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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.6 n.2 São Paulo  1995

 

ARTIGOS ORIGINAIS
A RELAÇÃO PSICOTERAPEUTA-CLIENTE

 

 

Os cinco textos que se seguem foram preparados para uma aula ministrada durante concurso de ingresso na carreira docente no Instituto de Psicologia da USP. Resolvemos reuni-los neste número da Revista porque nos pareceu que tratam de uma questão de muito interesse, no âmbito da Psicologia Clínica, que é descrita de modos diferentes, embora quase todos com a mesma orientação. São textos didáticos que procuram ressaltar os princípios que norteiam as relações no domínio da terapia. Apresentam de modo conciso as principais teorias relativas à transferência e contra-transferência, ao contexto onde se dá o encontro terapêutico e a outras questões envolvidas nessa relação.

 


 

Elisa Maria Parahyba de Campos Ribeiro

 

 

"O real não está na saída nem na chegada, ele se dispõe para a gente é no meio da travessia."

Guimarães Rosa

 

Convido-os a uma reflexão a respeito de um tipo de relação sui generis, circunscrita a duas pessoas, uma sala, duas poltronas e um diálogo.

Na verdade, o discurso psicanalítico só é possível porque existe e é constituído a partir da figura do analista ou terapeuta, enfim, daquele que escuta.

O que caracteriza esta relação, as etapas pelas quais a mesma passou até chegar aos nossos dias, será o objeto deste trabalho. Tentarei percorrer um percurso não muito longo, em função do espaço e da proposta em questão.

Formalmente a Psicanálise inicia sua trajetória ao lado do novo século, em meio à fervilhante aventura do conhecimento, que se inicia em meados do sec. 19, prosseguindo ao longo do século 20, até chegar a este fin de siècle não mais em Viena, mas no planeta, a partir do advento da informática.

O que vai caracterizar a relação psicoterapeuta-paciente, em termos de vínculo, passa por diversas etapas. Tentarei fazer um percurso fundamentado no histórico da constituição desta forma de relacionamento a partir das considerações do próprio Freud, à luz daquilo que foi descobrindo, passando depois para outras constatações observadas ao longo destes anos.

Na pré-história da Psicanálise, ao tentar compreender os fenômenos histéricos, a proposta de Freud é basicamente moldada no modelo epistemológico característico de sua época. Havia um objeto a ser estudado, um sujeito a ser observado e causas e efeitos decorrentes desta observação. Após abrir mão da hipnose, do método catártico, Freud dá início a um tipo de trabalho onde o paciente é convidado a lembrar o seu passado, levantando todas as reminiscências possíveis, inicialmente de forma linear e depois pela técnica da livre-associação. Trabalho verdadeiramente arqueológico: ao serem retiradas as camadas superficiais surgia das escavações a preciosa "antigüidade" que daria norte à investigação de Freud sobre as raízes antigas daquilo que ocorria com o paciente no presente. Evidentemente, nesse momento, a relação psicoterapeuta-paciente tinha características precisas, e a emoção do sujeito ao rememorar fatos (positivos ou negativos), era diferente da emoção do observador. Dos escritos de Freud, a gratificação vinha das descobertas, da curiosidade eminentemente científica que era satisfeita. Da comprovação da hipótese. O investigar é questionar a realidade e aguardar a resposta. Esta fase ideal termina e as coisas começam a mudar.

Segundo Racker (1988): "...os doentes que até certa altura tinham colaborado nesta tarefa (de lembrar o passado) perdiam o interesse pelo passado e o viravam para o presente, presente muito determinado, que seria a pessoa do próprio Freud."

Ainda no mesmo texto: "uma das pacientes, por exemplo, no meio de um trabalho analítico, abraça-lhe o pescoço, e Freud é salvo desta situação difícil e embaraçosa pela entrada de uma pessoa que trabalhava no consultório." Sabemos hoje o quanto foi perturbadora esta situação para Freud. Cabe, neste ponto de nossa reflexão, ressaltar o papel da auto-análise permanente do analista, que coloca em lugar do envaidecimento natural ligado à situação uma outra idéia, como fez Freud, ou seja, os arroubos afetivos não eram dirigidos a ele, mas sim à pessoa que ele representava, naquele momento, para a paciente. Posteriormente estes eventos receberiam o nome de transferência positiva.

Além destas demonstrações amorosas, Freud observou, segundo Racker (1988), que "...outros pacientes se rebelavam contra ele, e importava-lhes mais ir contra Freud, não dever-lhe nada e mostrar-lhe sua impotência do que curar-se." Tudo isto levou Freud a enunciar a hipótese de que ocorria um tipo de relacionamento específico que acontece com todo ser humano em diversas circunstâncias, mas que na situação terapêutica é constante e até mais marcante. A esta relação Freud deu o nome de relação transferencial. Ou seja, a transferência é um conjunto de fenômenos e processos psicológicos do paciente, dirigidos à figura do terapeuta e que têm sua origem em outras relações de objeto, anteriores ao processo terapêutico.

A transferência é um dos pilares da relação terapeuta-paciente em Psicanálise e em terapias de abordagem psicanalítica. Ela é a possibilidade do terapeuta observar como o paciente se relaciona com seus objetos afetivos externos e internos, e a partir desta observação intervir mostrando, interpretando, desvendando para o paciente alguma coisa que ele jamais pôde observar sobre sua pessoa. Este processo deve ser feito com muito cuidado, e levando em conta o momento em que o paciente está na análise, pois se feito fora do momento adequado, não dará ao paciente nenhum insight, podendo gerar até uma certa irritação. Como dissemos anteriormente, Freud observou que havia transferência positiva e negativa, ambas sendo importantes ao longo do desenvolvimento do processo psicoterapêutico.

Este fato levará Freud a perceber um outro conjunto de fenômenos, agora ocorrendo com a pessoa do terapeuta, aos quais ele deu o nome de fenômenos contra-transferenciais. A contra-transferência seria, de acordo com Laplanche e Pontalis (1970), um "conjunto de reações inconscientes do analista para a pessoa do analisando, e mais particularmente à transferência deste". Através dos relatos de Freud, ou mesmo da situação vivida por Breuer com determinada paciente histérica, podemos imaginar o potencial de angústia e desamparo e mesmo de solidão suportados pelo criador da Psicanálise e vivenciados por seus seguidores até hoje.

Na medida em que um trabalho psicoterápico está fundamentado na relação do par terapeuta-paciente, as reações inconscientes do analista serão solicitadas. A partir da constatação de que nenhum analista poderá ir além daquilo que seus próprios complexos e resistências internas lhe permitam, percebemos a importância da análise pessoal daquele que se propõe como terapeuta.

Do ponto de vista técnico, a proposta para uma relação terapeuta-paciente, na abordagem psicanalítica, poderia ser esquematizada em três níveis, como citam Laplanche e Pontalis (1970):

1) Reduzir ao máximo as manifestações contra-transferenciais pela analise pessoal, de modo que a situação terapêutica seja estruturada como uma superfície projetiva apenas pela transferência do paciente. 2) Utilizar, controlando-as, as manifestações contra-transferenciais no trabalho analítico, (...) todos possuem no seu próprio inconsciente um instrumento com que podem interpretar as expressões do inconsciente do outro. 3) Guiar-se, para as interpretações, pelas próprias reações contra-transferenciais, muitas vezes assimiladas às emoções sentidas.

Evidentemente esta é uma proposta técnica e baseada na teoria, o que não quer dizer que ela seja passível de realização o tempo todo, seja em uma sessão, seja em um processo terapêutico. A prática é que vai guiar o rumo da relação terapeuta/paciente. Cada vez mais, ao deixar de ser um iniciante neste caminho, o terapeuta se permite intervenções que fugirão a uma rigidez bem típica daqueles que se aventuraram no campo da psicoterapia psicanalítica. Na própria evolução da Psicanálise, podemos perceber que o rigor é mantido, o que não quer dizer que a rigidez dos primeiros analistas, às vezes maior que a do próprio Freud, tenha que ser a regra única. O que se pode observar, porém, é que quando conseguimos este movimento, denominado pelos teóricos de ressonância de inconsciente para inconsciente, percebemos a verdade inerente a esta denominação, de que esta é a única comunicação autenticamente psicanalítica. Ou seja, uma comunicação que não é observável, ela é sentida, percebida, e produz efeitos tanto no paciente quanto no terapeuta, mas dificilmente pode ser quantificada, como regem os cânones das ciências em geral.

Ainda a respeito da transferência positiva, em um artigo sobre a técnica psicanalítica, Freud questiona o sentimento amoroso dos pacientes pelos respectivos analistas, afirmando categoricamente que a cura tem que ser realizada na abstinência. Ou seja, o terapeuta, em seu relacionamento com o paciente, não deve jamais realizar o desejo do mesmo e nem os próprios que a priori nem devem existir. Caso um paciente veja seus sentimentos amorosos correspondidos (diferente de serem acolhidos ou contidos), o triunfo que experimenta será proporcional ao fracasso do processo terapêutico, ou seja, ocorrerá a impossibilidade de retomar a análise, e aquilo que Freud chamava de "cura" estará fora de cogitação.

Do ponto de vista histórico, estas seriam as primeiras constatações e observações feitas em torno do tema da relação terapeuta/paciente.

Posteriormente, Melany Klein vai comparar as relações do paciente com o seu terapeuta com o tipo de vínculo que o bebê estabelece com a mãe nos primeiros momentos de sua existência. A rigor, a relação se dará inicialmente entre o bebê e o seio de sua mãe, relação parcial, específica de uma fase denominada "esquizo-paranóide". Posteriormente o bebê poderá ver sua mãe como um todo, separado dele, momento da fase "depressiva". Todos os sentimentos inerentes a estas fases e momentos do nosso desenvolvimento emocional estarão presentes, retornarão, no seio do desenvolvimento do processo psicanalítico. Isto implica em vivências de sentimentos de frustração, inveja, voracidade e ciúmes, entre outros, que o bebê experimenta em relação ao seio ou ao ventre materno e seus conteúdos, que são atacados pela criança. Tudo isto será repetido na relação terapeuta-paciente. O que ocorre na verdade é que o paciente estará ligado à figura do terapeuta como se ligou precocemente à figura materna ou quem fez seu papel. Este objeto (seio-mãe) será investido de poderes, riquezas e importância tais que o paciente-bebê vai se sentir empobrecido, sem importância e como conseqüência ficará perseguido e destruído. Klein observou como a inveja transforma o objeto bom em mau, criando assim, na fantasia do bebê, argumentos irrefutáveis para um ataque e uma destruição desse objeto. Ao investir libido (afetos) no objeto invejado, o ego sente-se empobrecido. A seguir vivencia a sensação de ameaça de destruição, dor, angustia e aniquilamento. Dai o objeto idealizado ser vivido como altamente destruidor e perseguidor.

Se em sua trajetória a relação terapeuta-paciente vem até este momento acompanhada pelas noções de transferência e contra-transferência, com Bion será acrescentada a noção de conteúdo -continente a este tipo de vínculo. A relação terapeuta-paciente irá se caracterizar pela alternância da vivência das sensações de continente-conteúdo, tanto pelo paciente quanto pelo terapeuta. O par analítico será tanto mais produtivo, quanto maior for a fertilização recíproca.

Se em seus primórdios a Psicanálise é proposta por Freud como ciência, onde o modelo epistemológico será o positivismo, onde o constructo hipotético-dedutivo do qual Freud lança mão é emprestado às leis da termodinâmica, hoje esta preocupação com o fato de ser ciência ou não está afastada para algumas correntes da psicanálise. A tekné grega, palavra que designa ao mesmo tempo arte e técnica, é a escolha que muitos analistas fazem ao pensar a Psicanálise. A interpretação passa a ser comparada ao momento da criação na obra de arte. Momento raro, profundo modificador da realidade. A relação terapeuta-paciente é pautada pelo momento do encontro. O campo analítico, criado entre a figura do terapeuta e do paciente, é função da personalidade dos dois. Para ocorrer este tipo de encontro é preciso que haja disponibilidade interna para o mesmo, de ambas as partes. Para isto as entrevistas iniciais. Nem todos os pacientes a possuem ou sabem o que ela significa ao procurarem uma análise. Nem todos os terapeutas a conseguem. Daí se escudarem na rigidez de posturas engessadas na técnica, amarradas pela teoria. O modelo da relação terapeuta-paciente hoje, para muitos, é marcado pelo dialogo verbal, gestual e por silêncios impressionantemente falantes.

A escuta vai instaurar o lugar do analista, o sonho vai ser o modelo da relação terapeuta-paciente.

O início e o fim de um processo terapêutico têm, a meu ver, características que permitem identificar melhor o tipo de relação possível. Lançar-se em busca de novos continentes, no mar da relação analista-paciente, no universo desconhecido do mundo interno, acaba sendo mais fácil do que manter-se na viagem. O encontro com a realidade, a destruição de antigos mitos, o abandono da fantasia são momentos difíceis de superar e integrar a nossas vidas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. Obras completas. Buenos Aires, Amorrortu, 1986.        [ Links ]

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.B. Vocabulário da psicanálise. Lisboa, Moraes, 1970.        [ Links ]

RACKER, H. Estudos sobre técnicas psicanalíticas. Porto Alegre, Artes Médicas, 1988.        [ Links ]