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Psicologia USP

On-line version ISSN 1678-5177

Psicol. USP vol.7 no.1-2 São Paulo  1996

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

O Laboratório de Educação e Saúde Popular da UFSC: primeiras reflexões

 

The Public Health and Education Laboratory of UFSC: first thoughts

 

 

Carmen Sílvia de Arruda Andaló; José Luís C. de Abreu; Jadete Rodrigues Gonçalves; Carmen Leontina O. Ocampo Moré

Departamento de Psicologia - Universidade Federal de Santa Catarina

 

 


RESUMO

O presente artigo relata a constituição do Laboratório de Educação e Saúde Popular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Há mais de dez anos, alguns docentes do referido departamento começaram, de forma isolada, a desenvolver atividades voltadas a estender o atendimento psicológico a camadas de baixa renda, camadas estas historicamente marginalizadas deste tipo de serviço. O contato com esta clientela evidenciou a ineficácia do referencial teórico-metodológico da Psicologia Clínica tradicional, apontando a necessidade de repensar e questionar os conceitos e práticas existentes. Impôs-se a urgência de construir novas práticas e modalidades de atendimento, bem como de redirecionar a atividade acadêmica e a formação dos futuros profissionais de Psicologia, de forma a instrumentá-los para o trabalho com as realidades estudadas e, por conseqüência, com os graves problemas que afligem a sociedade brasileira.

Descritores: Saúde popular. Educação popular. Psicologia comunitária. Formação de psicólogos.


ABSTRACT

This paper reports the creation of the Laboratory of Popular Education and Health at the Psychology Department of University of Santa Catarina, Brazil. Ten years ago some teachers of this Department started to develop isolated actions in order to extend psychological services to lower class people, traditionally excluded from this kind of professional care. In the course of this work the inefficacy of theoretical and methodological framework of traditional Clinical Psychology became evident. They summed up their experiences in the Laboratory, where two urgent tasks were in need: the search for new psychogical theories and practices and the reexamination of graduate courses of Psychology, in order to cope with the Brazilian social problems.

Index Terms: Public health. Public education. Communitary Psychology. Psychologists' training.


 

 

1. GÊNESE E A HISTÓRIA DO LABORATÓRIO DE EDUCAÇÃO E SAÚDE POPULAR

Desde o final da década de 70, alguns professores do Departamento de Psicologia da UFSC, comprometidos com demandas da população de baixa renda, começaram, de forma isolada, a desenvolver trabalhos nas áreas educacional e clínica. Estes se constituíram como referências fundamentais para a formação de um grupo de discussão e reflexão, que levou à formação do Laboratório.

Em 1978, a Profª. Jadete Rodrigues Gonçalves participou de um trabalho com classes populares, na perspectiva de educação para a saúde, junto a uma Associação de Moradores de Bairro, na periferia de Porto Alegre. Em 1984, integrou-se a uma outra experiência, em Florianópolis, cujo objetivo era contribuir para desencadear um processo de reflexão sobre a dinâmica das relações entre os membros de uma equipe técnica num centro municipal de saúde. O trabalho seguinte, realizado em 1987, cujo projeto se intitulava - "Um Discurso que Nasceu da Prática - lutas e processo de conscientização em educação popular" - caracterizou-se pelo resgate histórico de uma experiência em educação popular junto a lideranças comunitárias em Cachoeirinha, na Grande Porto Alegre.

Em 1984 e nos dois anos seguintes, o Prof. José Luís C. de Abreu, em São Paulo, desenvolveu um programa de mobilização, para saneamento básico, a partir de um Posto de Saúde do bairro do Butantã. Este esforço, que constou de ação clínica junto à população, destinava-se a criar condições de conscientização na comunidade, para evitar os problemas de saúde decorrentes da insalubridade existente em uma grande favela próxima (Abreu, 1990).

Na mesma época, o Serviço de Atendimento Psicológico da UFSC, diante da intensa demanda de seus serviços, começou a desenvolver projetos com a proposta de atender grupos de espera para familiares que procuravam atendimento psicológico para seus filhos. Esta modalidade de atendimento tinha como referência trabalhos desenvolvidos no setor de Adolescentes do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, em 1979, e no Serviço de Aconselhamento Psicológico da USP, dirigidos por Rachel Rosemberg, em 1982. Os objetivos básicos de tais grupos eram: a) atender à excessiva demanda de clientes de modo a evitar as longas listas de espera, considerando as características próprias da população que procura atendimento gratuito; b) executar um trabalho de pré-diagnóstico, selecionando os casos mais adequados a cada tipo de atendimento oferecido pela Instituição; c) trabalhar a expectativa em relação ao trabalho psicológico e proposta de tratamento, procurando adequá-la à realidade dos atendidos1.

Uma das constatações deste tipo de intervenção foi a possibilidade de se criarem condições, já no grupo de espera, para a identificação e resolução de conflitos que levaram à busca do atendimento. Desta forma, em alguns casos, esta atuação se mostrou suficiente para responder à demanda, o que evidencia a importância e eficácia de um trabalho prévio de esclarecimento.

Em meados de 1991, na área de Psicologia Escolar, constituiu-se o "NUTRE" (Núcleo de Trabalhos em Educação)2, que geraria posteriormente o Núcleo de Educação Popular, deste Laboratório. Seus objetivos básicos eram o aprofundamento, a reflexão, a sistematização e a produção de conhecimentos nessa área e o assessoramento a grupos interessados em encontrar formas alternativas às convencionais para realizar o processo educativo.

Nesse mesmo ano, foi iniciado o trabalho que mais diretamente contribuiu para criar condições à organização do referido Laboratório. Da preocupação em confrontar os alunos com o viver na sociedade, em defesa da idéia de que ações educativas eficazes reclamam realidade, requerem a presença da população e o embate com as circunstâncias da vida coletiva, implementaram-se estágios de Psicologia Clínica em Centros de Saúde da cidade de Florianópolis.

Este pode ser considerado um trabalho pioneiro em termos da presença do psicólogo em tais espaços. Tal iniciativa representava a saída do âmbito institucional acadêmico onde a Psicologia, de um modo geral, se sustenta como saber e prática, sendo também uma tentativa de encontrar respostas ao fracionamento entre o conhecimento oficial e suas repercussões no ensino acadêmico e a realidade das classes populares3.

Esta proposta de atuação tinha como referência trabalhos desenvolvidos em Saúde Pública que já vinham sendo realizados no âmbito das preocupações clínicas. No final dos anos 60, Hersch (1968, 1969) demonstrava que esforços para levar a Psicologia ao cidadão adquiriram vulto maior depois que os psicólogos passaram a atuar em equipes de Saúde Mental. Nessa mesma época Bennett (1965, p.833) ressaltava que "os trabalhos dos psicólogos junto da população poderiam ser conhecidos pela amplitude de suas iniciativas, destinadas ao estudo e ao aprimoramento da relação integral do homem com seu ambiente...".

Em 1987, Mejias denunciava que o atendimento clínico encontrava-se excessivamente preocupado com o indivíduo e seus problemas intrapsíquicos, de certo modo ignorando o peso das influências ambientais. Em seu entender,

a geratriz dos problemas psicológicos encontra-se na interação do contexto sócio-político com as peculiariedades individuais e a presença dos profissionais de Psicologia em meio à população constitui-se em especial oportunidade para a intervenção, pesquisa e prevenção de dificuldades além dos limites da ação voltada ao indivíduo. (1987, p.168).

Analisando as peculiaridades do desenvolvimento da Psicologia em nosso país, principalmente quanto ao modelo acadêmico predominante, constata-se que a Psicologia Clínica se constituiu como área de estágio preferida por expressivo número de professores e de alunos (Mello, 1975; Carvalho, 1984).

Segundo Macedo (1984), a clínica tornou-se o modelo hegemônico de atuação profissional do recém-formado, levando à disseminação de trabalhos privados, os quais, de certo modo, outorgavam-lhe identidade e segurança profissionais.

Isto colocou em evidência uma prática vinculada a determinadas camadas da população, sendo que amplos segmentos foram paulatinamente secundarizados e de certo modo desconsiderados pela Psicologia Clínica, no que diz respeito a formulações teórico-metodológicas de intervenção. Desta forma, tais camadas ficaram à mercê de um sistema de saúde cuja proposta de tratamento, diante das crises vitais do indivíduo, era eminentemente medicamentosa.

Percebe-se, assim, como a questão das diferenças sociais influenciou diretamente na demanda pela Psicologia Clínica. Enquanto o atendimento psicológico a pessoas cultural e economicamente abastadas centra-se na resolução de "conflitos existenciais", nas classes populares a "sobrevivência", que envolve questões de trabalho, alimentação, moradia, higiene sanitária básica, evidencia-se como o conflito básico, a partir do qual os indivíduos arquitetam seus projetos de vida. Neste sentido, a intervenção psicológica tradicional, considerada nos parâmetros onde ela se constituiu como saber, fica destituída de significado e, por conseqüência, de eficácia.

Segundo Larrabure, o tipo de população que procura atendimento gratuito tem como característica marcante não estar motivada para atendimento, "visto não compreender sua necessidade e desconhecer o que é um serviço de psicologia, uma vez que este tipo de trabalho não tem repercussão no seu universo educacional e cultural." (1984, p.63).

Confirmando essa perspectiva, Carvalho e Silva (1990) declaram "...que o psicólogo atuante na saúde pública defronta-se com uma clientela que aliada às dificuldades emocionais traz problemas que dizem respeito à sua condição material de vida..." (p.20).

Segundo estas autoras, os profissionais de Psicologia

...afirmam ser necessária uma "adaptação" dos conhecimentos psicológicos à situação encontrada na saúde pública, visando, principalmente ao aspecto educativo onde, muitas vezes, o objetivo é a "conscientização" da clientela sobre suas condições de vida. (p.20).

Desta forma, os problemas acabam sendo reduzidos às precárias condições de vida a que se acham submetidas amplas parcelas da população por um sistema social desigual e injusto.

Como se pode perceber, na procura de novas modalidades de trabalho com as classes populares, tanto no campo da saúde como no da educação, constatou-se a existência de trabalhos que, por um lado, se constituíam numa tentativa de "adaptação" do conhecimento psicológico existente à realidade desta clientela e, por outro, numa tendência a reduzir seus problemas às questões sociais e à luta por melhores condições de vida.

Em ambas as posições, no entanto, perde-se o caráter inter-relacional da constituição dos sujeitos, o que aponta a necessidade de construção de conhecimentos que superem as perspectivas reducionistas destas duas posições.

Segundo Andery, para avançar na compreensão das classes populares

...é preciso primeiro explicitar o viés de classe média que institui o modelo burguês como padrão de normalidade e julga desviante e marginal a classe trabalhadora como um todo, reservando-lhe o dilema de escolher o padrão de desenvolvimento psicossocial burguês, (...), ou então resignar-se ao estigma de classe inferior não só socialmente como também psicologicamente. (1984, p.33).

Se o que se pretende é que o profissional de Psicologia disponha de uma compreensão abrangente da subjetividade humana, faz-se imprescindível que se repense estas dicotomias e se adote uma compreensão mais ampla que percorra os caminhos da interdisciplinaridade, dispondo de recursos oriundos de várias áreas do saber. Quando se trata de classes populares e da pretensão de estender-lhes os beneficios do conhecimento científico, a perspectiva interdisciplinar se coloca como aspecto central.

Esse modo de pensar a Psicologia tem gerado repercussões significativas que chegam, inclusive, a defrontar-se com barreiras que a própria academia constrói para se sustentar como local da classe pensante, desconhecendo sua distância da prática efetiva em uma sociedade nitidamente dividida e contraditória.

Instrumentados por suas experiências e na busca de integração com iniciativas na mesma direção, os professores deste Laboratório reuniram-se, procurando congregar outros colegas e alunos interessados na construção de uma Psicologia que, na sua prática educacional e clínica, contribuísse para a superação desses problemas. Foi assim que teve início, extra-oficialmente, em fevereiro de 1993, a sistematização e organização do que passou a denominar-se o Laboratório de Educação e Saúde Popular.

 

2. CARACTERIZAÇÃO DAS AÇÕES PRELIMINARES

No projeto de estágio em Centros de Saúde, elaborado pelo prof. José Luiz Abreu, foram mantidos contatos com as autoridades da Secretaria Municipal da Saúde, que a princípio demonstraram pouco empenho. Depois de alguma espera e reuniões, entretanto, o Secretário interessou-se pelo mesmo, especialmente por ser voltado ao atendimento terapêutico, o que estava de acordo com o modelo de trabalho dos demais profissionais dos Centros de Saúde.

Foi feita a divulgação do projeto junto aos alunos de Psicologia em final do curso, mas muitos estudantes não quiseram engajar-se porque havia a exigência de disponibilidade de dois semestres letivos para a realização das atividades previstas. Oito estudantes, porém, acabaram por atender ao convite.

O passo seguinte envolveu a escolha de quatro Centros de Saúde, estrategicamente localizados para oferecer cobertura ao centro da cidade e a três bairros populares. Foram eleitos aqueles que ofereciam clínicas médica e odontológica, programas de saúde da mulher e materno-infantil. Em um deles havia também um ambulatório de doenças sexualmente transmissíveis e programa de apoio a pacientes soropositivos para o vírus HIV. Este estágio, até a época de constituição do Laboratório, manteve atendimento exclusivamente terapêutico e circunscrito às instalações dos Centros de Saúde.

Com as eleições de 1992 ocorreram mudanças significativas na Administração Municipal e as novas autoridades passaram a interessar-se pelas possibilidades oferecidas pela universidade. Foi criado um clima de colaboração que despertou o interesse de alguns professores do Departamento de Psicologia e resultou na elaboração do projeto do Laboratório, que previa inserção em outros bairros.

Desenvolveu-se, a partir de então, uma profícua experiência que reuniu duas professoras psicodramatistas, duas de orientação psicanalítica, uma que trabalhava com a abordagem gestáltica4 e dois docentes comportamentalistas.

Tal diversidade teórico-metodológica, que poderia ter levado a sérios impasses e problemas, contrabalançou-se pela perspectiva comum de estender o atendimento psicológico à população de baixa renda e pela aceitação do desafio que consistia em reavaliar as próprias concepções estabelecidas e modos de trabalhar cristalizados. O caminho mostrou-se difícil; os conflitos, no entanto, foram superados através de um confronto aberto entre as diferentes abordagens.

No primeiro momento, a preocupação destes docentes foi constituir-se como grupo, aceitando e refletindo sobre suas divergências, o que contribuiu para que as diferenças existentes, em vez de atrapalhar, passassem a enriquecer as possibilidades do trabalho a ser desenvolvido. Resultou daí um processo extremamente fecundo e inverso àquele normalmente encontrado na universidade, onde geralmente órgãos são criados, primeiro em nível burocrático, para depois serem implementados. A novidade no caso desse Laboratório consistiu exatamente em constituir-se como grupo não-institucionalizado, para posteriormente institucionalizar-se.

O Laboratório de Educação e Saúde Popular foi composto por dois núcleos articulados: um de saúde e outro de educação, que reuniriam projetos específicos de pesquisa e extensão.

O Núcleo de Educação, cujo objetivo é atuar em instituições públicas de ensino, não será mencionado neste artigo, por encontrar-se em processo de estruturação.

O Núcleo de Saúde, que abrigava então quatro projetos, estruturou-se com o objetivo de implementar ações nas quais o trabalho da Psicologia priorizasse o caráter de promoção à saúde, preventivo e psicoprofilático sem, no entanto, abrir mão de programas curativos e assistenciais sempre que se tornassem imperativos.

O projeto "Entrando no Centro de Saúde - buscando alternativas para a saúde popular"5 foi elaborado como resposta à constatação de que as instituições de saúde pública preocupam-se basicamente com a doença e não com a saúde. No âmbito da pesquisa-ação, esta iniciativa procurou desenvolver a noção do direito à saúde e implementar a difusão de conhecimentos que viessem ao encontro dos interesses da população, integrando seus esforços aos movimentos sociais organizados existentes.

Desta proposta surgiram ações que propiciaram: a) um diagnóstico da realidade do Centro de Saúde e das dificuldades da vida no bairro; b) o desenvolvimento de técnicas de intervenção de caráter terapêutico, pedagógico e informativo, envolvendo grupos temáticos de Gestantes e de Puericultura, além de atendimentos psicológicos individuais.

Em outubro de 1993, este empreendimento gerou um estudo-piloto na escola estadual do mesmo bairro, com vistas a um trabalho preventivo à contaminação pelo vírus HIV e à gravidez precoce. Ele envolveu seis encontros com dez turmas entre quinta série do primeiro grau e terceira série do segundo grau, abordando o tema da sexualidade humana. Em 1994, este projeto ofereceu um curso de educação continuada sobre o mesmo tema com o objetivo não só de beneficiar os adolescentes envolvidos, como também de propiciar a elaboração de uma sistemática de trabalho adequada às características da clientela da escola pública, permitir que este tipo de intervenção possa ser estendido para outras instituições desta natureza.

Na mesma ocasião, em outro bairro, implementou-se um projeto intitulado "Repensando a Prática Clínica junto às Camadas Populares e as Novas Alternativas de Atuação no Campo da Saúde Mental"6. Seus objetivos básicos eram: a) tornar o conhecimento e a linguagem psicológica mais palpáveis ou condizentes com a linguagem popular, que permitisse um trabalho psicológico de promoção à saúde mais efetivo; b) propor uma sistematização teórico-metodológica visando à intervenção; c) reduzir o estresse individual e grupal com o aumento da informação, através de mensagens claras e intervenções diretas na própria comunidade, que estabelecessem uma ponte entre o saber acadêmico e o popular.

O reconhecimento das características da população do bairro que procurava atendimento psicológico ocorreu através de um trabalho assistencial de ambulatório, onde foram atendidos adultos, adolescentes, crianças, famílias e casais. Realizavam-se também trabalhos de grupo com gestantes, assim como visitas domiciliares a pacientes psiquiátricos da comunidade. A referência da intervenção era a Psicoterapia Breve de orientação psicodramática.

Iniciado o trabalho, foi possível observar que tanto os clientes atendidos como a equipe do Centro de Saúde encontravam dificuldades para compreender a atuação do psicólogo, principalmente no que diz respeito a seu "fazer específico". A partir desta constatação, realizou-se a pesquisa intitulada "A Representação Social do Psicológo num Posto de Saúde" (1993), da qual participaram profissionais, funcionários e a comunidade que procurava pela primeira vez o Serviço de Psicologia ali constituído.

Este trabalho visava à coleta de dados que subsidiassem as ações desenvolvidas pela Psicologia, tanto junto à equipe do posto, como à comunidade. Foram também obtidas informações que permitiram diagnosticar a realidade e avaliar as possibilidades de atuação interdisciplinar dos psicólogos junto à população e à equipe do Centro de Saúde.

Um terceiro projeto, desenvolvido também durante o ano de 1993, envolveu o trabalho de uma psicóloga voluntária, com a participação de três estagiários de Psicologia, sob assessoramento de um membro do Laboratório7. Esta iniciativa caracterizava-se pelo atendimento terapêutico e psicoprofilático: psicoterapia breve, acompanhamento das consultas médicas, discussões clínicas teórico-práticas com a equipe médica e organização de grupos com gestantes e grupos com adolescentes. As atividades tiveram, no entanto, que ser interrompidas um ano depois, frente às dificuldades que a Administração Municipal encontrou para implementar sua anunciada política de contratação de pessoal da Saúde Mental para os Centros de Saúde, fato que inviabilizou a continuidade da presença da psicóloga voluntária.

Com a crescente complexidade das intervenções, tornou-se necessária uma coordenação para o Núcleo de Saúde, que foi delegada a uma professora do Laboratório8, cuja primeira incumbência foi articular e integrar os vários projetos específicos. Outra de suas atribuições foi estabelecer o intercâmbio dos trabalhos do Núcleo com diferentes departamentos e iniciativas da universidade, com a Secretaria Municipal de Saúde e outras instituições, visando criar e manter condições apropriadas ao desenvolvimento das propostas.

Em decorrência, foram implementados programas de capacitação de pessoal voltados à integração das equipes e ao aprimoramento técnico das mesmas. Foi também feito o diagnóstico das diferentes realidades envolvidas nos projetos, de modo a respeitar as peculiaridades de cada uma delas.

Desta forma, elaborou-se o projeto "Organização de um Processo de Construção de Prática Popular em Saúde Mental no Município de Florianópolis"9, que se caracterizava pelo planejamento, levantamento de estratégias, análise, avaliação, encaminhamentos de decisões e, quando necessárias, propostas de reformulação dos projetos específicos.

 

3. ATIVIDADES DESENVOLVIDAS PELO LABORATÓRIO E SUAS REPERCUSSÕES

Os parâmetros norteadores das ações do Laboratório, elaborados a partir das contribuições de seus integrantes, tinham como propósito contribuir para combater a ótica que tem predominado nos cursos de Psicologia que, desde sua origem, vêm privilegiando o particular em detrimento do público, o caráter curativo em detrimento de ações que promovam a saúde e um conhecimento teórico superficial e desvinculado da prática.

Assim, estabeleceram-se objetivos gerais e específicos, os quais tornaram-se pontos de referência comuns aos projetos, podendo ser revistos e analisados a partir do contato efetivo e continuado com as realidades trabalhadas.

Os objetivos gerais ficaram assim elaborados: 1) repensar e socializar o conhecimento acumulado na área da Psicologia, à luz do contato com as classes populares; 2) contribuir para a formação de recursos humanos capazes de dimensionar a praxis do campo psicológico, além do que está instituído e estabelecido tradicionalmente.

Entre os objetivos específicos a serem atingidos constavam: 1) oferecer de modo efetivo e continuado serviços psicológicos às populações de baixa renda, de forma próxima ao seu local de vida e moradia, na perspectiva de um atendimento mais regionalizado; 2) priorizar ações que promovam a saúde do indivíduo e da comunidade de um modo geral, assim como favorecer intervenções de caráter preventivo e profilático-informativo; 3) gerar conhecimentos na área de trabalhos junto às classes populares e comunidade para contribuir, do ponto de vista teórico-metodológico, com a construção de um saber contextualizado, haja visto o reduzido número de publicações mais sistematizadas nesse campo.

Em toda a extensão das ações deste Laboratório, manteve-se a preocupação com a articulação entre as diferentes iniciativas, de modo a favorecer a troca de experiências e propiciar reflexão acerca da prática desenvolvida. Para tanto, a coordenação do Núcleo de Saúde organizava reuniões sistemáticas entre os participantes dos projetos e promovia seminários envolvendo temas de interesse dos diversos grupos. Esse esforço visava a integrar os trabalhos, dando-lhes suporte referencial e ao mesmo tempo funcionava como uma forma de feedback teórico e prático.

Paralelamente, foram oferecidas assessorias internas, entre os projetos. Constituem exemplos disto as reuniões semanais e quinzenais de supervisão de casos clínicos e as trocas de experiência entre estagiários e supervisores em trabalhos grupais com gestantes.

Como parte do mesmo esforço, foi implementado o intercâmbio com profissionais da Saúde Mental e da Educação de outras entidades, que, apresentando sua experiência em seminários, favoreceram a troca de experiências e a articulação entre os trabalhos desenvolvidos pelo Laboratório. Neste sentido, foram feitas reuniões com os membros do Centro de Atendimento Psicossocial10, estabeleceram-se contatos com alguns profissionais da Psicologia e da Psiquiatria interessados em compartilhar experiências e com as seguintes instituições: Hospital Infantil Joana de Gusmão, Hospital Universitário (ambulatório de Psiquiatria), SOS Criança, Hospital Psiquiátrico São José, Centro de Atendimento ao Adolescente (SUS).

A coordenação do Núcleo estimulou também a elaboração de textos referentes às experiências realizadas, iniciativa esta que redundou na apresentação de vários trabalhos em encontros científicos (Abreu, Andaló & Groszevicz, 1993; Andaló & Siqueira, 1993; Abreu, 1994; Andaló & Siqueira, 1994; Andaló, Baggio & Fava, 1994, Moré, 1994).

Na tentativa de promover a integração entre a Universidade e o Sistema Municipal de Saúde, procurou-se estabelecer um convênio que favorecesse o atendimento interdisciplinar e a abertura de mercado de trabalho para profissionais da Saúde Mental. Estas ações tiveram como conseqüência a abertura de concurso público para o ingresso de psicólogos nas equipes da rede municipal de saúde, assim como bolsas de estágio para acadêmicos de Psicologia, principalmente na área da Saúde Mental.

No âmbito da comunidade, houve solicitação através de abaixo assinado, promovido pela Associação de Moradores de Bairro do interior da ilha, no sentido de incluir a presença de psicológos nas equipes dos centros de saúde. Tal fato foi historicamente inédito no município de Florianópolis.

Com relação aos alunos de Psicologia, depois da criação do Laboratório, passou a ser crescente seu interesse em engajar-se em iniciativas de cunho social e prestar concursos após a graduação, para o preenchimento de vagas oferecidas em Centros de Saúde de outras cidades do Estado. Além disso, a participação dos mesmos nas reuniões quinzenais que o Laboratório tem promovido, com o objetivo de discutir e divulgar os trabalhos implementados, foi paulatinamente aumentando.

 

4. O LABORATÓRIO E A BUSCA DA INTERDISCIPLINARIDADE

Nos projetos desenvolvidos, a busca da interdisciplinaridade não tem sido tarefa fácil em função da própria fragmentação existente entre as várias áreas do saber, que é historicamente condicionada. À medida que o saber se dividiu, se privatizou e se tornou propriedade de especialistas, estes se habituaram a trabalhar com a clientela de forma parcial e descontextualizada. Em conseqüência, encontra-se um grande desconhecimento a respeito das características do trabalho em equipe. Dados preliminares de uma pesquisa realizada em um dos Centros de Saúde envolvidos11 evidenciaram uma compreensão distorcida a respeito do trabalho do psicólogo.

Verificou-se, por outro lado, que tal compartimentação é muitas vezes geradora de competições e rivalidades e dificulta uma atuação integrada das equipes, cujos profissionais, com freqüência, disputam o poder entre si, o que leva à dispersão de esforços, de recursos e a situações burocratizadas e ineficazes.

Um outro aspecto que tem restringido a possibilidade de realização de trabalhos de natureza interdisciplinar diz respeito ao sucateamento dos serviços públicos de saúde e educação. A depreciação crescente das condições de funcionamento destas instituições, bem como a desvalorização e o desrespeito aos seus funcionários, é uma constante nos sistemas públicos. As freqüentes paralisações e greves que as diversas organizações governamentais têm enfrentado, onde nossas equipes têm trabalhado, são exemplos deste processo e contribuem para bloquear a possibilidade de um trabalho interdisciplinar.

Uma dimensão desta questão quase nunca mencionada diz respeito ao fato de os profissionais das instituições estatais de educação e saúde serem funcionários públicos. Rodrigues (1989) em estudo sobre representações de pequenos servidores públicos administrativos de São Paulo mostra que estes se sentem "não inseridos", mas "imersos no Estado" e com uma imersão de tipo identificativo que favorece constelações emocionalmente regredidas. Segundo a autora, em função disto desenvolvem sentimentos de ambivalência e de acomodação, seja pelo salário, que mesmo minguado é garantido até a aposentadoria, seja pela falta de perspectiva de futuro, uma vez que sua ascensão ou melhoria independe do esforço pessoal, já que provém de determinações superiores alheias à sua atuação.

Além disso, com relação aos Centros de Saúde, tem sido constatada a hegemonia do atendimento médico-curativo (prevenção secundária), presente tanto nas equipes de profissionais, como nas expectativas da população, a qual busca estas instituições para suprir suas necessidades imediatas com relação à saúde. Nesta perspectiva, a dimensão orgânica da doença encontra prioridade em detrimento de uma visão mais abrangente e integrada de homem como ser bio-psico-social. Tais aspectos se contrapõem frontalmente à proposta de promoção à saúde que os projetos deste Laboratório têm tentado desenvolver.

Da experiência acumulada nas diversas frentes de trabalho, verificou-se que a questão da interdiciplinaridade é um aspecto fundamental nas equipes de saúde ou de educação e, para consegui-la, o passo inicial parece ser explicitar e conhecer os objetivos e a especificidade de seus integrantes. Evidentemente, a interdisciplinaridade não pode ser definida ou estabelecida a priori, pois "...se constitui e se instrumentaliza, na medida em que há um reconhecimento dos integrantes de uma equipe e se sustentará pela aceitação das diferenças e não por temor a elas." (Moré, 1994, p. 44).

 

5. CONSIDERAÇÕES E REFLEXÕES FINAIS

Os docentes envolvidos nestes projetos defrontaram-se com desafios de ordem variada. O primero deles constituiu-se em manter integrado um grupo onde profissionais de diferentes perspectivas teóricas e metodológicas, debruçados diante de um objetivo comum - o de estender o conhecimento psicológico às classes populares - debatiam, discordavam, confrontavam-se e se complementavam, estimulados pelas lacunas que a prática evidenciava.

Outro foi a crescente necessidade de estudo e atualização, pois se impunha a revisão teórica e metodológica das ações próprias da Psicologia Clínica tradicional. Repensar essa prática provocou o questionamento de conceitos estabelecidos e considerados verdadeiros e tem levado à descoberta de que, freqüentemente, se constituem em preconceitos instaurados com relação às classes populares.

Mais um desafio enfrentado diz respeito à tentativa de fazer ligações efetivas entre teoria e prática, no interesse da indissolubilidade entre ensino, pesquisa e extensão, de modo a evitar o fracionamento do saber oficializado.

A experiência relatada neste trabalho, bem como as reflexões que ela suscitou, permitiram delinear algumas propostas que vêm sendo desenvolvidas pelo Laboratório. Em termos da formação dos psicólogos, a prática realizada levou à necessidade de reformular, tanto a formação dos profissionais engajados nesta atividade, como a dos alunos. Isso parece ser especialmente verdadeiro no que diz respeito à orientação que o Curso de Psicologia da UFSC poderia oferecer, comprometendo-se com o desenvolvimento de trabalhos condizentes com as necessidades das camadas populares12.

As experiências levadas a efeito pelo Laboratório tornaram clara a possibilidade de fazer ciência não só conhecendo melhor as estratégias de sobrevivência das classes populares, como investigando sua subjetividade de modo a contribuir para a discussão das construções teóricas da Psicologia.

Em termos metodológicos, os vários projetos têm experimentado algumas práticas de intervenção que dão ênfase à prevenção e promoção da saúde e que procuram contemplar as variadas situações e desafios que estão presentes na vida da população atendida.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Esses projetos foram desenvolvidos por algumas professoras do Departamento de Psicologia da UFSC, entre as quais a Profa Maria Cristina Vignolli, que contribuiu nas discussões iniciais do grupo que criou o Laboratório.
2 NUTRE era coordenado pelas professoras Carmen S. A. Andaló e Maria Juracy T. Siqueira e contava com a participação de estagiários e profissionais afins.
3 Esse projeto foi desenvolvido e coordenado pelo professor José Luiz Crivelatti de Abreu.
4 A professora de orientação gestáltica afastou-se da equipe para dedicar-se a um projeto de endendimento a pacientes oncológicos em instituições hospitalares.
5 Esse projeto foi elaborado e coordenado pela professora Carmem Silvia de Arruda Andaló e está em desenvolvimento no bairro do Itacorubi.
6 Esse projeto foi elaborado e coordenado pela professora Carmen L. O. Ocampo Moré e encontra-se em desenvolvimento no bairro do Saco dos Limões.
7 Esse projeto foi elaborado e coordenado pela professora Jadete Rodrigues Gonçalves.
8 Professora Jadete Rodrigues Gonçalves.
9 Esse projeto foi elaborado e coordenado pela professora Jadete Rodrigues Gonçalves.
10 Essa entidade é composta por profissionais ligados ao INAMPS e dedica-se a prestar serviços na área de Saúde Mental.
11 Essa pesquisa foi realizada no Centro de Saúde do bairro Saco dos Limões.
12 Nesse sentido, a reforma curricular em andamento aponta em suas diretrizes um engajamento social relevante de professores e alunos, com vistas a uma formação que, sem deixar de lado a interdisciplinaridade, mantenha a especificidade do saber psicológico.