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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.7 n.1-2 São Paulo  1996

 

OARTIGOS ORIGINAIS

 

A Escola de Vigotski e a educação escolar: algumas hipóteses para uma leitura pedagógica da Psicologia Histórico-Cultural

 

Vigotski's school of thought and education (some hypothesis to a pedagogical reading of the Historical-Cultural Psychology)

 

 

Newton Duarte

Departamento de Psicologia da Educação - Faculdade de Ciências e Letras - UNESP - Marília

 

 


RESUMO

O artigo apresenta cinco hipóteses para uma leitura pedagógica da Psicologia Histórica-Cultural (Escola de Vigotski): 1) para se compreender o pensamento de Vigotski e sua escola é indispensável o estudo dos fundamentos filosóficos marxistas dessa escola psicológica; 2) a obra de Vigotski precisa ser estudada como parte de um todo maior, aquele formado pelo conjunto dos trabalhos elaborados pela Psicologia Histórico-Cultural; 3) a Escola de Vigotski não é interacionista nem construtivista; 4) é necessária uma relação consciente para com o ideário pedagógico que esteja mediando a leitura que os educadores brasileiros vêm fazendo dos trabalhos da Escola de Vigotski; 5) uma leitura pedagógica escalonista dos trabalhos da Escola de Vigotski se contrapõe aos princípios pedagógicos contidos nessa escola psicológica.

Descritores: Vygotsky, Lev Semenovich, 1896-1934. Desenvolvimento infantil. Aprendizagem escolar. Linguagem. Educação.


ABSTRACT

This paper presents five hypotheses to a pedagogical reading of the Historical - Cultural Psychology (Vigotski's school): 1) to understand Vigostki and his school of thought it is essencial to study the philosophical Marxist foundations of this psychological school; 2) Vigotski's works have to be studied as part of a whole constituted of the works produced by the Historical-Cultural Psychology; 3) Vigotski's school is neither interactionist nor constructivist; 4) it is necessary to have a conscious relationship of the pedagogical ideas which have been used as means to reading of the School of Vigotski's works that Brazilian educators have made; 5) a "escolanovista" pedagogical reading of the School of Vigotski's works is opposite to the pedagogical principles existing in this psychological school.

Index terms: Vygotsky, Lev Semenovich, 1896-1934. Childhood development. School learning. Language. Education.


 

 

1. INTRODUÇÃO

Neste texto apresentamos algumas hipóteses para um estudo da corrente da Psicologia soviética auto-denominada Histórico-Cultural, cuja referência principal é a obra de L.S. Vigotski1. Essas hipóteses orientaram o planejamento e a realização de um curso, durante o ano de 1994, junto a pesquisadores do Núcleo de Ensino do campus de Araraquara da UNESP, curso esse voltado à questão da educação escolar na ótica da Escola de Vigotski. Não pretendemos resumir neste artigo o citado curso, mas apenas difundir as hipóteses principais que nortearam os estudos realizados durante o mesmo. Na medida em que nossa leitura dos trabalhos da Escola de Vigotski vem se desenvolvendo na perspectiva de buscar contribuições nesses trabalhos à reflexão pedagógica, entendemos serem as hipóteses aqui expostas, instrumentos para uma leitura pedagógica da Escola de Vigotski. Não são, portanto, hipóteses que abarquem os aspectos de outras leituras, voltadas para outros objetivos e realizadas sob outras perspectivas.

Explicitaremos desde agora algo que deixamos claro quando da concepção e realização daquele mencionado curso: estamos no início do estudo do pensamento de Vigotski e sua escola. Mas devemos também deixar claro que ao considerarmos que estamos no início, temos como ponto de referência a obra como um todo de Vigotski e também o enorme conjunto de trabalhos elaborados por nomes como Leontiev, Luria, Galperin, Elkonin, Davidov, Zaporózhets, e outros integrantes da Psicologia Histórico-Cultural.

Esse fato de estarmos no início de nosso estudo da Escola de Vigotski tem feito com que até agora tenhamos optado por não escrever artigos sobre esse tema. Temos considerado necessário aprofundar nossa leitura antes de publicar suas conclusões. Continuamos a ver como necessário esse aprofundamento, mas decidimos pela divulgação de algumas hipóteses que têm surgido ao longo de nosso estudo, em razão de uma situação que consideramos bastante problemática na recepção que o pensamento de Vigotski tem tido entre os educadores brasileiros. Trata-se do seguinte: Vigotski está se tornando famoso entre os educadores brasileiros antes de ser lido e conhecido.

É preocupante e inaceitável que estejam proliferando tantas publicações que se apresentam como divulgadoras do pensamento de Vigotski e sua escola, sem que apareça sequer na bibliografia dessas publicações mais do que as obras A Formação Social da Mente (Vygotsky, 1984) e Pensamento e Linguagem (Vygotsky, 1979). Em primeiro lugar isso já seria uma enorme redução do campo de estudos, pelas dimensões da obra completa de Vigotski. Em segundo lugar essa redução é ainda maior se forem deixados de lado os trabalhos dos demais membros dessa escola. É incrível, por exemplo, o quão pouco é estudado no Brasil, dentre os que falam de Vigotski e sua escola, um trabalho tão importante quanto O Desenvolvimento do Psiquismo (Leontiev, 1978). Em terceiro lugar, as edições em português existentes até agora, de Pensamento e Linguagem, a obra clássica de Vigotski, são traduções da edição em inglês na qual foram cortados nada menos que 2/3 do texto original (Cf. Sève, 1989). Sève também mostra que os cortes incidiram particularmente sobre as reflexões marxistas de Vigotski, como se elas fossem extrínsecas à sua teoria psicológica e, portanto, suprimíveis sem prejuízo para a compreensão do pensamento do autor. Sève afirma ainda que isso contraria a essência do pensamento de Vigotski, que defendeu explicitamente em seu texto sobre O significado histórico da crise da psicologia (Vygotsky, 1991, p.257-413), a necessidade de uma teoria materialista e dialética do psiquismo. Como disse Lima (1990), os leitores dessa tradução têm em mãos um digest de Vigotski. Consideramos essa afirmação válida também para a obra A Formação Social da Mente. Como todos sabem, essa obra é uma coletânea organizada por quatro pesquisadores americanos. E os próprios organizadores da obra assim se expressam em seu prefácio Vigotski (1984):

O trabalho de reunir obras originalmente separadas foi feito com bastante liberdade. O leitor não deve esperar encontrar uma tradução literal de Vygotsky, mas, sim, uma tradução editada da qual omitimos as matérias aparentemente redundantes e à qual acrescentamos materiais que nos pareceram importantes no sentido de tornar mais claras as idéias de Vygotsky. (p.x).

Por incrível que pareça Vigotski vem tornando-se muito famoso no Brasil antes mesmo de ser conhecido "pessoalmente", através de seus próprios escritos, sem tradutores que procurem "aprimorar" seu estilo de escrita. Essa limitação do estudo de Vigotski a apenas duas obras reescritas torna preocupante a multiplicação de textos divulgadores, que apresentam como sendo o pensamento de Vigotski aquilo que, na verdade, deveria ser apresentado como algumas idéias parciais e provisórias de quem está estudando Vigotski.

A compreensível pressa em divulgar o pensamento desse autor tem muitas vezes produzido uma injustificável ausência da cautela indispensável a todos aqueles que estão, como nós, iniciando-se no estudo da obra não só de Vigotski, mas de toda a corrente Histórico-Cultural da Psicologia soviética. Dividir com outros educadores e pesquisadores aquilo que estamos estudando não só é legítimo, sob o aspecto da democratização do acesso a um determinado pensamento, como também necessário para impulsionar o próprio aprofundamento do estudo de quem faz o papel de divulgador. Mas não podemos nunca abandonar a consciência do caráter parcial e provisório das conclusões a que estejamos chegando através de nosso estudo.

Esse é o espírito com o qual realizamos aquele curso e agora divulgamos por escrito algumas hipóteses que têm sido geradas à medida que avançamos no estudo dos trabalhos da Escola de Vigotski. Mais do que apresentar uma leitura de Vigotski, pretendemos, aqui, colocarmo-nos lado a lado com outros que também estão estudando as obras dessa escola, e dividir algumas indagações que talvez possam provocar discussões sobre certos aspectos que estejam precocemente sedimentando-se, como indiscutíveis caracterizadores do pensamento de Vigotski e sua Escola. Em outras palavras, pretendemos gerar uma polêmica em torno de algumas idéias que têm sido difundidas sobre a Psicologia Histórico-Cultural.

Não estamos afirmando que não exista, dentre os pesquisadores em educação no Brasil, o esforço por estudar Vigotski de forma aprofundada, indo aos textos integrais. Esse esforço existe, mas o que tem predominado, em termos de divulgação do pensamento de Vigotski, são trabalhos que se limitam às já citadas edições em português de Pensamento e Linguagem e Formação Social da Mente. Dentre aqueles que têm procurado trabalhar com os textos integrais de Vigotski, têm sido empregadas edições, em vários idiomas, das Obras Escolhidas de Vigotski, publicadas originalmente em russo, em seis volumes. Já circulam, inclusive, dentre alguns estudiosos de Vigotski, os dois volumes até aqui editados em espanhol, dessas Obras Escolhidas (Vygotski, 1991, 1993). O segundo volume dessas Obras Escolhidas traz o texto integral de Pensamento e Linguagem, que precisa urgentemente ser editado em português, para fazer frente, junto a um público maior de leitores, ao já citado digest.

O estudo aprofundado dessas Obras Escolhidas pode também fazer frente às tentativas de se "depurar" o pensamento de Vigotski do seu "viés" marxista. Mas aqui já estamos entrando numa questão da leitura que fazemos de Vigotski. É o momento, portanto, de passarmos à discussão de nossas hipóteses para uma leitura pedagógica dos trabalhos da Escola de Vigotski.

 

2. AS HIPÓTESES

Apresentaremos e analisaremos conjuntamente as duas primeiras hipóteses:

PRIMEIRA HIPÓTESE

Para se compreender o pensamento de Vigotski e sua escola é indispensável o estudo dos fundamentos filosóficos marxistas dessa escola psicológica.

SEGUNDA HIPÓTESE:

A obra de Vigotski precisa ser estudada como parte de um todo maior, aquele formado pelo conjunto dos trabalhos elaborados pela Psicologia Histórico-Cultural.

Certa vez perguntaram-nos se é necessário ser marxista para estudar e compreender Vigotski ao que respondemos que não, com a ressalva de que é sim preciso não fazer de conta que Vigotski não fosse marxista. Hoje acrescentaríamos à resposta que Vigotski não era um marxista e psicológo, mas alguém que procurava construir uma psicologia marxista. Marta Shuare (1990) em seu excelente livro La Psicología Soviética Tal Como Yo La Veo, diz que o pensamento de Vigotski foi profundamente enraizado no momento histórico por ele vivido, de busca de construção de uma sociedade socialista:

... o tempo pessoal de Vigotski coincidiu plenamente com o tempo histórico que lhe tocou viver e sua criação, revolucionária na psicologia, coincidiu totalmente (por seu momento e por seu sentido) com o auge revolucionário em todas as esferas da vida (as relações sociais, a economia, a política, a literatura, a poesia, o teatro, as ciências, etc.) na URSS.

Assim, é um grave equívoco pretender depurar a psicologia de Vigotski de seu marxismo, isto é, de sua teoria histórico-cultural do psiquismo. Ao invés de buscar autores que interpretam Vigotski procurando distanciá-lo de Marx, devemos procurar compreender o que, da obra deste, fundamenta a obra daquele. Esse é um aspecto não secundário com o qual é preciso ter muito cuidado. As pessoas não precisam ser marxistas para ler Vigotski, mas é muito pouco provável que se possa entender Vigotski sem um mínimo de conhecimento da filosofia de Marx, de seu método, de sua concepção do homem como um ser histórico. No já citado texto sobre O significado histórico da crise da psicologia, Vigotski critica aqueles que tentavam construir uma psicologia marxista através do "método das citações" dos clássicos do marxismo e afirmava que não queria encontrar uma psicologia já pronta nesses clássicos, mas sim apreender deles o método para construir essa psicologia. Nesse contexto, método significa muito mais do que um mero conjunto de procedimentos, mas sim a síntese de uma concepção do conhecimento que se respalda numa determinada concepção do homem como um ser sócio-histórico. Portanto, as palavras de Vigotski não podem ser empregadas para se justificar nenhuma atitude de secundarização de seus fundamentos filosóficos marxistas.

Assim como entendemos que a obra de Vigotski não pode ser bem compreendida se tentarmos separá-la de seus fundamentos filosóficos, especialmente aqueles mais diretamente ligados ao universo da filosofia marxista, defendemos também a necessidade de se analisar quais desdobramentos a psicologia de Vigotski teve na obra dos continuadores dessa escola soviética. Há, em alguns intérpretes ocidentais do pensamento de Vigotski, uma tentativa de separá-lo do restante de sua escola, em especial do pensamento de Leontiev e seguidores. De nossa parte não concordamos em absoluto com tal tentativa. Ao contrário, entendemos que o pensamento de Vigotski pode ser compreendido em maior profundidade se utilizarmos a mediação do estudo de obras, como o já citado livro O Desenvolvimento do Psiquismo (Leontiev, 1978). Nesse livro existem textos como "O Homem e a Cultura" e "A Demarche Histórica no Estudo do Psiquismo Humano" que apresentam ao mesmo tempo uma rica síntese dos fundamentos filosófico-antropológicos dessa corrente da Psicologia, e uma caracterização das principais linhas de desenvolvimento da mesma, incluindo-se o campo dos estudos pedagógicos. Ainda nesse livro encontramos importantes reflexões sobre a origem histórica da consciência humana, além de um texto sobre "O desenvolvimento do psiquismo infantil", onde Leontiev apresenta sua importante teoria sobre a atividade dominante (em algumas traduções desse texto esse termo aparece como atividade principal), enquanto aquela que regeria cada estágio do desenvolvimento psíquico da criança e possibilitaria também compreender a passagem de um estágio a outro. Ora, a questão da periodização é de fundamental importância para a educação. Por que então esse texto é tão pouco debatido dentre os educadores, mesmo dentre aqueles voltados para o estudo da Escola de Vigotski? Ainda sobre a questão da periodização, mencionamos outro importante texto, ainda sem tradução para o português e, portanto, praticamente desconhecido entre a grande maioria dos educadores brasileiros, escrito por Elkonin, (1987), intitulado Sobre el problema de la periodización del desarollo psíquico en la infancia. (p.104-24).

Representou uma importante contribuição à divulgação, entre os educadores brasileiros, de trabalhos da Escola de Vigotski, a publicação das coletâneas Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem (Vigotskii, Luria & Leontiev, 1988) e Psicologia e Pedagogia (Luria, Leontiev, Vygotsky et al. 1991). Mesmo assim pode-se observar que não se reverteu a tendência a deixar o pensamento de Leontiev à margem das discussões sobre as questões educacionais. Acreditamos que isso não seja casual. Dado que boa parte do que vem sendo falado no Brasil sobre Vigotski e sua escola é intermediado por leituras de autores ocidentais, não necessariamente ligados à tradição do pensamento marxista, Leontiev talvez incomode pela clareza com que explicita os fundamentos filosóficos marxistas de suas reflexões psicológicas. Apela-se então para o recurso da distribuição dos autores por "áreas". Nessa distribuição a obra de Leontiev tem sido estudada mais por aqueles que trabalham na área de Psicologia Social e Luria pelos neurolinguistas. Nada mais estranho ao pensamento dessa escola. Em primeiro lugar porque o pensamento de Leontiev não é mais "social" do que o de Vigotski. Em segundo lugar, o pensamento de Leontiev não é menos voltado para as questões educacionais do que o de Vigotski. Também Luria, apesar de ter desenvolvido um enorme trabalho no campo da neuro-psico-linguística, não pode ser isolado nessa área. Observamos, de passagem, que Luria tem recebido mais atenção do que Leontiev da parte dos psicólogos educacionais e pedagogos brasileiros. Teve muitas obras publicadas já no Brasil, dentre elas sua interessantíssima pesquisa sobre o caráter social do desenvolvimento cognitivo (Luria, 1990).

Uma outra forma de afastar Vigotski de Leontiev é pelo caminho do tema da linguagem. A ênfase numa leitura semiótica da obra de Vigotski leva alguns autores a distanciá-lo da teoria da atividade desenvolvida por Leontiev e seguidores. Mas os próprios autores da Escola de Vigotski não vêem a teoria da atividade como uma outra teoria, mas sim como uma etapa do pensamento de uma mesma escola. Davydov & Zinchenko, (1994), dizem:

... a Escola de Vygotsky não é mencionada, com muita freqüência, como uma escola histórico-cultural; referências mais freqüentes são feitas à teoria psicológica da atividade, desenvolvida por essa escola. Em certo sentido, é assim que deve ser, já que, por muitos anos, os representantes dessa escola trabalharam principalmente sobre o problema da ação e da atividade (por exemplo, os problemas da estrutura da atividade, da estrutura das ações perceptivas, mnemônicas e intelectuais, etc.), o que indubitavelmente representou uma grande conquista por parte dos representantes da Escola de Vigotski. Portanto, a teoria psicológica da atividade é um novo e legítimo estágio no desenvolvimento da teoria histórico-cultural. [grifos do autor] (p.165).

Para um conhecimento mais detalhado do pensamento desenvolvido pela Escola de Vigotski na antiga URSS, acreditamos que seria de grande valia a publicação no Brasil de duas obras de excelente qualidade: o já citado livro Shuare, (1990) e a coletânea intitulada La Psicologia Evolutiva e Pedagógica en la URSS (antología), organizada por Davidov e Shuare (1987). Essas duas publicações por certo seriam de grande impacto no segmento do pensamento pedagógico brasileiro que tem se dedicado ao estudo da Escola de Vigotski. Esse impacto seria causado, ao nosso ver, pelo fato de poderem os leitores brasileiros tomar contato direto com as idéias defendidas pelos próprios integrantes dessa escola e pelo conhecimento do quão extensa é a obra que foi por eles produzida.

A partir do estudo dos trabalhos produzidos por essa escola é que temos cada vez mais nos convencido de nossa terceira hipótese para uma leitura pedagógica da Escola de Vigotski.

TERCEIRA HIPÓTESE:

A Escola de Vigotski não é interacionista nem construtivista.

Sabemos que essa hipótese esbarra de frente com a maioria do que tem sido escrito sobre Vigotski no Brasil. Rocco (1990) diz que:

... há muitos pontos em comum entre Vygotsky e Piaget, a começar pela linha cognitivista, construtivista-interacionista que se encontra na base teórica dos trabalhos de ambos. (...) Apesar de o termo (...) vir tradicionalmente ligado à obra de Piaget, acreditamos não ser impertinente, portanto, aplicá-lo às posições teóricas de Vygotsky e Luria, ressalvando tratar-se aqui, evidentemente, de um sócio-interacionismo, cujo enfoque principal é de raíz histórico-dialética, visto sob a luz da teoria marxista (p.26-7).

Posição similar é defendida por Oliveira (1993)

Embora haja uma diferença muito marcante no ponto de partida que definiu o empreendimento intelectual de Piaget e Vygotsky - o primeiro tentando desvendar as estruturas e mecanismos universais do funcionamento psicológico do homem e o último tomando o ser humano como essencialmente histórico e portanto sujeito às especificidades do seu contexto cultural - há diversos aspectos a respeito dos quais o pensamento desses dois autores é bastante semelhante. (...) Tanto Piaget como Vygotsky são interacionistas, postulando a importância da relação entre indivíduo e ambiente na construção dos processos psicológicos; nas duas abordagens, portanto, o indivíduo é ativo em seu próprio processo de desenvolvimento: nem está sujeito apenas a mecanismos de maturação, nem submetido passivamente a imposições do ambiente. (p.103-4).

Apenas para citar outros dois trabalhos de relativa divulgação, mencionamos Davis e Oliveira (1990) e Rosa (1994), onde também o pensamento de Vigotski é enquadrado no modelo interacionista-construtivista.

Ainda que nossa hipótese não se restrinja à questão da denominação dessa escola, começaremos por essa questão, posto que o nome de uma escola é um dos elementos que definem sua especificidade perante outras.

Além das denominações "sócio-construtivismo", "sócio-interacionismo" e "sócio-interacionismo-construtivista", a Escola de Vigotski foi chamada no Brasil também de "construtivismo pós-piagetiano" (Grossi & Bordin, 1993).

Diga-se, em primeiro lugar, que nenhuma dessas denominações aparece nas obras de Vigotski, Leontiev, Luria, Galperin, Elkonin, Davidov ou qualquer outro membro dessa escola. Esses autores preocuparam-se sempre em caracterizar essa psicologia naquilo que ela tem de diferenciador em relação a outras, ou seja, sua abordagem histórico-social do psiquismo humano. Por essa razão, as denominações que eles mais utilizaram para se auto-caracterizarem foram a de teoria Histórico-Cultural e a de Teoria da Atividade, sendo esta segunda denominação empregada para caracterizar especificamente o trabalho de Leontiev e seus seguidores. O próprio Leontiev, num texto sobre essa corrente da Psicologia, caracterizou como central o paradigma histórico do psiquismo por ela adotado, desde os trabalhos de Vigotski. Assim, acreditamos que não há porque não utilizar a denominação Histórico-Cultural, isto é, não há porque buscar um critério para a denominação que seja externo ao esforço feito pela própria Escola de Vigotski de auto-caracterização.

Sejamos ainda mais claros: o divisor de águas para a Escola de Vigotski, quando da caracterização das correntes da Psicologia, residia justamente na abordagem historicizadora ou não-historicizadora do psiquismo humano. Ora, para eles somente uma psicologia marxista poderia abordar de forma plenamente historicizadora o psiquismo humano. E não se trata apenas de uma das possíveis formas de se conceber o psiquismo, mas sim de que ele não pode ser plenamente compreendido se não for abordado enquanto um objeto essencialmente histórico.

Estamos perante a questão do critério de classificação das correntes da Psicologia. Quando o critério é a historicização ou não do psiquismo, Piaget, Skinner & Freud estão muito mais próximos um do outro do que da psicologia da Escola de Vigotski.

Procuraremos mostrar aqui que o interacionismo é um modelo epistemológico que aborda o psiquismo humano de forma biológica, ou seja, não dá conta das especificidades desse psiquismo enquanto um fenômeno histórico-social. Com isso estamos defendendo que a Psicologia Histórico-Cultural não é uma variante do interacionismo-construtivista. Não basta colocarmos o adjetivo social. A questão é a de que a especificidade dessa escola da Psicologia perante outras não pode ser abarcada pela categoria de interacionismo nem pela de construtivismo.

Para efeito dessa análise epistemológica, passaremos a empregar a expressão interacionismo-construtivista como tradução de um mesmo modelo epistemológico, independentemente de .ele ser chamado por algum autor através apenas do adjetivo interacionista ou do adjetivo construtivista. Entendemos como legítima essa nossa atitude pelo fato de que ambos os termos têm a origem de sua utilização na mesma fonte, a obra de Piaget.

São abundantes os trabalhos que fazem referência às origens, na obra de Piaget, do modelo epistemológico interacionista-construtivista. Limitando-nos a algumas obras recentes e de fácil acesso, mencionamos aqui os trabalhos de Azenha (1993), Davis & Oliveira (1990) e Rosa (1994). Com pequenas variações de terminologia, esses três trabalhos mostram que o modelo interacionista-construtivista se apresenta por oposição a dois outros modelos epistemológicos: o empirismo e o inatismo (ou pré-formismo). Como explica Azenha (1993):

De um lado, o programa de pesquisa de Locke e seus sucessores, de Condillac a Skinner, conhecido como 'empirismo' (...) A interpretação 'empirista' do conhecimento supervaloriza o papel da experiência sensível, particularmente da percepção, que inscreveria direta ou indiretamente os conteúdos da vida mental sobre um indivíduo com extrema plasticidade. Essa plasticidade, por sua vez, seria decorrente de uma baixíssima indeterminação mental por ocasião do nascimento. (...) Do outro lado, a segunda resposta clássica à questão naufragaria no extremo oposto, admitindo, na origem, uma forte determinação ou dotação mental desde o nascimento. Dito de outra forma, outros programas de pesquisa partem de um compromisso ontológico com o inatismo ou o pré-formismo. (...) A solução da origem e processo do conhecimento, para Piaget, está numa terceira via, alternativa ao empirismo e ao pré-formismo. O Construtivismo seria solução para o estudo e desenvolvimento da gênese do conhecimento. (p.19-22).

De fato não discordamos que a Psicologia Histórico-Cultural também se oponha tanto às abordagens inatistas quanto às empiristas. Ocorre que há algo que pode unir pré-formistas, empiristas e interacionistas: o modelo biológico, naturalizante, a partir do qual é assumida uma posição perante essa questão. Para a Escola de Vigotski, mais importante do que apenas superar os unilateralismos na análise da relação sujeito-objeto era buscar compreender as especificidades dessa relação quando sujeito e objeto são históricos e quando a relação entre eles também é histórica. Não é possível compreender essas especificidades quando se adota o modelo biológico da interação entre organismo e meio-ambiente. Azenha (1991) explicita que o interacionismo-construtivista de Piaget apóia-se nesse modelo biológico:

... a concepção do funcionamento cognitivo em Piaget é a aplicação no campo psicológico de um princípio biológico mais geral da relação de qualquer ser vivo em interação com o ambiente. Ser bem sucedido na perspectiva biológica implica a possibilidade de conseguir um ponto de equilíbrio entre as necessidades biológicas fundamentais à sobrevivência e as agressões ou restrições colocadas pelo meio à satisfação dessas mesmas necessidades. (p.24).

A autora prossegue mostrando que nesse processo intervêm dois mecanismos: a organização do ser vivo e a adaptação ao meio. Explica ainda que a adaptação se realiza através dos processos de assimilação e acomodação (Azenha, 1991, p.25). Freitag (1991), sintetiza de forma semelhante as idéias de Piaget sobre essa questão e diz que:

Os mesmos mecanismos de assimilação e acomodação desenvolvidos pelos moluscos dos lagos, em termos puramente orgânicos, são desenvolvidos pelo homem no plano das estruturas cognitivas, destinadas a facilitar a adaptação do organismo humano ao seu meio. (p.35).

Assim, se empregarmos a categoria de interacionismo (que vimos resultar de um modelo essencialmente biológico) para caracterizar a Escola de Vigotski, estaremos tentando enquadrar essa escola sob um modelo que contraria a pretensão fundamental de construir um psicologia histórico-cultural do homem.

Além disso, parece-nos que freqüentemente essa questão é mal interpretada, pois se afirma que trazer Vigotski para o interacionismo-construtivista seria trazer o social para essa corrente. O senso comum pedagógico expresso na matéria publicada pela Revista Nova Escola (Lagoa, 1994) já traduz isso, dizendo que Vigotski seria "uma pitada social no construtivismo". Acrescente-se que a concepção de social, expressa nessa matéria, não ultrapassa o estar fazendo algo junto com outras pessoas, isto é, não ultrapassa a existência de processos inter-subjetivos. Uma leitura atenta de Vigotski revela que, apesar de tratar da questão da inter-subjetividade, ele nunca reduziu o social a isso. Até porque a interação entre subjetividades era para Vigotski sempre uma interação historicamente situada, mediatizada por produtos sociais, desde os objetos até os conhecimentos historicamente produzidos, acumulados e transmitidos.

Mas a idéia de que Vigotski viria para dar uma pitada social ao construtivismo aparece também em trabalhos acadêmicos. Na contra-capa do livro "Construtivismo Pós-Piagetiano" (Grossi, Bordin et al., 1993), aparece o seguinte texto:

Construtivismo pós-piagetiano é um novo e sólido paradigma sobre aprendizagem, o qual acrescenta aos dois pólos clássicos - o sujeito e a realidade - em torno dos quais era pensada a construção de saberes e conhecimentos, 'a fascinação do estar juntos', isto é, os outros, o grupo e o social. Trata-se, portanto, da junção enriquecedora dos resultados dos estudos de Piaget, com os de Wallon, de Vygotsky, de Paulo Freire, de Sara Pain às contribuições de Marx, Freud e da sociologia, da antropologia, da linguística contemporâneas.

Deixemos de lado a questão do grau de abrangência que está sendo postulado para esse novo paradigma, bem como a questão da absoluta heterogeneidade epistemológica e sociológica dos autores citados. Atenhamo-nos à questão do que define o "pós"-piagetiano nesse paradigma. Seria justamente o acréscimo do social. Do ponto de vista pedagógico essa questão mistura-se com a do papel da intervenção externa nos processos de aprendizagem do indivíduo. Rosa, (1994), diz:

... é preciso admitir uma dificuldade que decorre da própria formulação teórica construtivista, especialmente da versão piagetiana à qual se tem dado maior ênfase. Ao colocar o sujeito como centro e, principalmente, ao vincular a aprendizagem à maturação biopsicológica, Piaget autoriza a inferência de que o processo de aprendizagem ocorre espontaneamente, isto é, independente da ação ou da 'provocação' de um outro sujeito. (...) A esse respeito a teoria de Vygostky, indubitavelmente, se faz mais clara, ao atribuir especial importância ao meio social, ao adulto educador no processo de aprendizagem. (p.49-50).

A última autora citada avança nessa questão, pois reconhece que se trata de uma dificuldade decorrente da própria formulação teórica do construtivismo. O que discordamos é que não se trata de passar a um construtivismo social ou de trazer o social para o construtivismo, pois entendemos que o construtivismo piagetiano já contém um modelo do social, e esse modelo se respalda no modelo biológico da interação entre organismo e meio-ambiente. Não se trata de que Piaget tenha desconsiderado o social, mas de como ele o considerou. Leontiev, (1978), expressou essa questão da seguinte forma:

Do ponto de vista que nos interessa, as notáveis investigações de J. Piaget, consagradas ao desenvolvimento psíquico da criança, têm uma significação particular, dupla, na minha opinião. Penso, por um lado, na manutenção, na sua teoria geral do desenvolvimento, dos conceitos de organização, de assimilação e de acomodação como conceitos de base e, por outro lado, no fato de ele considerar o desenvolvimento psíquico como o produto do desenvolvimento das relações do indivíduo com as pessoas que o rodeiam, com a sociedade, relações que transformam e reorganizam a estrutura dos processos de cognição da criança. (...) A dualidade da concepção de Piaget cria uma série de dificuldades maiores, uma das quais encontra expressão no fato de a transformação social em questão não aparecer verdadeiramente a não ser em etapas relativamente tardias do desenvolvimento ontogênico e não concernir senão aos processos superiores. (p.149-50).

O problema não reside portanto em trazer o social para o construtivismo, mas em buscar outro modelo epistemológico, diferente do modelo biológico que está na base do interacionismo-construtivista.

Se até aqui nossa análise ateve-se à questão do modelo epistemológico, não deixamos, entretanto, de mostrar que tal análise está direcionada para a busca de uma determinada concepção do ser humano e da formação do indivíduo. Por essa razão temos procurado trabalhar no sentido de fornecer contribuições para o que chamamos de uma teoria histórico-social da formação do indivíduo (Duarte, 1993). Vemos tal teoria como parte do corpo teórico de uma determinada concepção pedagógica, que no Brasil vem sendo chamada de Pedagogia Histórico-Crítica (Cf. Saviani, 1991b). Isso remete para nossas quarta e quinta hipóteses para um estudo da Escola de Vigotski:

QUARTA HIPÓTESE:

É necessária uma relação consciente para com o ideário pedagógico que esteja mediatizando a leitura que os educadores brasileiros vêm fazendo dos trabalhos da Escola de Vigostki.

QUINTA HIPÓTESE:

Uma leitura pedagógica escolanovista dos trabalhos da Escola de Vigotski se contrapõe aos princípios pedagógicos contidos nessa escola psicológica.

A primeira coisa a ser dita é que, ao falarmos aqui em escolanovismo, temos em vista a análise crítica feita por Saviani (1989), com a qual concordamos.

As duas hipóteses acima formuladas incidem sobre a questão do ideário pedagógico que possa estar norteando a leitura dos trabalhos da Escola de Vigotski. Entendemos ser necessário explicitar qual ideário seja esse. O nosso é o da Pedagogia Histórico-Crítica (Cf. Saviani, 1991). Ao explicitarmos aqui o ideário pedagógico que mediatiza nossa leitura de Vygostsky não estamos preconizando que somente a partir desse ideário é que se possa realizar uma leitura pedagógica de Vigotski. Acreditamos sim ser esse um debate que ainda está por ser travado. Para provocá-lo explicitamos aqui nosso referencial pedagógico. O ponto que defendemos de forma intransigente é a necessidade dessa explicitação. Pensamos que é indispensável, quando Vigotski é lido com olhos de educador, dizer qual o olhar que lançamos a essa obra. Precisamos ter auto-consciência de nossa leitura pedagógica. Não adianta fingir que essa mediação não existe. É mais frutífero torná-la autoconsciente.

Temos constatado que existem muitos elementos escolanovistas em certas leituras "construtivistas" de Vigotski. Esse escolanovismo aparece basicamente sob duas formas. A primeira é a da secundarização da transmissão do saber historicamente acumulado. Fala-se de diversos aspectos do pensamento de Vigotski, desde a necessidade das interações inter-subjetivas até a questão semiótica, mas se deixa de lado a questão do ensino dos conteúdos escolares. A segunda forma pela qual esse escolanovismo aparece é a de que ao se tratar das interações inter-subjetivas pouco ou nada se comenta sobre a questão da direção, pelo educador, dessas interações, isto é, pouco ou nada se analisa do fato de que o educador é quem detém a visão dos objetivos pedagógicos para cujo alcance essas interações devem estar direcionadas.

Sem pretender postular a posse de uma leitura inequívoca de Vigotski, ou que a complexa obra desse autor não seja passível de diversas leituras, queremos aqui argumentar pela insustentabilidade de uma leitura pedagogicamente escolanovista da obra de Vigotski e sua escola.

Para isso, concentrar-nos-emos em duas questões, por oposição às citadas duas formas pelas quais o escolanovismo aparece em algumas leituras dos trabalhos de Vigotski. A primeira é a da importância que a Escola de Vigotski atribuiu à apropriação, pelo indivíduo, da experiência histórico-social, dos conhecimentos produzidos historicamente e já existentes objetivamente no mundo no qual o indivíduo vive. A segunda é a de que a Psicologia Histórico-Cultural considera os processos de aprendizagem, conscientemente dirigidos pelo educador, como qualitativamente superiores aos processos espontâneos de aprendizagem.

A questão do papel da apropriação da experiência sócio-histórica no desenvolvimento psíquico do indivíduo está presente de forma marcante em todos os trabalhos da Picologia Histórico-Cultural. Por exemplo, Luria (1979) diz o seguinte:

Diferentemente do animal, cujo comportamento tem apenas duas fontes - 1) os programas hereditários de comportamento, subjacentes no genótipo e 2) os resultados da experiência individual -, a atividade consciente do homem possui ainda uma terceira fonte: a grande maioria dos conhecimentos e habilidades do homem se forma por meio da assimilação da experiência de toda a humanidade, acumulada no processo da história social e transmissível no processo de aprendizagem. (...) A grande maioria de conhecimentos, habilidades e procedimentos do comportamento de que dispõe o homem não são o resultado de sua experiência própria, mas adquiridos pela assimilação da experiência histórico-social de gerações. Este traço diferencia radicalmente a atividade consciente do homem do comportamento animal. [grifos do autor] (p.73).

Por certo essa citação dispensa explicações, diante de sua clareza. Mas convém frisar aqui toda a extensão de seu significado. Luria está aí tratando da especificidade da atividade consciente humana perante a atividade animal. Esse é um ponto ao qual já nos referimos, isto é, o de que essa escola sempre partiu da caracterização da especificidade do homem como um ser histórico-social. Essa caracterização da terceira fonte do comportamento humano é da máxima importância. É muito comum no discurso pedagógico brasileiro a valoração positiva daquilo que o indivíduo constrói por si só, de forma criativa, no que se refere aos seus conhecimentos, enquanto que são valorados como menos enriquecedores aqueles conhecimentos que são adquiridos pela transmissão de outras pessoas. Ora, justamente uma das características que distingue o ser humano dos animais, isto é, que o faz superior a todos os demais seres vivos, é sua capacidade de acumular e transmitir experiência! Por que então depreciar essa característica fundamental do ser humano? Por que tornou-se um tabu no meio pedagógico falar em transmissão de conhecimentos já existentes? Por que o verbo ensinar passou a ter um sinal negativo, sendo preferíveis expressões como "favorecer a aprendizagem", "propiciar condições para a aprendizagem" etc.? A resposta a essas perguntas está, ao nosso ver, na força que o ideário escolanovista tem até hoje no senso comum pedagógico.

O discurso pedagógico construtivista vem passando, nesse aspecto, por algumas mudanças decorrentes, dentre outras coisas, da difusão, ainda que parcial e truncada, das idéias de Vigotski. Já se começa a valorizar a aprendizagem coletiva, o fazer juntos. A construção do conhecimento passa a ser vista como um processo intersubjetivo, coletivo. Mas isso ainda é pouco! Apenas considerar a intersubjetividade não significa que se esteja compreendendo em toda a extensão o que seja o conhecimento enquanto um processo sócio-histórico. A Escola Nova, seja feita justiça, também valorizava a intersubjetividade. A questão reside, portanto, no que significa considerar o indivíduo e o conhecimento como essencialmente sociais. Significa, dentre outras coisas, considerar que o indivíduo não pode elaborar seu conhecimento individual a não ser apropriando-se do conhecimento historicamente produzido e socialmente existente. Leontiev (1978) assim caracteriza esse processo de apropriação, pelo indivíduo, dos produtos culturais humanos:

Devemos sublinhar que esse processo é sempre ativo do ponto de vista do homem. Para se apropriar dos objetos ou dos fenômenos que são o produto do desenvolvimento histórico, é necessário desenvolver em relação a eles uma atividade que reproduza, pela sua forma, os traços essenciais da atividade acumulada no objeto. (p.268).

Em outra passagem, Leontiev (1978), caracteriza esse processo de apropriação enquanto aquilo que diferencia a ontogênese humana da animal, posto que esta última se realiza através do processo de adaptação:

A diferença fundamental entre os processos de adaptação em sentido próprio e os de apropriação reside no fato de o processo de adaptação biológica transformar as propriedades e faculdades específicas do organismo bem como o seu comportamento de espécie. O processo de assimilação ou de apropriação é diferente: o seu resultado é a reprodução, pelo indivíduo, das aptidões e funções humanas, historicamente formadas. Pode-se dizer que é o processo pelo qual o homem atinge no seu desenvolvimento ontogenético o que é atingido no animal, pela hereditariedade, isto é, a encarnação do desenvolvimento da espécie." [grifos do autor] (p.169).

O indivíduo humano se faz humano apropriando-se da humanidade produzida historicamente. O indivíduo se humaniza reproduzindo as características historicamente produzidas do gênero humano. Nesse sentido, reconhecer a historicidade do ser humano significa, em se tratando do trabalho educativo, valorizar a transmissão da experiência histórico-social, valorizar a transmissão do conhecimento socialmente existente.

A essa altura alguém já poderia dizer que estejamos aqui postulando algum retorno à escola tradicional, argumento esse repetido toda vez que se fala em transmissão de conhecimento. Mas essa identificação de transmissão de conhecimento com a escola tradicional é um argumento tipicamente escolanovista. Foi a Escola Nova que identificou a transmissão de conhecimento ao modelo pedagógico da escola tradicional. É necessário, para se analisar historicamente a questão, desvincular uma coisa da outra. Se, por um lado, a escola tradicional privilegiava a transmissão do conhecimento já produzido socialmente e, por outro lado, a escola nova privilegiava a produção do novo conhecimento, isso não significa que todas as vezes que falarmos em transmissão de conhecimentos estaremos assumindo o modelo pedagógico tradicional, como também não significa que para falarmos em criatividade no processo de aprendizagem tenhamos que assumir o modelo escolanovista. Se assim fosse, Vigotski deveria ser chamado de tradicionalista pois, afinal, defendeu que o único bom ensino é aquele que transmite ao aluno aquilo que o aluno não pode descobrir por si só e, dentro desse contexto, defendeu o caráter essencialmente humanizador da imitação, palavra por certo banida de muitos manuais escolanovistas de pedagogia. Vigotski (1993) argumenta que existem muitas idéias errôneas associadas ao processo de imitação:

Na velha psicologia e na consciência cotidiana arraigou-se a idéia de que a imitação constitui uma atividade puramente mecânica. Desse ponto de vista, uma solução que a criança não consegue de modo independente somente pode ser considerada como não demonstrativa, não sintomática do desenvolvimento do intelecto da criança. Considera-se que se pode imitar tudo o que se queira. O que hoje sou capaz de realizar imitando não diz nada em favor de minha inteligência e, por conseguinte, não pode caracterizar em absoluto o desenvolvimento da mesma. Porém esse ponto de vista é errôneo. Na psicologia atual, pode considerar-se estabelecido que a criança somente pode imitar o que se encontra na zona de suas possibilidades intelectuais próprias. (...) Para imitar é preciso ter alguma possibilidade de passar do que sei ao que não sei. (...) A imitação, se a interpretamos no sentido amplo, é a forma principal na qual se leva a cabo a influência da instrução sobre o desenvolvimento. (p.239-41).

Essas palavras foram escritas há mais de sessenta anos; entretanto, ainda hoje muitos educadores relutam perante a questão da transmissão de experiência e conhecimento à criança, por receio de que isso vá cercear o desenvolvimento de sua autonomia intelectual. Alguém poderia perguntar: e as aprendizagens meramente mecânicas que indiscutivelmente ocorrem no dia-a-dia das salas-de-aula? Não seriam elas uma demonstração de que a imitação não impulsiona o desenvolvimento intelectual do indivíduo? Ocorre que é preciso discenir o que está sendo aprendido, reproduzido, imitado pela criança. Aquilo que é muitas vezes caracterizado como aprendizagem meramente imitativa é, na verdade, apenas a imitação de alguns aspectos mais aparentes do conhecimento estudado, aspectos esses que perdem sua significação ao serem aprendidos de forma dissociada dos processos intelectuais que estão na sua origem. Podemos dizer que tal aprendizagem, ao contrário do que parece, não é ainda suficientemente imitativa, posto que não possibilita ao aprendiz a reprodução dos traços essenciais do conhecimento que está sendo estudado.

Ao abordar a questão da imitação não podemos deixar de analisar que ela está no centro do famoso conceito de Vigotski, de "zona de desenvolvimento próximo" (no Brasil tem sido utilizada a tradução "proximal", mas preferimos adotar a tradução "próximo", que é adotada nessa edição das Obras Escolhidas em espanhol). Analisaremos aqui brevemente alguns aspectos principais desse conceito, no intuito de mostrar que ele reforça ainda mais nossa hipótese acerca do papel fundamental atribuído pela Escola de Vigotski à transmissão do conhecimento socialmente existente.

Vygotski (1993, p.238-46) apresenta esse conceito no interior de uma análise das relações entre o ensino e o desenvolvimento intelectual na idade escolar. Ele inicia mostrando que ao analisar-se o desenvolvimento de uma criança é necessário não se deter naquilo que já amadureceu; é preciso captar também aquilo que ainda está em processo de formação. Assim, propõe a existência de dois níveis de desenvolvimento: o nível de desenvolvimento atual e a zona de desenvolvimento próximo. Diz que o desenvolvimento atual de uma criança é aquele que pode ser verificado através de testes nos quais a criança resolve problemas de forma independente, autônoma. Já a zona de desenvolvimento próximo abarca tudo aquilo que a criança não faz sozinha, mas consegue fazer imitando o adulto. Vygostki (1993, p.238-9) apresenta o exemplo de duas crianças que revelaram o mesmo nível de desenvolvimento atual, no caso, ambas com uma idade mental de oito anos. Portanto, naquilo que elas conseguiam fazer sozinhas, encontravam-se no mesmo nível de desenvolvimento. Mas, no que se refere aos problemas resolvidos com a ajuda de um adulto, uma das crianças conseguia resolver problemas que atingiam a idade mental de nove anos, enquanto que a outra conseguia resolver problemas até a idade mental de doze anos. Diz então Vygotski (1993):

Essa divergência entre a idade mental ou o nível de desenvolvimento atual, que se determina com a ajuda das tarefas resolvidas de forma independente, e o nível que alcança a criança ao resolver as tarefas, não por sua conta, mas sim em colaboração, é o que determina a zona de desenvolvimento próximo. Em nosso exemplo, esta zona se expressa para uma criança com a cifra 4 e para outra com a cifra 1. Podemos considerar que ambas as crianças tem o mesmo nível de desenvolvimento mental, que o estado do seu desenvolvimento coincide? Evidentemente, não. Como mostra a investigação, na escola se dão muito mais diferenças entre estas crianças, condicionadas pela divergência entre suas zonas de desenvolvimento próximo, que semelhanças devidas a seu igual nível de desenvolvimento atual. Isto se revela em primeiro lugar na dinâmica de sua evolução mental durante a instrução e no relativo êxito desta. A investigação revela que a zona de desenvolvimento próximo tem um valor mais direto para a dinâmica da evolução intelectual e para o êxito da instrução do que o nível atual de seu desenvolvimento. [grifos do autor] (p.239).

Assim, o nível de desenvolvimento de uma criança é caracterizado por aquilo que ela consegue fazer de forma independente e por aquilo que ela consegue fazer com a ajuda de outras pessoas. Mas o potencial de imitação das duas crianças do exemplo não é igual. Pode-se dizer que uma delas tem um potencial de aprendizagem maior, posto que sua zona de desenvolvimento próximo é maior. Isso mostra que existem limites para a imitação. Uma criança não pode imitar qualquer coisa. Se formos resolvendo com ela problemas cada vez mais difíceis, chegará um ponto a partir do qual ela não conseguirá mais resolver os problemas mesmo com nossa ajuda. Isso significa que teremos ultrapassado a zona de desenvolvimento próximo, isto é, teremos saído dos limites do desenvolvimento dessa criança nesse momento. Essa é a razão pela qual Vigotski emprega a palavra "zona" para caracterizar o segundo nível de desenvolvimento, isto é, trata-se da caracterização da diferente extensão que esse nível tem para cada criança.

Um aspecto de fundamental importância é o das conseqüências desse conceito para a relação entre desenvolvimento e aprendizagem escolar. Vigotski critica a aprendizagem que se limite ao nível de desenvolvimento atual e postula que o bom ensino é justamente aquele que trabalha com a zona de desenvolvimento próximo.

Vejamos o que Vygotski (1993), diz acerca da aprendizagem escolar:

Quando observamos o curso do desenvolvimento da criança durante a idade escolar e no curso de sua instrução, vemos que na realidade qualquer matéria exige da criança mais do que esta pode dar nesse momento, isto é, que esta realiza na escola uma atividade que lhe obriga a superar-se. Isto se refere sempre à instrução escolar sadia. Começa-se a ensinar a criança a escrever quando todavia não possui todas as funções que asseguram a linguagem escrita. Precisamente por isso, o ensino da linguagem escrita provoca e implica o desenvolvimento dessas funções. Esta situação real se produz sempre que a instrução é fecunda. (...) Ensinar a uma criança aquilo que é incapaz de aprender é tão inútil como ensinar-lhe a fazer o que é capaz de realizar por si mesma. (p.244-5).

Note-se nessa citação o exemplo da alfabetização, onde Vigotski mostra claramente que o que provoca o desenvolvimento da criança é o fato desse conteúdo da aprendizagem exigir dela, criança, a utilização de capacidades que ainda não estão formadas, que ainda estão na zona de desenvolvimento próximo. Se a alfabetização trabalhasse apenas com aquilo que já está formado, se ela não apresentasse à criança exigências que não podem ser por ela atendidas naturalmente, então essa aprendizagem se limitaria ao nível de desenvolvimento atual. Na relação entre desenvolvimento intelectual e aprendizagem escolar, temos a mediação do papel desempenhado pelo ensino. Qual é esse papel? Para Vigotski não é o de esperar que as capacidades necessárias a um determinado conteúdo amadureçam na criança para depois ensinar-lhe esse conteúdo. Um ensino que assim proceda vai atrás do desenvolvimento, dirige-se ao seu passado. Vygotski (1993) diz que:

A investigação mostra sem lugar a dúvidas que o que se acha na zona de desenvolvimento próximo num determinado estágio que se realiza e passa no estágio seguinte ao nível de desenvolvimento atual. Com outras palavras, o que a criança é capaz de fazer hoje em colaboração será capaz de fazê-lo por si mesma amanhã. Por isso, parece verossímil que a instrução e o desenvolvimento na escola guardem a mesma relação que a zona de desenvolvimento próximo e o nível de desenvolvimento atual. Na idade infantil, somente é boa a instrução que vá avante do desenvolvimento e arrasta a este último. Porém à criança unicamente se pode ensinar o que é capaz de aprender. A instrução é possível onde cabe a imitação. (...). O ensino deve orientar-se não ao ontem, mas sim ao amanhã do desenvolvimento infantil. Somente então poderá a instrução provocar os processos de desenvolvimento que se acham agora na zona de desenvolvimento próximo. [grifos do autor] (p.242).

Cabe ao ensino escolar, portanto, a importante tarefa de transmitir à criança os conteúdos historicamente produzidos e socialmente necessários, selecionando o que desses conteúdos encontra-se, a cada momento do processo pedagógico, na zona de desenvolvimento próximo. Se o conteúdo escolar estiver além dela, o ensino fracassará porque a criança é ainda incapaz de apropriar-se daquele conhecimento e das faculdades cognitivas a ele correspondentes. Se, no outro extremo, o conteúdo escolar se limitar a requerer da criança aquilo que já se formou em seu desenvolvimento intelectual, então o ensino torna-se inútil, desnecessário, pois a criança pode realizar sozinha a apropriação daquele conteúdo e tal apropriação não produzirá nenhuma nova capacidade intelectual nessa criança, não produzirá nada qualitativamente novo, mas apenas um aumento quantitativo das informações por ela dominadas.

Apresentadas essas breves considerações sobre como o conceito de zona de desenvolvimento próximo contém uma valorização da transmissão, pelo processo educativo escolar, da experiência historica e socialmente acumulada, devemos agora abrir um parêntese para discutir um aspecto relativo a um tipo de leitura de Vigotski que vem sendo realizada no tocante aos conceitos de nível de desenvolvimento atual e zona de desenvolvimento próximo. Inicialmente devemos esclarecer que existem variações quanto à tradução desses conceitos. O conceito de nível de desenvolvimento atual aparece em algumas traduções como nível de desenvolvimento real e em outras aparece ainda como nível de desenvolvimento efetivo. O conceito de zona de desenvolvimento próximo aparece em algumas traduções como zona de desenvolvimento proximal e em outras traduções como área de desenvolvimento potencial. Essas variações não são em si mesmas um problema. O problema é que existem intérpretes que entendem existirem em Vigotski três conceitos ao invés de dois. Apresentarei a seguir três citações onde isso aparece:

Em suas últimas investigações, Vygotski revela a existência de dois níveis de desenvolvimento: 1) o Nível de Desenvolvimento Real (NDR), que, como os testes de inteligência, determina os limites até onde a criança resolve os problemas sem ajuda; 2) o Nível de Desenvolvimento Proximal (NDP), que determina até onde essa criança pode avançar na solução de problemas mais difíceis, desde que ajudada. A Zona de Desenvolvimento Potencial (ZDP) é definida pela distância entre o Nível de Desenvolvimento Real, manifesto na resolução independente de problemas, e o Nível de Desenvolvimento Proximal, manifesto na resolução de problemas sob a orientação de um adulto ou com a colaboração de um companheiro mais capaz. O NDR expressa a funções que já amadureceram, é retrospectivo. O NDP revela as funções que estão em processo de amadurecimento, dirige-se ao futuro, é prospectivo. (Braslavsky, 1993, p.40-1).

Considerando o nível de desenvolvimento real (manifesto na ação) e simultaneamente, o nível de desenvolvimento potencial (determinado através da solução de problemas sob orientação de um adulto ou em colaboração com os demais parceiros), Vygotsky propõe o conceito de zona de desenvolvimento proximal para explicar o processo. Assim, enquanto o nível de desenvolvimento real caracteriza o desenvolvimento mental retrospectivamente e o nível de desenvolvimento potencial caracteriza-o prospectivamente, a zona de desenvolvimento proximal define as funções que estão em processo de maturação. (Kramer & Souza, 1991).

Um dos pontos mais concorridos e estudados da obra de Vygotsky é a teoria das zonas de desenvolvimento. Elas seriam três: 1) Zona de desenvolvimento potencial - aquilo que o sujeito pode fazer, independentemente da sua etnia, da sua região ou da sua cultura. É o previsível, o esperável da espécie humana. 2) Zona de desenvolvimento real - aquilo que a criança manifesta na sua vida cotidiana. Por exemplo, o modo como aprende a andar. Trata-se daquilo que ela de fato realiza, dentro do elenco das coisas previsíveis. 3) Zona de desenvolvimento proximal - aquilo que a criança faz com a ajuda de um adulto ou de outra criança, mas que amanhã poderá estar fazendo sozinha. Por exemplo, subir uma escada caminhando, apoiando-se na mão de alguém, numa época em que teria que engantinhar, se quisesse fazê-lo por conta própria. É a zona cooperativa do conhecimento. (Lagoa,1994, p.46).

A terceira das citações acima não é propriamente de um intérprete de Vigotski, mas sim de uma matéria de uma revista educacional. Citamos aqui essa reportagem pelo fato de ter essa revista grande divulgação nacional. A mera leitura das passagens já evidencia um fenômeno de distanciamento, cada vez maior, do pensamento de Vigotski. O artigo da revista já fala na existência de três zonas e até cria uma explicação para o que seria o nível de desenvolvimento potencial.

O fato é que em Vigotski existem apenas dois conceitos: um refere-se àquilo que a criança faz sozinha e o outro refere-se àquilo que ela faz com a colaboração de outras pessoas, especialmente imitando os adultos. Não há lugar para um terceiro conceito.

Mas então de onde se originaria essa interpretação de que existiriam três conceitos em Vigotski? Acreditamos que a origem esteja em um único parágrafo do texto "Interação entre aprendizado e desenvolvimento" (Vygotsky, 1984, p.89-103), da já mencionada coletânea "A Formação Social da Mente". Antes de mais nada lembremos que essa coletânea foi redigida livremente como o declararam seus próprios organizadores. Vejamos então o parágrafo onde diz Vygotsk (1984):

Essa diferença entre doze e oito ou entre nove e oito, é o que nós chamamos a zona de desenvolvimento proximal. Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes. (p.97).

Diga-se, aliás, que essa é a única passagem desse texto onde aparece o termo "nível de desenvolvimento potencial". Em todo o restante do texto só aparecem os termos "nível de desenvolvimento real" e "zona de desenvolvimento próximo". Observe-se também que, mais adiante, no mesmo texto, Vigotski (1984) , afirma: "O estado de desenvolvimento mental de uma criança só pode ser determinado se forem revelados seus dois níveis: o nível de desenvolvimento real e a zona de desenvolvimento proximal." (p.98).

Além disso, existem duas outras traduções desse texto em português (Vigotskii, 1988 & Vygotsky, 1989), onde em nenhum momento aparecem três termos, sendo em ambas as traduções empregados sempre dois termos que, no caso dessas traduções, são: "nível de desenvolvimento efetivo" e "área de desenvolvimento potencial". Também não pode ser desprezado o fato de que na mencionada edição integral em espanhol do livro "Pensamento e Linguagem", aparecem apenas os termos nível de desenvolvimento atual e zona de desenvolvimento próximo.

Por tudo isso é que somos levados a pensar que exista algum problema com o citado parágrafo de "A Formação Social da Mente", no qual parecem se fundamentar todas as interpretações de que existam três conceitos.

Alguém poderia perguntar: mas qual a importância dessa questão? Em primeiro lugar, trata-se não de um conceito secundário na teoria de Vigotski, mas sim de um conceito central. Isso justifica que tenhamos todo o cuidado ao interpretá-lo. Qualquer acréscimo deve ser assumido pelo intérprete como um acréscimo seu e não como sendo algo existente no autor interpretado. Em segundo lugar, parece-nos ser esse um bom exemplo do cuidado que é preciso ter com as edições onde os textos de Vigotski tenham passado por algum tipo de reelaboração por algum intérprete.

Fechado o parêntese e explicitada nossa interpretação de que Vigotski trabalha com dois conceitos, o de nível de desenvolvimento atual e o de zona de desenvolvimento próximo, retomemos a questão da importância da transmissão de conhecimentos para o desenvolvimento intelectual da criança.

É claro que esse conceito de zona de desenvolvimento próximo não fornece nenhuma fórmula definitiva do que e como ensinar a cada momento do processo escolar. São necessários estudos específicos para cada matéria e para cada série escolar. Mas o importante é que ele inverte a idéia de que se deva sempre organizar a matéria escolar com base no conhecimento das características de cada estágio já alcançado pelo desenvolvimento intelectual da criança. Esse conhecimento é indispensável, mas ainda mais importante é que os conteúdos escolares dirijam-se ao que ainda não está formado na criança. Davidov (1987), um dos membros da Escola de Vigotski, num texto onde analisa os princípios didáticos presentes atualmente na prática escolar e a eles contrapõe princípios didáticos para uma escola numa sociedade socialista, diz que:

O 'princípio da acessibilidade' deve ser transformado no princípio da educação que desenvolve, isto é, em uma estruturação tal da educação na qual se possa dirigir regularmente os ritmos e o conteúdo do desenvolvimento por meio de ações que exercem influência sobre este. Tal ensino deve realmente 'arrastar consigo' o desenvolvimento e criar nas crianças as condições e premissas do desenvolvimento psíquico que podem ainda faltar nelas sob o ponto de vista das normas e exigências supremas da escola futura. Em essência, se tratará de construir de forma ativa e compensatória qualquer "elo" da psique ausente ou insuficientemente presente nas crianças, mas que seja indispensável para lograr um alto nível no trabalho frontal com os alunos. Ao nosso ver o descobrimento das leis da educação que exercem uma influência sobre o desenvolvimento, de uma educação que é a forma ativa de realização do desenvolvimento constitui um dos problemas mais difíceis porém mais importantes quando se trata de organização da escola futura. [grifos do autor] (p.150-1).

Com essa passagem de Davidov, chegamos ao segundo ponto de nossa argumentação contra leituras escolanovistas dos trabalhos de Vigotski e sua escola, isto é, chegamos à questão de que essa escola da Psicologia atribui à educação escolar um papel ativo na formação do psiquismo dos indivíduos. Curiosamente as chamadas pedagogias ativas foram as que menos atribuíram um papel ativo à educação escolar no desenvolvimento psíquico. Ao contrário, uma pedagogia adequada aos princípios escolanovistas era sempre vista como uma aplicação, no plano pedagógico, das leis do desenvolvimento psíquico. A mesma postura foi adotada pelo construtivismo piagetiano em cujo âmbito já foram travados muitos debates quanto à possibilidade de a educação escolar contribuir ou não para o desenvolvimento espontâneo. É curioso que é quase um consenso entre os construtivistas que a educação escolar possa perturbar negativamente o desenvolvimento espontâneo, mas não se chega a um acordo se a educação escolar tem ou não o poder de contribuir positivamente para o desenvolvimento. Para a Escola de Vigotski essa é uma discussão inócua. O que essa escola entende é que a educação escolar não apenas interfere positiva ou negativamente no desenvolvimento, mas sim que ela produz desenvolvimento. Isso gerou inclusive uma postura metodológica radicalmente nova na concepção que a Escola de Vigotski adotou para com a psicologia do desenvolvimento. Ao invés de pesquisar o desenvolvimento tal como ele ocorre na sua forma natural, sem a interferência dos processos intencionais de ensino-aprendizagem, essa escola da Psicologia partiu para a busca de formação planejada do desenvolvimento intelectual. Galperin (1987, p.125-42) desenvolveu um método chamado "formação planejada por etapas das ações mentais" e defendeu que a única forma de conhecermos verdadeiramente os processos mentais é formando-os nos indivíduos de maneira intencional, planejada. Não podemos, é claro, entrar aqui nos detalhes dessa questão metodológica no campo da psicologia do desenvolvimento. Nosso intuito é apenas o de defender a tese de que essa escola da Psicologia considerava os processos psíquicos formados de maneira planejada como qualitativamente superiores àqueles formados espontaneamente. E diga-se de passagem que essa postura não era empregada por essa escola apenas no que se refere ao desenvolvimento da criança através da atividade escolar, sendo estendida para todos os estágios do desenvolvimento infantil. Outra não foi a razão que levou Leontiev (1988) a analisar a brincadeira como a principal atividade geradora do desenvolvimento psíquico da criança na idade escolar:

O papel dominante da brincadeira na idade pré-escolar é reconhecido praticamente por todos, mas para dominar o processo do desenvolvimento psíquico da criança nesse estágio, quando a brincadeira desempenha o papel dominante, não é certamente suficiente apenas reconhecer este papel da atividade lúdica. É necessário compreender claramente em que consiste o papel capital das brincadeiras; as regras do jogo e seu desenvolvimento precisam ser apresentadas. O desenvolvimento mental de uma criança é conscientemente regulado sobretudo pelo controle de sua relação precípua e dominante com a realidade, pelo controle de sua atividade principal. [grifos meus] (p.122).

O controle da atividade da criança não é visto pela psicologia histórico-cultural como uma espécie de mal inevitável ao processo escolar, mas sim como algo indispensável à elevação da criança a níveis superiores do seu desenvolvimento psíquico. Em termos pedagógicos, ao invés de termos educadores preocupados em não interferir negativamente num desenvolvimento que ocorreria de forma ótima se não fosse necessária a aprendizagem escolar, temos, na ótica da Escola de Vigotski, educadores voltados para o conhecimento de como produzir esse desenvolvimento ótimo, que não é o ponto de partida do ensino escolar, mas sim o ponto de chegada que se quer atingir. Existe nessa postura a nítida influência da concepção de Marx sobre o vir-a-ser histórico da vida em sociedade. Para Marx a construção histórica da liberdade humana é a construção de uma sociedade na qual os homens controlem as relações sociais ao invés de serem por elas dominados como se fossem forças naturais superiores à vontade humana. Nesse sentido a história era para Marx um processo de superação da naturalidade das relações sociais alienadas. Nas palavras do próprio Marx (1986):

Os indivíduos universalmente desenvolvidos, cujas relações sociais enquanto relações próprias e coletivas estão submetidas a seu próprio controle coletivo, não são um produto da natureza, mas sim da história. (p.89).

Podemos dizer que o processo de desenvolvimento psíquico dos indivíduos, sendo também histórico-social, não é um pressuposto natural do processo de ensino-aprendizagem escolar, mas sim um produto social, um produto das atividades do indivíduo ou, para utilizar a categoria de Leontiev, um produto da atividade principal de cada estágio do seu desenvolvimento.

 

3. CONCLUSÃO

As hipóteses aqui formuladas não apresentam uma leitura concluída e exaustiva dos trabalhos da Escola de Vigotski. Elas têm a finalidade principal de provocar um debate entre os educadores brasileiros que estejam procurando, nos trabalhos dessa Escola da Psicologia, contribuições para o pensamento e a prática pedagógicos.

Repetimos que nossa decisão por trazer essas hipóteses a público deu-se principalmente em decorrência de nossa preocupação relativa ao problema de certas leituras de Vigotski estarem já sendo assumidas como o pensamento de Vigotski. Por exemplo, tem sido quase um consenso que Vigotski seja um dos representantes do interacionismo-construtivista. É preciso ao menos mostrar que esse consenso não é absoluto. Existem aqueles que, como nós, discordam dessa interpretação. Acreditamos que somente no confronto das diferentes e divergentes interpretações, os educadores brasileiros poderão avançar no estudo de Vigotski ou qualquer outro autor.

Por fim devemos esclarecer, para evitar mal-entendidos, que não temos a intenção de desmerecer nenhum esforço de divulgação do pensamento de Vigotski, nem apresentamos neste texto uma avaliação dos trabalhos citados. Todas as citações foram pontuais e quando emitimos juízos foram sempre relativos aos aspectos em questão. Em outras palavras, as discordâncias que tenhamos aqui apresentado, em relação a determinados aspectos de trabalhos citados, não contêm um juízo sobre cada trabalho como um todo, mas apenas um posicionamento sobre aquele ponto de discussão. Não poderíamos, nos limites de um texto como este, apresentar uma avaliação de cada trabalho que tem sido escrito sobre o pensamento de Vigotski. Até porque, como dissemos, estamos nos colocando dentre aqueles que estão iniciando o estudo do pensamento desse autor e queremos com este texto somar esforços com todos os que buscam nesse autor contribuições para a continuidade da construção de uma pedagogia crítica e historicizadora. Se o texto apresenta um tom polêmico, isso não significa, entretanto, que valorizemos a polêmica descomprometida com o avanço coletivo dessa pedagogia. Em última instância temos como meta a superação da polêmica que este texto possa provocar e a elevação do debate ao patamar seguinte que é o da elaboração de uma concepção pedagógica que, sendo crítica e historicizadora, apresente um discurso afirmativo sobre o fazer pedagógico escolar.

 

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1 O nome Vigotski é encontrado, na bibliografia existente, grafado de várias formas: Vigotski, Vygotsky, Vigotskii, Vigotskji, Vygotski, Vigotsky. Optamos por empregar a grafia Vigotski, mas preservamos, nas indicações bibliográficas, a grafia adotada em cada uma delas.