SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.6 número2 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.6 n.2 São Paulo  1995

 

ARTIGOS ORIGINAIS
A RELAÇÃO PSICOTERAPEUTA-CLIENTE

 

 

Lilian Meyer Frazão

 

 

Um conceito central em Gestalt-Terapia é o conceito de awareness1, que se caracteriza pela consciência de si e a consciência perceptiva; é a tomada de consciência global no momento presente, a atenção ao conjunto da percepção pessoal, corporal e emocional, interior e ambiental (Ginger, 1995, p.254).

Tellegen (1986, p.5) define awareness como sendo um fluxo associativo focalizado e Loffredo (1994, p.128) descreve-o como um fluxo dinâmico que, por ser focalizado, possibilita a discriminação e, por ser associativo, possibilita o surgimento de novas cadeias de significado.

Awareness é a apreensão, com todas as possibilidades de nossos sentidos, da ocorrência do mundo dos fenômenos dentro e fora de nós. Esta apreensão se dá no presente, no aqui-e-agora. Mesmo quando lembramos de algo do passado, o lá-e-então, o ato de lembrar está se dando no presente. Embora a awareness seja sempre presente, o objeto dela pode pertencer a um outro tempo e espaço (Yontef, 1993).

Para que haja a awareness é necessário haver contato, embora possa existir contato sem que haja awareness. É através do contato que a relação com o mundo pode ser nutritiva. Ele é o responsável pelas mudanças da pessoa e das experiências que ela tem do mundo (Polster & Polster, 1979, p.102).

O contato ocorre na fronteira de contato, que é o ponto no qual a pessoa experiencia o "eu" em relação ao "não-eu". Embora a palavra fronteira possa sugerir a idéia de um lugar, não se trata disso. Fronteira de contato se refere à relação particular entre a pessoa e o meio, entre "eu" e "não-eu".

Em Gestalt-Terapia dizemos que o funcionamento adequado da awareness é o campo da psicologia normal; qualquer perturbação será o campo da psicopatologia (Perls, Hefferline & Goodman, 1951, p.viii). Para Perls, Hefferline e Goodman (1951, p.ix), "a formação de Gestalten completas e compreensivas é a condição de saúde mental e crescimento."

Para compreendermos melhor esta idéia de normalidade e de psicopatologia precisamos retomar o conceito de self com o qual a questão de awareness e da possibilidade de formação de gestalten está intimamente ligada.

Em Gestalt-Terapia self é o termo que se usa para se referir à totalidade da pessoa quando em interação saudável com o meio.

A característica fundamental do self é a formação e destruição da gestalt (...) O self é nossa essência; é o processo de avaliar as possibilidades no campo, integrá-las e levá-las à completude em função das necessidades do organismo. O self é o agente em contato com o presente, efetuando o ajustamento criativo, fazendo sentido. O self constitui nossos processos saudáveis, funcionando para a existência e crescimento do organismo. (Latner, 1973, p.48).

Perls, Hefferline e Goodman (1951, p.373) referem-se ao self como sendo o sistema complexo de contatos necessários ao ajustamento ao campo; é o processo permanente de ajustamento criativo do Homem ao seu meio interior e exterior. O self existe na interação da fronteira de contato, "é a fronteira de contato em funcionamento (...) A função do self é encontrar e dar sentido às coisas que vivemos." (Perls, Hefferline & Goodman, 1951, p.235).

A partir desta conceituação podemos observar que o funcionamento saudável depende da possibilidade de awareness e contato, condição necessária para a fluidez na formação de Gestalten.

Em Gestalt-Terapia não se pensa o self enquanto uma estrutura do ponto de vista tradicional. De acordo com Yontef (1993, p.331), a idéia de estrutura se baseia na teoria de campo, na qual estrutura e função são inseparáveis, sendo que as estruturas humanas são concebidas como processos. Diz ele: "Que estruturas estáveis existem não há dúvida, mas elas são conceitualizadas como processos." Este mesmo autor acrescenta que não há self separado do campo organismo-meio.

Para Hycner (1985, p.29), o cerne da Gestalt-Terapia

é a crença ontológica de que a base "última" de nossa existência é, por natureza, relacional, ou dialógica (...) realça a singularidade do indivíduo no contexto relacional. A Gestalt-Terapia reconhece, profundamente, que nos tornamos indivíduos singulares, apenas enquanto em relação com outros seres humanos.

É na relação eu-tu que reside a possibilidade da emergência da noção de "eu".

Hycner concebe a psicopatologia como resultado de um antigo diálogo abortado. Citando Trüb, Hycner (1990, p.45) diz que quando tentava mais intensamente relacionar-se com os outros, a pessoa não foi "ouvida" e sua voz voltou-se monológica e tragicamente para dentro. Para Trüb, a "cura" se dá através do encontro.

Ebner (citado por Friedman, 1994) tem um ponto de vista semelhante quando diz que a patologia é produto da ausência de um outro; é a condição na qual nem o mundo, nem o amor alcançam o indivíduo.

A função do trabalho terapêutico é buscar restaurar o contato através da relação dialógica que é o encontro de duas pessoas, no qual uma se deixa impactar e responder à totalidade da outra, e onde o interesse de ambas é no que acontece no entre elas (Yontef, 1993, p.203-4). Abarca a alternância rítmica dos momentos Eu-Tu e Eu-Isso.

A abordagem gestáltica enfatiza o aspecto experiencial da terapia; no entanto, empolgados pelo "fazer", alguns Gestalt-terapeutas relegaram a um segundo plano o fato de a relação em si mesma ser experiencial, como pontua Ribeiro (1991, p.32). Para Laura Perls (citada por Friedman, 1994, p.89), a relação dialógica é o eixo central da Gestalt terapia. A experiência ocorre na fronteira de contato, onde Eu e Tu se encontram. Atualmente muitos Gestalt-terapeutas (Yontef, Jacobs, Hycner, etc.) concordam com a visão de que a Gestalt-Terapia é uma abordagem que se caracteriza pela relação dialógica.

A relação dialógica se baseia nas idéias de Buber (1979, p.152), que coloca que a regeneração de um centro pessoal atrofiado só poderá ser realizada por quem, com um olhar clínico, "apreender a unidade latente soterrada da alma sofredora, o que só será conseguido através da atitude interpessoal de parceiros e/não através da consideração e estudo de um objeto."

A confirmação é elemento central na atitude dialógica, pois, segundo Friedman (1994, p.4), "confirmação mútua é essencial para tornar-se um self - uma pessoa se dá conta de sua unicidade precisamente através de sua relação com outros selves, cuja distância de si é completada por sua distância deles." Existimos como pessoas que precisam ser confirmadas em nossa unicidade por pessoas essencialmente diferentes de nós mesmos.

Confirmação não deve ser confundida com concordância, embora possa sê-lo. Ao me opor, posso estar confirmando. A confirmação é uma atitude em relação à validação da existência do outro enquanto outro; é afirmar a alteridade do outro.

Yontef (1993, p.221-37) menciona cinco condições necessárias para o desenvolvimento da uma relação dialógica:

1. a inclusão, na qual o psicoterapeuta respeita a experiência fenomenológica do paciente, penetra respeitosamente em seu mundo fenomenológico, experiencia-o e aceita o paciente tal como ele é. Inclusão implica em confirmar e aceitar a existência do outro. Na inclusão o terapeuta busca experienciar momentaneamente o que cliente está experienciando mantendo-se ainda assim centrado em si mesmo. Inclusão difere de empatia: empatia é um sentimento, enquanto na inclusão são vivenciados os dois polos existenciais do diálogo;

2. a presença autêntica e envolvida do terapeuta na relação. Da mesma forma que o psicoterapeuta favorece que o paciente seja quem ele é, ele se permite ser quem ele é;

3. o comprometimento com o diálogo, isto é, a abertura e rendição ao "entre" que acontece na relação e que não pode ser previsto ou comandado por uma das pessoas, sem que se perca sua característica de diálogo. Trata-se do intercâmbio significativo entre duas pessoas, na qual uma se deixa afetar pela outra;

4. a qualidade de não-exploração e não-manipulação, isto é, a não-utilização do outro para gratificações narcísicas ou de quaisquer outras necessidades;

5. o caráter vivencial do diálogo; é na vivência dialógica que ocorre a cura.

Para Buber

...o homem, deslocado do domínio natural das espécies para o acaso da categoria solitária, cercado pela atmosfera de um caos que passou a existir com ele, espera secreta e timidamente por um sim que lhe permita ser e que só pode chegar-lhe através de uma pessoa. (1965, p.71).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUBER, M. Eu e tu. São Paulo, Cortez & Moraes, 1979.        [ Links ]

BUBER, M. The knoledge of man: a philosophy of the interhuman. New York, Harper & Row, 1965.        [ Links ]

CIORNAI, S. Gestalt terapia hoje: resgate e expansão. Revista de Gestalt, v.1, n.1, 1991.        [ Links ]

FRAZÃO, L.M. Reflexões sobre o conceito de Self em Gestalt terapia, 1995. [Palestra apresentada em Ciclo de Palestras promovido pelo Centro de Desenvolvimento de Gestalt Terapia do Rio de Janeiro, em 27 de out. 1995]        [ Links ]

FRIEDMAN, M. The healing dialogue in psychotherapy. Northvale, Jason Aronson, 1994.        [ Links ]

GINGER, S.A. Gestalt: uma terapia do contato. São Paulo, Summus, 1995.        [ Links ]

HYCNER, R. Dialogical Gestalt therapy: an initial proposal. The Gestalt Journal, v.8, n.1, p.23-49, 1985.        [ Links ]

HYCNER, R. The I-Thou relationship and Gestalt therapy. The Gestalt Journal, v.13, n.1, p.41-54, 1990.        [ Links ]

HYCNER, R. Between person and person. New York, Gestalt Journal Press, 1991.        [ Links ]

LATNER, J. The Gestalt therapy book. New York, Julian Press. 1973.        [ Links ]

LOFFREDO, A.M. A cara e o rosto: ensaio sobre Gestalt terapia. São Paulo, Escuta, 1994.        [ Links ]

NOVO Michaelis: dicionário ilustrado. São Paulo, Melhoramentos / Wiesbaden, F.A. Brockhaus, 1961. v.1.        [ Links ]

PERLS, F.S.; HEFFERLINE, R.F.; GOODMAN, P. Gestalt therapy: excitement and growth in the human personality. New York, Julian Press, 1951.        [ Links ]

POLSTER, E.; POLSTER, M. Gestalt terapia integrada. Belo Horizonte, Interlivros, 1979.        [ Links ]

RIBEIRO, M.F.R. A relação terapêutica como o experimento em si. Revista de Gestalt, v.1, n.1, 1991.        [ Links ]

TELLEGEN, T.A. Gestalt-terapia, 1986. [Palestra apresentada na Faculdade de Ciências Médicas de Botucatu, SP, 1986 e no I Seminário de Gestalt-terapia no Instituto Sedes Sapientiae, maio, 1986]        [ Links ]

YONTEF, G.M. Awareness, dialogue & process: essays on Gestalt therapy. New York, Gestalt Journal Press, 1993.        [ Links ]

 

 

1 Awareness é uma palavra de difícil tradução. Literalmente significa "qualidade ou estado de ser cônscio" (Novo Michaelis, 1961, p.68). Para evitar confusão com a palavra consciência, tal como utilizada em psicanálise, preferimos manter o termo em inglês.