição filosófica, a cartesiana, tradição que dominou a filosofia ocidental até o surgimento de Heidegger. Assim como o cartesianismo, a psicanálise, desde Freud até Melanie Klein, só concebia um único acesso à realidade: a representação. A divisão da realidade em interna e externa repousava sobre a oposição clássica entre a representação do eu e a do não-eu. O que estava em questão não era a constituição da internalidade ou da externalidade como diferentes sentidos do real, mas apenas a distribuição dos objetos em dois espaços distintos de dados, caracterizados, todos eles, pelo mesmo e único tipo fundamental de "dadidade": a representabilidade.

Em Freud, assim como em Descartes ou Kant, o real é definido como aquilo que é representável de uma certa maneira. O problema de saber por que e como o real veio a ser constituído a título de algo representável simplesmente não é colocado. A pergunta do sentido de realidade, da chegada à realidade ou do contato com a realidade não se colocava. A realidade estava lá, tal como dada na representação. Todas as perguntas admissíveis versavam exclusivamente sobre o destino de relações entre um sujeito e os seus objetos dados na representação. Elas diziam respeito ao tipo de relacionamento, e não ao sentido de realidade do assim representado. Quando, aqui, digo "realidade", uso uma palavra comum na cultura ocidental que, no entanto, segundo Winnicott e Heidegger, deve ser interpretada a partir do sentido que a palavra "ser" tem na origem do acontecer da natureza humana. A partilha de objetos em bons e maus tampouco se valia da diferença no sentido da realidade, mas tão somente da relação afetiva (pulsional) de aceitação ou não aceitação, por parte do sujeito, dos objetos "dáveis" na representação. O lactante, ele próprio, era concebido como dado na mesma grande realidade objetiva, familiar aos adultos saudáveis e sérios, bem como aos psicanalistas, por ser acessível por meio de representações controladas pelo princípio de realidade. O estudo dos bebês reduzia-se ao exame do conflito pulsional, supostamente ocorrendo no "exterior interno", e do seu reflexo no "exterior externo" (relações de projeção e de introjeção do projetado). Falava-se, bem entendido, em desenvolvimento das relações objetais, da passagem da fantasia à percepção, no domínio representacional, da substituição do amor e ódio iniciais por atitudes "sublimadas", no domínio pulsional. A diferença estava, de novo, no tipo de relacionamento, mais precisamente, no progresso do relacionamento com os objetos (representação mais "correta", atitudes mais "construtivas" ou "amorosas"), mas não no sentido da realidade destes. Os objetos, tanto psíquicos como materiais, tanto internos como externos, eram concebidos, repito, como existindo num único sentido: o da objetividade relativa a uma subjetividade representacional. Dessas observações segue-se uma conclusão importante: os fundamentos da psicanálise tradicional pertencem, todos eles, à metafísica da modernidade. Na metafísica pós-cartesiana o sentido da realidade do real é um só, o de presença constante representável.

 

4. OS DIFERENTES SENTIDOS DO SER EM WINNICOTT

Um dos interesses filosóficos de Winnicott é justamente o de ter rejeitado essa tese da metafísica da psicanálise. Em Winnicott, o acesso representacional ao objeto passa a ser considerado como derivado e fundamentado em modos de acesso menos "realistas", mais "brincalhões", porém, nem por isso menos significativos para a vida humana. A divisão de realidade em externa e interna não é tomada como pressuposta, mas considerada como adquirida. O bom e o mal nos objetos não são projeções do conflito pulsional real, mas, na origem, expressão do "encontro" bem ou mal sucedido entre objetos e "expectativas" do lactante. Tudo se passa, portanto, como se, em Winnicott, a realidade, tanto a do objeto como a do sujeito, estivesse posta em questão, como se o real em geral deixasse de ser acessível, "dável", de uma maneira unívoca. Tentemos explicar melhor essa idéia. No início da vida humana, os objetos reais não estão lá para serem representados e amados ou odiados, isto é, acessados por relações cognitivas e apetitivas. Essas relações pressupõem, diz Winnicott, mecanismos mentais de que um lactante não dispõe. Tais mecanismos precisam primeiro ser amadurecidos e, para tanto, o lactante deve desenvolver, anteriormente, uma outra capacidade: a de uso do objeto. E tem mais: antes de ter a capacidade de usar objetos, o bebê precisa criar a capacidade de brincar, a qual, por seu turno, pressupõe a experiência de contato e de identificação primária com a realidade externa.

De que experiência se trata? A de ter criado a realidade que encontra. Na experiência de contato com a realidade "encontrada criativamente" o sujeito é, imediatamente, o seu objeto (seio, braços), no sentido de ter controle onipotente sobre o objeto, sem que isso tenha qualquer conotação pulsional (Cf. Winnicott, 1971, p.93; tr. br. p.113). Trata-se, diz Winnicott, de uma experiência fundante da saúde psíquica. Por isso, ela se constitui, juntamente com a integração (no tempo e no espaço) e o alojamento no corpo, numa das três tarefas primárias do bebê humano. Os objetos a que o indivíduo tem o acesso por intermédio do contato primário que resulta da ilusão criadora chamam-se subjetivos e são caracterizados por um sentido de realidade individual específico, que precede o sentido de realidade dos objetos percebidos do mundo externo e que se preservam enquanto o indivíduo estiver vivo. A "compreensão intelectual do fato de que a existência do mundo externo é anterior à do indivíduo" não destrói o sentimento de que "o mundo foi criado pessoalmente". A relação com essa realidade subjetiva das coisas precede qualquer separação entre sujeito e objeto. Ela é anterior à ação e à representação, condições da vida sob a égide do princípio de realidade, entenda-se: da realidade externa que caracteriza os objetos do mundo externo.

Desde o ponto de vista realista do observador adulto, a experiência de criação do mundo é uma ilusão do bebê. Um indivíduo normal perderá essa ilusão no devido tempo e reconhecerá, sem adoecer disso, a sua solidão essencial. Mais cedo ou mais tarde ele dirá, observa Winnicott:

Eu sei que não há nenhum contato direto entre a realidade externa e eu mesmo, há apenas uma ilusão de contato, um fenômeno intermediário que funciona muito bem para mim quando não estou muito cansado. A mim não importa nem um pouco se aí existe ou não um problema filosófico. (Cf. Winnicott, 1988b, p.114-5; tr. br. p.135).

Os bebês que tiveram experiências um pouco menos afortunadas ficam desde o início aflitos pela idéia de que não há contato direto com o real externo. Para eles, diz Winnicott, o problema filosófico de saber se existe e como existe a realidade externa torna-se vital, tornando-se até mesmo objeto de estudo de um certo tipo de seres humanos, a saber, de filósofos que fazem da questão do sentido do ser ou do real o centro da sua profissão (Cf. Winnicott, 1988b, pt.IV, cap.1). A experiência-ilusão-base do contato com a realidade externa tem que preceder, como condição de possibilidade, já o dissemos acima, tanto o "eu represento" como o "eu uso", "eu faço" ou "eu ajo". Mais primitivo do que o uso e a representação, embora posterior à experiência de contato, é o brincar13. Esse tipo de acesso à realidade é um modo de ser do lactante que só pode realizar-se no espaço próprio, chamado de potencial. Esse espaço difere do da representação por um traço essencial: ele não é um exterior, interno ou externo, mas um componente do ser (being) do bebê. O lactante não está "no" espaço potencial, no sentido em que se diz que uma árvore está no jardim, ele é esse espaço. Parte constituinte do lactante enquanto "criatura viável", condição do brincar, o "entre" não é um receptáculo ready made. Ele é um mundo que amadurece durante as experiências de criar brincando, experiências estas que, paradoxalmente, ele mesmo torna possíveis. Por ser condição de possibilidade de um tipo de acontecer humano, o "entre" potencial em que se dá o brincar é, necessariamente, mais do que apenas um espaço, ele é um espaço-tempo, onde nem o espaço nem o tempo possuem o sentido dado na representação.

Em resumo, antes de poder ser representado, seja na fantasia, seja na percepção, como um dado no espaço e tempo compartilhados (externo), antes de poder ser catexizado, antes de poder ser usado, o objeto subjetivo inicial deve ser experienciado, isto é, espacializado e temporalizado como objeto transicional num processo circular de vai e vem pelo qual o bebê constitui (um mundo distinto de si) e é constituído (como distinto desse mundo). Na transicionalidade, o bebê circula entre objetos que são parte dele e esses mesmos objetos que já não são mais parte dele. Ele mama num seio que está nele, em seguida num seio que está fora dele e, na volta do pêndulo, de novo num seio que está nele. O bebê se comporta como se estivesse realizado por um movimento circular, de repetição, entre o mundo subjetivo, inicialmente criado por ele mesmo, e o mundo de objetos objetivamente percebidos que também é uma criação sua14.

A natureza profunda do processo de amadurecimento nessas fases iniciais é a de um viajar, sem sair de si, de um transitar, dentro de si, de um acontecer, em si mesmo, de um temporalizar-se, a partir de si mesmo. Viajar de onde para onde? Não de um objeto a um outro objeto, mas de um sentido de realidade ao outro. A saber, da experiência não representacional dos objetos subjetivos e da realidade subjetiva à experiência, mediatizada representacionalmente, da realidade externa objetiva, datada e cronometrada, passando, antes disso, pela experiência paradoxal da mudança do sentido de realidade objetiva de subjetiva em externa, mudança que se dá no espaço e tempo do brincar e que expõe o bebê a um tipo de realidade que poderíamos chamar de transicional.

Em outras palavras, a cada um dos três modos de acesso ao objeto aqui discriminados (contato e identificação primária; brincadeira; uso e representação) corresponde um modo de presença ("realidade") do objeto. Os objetos subjetivos, dados na experiência de contato e da identificação primária, existem como presenças imediatas, incondicionadas, com um sentido de realidade subjetiva. Não podendo ser perdidos, nem precisando ser esperados, esses objetos se manifestam como totalmente submetidos ao poder do bebê. Os objetos transicionais do espaço-tempo potencial, acessados no brincar, são presentes de maneira diferente, paradoxal, derivável do modo de espacialização e de temporalização do brincar: por um lado, manifestam-se como criações sempre factíveis ou repetíveis; por outro lado, eles têm o sentido de achados advenientes, resistentes à onipotência, precários, e, por isso, externos e temporais. Quanto aos objetos do mundo externo, dados na representação perceptiva, eles não são nem disponibilidades internas, nem suportes transientes, mas presenças sólidas, independentes, substanciais, dadas no espaço-tempo intersubjetivamente compartilhado e externo. Como se vê, os objetos acessíveis ao ser humano diferem entre si em termos espaço-temporais15. Essas diferenças, que correspondem aos modos de espaço-temporalização das vias de acesso, não devem ser entendidas como determinações dos objetos eles mesmos, base para novas classificações destes, mas como determinações do modo de realidade de objetos. Aqui o pediatra se torna, sem querer, um pensador do múltiplo sentido espaço-temporal filosófico16. Não apenas a presença dos objetos, também a realidade do sujeito foi submetida a uma revisão que, por vezes, ficou apenas acenada. O jogo realista das forças pulsionais antagônicas cede lugar a um acontecer de tipo totalmente distinto. O existir do lactante humano não é algo dado, desde o nascimento, mas é algo que precisa ser integrado, com e no espaço-tempo. Para tanto, faz-se necessária uma ambiência favorável, sem a qual o lactante nunca poderá sair do não-ser (not-being). O ser do lactante torna-se "fato" que toma o lugar (replaces) do não-ser, assim como a comunicação se origina do silêncio (Cf. Winnicott, 1963a, p.191, tr. br. p.173). Paralelo decisivo: em Winnicott, o ser humano não emerge do inorgânico, mas da solidão absoluta; ele não é um fato biológico, mas um existir comunicacional (Cf. Winnicott, 1988b, p.133; tr. br. p.155). Esse modo de acontecer do lactante não elimina, apenas afasta o não-ser. Atrás das múltiplas defesas e astúcias de que se constitui o existir do adulto, tanto dos sãos como dos doentes, jaz, à distância, a memória do seu não-existir, memória não explícita, nem mesmo explicitável, mas nem por isso menos "constitutiva" e "inalterável". De que não-ser se trata aqui? Da não-dependência anterior mesmo ao existir do lactante com suas relações objetais; de uma solidão pré-objetal que, no entanto, "foi de fato experimentada" (Cf. Winnicott, 1988a). e a que, paradoxalmente, o homem adulto, para poder ser sadio, deve poder regredir. Esse modo de se integrar no espaço-tempo (advindo do não-ser, podendo retornar a ele) faz com que, em cada ser humano, fique preservado um núcleo que não pode, nem mesmo deve, entrar em comunicação com a realidade externa nem ser influenciado por esta (Winnicott, 1963a, p.187, tr. br. p.170). Winnicott chega a dizer que cada homem se constitui de um "si mesmo central /central self/ não comunicante, para sempre imune ao princípio de realidade [grifos meu], e para sempre silencioso." (Cf. Winnicott, 1963a, p.192; tr. br. p.174).

 

5. A PERGUNTA PELO SENTIDO DO SER EM HEIDEGGER

Para um leitor de Heidegger, essas posições de Winnicott têm um sabor muito familiar. Heidegger ensina que o ser das coisas se diz de diferentes maneiras, que o sentido fundamental do ser é o da presença e que, tanto na vida individual como na história coletiva do Ocidente, na medida em que foi dominada pela metafísica, o sentido predominante da presença é a constância, sentido determinado no horizonte do tempo (linear). É bem conhecida a afirmação de Heidegger, feita em Ser e tempo (1927), obra-mestra da primeira fase do seu pensamento, que a constância das coisas tem dois sentidos totalmente diferentes, um originário e, em geral, encoberto, e um outro secundário, manifesto e encobridor. No primeiro sentido, as coisas constantes são presenças "à mão" (instrumentos), no segundo, realidades "à vista". As "à mão" são acessadas via "compreensão" instrumental, capaz de dirigir o manuseio, o uso prático das coisas, e as coisas "à vista" via representação externa. Nos dois casos, as coisas recebem os caracteres de constâncias. Bem menos notada é a observação de Heidegger, feita no parágrafo 17 de Ser e tempo, de que os objetos "usados" pelo homem primitivo, tais como fetiches e objetos mágicos, não têm nem o caráter de objetos à mão, nem o de coisas à vista. Heidegger acrescenta que, isso posto, a sua teoria dos dois sentidos de ser das coisas (instrumentalidade e presentidade) não basta para que se possa interpretar o mundo primitivo e fazer uma teoria geral do sentido do ser dos objetos intramundanos em geral (ontologia da "coisalidade"). Para Heidegger, o fetiche e os objetos de magia pertencem a uma região do ser distinta da dos instrumentos e dos objetos de percepção e, de um modo geral, de representação17.

Quanto aos caracteres do bom e do mal nos objetos, eles não dividem os objetos em função de um conflito pulsional inato ao sujeito, mas refletem ímpetos derivados do cuidado (Sorge) que o homem tem que ter para com o seu próprio existir e, por conseguinte, com o existir em geral. Essa última observação abre uma nova picada do pensamento heideggeriano: a que trata do modo de existir do ser humano. Por ser assunto primário do cuidado, o existir humano não tem nenhum dos três sentidos mencionados do ser das coisas intramundanas. O homem heideggeriano existe como um estar-aí-no-mundo, que tem que cuidar desse seu estar-aí e do existir de todas as coisas intramundanas. De onde vem esse ter que cuidar? Do fato de o homem existir como um ser-para-a-morte, um ser para o não-ser, para o nada. O ser-para-a-morte se dá como um "tempo-ser" circular, não acessível na previsão por representação, mas tão somente na antecipação angustiada da possibilidade adveniente do não-ser, isto é, aponta Heidegger, da possibilidade da impossibilidade que, embora não explicitada, desde sempre já estava aí.

Por ser um cuidado para com o ser, num presente casual, espremido entre um futuro ameaçador irrevogável (a morte) e uma herança questionável (embora contendo todo o bem que possibilita a vida), o estar-aí-no-mundo do homem não tem o sentido nem de fetiche, nem de instrumento, nem de mero objeto de percepção. Ele não existe, essa é a conclusão que conta aqui, como presença constante da metafísica tradicional. O homem existe como acontecência finita, transiente, num sentido temporal distinto da constância, potencialmente infinita, de objetos "à vista", dos objetos "à mão" e de objetos da magia18. Por esse motivo, faz-se necessário desconstruir, esse é o termo de Heidegger, todas as tentativas feitas, seja na filosofia, seja nas teorias científicas, de continuar pensando o existir humano como presença constante e recuperar o sentido do seu ser como estar-aí no mundo sendo-para-a-morte, isto é, para o não-ser (o nada)19.

 

6. WINNICOTT COM HEIDEGGER

Salta aos olhos que existem paralelos entre os três sentidos da realidade em Winnicott (realidade subjetiva dos objetos submetidos ao controle mágico, realidade dos objetos de uso e realidade dos objetos objetivamente percebidos) e os três sentidos de ser de objetos intramundanos distinguidos por Heidegger (o ser dos fetiches e objetos de magia, o dos instrumentos e o das presentidades). O paralelo entre os dois autores persiste no tratamento dos modos de ser do homem em que esses sentidos se constituem, amadurecimento, em Winnicott, acontecência, em Heidegger. Os dois pensadores distinguem, ainda, entre o sentido de "realidade" do si mesmo20 e o do ser dos objetos distintos do homem. Os dois comungam da idéia de que a compreensão do sentido do ser do homem e das coisas se dá num "entre", num espaço-tempo, como entende Winnicott, ou no "tempo-espaço", como diz Heidegger. Por fim, para ambos o existir humano é caracterizado por uma relação íntima com o não-ser e essencialmente finito. Em Winnicott, o ser do homem surge da solidão absoluta e o contato com o real nunca passa de mera ilusão que nos permite levar a vida e cuja precariedade é assinalada, para os sadios, no cansaço e tédio de viver e, para os depressivos e os psicóticos, na luta perpétua para continuarem a sentir-se vivos. A realidade aqui não tem nada da presença constante representável, no sentido da metafísica tradicional. Em Heidegger, o ser do homem revela-se sem fundamento algum, dando-se, antes, como um fundamento infundado, permanecendo uma questão insolúvel tanto na vida como na filosofia. Um grande terapeuta teria se aproximando, sem saber, de um dos maiores pensadores do século? A hipótese parece sedutora: ela abre a possibilidade de reconhecer, na psicologia winnicottiana do amadurecimento da natureza humana, uma aliada teórica da hermenêutica heideggeriana da acontecência do estar-aí humano e de considerar as duas teorias como quadros gerais para se recolocar a pergunta decisiva do homem, a pergunta pelo sentido do ser.

Nota: Cito os textos de Winnicott em inglês em primeiro lugar a fim de chamar a atenção do leitor para a necessidade de consultar os originais, devido ao caráter insatisfatório de uma parte das traduções brasileiras. As mudanças na minha tradução das citações não foram anotadas.

 

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1 Partes do presente artigo foram publicados anteriormente sob o título "Winnicott e Heidegger: afinidades", Boletim de Novidades, v.8, n.69, jan. 1995. O presente artigo traz formulações que, prima facie, diferem do que se afirma nos trechos já publicados.
2 Em The Extasie (Cf. Gardner, 1957, p.75), John Donne canta a união dos amantes numa "nova alma", que cresceu "de átomos", união em que cada um busca, nos olhos do outro, a imagem de si mesmo. Para que o corpo não seja a prisão da alma, a alma deve descer até as "afecções", num movimento semelhante ao do corpo ascendendo à alma: As our blood labours to beget/ Spirits, as like soules as it can,/ Because such fingers need to knit/ That subtle knot, which makes us man.
Não devemos nos deixar enganar pelo nome "poetas metafísicos", dado por Samuel Johnson, no século XVIII, a John Donne (1572-1631) e aos poetas em torno dele para concluir que eles seriam poetas-filósofos no sentido de Lucrécio. Quando Dryden, que inspirou a expressão de Johnson, diz, em 1693, que Donne é "afeito à metafísica", ele se refere "à perplexidade que as graciosas especulações filosóficas de seus versos geram em leitoras do sexo fraco". O próprio Dryden soube apreciar, sobretudo, a arte de Donne de expressar "pensamentos profundos em linguagem comum" e "em situações do cotidiano". Ao tratar, como nos versos citados na nota anterior, da questão tradicional (platônica) da relação do espírito e dos sentidos, Donne não a formula como um problema abstrato, meramente intelectual, tal como é próprio da metafísica; ele tenta descrever a experiência e não explicitar a representação, o conceito dessa união. Ao cantar, em The Good-Morrow, a manhã de uma noite de amor, Donne fala do "pequeno quarto" transformado num mundo que cada um dos amantes possui, que cada um deles é, de que ambos ocupam todas as partes sem precisar viajar e de que ambos têm acesso imediato sem necessitar representá-lo por mapas geográficos. Sobre o esforço de Donne de reformular os tradicionais problemas da metafísica em termos de modos de ser e não de modos de representar (Cf. Gardner, 1957, introdução). - Em vários outros textos (Cf. Winnicott, 1988b, p.151; tr. br. p.172 e Winnicott, 1965a, p.119), Winnicott igualmente reconhece que suas descobertas foram antecipadas por "poetas e filósofos".
3 Questionar, bem entendido, não significa agredir; significa, antes, fazer com que aquilo que estava encoberto possa vir a se manifestar e possa tornar-se verdadeiro.
4 Cf. cartas de Winnicott de 18/03/54 e de 05/02/60, publicadas em Winnicott (1987).
5 Um exame detalhado da relação entre a teoria winnicottiana do amadurecimento e a psicanálise freudiana encontra-se no meu trabalho "Winnicott e Freud: o destino de uma paradigma", Colóquio Centenário de Winnicott, PUC-SP, out. de 1996.
6 De fato, o problema winnicottiano de escolha da linguagem descritiva é mais complicado que isso. Trata-se de uma questão de primeira importância de que não podemos tratar aqui. Lembro apenas um dado. Em Natureza humana, depois de apresentar as três partes da sua "psicologia dinâmica", Winnicott escreve: "A linguagem de uma parte é linguagem errada para a outra parte." (1988b, p.34; tr. br. p.52).
7 Desconheço se Winnicott chegou a ler Heidegger. Sabe-se, contudo, que Ryle, filósofo citado como exemplar na palestra de Home, escreveu, em 1929, na revista Mind, uma resenha bastante favorável da obra principal de Heidegger, Ser e Tempo (1927). Essa resenha foi reimpressa em Murray (1978, p.53-64).
8 A maior parte dos filósofos que se debruçaram sobre a psicanálise (Popper, Glymour, Grünbaum) trataram sobretudo de problemas epistemológicos e metodológicos, problemas estes que, na nossa leitura, são secundários, no sentido de dependerem das decisões ontológicas. Talvez não seja inútil lembrar que o diálogo entre a psicanálise e o pensamento de Heidegger já se iniciou há muito tempo, na obra de Ludwig Binswanger. O seu esforço foi continuado por outros psicanalistas, entre eles Medard Boss, Jacques Lacan, Pierre Fédida e R. D. Laing. No Brasil, os textos de Elsa Oliveira Dias e Luíz Claudio Figueiredo revelam uma nítida inspiração heideggeriana.
9 Winnicott usa a palavra "being" que pode ser traduzida tanto por "ser" (seja no sentido verbal, seja no substantivo) e "sendo". O contexto mostra que ele faz um jogo com esses dois sentidos. Note-se que, em português, o verbo inglês "to be" pode ser traduzido também por "estar".
10 Um exame pormenorizado da diferença entre ser e fazer em Winnicott encontra-se em Dias (1995, p.53-9).
11 Note-se que Winnicott não fala em continuidade do existir.
12 Ocasionalmente, em comunicações orais, cheguei a chamar a mãe winnicottiana, considerada na função que é chamada a exercer na origem do ser do seu bebê, de "mãe metafísica". Essa expressão carateriza bem o caráter "filosófico" da relação facilitadora mãe-bebê tal como pensada por Winnicott, mas tem a desvantagem de identificar a filosofia com a metafísica ocidental. Como essa identificação está posta em questão no presente trabalho, prefiro utilizar aqui a expressão "mãe acontecencial". Estou subentendendo que, em Winnicott, o ser do bebê e o ser humano em geral têm o caráter de acontecência (Geschichtlichkeit), como diz Heidegger, e não de substancialidade, como afirma a metafísica ocidental. Dito de outra maneira, estou supondo que o caráter fundamental do ente humano é o de ser um acontecente.
13 Anterior ao usar propriamente dito, brincar é o modo paradigmático do fazer e do agir originário (Winnicott, 1971, p.152; tr. br. p.134-5).
14 A "qualidade de externalidade" dos objetos é "criada" pela destrutividade "primária", constituída no fim da fase da transicionalidade (Cf. Winnicott, 1971, cap.6).
15 Para sermos totalmente precisos, devemos fazer notar que, no texto acima, não foi feita uma caracterização espaço-temporal explícita de objetos subjetivos, a não ser negativamente, por oposição aos objetos transicionais e objetivamente percebidos. A tarefa de determinar positivamente a espacialidade e a temporalidade desses objetos foi deixada de lado no presente trabalho, por se tratar de um assunto difícil, que exige uma hermenêutica laboriosa de textos winnicottianos (Winnicott tem sido muito críptico sobre o assunto) e envolve considerações elaboradas sobre a natureza do tempo.
16 Esse fato talvez não seja alheio às bem conhecidas dificuldades que Winnicott encontra em formular teoricamente as suas descobertas sobre as diferentes experiências do ser. Numa ocasião, para distinguir o espaço compartilhado externo do espaço potencial, Winnicott recorre à linguagem de um poeta (Rilke) e chama o primeiro de Raum ("espaço") e o segundo de Welt ("mundo"). (Winnicott, 1989, p.240). Outra vez, para explicitar o acesso aos objetos subjetivos, Winnicott evoca a experiência mística, em que a perda de contato com o mundo exterior de realidade compartilhada é contrabalançada por um ganho em termos de "sentir-se real" (Winnicott, 1963a, p.186). Claro está que o sentido de "real", aqui, não é o mesmo que o do real com o qual se perdeu o contato, o real do espaço-tempo externo. Mas Winnicott não possui uma ontologia explícita capaz de dar conta dessa diferença.
17 Para sermos completos, deveríamos mencionar que a natureza que nos "abraça" é um modo de ser dos entes intramundanos que tampouco deriva da instrumentalidade ou da presentidade (Cf. Heidegger, 1927, parágrafos 15 e 43.c.).
18 Na sua segunda fase (depois de 1936), Heidegger substituirá o tempo do ser-para-a-morte como o horizonte último do sentido do ser e passará a falar de um "tempo-espaço" finito, também não representacional, como sendo o lugar originário da abertura do homem ao ser.
19 Sobre a "desconstrução" heideggeriana da metafísica e o seu anúncio de um pensamento pós-metafísico (Cf. Loparic, 1994).
20 Traduzo o "self" winnicottiano por "si mesmo". A vantagem dessa tradução é a de evitar o erro de hipostasiar o "self" e de tratá-lo como uma entidade.