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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.7 n.1-2 São Paulo  1996

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Magia e bruxaria na Idade Média e no Renascimento1

 

Magic and witchcraft in the Middle Ages and the Renaissance

 

 

Franco Cardini

Instituto de História - Universidade de Florença - Itália

 

 

De acordo com o juízo comum, magia e bruxaria estão mais ou menos numa relação de sinonímia, embora magia assinale algo mais elevado, mais nobre, mais decoroso: a magia pode ser perigosa e terrível, mas nunca é desprezível. Merece nosso desprezo somente na medida em que se revela ser engano ou mentira, o que, no entanto, acontece muitas vezes.

A magia pode ser "natural" ou "cerimonial". Essa instituição é muito antiga e se destaca desde o século 13, ou seja, desde que alguns pensadores cristãos, muito zelosos na defesa de sua própria ortodoxia, mas também, ao mesmo tempo, interessados naquela ciência da natureza que possuía tantas relações com o pensamento mágico, quiseram separar, com muito cuidado, uma magia "natural", dirigida apenas à investigação do universo, e uma magia "cerimonial", caracterizada pelo emprego de meios e cerimônias idôneos para invocar os espíritos. A primeira forma de magia era, evidentemente, - do ponto de vista cristão - legítima, a segunda não. Os pensadores que introduziram e ampararam esta instituição foram homens como Alberto de Colónia (o mestre de Tomas de Aquino), Roger Bacon, Ramón Llull. Mas, na verdade, os investigadores modernos puderam demonstrar que tal distinção fica no nível teórico e que, na prática, na própria magia "natural" havia muitos elementos "cerimoniais" (Zambelli, 1973). Isto ficou mais claro no Renascimento, com exemplos de sábios como Massilio Ficino, Nostradamus, Paracelsus, Agrippa de Netteshein.

Porém, sempre segundo o juízo comum, a magia "natural" e mesmo a magia "cerimonial" não têm nada a ver com a bruxaria. O discurso é diferente se usamos outras distinções, na verdade menos antigas e autorizadas, mas infelizmente difundidas hoje em dia: da "magia branca" e "magia negra", por exemplo, que nasce de muitos equívocos; ou aquela - muito empírica - da "alta magia" e da "baixa magia" ("baixa" seja no sentido de vulgar, material ou de terrena e mesmo demoníaca.)

Na verdade, todas estas distinções têm uma raiz nobre. Trata-se do De Civitate Dei ou do Divinatione Daemonium de Santo Agostinho, obras nas quais - com forte sentido polêmico contra os gnósticos - ele discute a distinção gnóstica entre duas formas de invocar os espíritos e de dominar, através de sua sabedoria, a natureza, ou de conhecer o futuro com a sua ajuda. Estas duas formas são, em grego, a teurgia ("arte de atuar com os deuses") e a goeteia ("arte de atuar com as coisas da terra, da matéria"). Atuando em teurgia, diziam os gnósticos, referimo-nos apenas a espíritos bons, puros, superiores, com cerimônias puras e em situações sempre boas; atuando em goeteia (o que permanecia, ao nível teórico, coisa vergonhosa e perigosa, pois proibida), entramos em contato com espíritos maus, inquietos, infelizes, que buscam sacrifícios impuros para manifestarem-se e sempre gozam com o sangue e outras coisas sujas. Com esses espíritos só se atua quando se quer fazer o mal.

A resposta de Santo Agostinho aos gnósticos sobre esse ponto coincide com a fundação da demonologia cristã. Esclarecendo que a goeteia é, sem dúvida, ciência diabólica, Agostinho demonstra que a teurgia também o é, porque os únicos espíritos que querem entrar em contato com os homens, sem a ordem de Deus, são espíritos maus.

Podemos, de toda maneira, aceitar a visão comum, que faz coincidir "baixa magia" e "bruxaria"?

A resposta a essa pergunta, se quer ser correta, tem que ser colocada em dois níveis distintos: histórico e antropológico. No histórico o saber mágico apresenta-se como um conjunto complexo de fatores, uma "visão do mundo" orgânica, que também permite a ação prática nas coisas. Há, sem dúvida, na fenomenologia do ato mágico, rituais que se podem aproximar da feitiçaria ou da bruxaria, mas a distinção está, seja no método, seja no plano da sabedoria e do conhecimento. O mago age porque e na medida em que conhece as relações entre as coisas; a bruxa só conhece, e de forma mecânica, alguns atos que determinam alguns efeitos nas relações de causa e efeito.

No nível antropológico, de qualquer modo, a distinção entre magia e bruxaria fica pouco evidente: e vemos alguns pesquisadores usar indiferentemente - no basic English, que se tornou a linguagem oficial das relações científicas - a palavra magic e a palavra witchcraft.

Como nem a história nem a antropologia nos dão respostas claras, fiamo-nos no raciocínio fenomenológico. O espanhol bruja e o português bruxa são palavras usadas no mesmo sentido em que se usaram strega em italiano, sorcière em francês, witch em inglês, Hexe em alemão, e todas estas palavras traduzem o que nos documentos latinos, a partir do século 13, se entendia por palavras como incantatrix ou malefica (as palavras strix ou striga se afirmaram, no sentido que nos interessa, só mais tarde. Menos freqüentemente se usou também lamia e arlia ).

Nossa cultura européia tem duas raízes: a primeira é bíblica, a segunda greco-romana. Estas raízes não são "primígenas": atrás de ambas há uma ampla história de encontros, de relações, de misturas. Nós, aqui, não podemos falar disso. Limitamo-nos, então, à Bíblia e aos gregos e romanos. A Bíblia proíbe o que, em sua tradução latina, é carmina, incantationes, maleficia; ela condena os arioli e os incantatores. Ela proíbe, também, toda forma de investigação do futuro e de interrogação dos mortos, como se vê no episódio do rei Saul e da pithonissa de Endor.

Gregos e romanos têm uma atitude diferente. Sem dúvida há homens, e sobretudo mulheres, que fazem prodígios, até trazer a lua do céu e fazer com que a corrente dos rios corra ao contrário, subindo da foz à fonte; mulheres que podem, também, controlar a metamorfose de seres humanos em animais e dar ordens aos mortos. Desde as divinas Circe e Medéia, filhas do sol, até as incantatrices - algumas repugnantes - das quais nos falam Virgílio, Ovídio, Horácio, Lucano, Stacio e Apuleio, a cultura clássica nos oferece um quadro fenomenológico completo da bruxaria. Mas tudo isso é chamado carmen ou então cantus, ou seja, "fórmula mágica", ou simplesmente maleficium, isto é - eufemisticamente - "mal feito", "crime".

A cultura medieval, muito antes do Renascimento, se enche de literatura latina. Os poetas latinos são inclusive auctoritates, ou seja, é difícil recusar o que eles apresentam como fatos seguros e verdadeiros. Santo Agostinho será obrigado a construir uma completa - e complexa - teoria teológica e demonológica para demonstrar que os prodígios mágicos são somente enganos demoníacos. Frente aos prodígios e rituais dos magos, entretanto, o papel da incantatrix torna-se ao mesmo tempo mais simples mas também mais obscuro, mais mau. O magus conhece as leis ocultas do universo, lê o caminho das estrelas, sabe quais são as relações entre os planetas, as pedras preciosas e a alma humana: é um sábio. A incantatrix não sabe ou não tem o cuidado de conhecer as coisas que emprega para atuar, e atuar de maneira má. A incantatrix é maléfica, porque faz o mal (feiticeira de "fazer" ?). Ela atua, sobretudo, em três direções:

1. A metamorfose. A incantatrix pode transformar-se em animal (freqüentemente uma ave de rapina noturna, como um morcego ou uma coruja) e nessa forma perturbar sobretudo as crianças, sugando-lhes o sangue até a morte. Na origem, esta crença era estruturada ao contrário: havia gênios maus que à noite tomavam forma de pássaros sugadores de sangue e de dia a de velhas mulheres. A incantatrix pode também transformar os outros em animais.

2. A incantatrix atua como xamã: viaja ao país dos mortos, fala com eles e graças a eles prediz o futuro.

3. A incantatrix também faz, com seu carmen, seu cantus, rituais e ervas que ela conhece, maleficia que dão ou tiram amor, que matam as crianças no próprio seio materno, que podem chegar até à morte.

Essas são as características das incantatrix, que a antigüidade e a Idade Média nunca esqueceram, mas que ao longo de muitos séculos ficaram no fundo das crenças comuns. Com a Idade Média, entraram em contato com a cultura cristã - que permanecia bíblica e romana e não admitia a realidade dos poderes mágicos - e também com crenças novas de origem céltica, germânica, inclusive, mais tarde, eslava e báltica. As crenças em sua expressão folclórica muitas vezes se assemelham: mas a Igreja não parecia preocupar-se com todas aquelas coisas que ela chamava superstitiones, vanitates (Migne, 1850). Entre o século nove e o século onze, por exemplo, em algumas regiões alemãs, muitas mulheres confessavam aos curas que, à noite, enquanto seus corpos jaziam ao lado do marido na cama, seus espíritos voavam em cortejo atrás da deusa Diana. Segundo os curas que relatavam estas confissões, os bispos reagiam rindo e respondiam que tudo isso eram apenas sonhos de pobres mulheres insatisfeitas (Migne, 1853). Os bispos alemães do século onze parecem-nos de acordo com o doutor Freud.

Mas o que aconteceu, nas sociedades cristãs, uns séculos mais tarde? A crise do século quatorze, que começou com uma série de anormalidades agrícolas muito desfavoráveis, e teve seu ápice na "peste negra" de 1348, criou uma situação muito ruim, que continuou até a metade do século dezessete, caracterizada por epidemias, carestias, fome e mortalidade, sobretudo de crianças. No nível religioso, aconteceu que, nestes mesmos séculos, a Igreja teve que fazer frente a muitas heresias e, depois, sofrer a Reforma Protestante, que a cortou em duas. No nível político, estes séculos - desde o quatorze até o dezessete - foram os mesmos em que se tentou criar os estados absolutistas modernos, que não admitiam que ninguém nem nada pudesse fugir do seu controle.

Insegurança da Igreja que, com medo da heresia, perseguia velhas superstições das quais nunca, até então, havia cuidado; desastres climáticos, econômicos e sociais para os quais era necessário encontrar um "bode expiatório" a quem atribuir responsabilidade; novo e duro controle da sociedade pelo estado absolutista. Estas três circunstâncias, atuando ao mesmo tempo, foram a origem da caça às bruxas como da perseguição de outros marginais, inclusive os judeus.

Num primeiro momento, como se vê muito bem nos tratados inquisitoriais de Bernardo Gui e de Nicholas Eymerich - que são, os dois, do século quatorze, o problema era ver se as bruxas (mas havia bruxos também) podiam ser consideradas heréticas. Como para a Inquisição o mais importante era a heresia, as superstições em si não eram assunto seu. Mas, em muitíssimos casos, a insistência das denúncias, inclusive, ou melhor, sobretudo populares, de acontecimentos de bruxaria, obrigou os inquisidores a considerá-las. As acusações mais freqüentes eram de assassinato de crianças, de feitiçarias feitas, também, com o uso de coisas provenientes desses assassinatos (por exemplo, toucinho de crianças pequenas), de profanação de hóstias consagradas. Mais ou menos desde a metade do século quatorze começaram também as acusações de "congressos" especiais a que as bruxas chegavam transformadas em animais mágicos (sobretudo bodes), e onde se cozinhavam e se comiam carnes infantis e se mantinham relações sexuais promíscuas, inclusive com o próprio diabo. Essa prática presumida acabou denominando-se "sabbat", desenvolvimento do "vôo mágico", do qual, no século onze, haviam rido os bispos da Alemanha (Ginzburg, 1990).

Uma grande quantidade de superstições até então dispersas convergiu para esta nova imagem das bruxas, que era a imagem de uma mulher má, aliada do diabo e enlaçada a ele através de um pacto, cuja tarefa era a derrubada da cristandade. Foram os teólogos do século quinze que aperfeiçoaram os elementos que ainda faltavam à imagem "definitiva" da bruxa: o pacto com o diabo e a realidade dos poderes mágicos. Foi uma revolução teológica e jurídica que inaugurou a "caça às bruxas".

Quero que me permitam acentuar o caráter disperso - como acabo de dizer - dos elementos que começam a compor a imagem da bruxa. Estes elementos se refletem nas palavras vulgares que compreendem o que os textos latinos continuam chamando incantatrix, maleficia, lamia. O italiano striga, strix refere-se à idéia de metamorfose e de vampirismo; o francês sorcière vem de sortes e indica, antes de tudo, uma técnica de conhecimento do futuro; o espanhol bruja, o português bruxa e o alemão Hexe referem-se ao caráter sagrado de antigas mulheres sábias, pagãs, que habitavam os bosques, e provêm de etimologias que indicam a madeira e as árvores; o inglês witch indica a sábia germânica, a Wicca (veja-se o alemão wissen, "saber", "conhecer").

Características comuns da bruxa nos finais da Idade Média, como as que se vêem no Malleus Maleficarum dos frades dominicanos, Kramer e Sprenger (1484), são o vôo mágico, o pacto com o diabo, o assassinato das crianças, a destruição de farinha e de colheitas, a metamorfose animal. É a construção de um perfeito "bode expiatório", ao qual, até a metade do século dezessete, serão atribuídas as responsabilidades por toda a má sorte do Ocidente. O que - note-se - não significa que não existiam bruxas, no sentido de que não existissem mulheres que afirmavam - também espontaneamente, para ganhar dinheiro - serem bruxas. Mas, em última instância, o que era a bruxaria? Uma ficção, uma burla, uma mentira feita para enganar os ingênuos? Uma ilusão criada, inclusive pelas próprias bruxas, quando sob o efeito de substâncias alucinógenas ou de sonhos ou de loucura? O êxito - e existiram alguns casos - de poderes "extrasensoriais"? O resultado de um grande mito arquetípico, como sugeriu Carlo Ginzburg em livro recente, História Noturna?

Talvez um misto de todas estas coisas. Quem estuda a bruxaria tem que lembrar que limitar-se à fenomenologia é mais prudente do que tentar uma tipologia; e que nunca será possível estudar as bruxas em si mesmas porque sua voz livre nunca chegou até nós, obrigados a estudá-las através dos documentos de teólogos e inquisidores. Indiretamente. O que vale, por fim, é que os clientes das bruxas são muito mais interessantes que as próprias bruxas. Porque as bruxas são, antes de mais nada, consolatrices afflictorum, vendedoras de sonhos e de ilusões de potência, de triunfo, de vitória, de vingança. E são bodes expiatórios dos maus pensamentos de uma sociedade cheia de desejos e de medo, de vícios e de impotência. A bruxaria triunfa quando não há esperança de outra redenção, nem social nem cultural. Eis porque a "caça às bruxas" foi uma grande tragédia. Não apenas para as bruxas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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EYMERICH, N. (1376). Le manuel des inquisiteurs. [Directorium inquisitorum]. Paris, La Haye, 1973.        [ Links ]

GINZBURG, C. Storia notturna: una decifrazione del sabba. Torino, Giulio Einaudi, 1990. [Tradução brasileira: História noturna: decifrando o sabá. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.]        [ Links ]

GUI, B. (1324). Manuel de l'inquisiteur. Paris, Les Belles Lettres, 1964. p.20-5.        [ Links ]

KRAMER, H.; SPRENGER, J. (1484). Le marteau des sorcières. [Malleus maleficarum]. Paris, Danet, 1973.        [ Links ]

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ZAMBELLI, P. I problemi della magia naturale nel Rinascimento. Rivista Critica di Storia della Filosofia, v.28, p.271-96, 1973.        [ Links ]

 

 

1 Título original: Magia y brujaria en la media edad y en el renacimiento. Tradução do espanhol: Sylvia Leser de Mello - IP-USP.