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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.16 n.4 São Paulo dez. 2005

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Uma reflexão psicanalítica acerca dos CAPS: alguns aspectos éticos, técnicos e políticos1

 

A psychoanalytical reflexion on CAPS: some ethical, technical and political aspects

 

Une réflexion psychanalytique sur les CAPS: quelques aspects éthiques, techniques et politiques

 

 

Alessandra Monachesi Ribeiro2

Instituto Sedes Sapientiae - SP

 

 


RESUMO

Neste artigo, realizo uma reflexão acerca dos CAPS – Centros de Atenção Psicossocial, serviços públicos de saúde mental, criados segundo as diretrizes da Reforma Psiquiátrica. Através da retomada dos aspectos éticos, técnicos e políticos subjacentes a tal dispositivo institucional, e por meio da aproximação dos mesmos da ética e da técnica psicanalítica, reflito sobre o momento atual de expansão dos CAPS em âmbito nacional e problematizo as questões da alta e da alienação na técnica, intensificadas por tal desenvolvimento.

Palavras-chave: Serviços de saúde mental. Psicose. Reforma Psiquiátrica.


ABSTRACT

In this paper, I develop a reflexion on the CAPS – Psychossocial Attention Centers – some public mental health institutions created according to the Psychiatric Reform guidelines. Through the resumption of some ethical, technical and political aspects that exist within the institutional technologies, and through their approximation along with the psychoanalytical ethics and techniques, I think over the actual expansion moment of the CAPS in a national scale, as well as the problems concerning the end of treatment and the alienation within the techniques, both heightened towards this development.

Keywords:Mental health services. Psychosis. Psychiatric Reform.


RÉSUMÉ

À cet article, on fait une réflexion sur les CAPS – les Centres d’Attention Psychosocial, qui sont des services publiques pour la santé mentale crées en accord avec les directions donées par la Réforme Psychiatrique. À travers la reprendre des aspects éthiques, techniques et politiques sous-jacentes à ce dispositif institutionnel, et par leurs rapprochement autant de l’éthique que de la technique psychanalytique, on réfléchi sur l’expansion des CAPS chez notre territoire et en outre, on rend problématique des thèmes de la fin du traitement et de l’aliénation à la technique, lesquelles deviennent intensifiées par cet expansion.

Mots-clés: Santé mentale. Psychose. Réforme Psychiatrique.


 

 

O lugar de existência e o território

Comecemos pelo mais atual, pelo que hoje se apresenta, para, em seguida, procurarmos por suas raízes e, se possível, retraçarmos o percurso que nos trouxe até aqui. O que se apresenta, nos dias de hoje, é o dispositivo CAPS como modelo e paradigma de atenção à saúde mental. Utilizarei, como referência básica para apresentá-lo, o material escrito pelo Ministério da Saúde no ano de 2004, intitulado Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial. Farei uma releitura desse material a partir de um viés psicanalítico, o qual será articulado com três conceitos importantes para a reflexão que pretendo desenvolver acerca do CAPS: as noções de ética, técnica e política.

O CAPS &– ou o dispositivo CAPS, por bem dizer3 &– tornou-se um componente central para determinada política no campo da saúde mental. Assim, conquistou um lugar de existência previsto em lei, sendo designado como serviço de “(...) atendimento de pacientes com transtornos mentais severos e persistentes em sua área territorial, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo e não-intensivo (...)” (Ministério da Saúde [MS], 2004, p. 31), ou ainda, “(...) serviço ambulatorial de atenção diária que funciona segundo a lógica do território.” (MS, 2004, p. 31).

Comparece, então, a importante idéia de território para ajudar a definir o que seja um CAPS. Território esse entendido não apenas como área geográfica, mas também como rede de pessoas, instituições e relações que se estabelecem em determinada área. Território é, portanto, uma designação complexa relativa à requintada articulação entre pessoas, espaços, locais, tempos, encontros, comunicações, história e tudo o mais que se possa englobar na tentativa de localizar – espacialmente – o que também poderia ser definido como um lugar.

O lugar, tal qual a antropologia o define – e há aqui alguma afinidade com a Psicanálise – diz respeito à

(...) construção concreta e simbólica do espaço que não poderia dar conta, somente por ela, das vicissitudes e contradições da vida social, mas à qual se referem todos aqueles a quem ela designa um lugar, por mais humilde e modesto que seja. (...) o lugar antropológico, é simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem o observa. (Augé, 1994, p. 51)

Assim, essa idéia faz referência a um lugar identitário, relacional e histórico. Augé ainda o definiria como lugar próprio, individualidade absoluta, aquilo que situa um indivíduo em relação aos outros. Poderia acrescentar, a partir da Psicanálise, que isso também designa um lugar de existência subjetiva, de inscrição não apenas no mundo das relações, mas no mundo psíquico, naquilo que o humano tem de mais singular. A noção de lugar revela um paradoxo, já que trata simultaneamente de uma delimitação em relação aos outros e, também, daquele que se percebe delimitado. O lugar seria, tal qual o nome, um espaço de designação, de pertinência, de localização, de apropriação, de criação, um ponto a partir do qual é possível circular, o que viabiliza uma existência encarnada.

Território e lugar: estamos no campo dos contornos e de tudo aquilo que fica circunscrito ou excluído pelo que é contornado. A política de saúde mental que toma a idéia e o dispositivo CAPS como modelo de intervenção em sua área apresenta, conseqüentemente, a disposição de organizar a atenção em saúde mental dentro dessa perspectiva do território, do lugar, da rede.

Para compreendermos o que seja um CAPS, portanto, teremos que transitar por essas aproximações que estabeleci entre território e lugar, entre determinado campo de contorno e a possibilitação de um lugar de existência, ainda que para um indivíduo singular. Ou seja, o CAPS revela uma concepção que contorna algo como rede geral ou individual, como projeto de atendimento em saúde mental e como projeto de tratamento de um único indivíduo, dentro de um único serviço de saúde mental. A idéia de CAPS supõe esse movimento. Assim, apreendemos algo importante acerca do que seja um CAPS: um tecedor e articulador de redes, nos mais diversos âmbitos nos quais isso poderia ser pensado. De onde surge tal idéia?

 

Uma ética no tratamento em saúde mental

O CAPS – Centro de Atenção Psicossocial – surge em 1986, em São Paulo, na Rua Itapeva, fruto da busca por um novo modelo de assistência, no campo da saúde mental, que se contraponha àquele hospitalocêntrico que vigora, até então, como único meio e única concepção de tratamento destinados à loucura. O surgimento desse CAPS, nesse momento histórico, deu-se em consonância tanto com a história do movimento de saúde mental e da Reforma Psiquiátrica no Brasil, quanto em ressonância com o que ocorrera nas décadas anteriores em países da Europa e nos Estados Unidos.

A idéia de um CAPS se originou da aposta na mudança do modelo assistencial e na criação de serviços substitutivos e, nesse ponto, o enfoque psicanalítico com o qual me propus a refletir sobre o CAPS começa a ganhar algum sentido para além de uma aparente arbitrariedade. Isso porque o viés psicanalítico se afina bem com certos pressupostos necessários à idéia de Reforma Psiquiátrica, dos quais o CAPS surge como um dos possíveis frutos. Quero enfatizar, com isso, que a mudança de paradigma pela qual uma Reforma Psiquiátrica pode gestar algo como uma idéia e um dispositivo CAPS está – e esteve, desde seus primórdios – profundamente marcada pela mudança de paradigma que a Psicanálise propõe ao se organizar como campo de saber sobre o humano. Não se trata de sua única marca, mas de uma delas, e daquela com a qual resolvi trabalhar nesse contexto.

Como é de conhecimento de todos, a Reforma Psiquiátrica (Amarante, 1998; Bezerra Junior & Amarante, 1992; Desviat, 1999) surge da crítica ao modelo asilar de tratamento da loucura, pautado pela concepção do louco como doente mental e da loucura como doença. Sua proposta principal, presente em todas as diferentes experiências construídas sob sua égide, é de que se criassem novas maneiras de lidar com a loucura e com o louco, de forma que o mesmo não ficasse no lugar de tutelado, de alguém sem voz e sem vez, a ser gerido por outro que – esse sim – saberia a seu respeito.

Tal postura aproxima-se da que se encontra em um enfoque psicanalítico a respeito do humano e, conseqüentemente, da loucura. A Psicanálise primou, desde suas origens, por dar lugar àquilo que não o possuía em determinado contexto ou época. Começou com Freud (1893-1895/1996) e suas histéricas, pessoas que padeciam de um tipo de enfermidade que não guardava qualquer correspondência com as configurações anátomo-fisiológicas propostas pela medicina. Para a grande maioria dos médicos dos tempos de Freud, a histeria revelava-se sem lógica, incompreensível. Freud apostou que haveria alguma inteligibilidade naquela “estranha” maneira de sofrimento e, com isso, produziu conhecimento suficiente, tanto para entender algo acerca de tal funcionamento, quanto para poder tratá-lo naquilo em que se apresentasse como incapacitante, impeditivo para a vida daquele indivíduo.

A partir do momento em que Freud dá voz às histéricas e aposta em que aquilo de que elas padecem tem sentido, não sendo absurdo, um mundo novo se descortina para ele, bem como para os psicanalistas que o sucederão: o mundo do ser humano, entendido como ser em conflito, pulsional, paradoxal, governado por forças das quais não tem qualquer conhecimento... o homem tal qual a Psicanálise o concebe. Isso que é proposto para as histéricas será passível de transposição para o campo das psicoses, já que o próprio Freud (1911/1996) entende, com a análise da obra de Schreber, que o delírio – produção psicótica por excelência – tem um sentido, tal qual os sintomas histéricos. Nesse caso, trata-se de um movimento na direção da cura, do delírio como tentativa de cura.

Existem, portanto, pontos de extrema consonância e proximidade entre a Reforma Psiquiátrica e a Psicanálise4 . Ambas partem do pressuposto ético de que o louco é um indivíduo com voz, capaz de dizer sobre si mesmo, de produzir “obra” (Birman, 1992), e de que sua loucura, portanto, não é doença a ser tratada e, conseqüentemente, curada, mas uma produção plena de sentidos que deve ganhar, no âmbito do sujeito, lugar de existência subjetiva e territorial, contorno, amarrações que viabilizem uma localização &– inscrição &– desse ser no mundo em que vive. Tratar de um louco seria, dessa maneira, criar dispositivos para que o mesmo possa ter lugar, se territorializar, estabelecer redes com o refinamento necessário para garantir algo que possamos chamar de vida.

O dispositivo e a idéia CAPS surgem, conseqüentemente, de uma aposta pautada por uma posição ética, que serve de sustentáculo para tudo o que, a seguir, será criado enquanto tecnologia que viabilize que tal postura possa se exercer – aposta de que o louco e a loucura têm sentido, voz, vez e obra. Aqui, tomo emprestadas as palavras de Figueiredo e Coelho Junior (2000), ao descreverem a ética psicanalítica (que acabo de aproximar da ética da Reforma Psiquiátrica):

Ética, entendida como posição e como lugar (morada), como postura fundamental, como modo de escutar e falar ao e do outro na sua alteridade – a alteridade do inconsciente. Uma ética compreendida como abertura, respeito, resposta e propiciação ao outro. Algo que não se assemelha em nada a uma ‘moral’ e que, portanto, não poderá jamais ser convertido em código de prescrições e proibições. Trata-se, de fato, muito mais de uma disposição ao convívio acolhedor, mas nem por isso tranqüilo, com o inesperado e o irredutível, que caracteriza a alteridade, do que da formação de regras prescritivas que pudessem modelar o fazer analítico. (p. 7).

Por meio dessa definição, encontramos, no mesmo ponto que aproxima os campos da Reforma Psiquiátrica e da Psicanálise, um de seus pontos de distanciamento. Ao apostarem na ética da existência de um sujeito, Psicanálise e Reforma Psiquiátrica o farão de maneira distinta, apesar da concepção da segunda ser influenciada fortemente pelo arcabouço conceitual e pela experiência clínica da primeira. Se, para a Psicanálise, a aposta no sujeito envolve a aposta tanto na lógica do inconsciente, do desejo, do campo pulsional, quanto na criação de uma disponibilidade para recebê-lo, mais do que na construção de formas e formalidades para isso – ainda que as mesmas existam nesse campo –, para a Reforma Psiquiátrica, tal aposta no sujeito envolverá, necessariamente, a criação de dispositivos que viabilizem que ele possa ser recebido e, conseqüentemente, incluído no campo mais amplo do tecido social. Ou seja, no âmbito da Reforma Psiquiátrica, a tradução de uma ética em uma técnica de atendimento será condição indispensável para a concretização de suas proposições, a fim de que a Reforma se dê enquanto tal. Portanto, para entendermos algo mais a respeito do CAPS, teremos que acompanhar a maneira como isso se transpõe de uma ética a uma técnica.

 

O CAPS como tecnologia

Temos, até este ponto do texto, algo que se inicia como uma reflexão, a qual culmina no estabelecimento de um parâmetro ético para o atendimento em saúde mental – a Reforma Psiquiátrica – a partir da crítica feita aos modelos anteriores de tratamento da loucura. Para que tal ética se estabeleça, contudo, ela terá que se transfigurar em uma determinada técnica que lhe seja condizente. Decorrem daí as inúmeras experiências mencionadas anteriormente, que tiveram lugar na Inglaterra, França, Itália, Estados Unidos e, também, no Brasil. Aqui, a idéia de uma certa ética do atendimento à loucura, pautada na aposta no sujeito psicótico, desembocará, entre outras coisas, na criação de um CAPS como encarnação de tal aposta e como constituição de uma tecnologia necessária à sua sustentação no campo da prática clínica.

Se tomarmos a noção de técnica como “(...) um conjunto de procedimentos bem definidos e transmissíveis, destinados a produzir certos resultados considerados úteis” (Lalande, 1993, p. 1109), podemos entender que, a partir da reflexão e da aposta feita, foi necessária uma série de experimentações para constituir um campo de trabalho desde aquilo que se configurava enquanto norteador. Essas experimentações formam a história do CAPS-Itapeva desde sua fundação, bem como a história de outros CAPS e NAPS, fundados ao longo dos anos. A idéia CAPS, aos poucos, torna-se o dispositivo CAPS – ou seja, uma tecnologia CAPS, entendida aqui como a teorização necessária acerca de uma técnica, bem como a técnica mesma – na medida em que tais experimentações se sedimentam como o tal conjunto de procedimentos condizente com as proposições feitas a partir do arcabouço da Reforma Psiquiátrica. O CAPS-Itapeva, uma instituição singular, com sua equipe singular e seus usuários, também singulares, constrói um saber e um fazer acerca da loucura, coerentes com a aposta naqueles usuários enquanto sujeitos, e tal saber fazer se institucionalizará, com o passar do tempo, como uma tecnologia passível de ser replicável em âmbito nacional.

Temos, então, a difusão da técnica necessária a que uma instituição se constitua enquanto um CAPS como aquilo a que é dada uma ênfase considerável no relatório do Ministério da Saúde (2004), no momento em que já foi percorrido um longo caminho de quase vinte anos da aposta à experimentação, desta ao estabelecimento de uma tecnologia e, por fim – o que se configura como retorno ao momento presente após essa breve retomada histórica –, ao estabelecimento do CAPS como modelo de atendimento em saúde mental. Acompanhemos alguns excertos do relatório:

(...) um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) ou Núcleo de Atenção Psicossocial é um serviço de saúde aberto e comunitário do Sistema Único de Saúde (SUS). Ele é um lugar de referência e tratamento para pessoas que sofrem com transtornos mentais, psicoses, neuroses graves e demais quadros, cuja severidade e/ou persistência justifiquem sua permanência num dispositivo de cuidado intensivo, comunitário, personalizado e promotor de vida. (MS, 2004, p. 13)

Ou seja, o dispositivo CAPS é apresentado como um lugar de referência, modelo no que tange o tratamento às psicoses e neuroses graves, e a ênfase no cuidado intensivo, comunitário, personalizado e promotor de vida garante a aposta ética sobre a qual vinha discorrendo até então. Isso porque a idéia de um cuidado personalizado implica o “paciente” em uma posição ativa frente a seu tratamento. Caberá a ele, juntamente com a equipe que lhe presta cuidados e com seus familiares, decidir o contorno de seu tratamento.

O objetivo dos CAPS é oferecer atendimento à população de sua área de abrangência, realizando o acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. É um serviço de saúde mental criado para ser substitutivo às internações em hospitais psiquiátricos. (MS, 2004, p. 13)

O tratamento é personalizado e singularizado, tanto do ponto de vista de um único indivíduo que ali se encontre, como de um único serviço em uma dada região. A oferta de um CAPS é regionalizada e comunitária, preocupada e condizente com o território que contorna o serviço e, conseqüentemente, seus usuários e funcionários. Dessa forma, a proposição de um CAPS como modelo de atendimento em saúde mental será geral o suficiente para que, dentro dessa idéia, sejam passíveis de inclusão os mais diversos serviços, com suas particularidades territoriais e regionais.

 

Uma política pública de atendimento em saúde mental

Com a leitura do relatório de 2004 do Ministério da Saúde, constatamos que o CAPS foi apropriado pelo poder do Estado como enquanto uma política pública na área da saúde mental. Ou seja, sua ética e sua tecnologia tornaram-se modelos nesse campo de atendimento, bem como diretrizes a serem seguidas por outros serviços de saúde. Ambulatórios e HDs, por exemplo, transformaram-se em CAPS a partir de medidas legais e tiveram que se conformar aos seus parâmetros. Assim, todo o constructo CAPS (ética, tecnologia e técnica) torna-se paradigma de uma ação política em saúde mental que busca dar fim ao modelo hospitalocêntrico de tratamento da loucura, oferecendo uma rede de cuidados (antes alternativa, agora oficial) na qual os CAPS ocupam lugar central.

Percebemos, também, mediante a leitura do relatório já mencionado, que as bases técnicas para a criação dos CAPS são enfatizadas tanto quanto sua ética, que se descortina por entre as malhas do texto, direta ou indiretamente mencionada. Aprendemos acerca dos horários de funcionamento, da equipe multiprofissional e dos tipos de atividades terapêuticas – individuais, grupais, psicoterapias, oficinas terapêuticas, atendimentos com a família, atividades comunitárias, assembléias, reuniões de organização do serviço, consultas para prescrição de medicação, oficinas de trabalho, atividades de reinserção social. Ou seja, temos uma oferta ampla, que engloba tanto o cuidado clínico propriamente dito, quanto o âmbito da reabilitação psicossocial, norteadores básicos para planejarmos os tipos de atividades a serem oferecidas.

De certo modo, tudo o que acontece em um CAPS pode ser entendido como terapêutico, quer sejam atividades específicas ou o simples “estar lá”, inserido em um meio acolhedor, em um ambiente terapêutico (Souza, 2003). Ou seja, essa instituição deve ser uma casa, uma morada, um lugar a ser habitado, ocupado, marcado por todos aqueles que ali vivem – funcionários e usuários – pleno de histórias, de memórias e de intensidades. Deve ser um lugar, na acepção que dei a esse termo neste texto, jamais um local de passagem, asséptico, impessoal, desfigurado.

Para que haja um CAPS, é necessária uma disponibilidade ao outro, uma condição permanente de escuta e questionamento acerca de como esse outro torna-se ator principal na construção de seu projeto de tratamento, o qual acompanhamos, bem como sobre cada dispositivo criado pelo serviço em nome de tal acompanhamento. Uma disponibilidade de escuta, reflexão, crítica e criação, o que não é pouca coisa. Trata-se de uma clínica altamente complexa, que exige daqueles que nela se engajam uma disposição ética em relação a tanta complexidade: a possibilidade de sustentar a constituição do espaço de tratamento como um lugar, no qual um sujeito singular pode vir a existir.

 

A questão da alta

Retomamos o que seja um CAPS a partir das noções de ética, técnica e política e retraçamos sua história, tanto quanto sua definição, desde tais perspectivas. Cabe, agora, examinarmos alguns perigos, gerados no interior do próprio dispositivo CAPS , e que se colocam para nossa reflexão, quais sejam a impossibilidade de alta e a alienação na técnica.

Comecemos pela impossibilidade de alta, já que não é um risco novo. Podemos nos perguntar: como um serviço tão abrangente, que se configura como acompanhante e produtor de projetos de vida, poderá escapar do perigo de se tornar a vida de seus usuários? Como o projeto de vida de cada sujeito que ali se trata não ficará restrito àquilo que o CAPS lhe proporciona? Se um CAPS existe para favorecer a articulação, a circulação e a inserção de seus usuários em seus territórios de relações, lugares e possibilidades, tornar-se o único lugar para um psicótico parece-me uma contradição. No entanto, uma das críticas mais comumente feitas aos CAPS é acerca do quanto sua amplitude pode tornar-se encarcerante e institucionalizadora. Por que não dar alta? Por que os usuários não saem do CAPS? Como, então, pensar a questão da alta em um serviço tão complexo?

Parece-me que, neste ponto, trabalhamos dentro de duas lógicas antagônicas. Temos, por um lado, a idéia de alta, pertinente à concepção medicalizante da loucura e do que seja o seu tratamento. Em tal concepção, a loucura apresenta-se como sintomatologia a ser identificada, catalogada, tratada e curada. A idéia de cura está pressuposta por trás da noção de alta. Mas se não houver doença a ser curada? Então, toda concepção calcada nas idéias de doença, tratamento e cura terá de ficar em suspenso. E não parte desse pressuposto, contrário à abordagem da loucura como doença mental, a lógica da concepção de loucura que dá origem aos CAPS?

A Psicanálise pode nos ser útil para sugerir que a idéia de alta em um CAPS poderia ser pensada, antes de tudo, de forma não burocrática e não técnica, encerrada apenas em si mesma, mas como um dos pontos através dos quais os paradoxos do dispositivo CAPS se anunciam e se atualizam em sua prática cotidiana. Trata-se de uma questão a ser discutida dentro de uma conversa maior – sempre necessária e atual – sobre o que se entende por psicose. Quem é o psicótico? Do que ele necessita? Ou seja, dependerá integralmente da maneira como entendemos a psicose aquilo que pensaremos sobre a questão da alta.

Por um viés psicanalítico, e aproveitando-me de uma linha de discussão que se inicia com o texto de Freud (1937/1996) sobre “Análise terminável e interminável”, não há como pensar em algo que se conceba como alta na sua pressuposição de uma cura. As análises têm um fim, mas isso não se associa à idéia de cura. Ou seja, elas não terminam porque o sujeito está curado, e seus finais não garantem nada quanto a quaisquer sofrimentos ou conflitos em um tempo futuro. Com isso, o processo analítico desloca-se da perspectiva adoecimento – tratamento – cura, ainda que mantenha com tal perspectiva uma relação paradoxal e complexa, uma vez que parece muito difícil pensar fora de tal lógica, mesmo dentro do campo psicanalítico, o que faz com que esse assunto se mantenha como algo a ser simultaneamente evitado (recalcado?) e discutido.

Se o dispositivo CAPS aposta na existência de um psicótico que tem voz para dizer de si, dos outros e do que necessita, como pensar a questão da alta dentro desse contexto de tratamento? O que seria tratar em um CAPS? Queremos tratar / curar psicóticos nesses serviços? Ou podemos acompanhá-los e auxiliá-los na construção de condições que viabilizem sua existência?

A proposta das diferentes intensidades de tratamento – existente no relatório do Ministério da Saúde (2004) – parece vir de encontro à segunda assunção e aponta um campo de desdobramento para essas questões. Essa proposta supõe um entendimento de que pessoas com graves comprometimentos necessitam de grandes quantidades e qualidades de investimentos, por um longo período de tempo – quem sabe, até pela vida toda. Assim, a idéia de que o CAPS pode sustentar múltiplas intensidades de inserção de seus usuários no serviço, diferentes freqüências em diferentes momentos do acompanhamento àquelas pessoas, tenta contemplar esse movimento no qual o CAPS tenderia a se tornar um lugar dentre outros, por vezes, exclusivamente investido, pelo tempo necessário. Permanece a noção de que o serviço se oferta em toda a sua amplitude para que, um dia, o sujeito possa prescindir dele, ou usá-lo de outra maneira, ou noutra intensidade.

As pessoas ingressam no CAPS para, um dia, poderem ir embora, e aqui encontramos o risco de repetir na instituição aquilo que está na origem da condição psicótica: o que, para a psicanálise, é a impossibilidade de separação, de diferenciação e de constituição daquele psicótico como um sujeito, capaz de autonomia e de desejo5 . Ou, até mesmo, da repetição da institucionalização inerente ao modelo hospitalocêntrico contra o qual a Reforma Psiquiátrica se impôs e o CAPS originou-se como alternativa. Contudo, e por paradoxal que seja, a repetição pode estar na permanência indiferenciada tanto quanto no uso da lógica de alta para se pensar sobre a saída dos usuários.

Não é possível desconsiderar o papel importante que o CAPS adquire na vida de boa parte de seus usuários, tornando-se referência de lugar possível e possibilitador, papel que não deve ser recusado, em nenhum momento, em nome de uma lógica na qual a alta seja o que anuncia a eficácia do tratamento. Ou seja, vemo-nos obrigados a sustentar o campo dos paradoxos e das contradições para suportar um lugar que crie condição de inclusão e acompanhamento, tanto quanto de ausência e diferenciação.

A psicanálise nos auxilia a pensar, a partir do lugar que o psicanalista ocupa em uma análise, em um paralelo possível com o lugar do profissional de saúde mental frente ao usuário do serviço ou, até mesmo, no que concerne ao lugar do próprio serviço de saúde mental frente a seus usuários. Parece-me que sua contribuição (da psicanálise) mais valiosa não se encerra em servir como referência teórica, como campo de conhecimento, como bússola nos encontros travados com psicóticos, ou como norteadora de nossas intervenções na clínica. Não é pouco, é valioso o bastante, mas há ainda um “a mais” que a psicanálise tem a oferecer e que merece ser freqüentemente relembrado e enfatizado. Refiro-me, novamente, à postura ética que ela propicia nessa clínica e que serve de sustentáculo para que o profissional de saúde mental – ou até, de forma mais abrangente, o serviço de saúde mental – possa arriscar-se a ser desterritorializado, tirado de seu lugar no encontro com a psicose sem, no entanto, perder a condição de trabalhar em tal clínica. Poder andar sem perder o lugar, esse é o paradoxo daquele que chamei de psicanalista andante (Ribeiro, 2004), a fim de acentuar esta condição tão cara àqueles que trabalham com psicóticos: a disponibilidade de acompanhar um outro por onde quer que ele transite.

A construção de um lugar de analista na clínica das psicoses – e aqui farei uso da idéia de lugar de analista, numa acepção bastante ampliada, como um lugar para o profissional de saúde mental e para a própria instituição CAPS baseado no arcabouço psicanalítico, – implica na sustentação daquilo que Figueiredo (2000) chamou de presença reservada, ou seja, na criação de uma condição de manter um paradoxo entre disponibilizar-se o suficiente para que o encontro e o acompanhamento de um psicótico aconteça e, ao mesmo tempo, manter-se ausente o suficiente para que esse indivíduo possa ocupar o espaço com a sua singularidade, podendo constituir-se em toda a sua especificidade nessa relação. Andamos no fio da navalha entre a presença e a ausência, e tal seria a difícil arte de manejo necessária ao dispositivo CAPS, a fim de que não se burocratizasse no tipo de circulação que propõe a seus usuários, tampouco se eternizasse como único lugar possível, institucionalizando – novamente, tal qual o modelo a que veio se opor – seus usuários em uma condição de dependência alienante.

A lógica da doença se instaura de maneira insidiosa a partir dessa problematização , revelando que, dentro do próprio movimento de Reforma Psiquiátrica, construtor que de constrói uma concepção de loucura que culmina na criação de um CAPS, jaz uma resistência, uma contraposição a si mesmo. Isso faz com que o CAPS funcione como um serviço paradoxal, repleto de tensões e contradições, que só podem ser trabalhadas à na medida em que alguma reflexão incida sobre elas e as questões possam ser problematizadas em toda sua complexidade, e não de maneira superficial e simplificadora.

 

A técnica reduzida a si mesma

Passemos agora ao risco da alienação na técnica, que também não é novidade, mas que muito se acentuou desde que o CAPS se tornou modelo de atenção em saúde mental, um dispositivo a ser criado e aplicado em âmbito nacional. Trago um exemplo atual para discutir essa questão: recentemente, o CAPS-Itapeva passou por duas mudanças de diretoria, a primeira das quais realizada de forma arbitrária e externa ao campo de discussões que o serviço vinha realizando. As pessoas que chegaram para ocupar os postos de direção, em poucas semanas, apresentaram sua diretriz de trabalho: “queremos atividades, queremos produtividade... nada mais de gente sentada nos sofás, ou de gente dormindo, sem fazer nada.”. Ou seja, a orientação era: movimento, ação, acontecimentos... ninguém pode ficar parado.

O interessante em tal acontecimento é que as pessoas que ocuparam o cargo de direção nessa primeira mudança tinham conhecimento profundo acerca do CAPS, de sua história, de sua ética e de sua tecnologia. Foram formadas no campo da Reforma Psiquiátrica e, também, pelo serviço em questão, freqüentaram seus cursos, participaram de inúmeras discussões. Contudo, o que parece digno de espanto e de nota, optaram por um direcionamento técnico, no qual a tecnologia criada pelo CAPS deveria ser aplicada a ele mesmo, sem que suas peculiaridades, seus usuários ou seu momento institucional tivessem qualquer relevância na forma dessa aplicação. Desconsideraram, inclusive, toda uma densa produção teórica realizada a partir das experiências no CAPS-Itapeva – da qual a tese de doutorado de Goldberg (1998) constitui-se como exemplo mais contundente – na qual se salienta, com freqüência, que a ética do tratamento de psicóticos fundada pelo CAPS não é a da atividade, a da eficácia, a da produção de resultados, de agitações, ou de cura, mas sim, a da sustentação das condições necessárias para que cada psicótico crie os parâmetros de sua existência individual e seja respeitado nisso, o que inclui ficar sentado, dormindo, não fazer nada, por mais que tais atos possam parecer desagradáveis a alguns.

Com isso, quero enfatizar que o que se inicia como um direcionamento ético, que cria condições técnicas para se viabilizar e acaba respaldado por uma política que o promove e sustenta pode – de maneira fácil, nada insidiosa – ser apropriado apenas enquanto tecnologia deslocada, alienada de suas origens. Assim, serviços alienados em um fazer sem sentido, com profissionais alienados em atividades obrigatórias, e com usuários obrigados a atividades alienantes seria o cenário mais aterrador e, no entanto, altamente possível, em que a idéia e o dispositivo CAPS poderiam desaguar. Como evitar isso?

Uma corrente da psicanálise que parte das elaborações de Lacan (1949/1966)6 acerca dos processos de constituição de um sujeito entende que, para que esse exista, é necessário que ele tenha sua origem em um estado de alienação no outro. Com a idéia de estádio do espelho, retomamos o momento de inauguração da relação do sujeito com seu próprio corpo, momento de alienação e reconhecimento, no qual o encontro entre o observador e seu reflexo só pode adquirir sentido se houver um outro que confirme a ele a importância do que aconteceu. São o outro, o olhar do outro e sua nomeação acerca do sujeito que fazem a vez de espelho. Ele se reconhece naquilo que o outro diz que ele é e, com isso, reconhece-se como ser existente. Dessa maneira, coloca-se a presença da alteridade como imprescindível para a constituição do eu.

A alienação é, dessa forma, condição para o estabelecimento de qualquer possibilidade de existência de um sujeito. Ele se faz a partir dela, tendo que ser atribuído como tal, nomeado, identificado. A partir disso, sua jornada consistirá em tentar chegar a ser alguém que possa dizer de si, que possa falar em nome próprio, de maneira autoral e apropriada. Movimento infindável, uma vez que oscila entre a atribuição do outro que o aliena e o constitui e a apropriação de si, sem que isso permita ao sujeito livrar-se totalmente da maneira como foi falado. Entre a dependência necessária e a possibilidade de autonomia vagueia o sujeito, e a psicose terá sua origem justamente nesse ponto no qual a condição de existência se faz a partir da alienação no desejo do outro.

Aulagnier (1990) salienta que a história de um sujeito começa com o lugar que ele ocupa no mito familiar. Ele não é ele mesmo – e talvez nunca venha a sê-lo totalmente – mas, desse personagem que dizem que ele é surgem as potencialidades nas quais poderá se reconhecer. Assim, não se trata apenas da mãe e de seu desejo – um clichê psicanalítico ao pensarmos sobre a psicose –, mas dela como representante de uma história que destina a esse ser um lugar e um papel específicos, antes mesmo que ele exista de fato.

Partimos todos de um lugar de profundo desamparo, dependência e alienação, que é a condição primordial do ser humano. O que acontece com o psicótico para que, desse lugar atribuído, não consiga se alçar à condição de dizer de si mesmo? Novamente, aqui, temos de acorrer ao outro e ao lugar que ele nomeia para esse ser: a mãe do psicótico o colocará em um lugar que o encarcerará. A maneira como ele será nomeado o impedirá de existir como sujeito. Assim, no caso da psicose, a condição para que o sujeito se organize dessa maneira estará dada a ele pelo lugar que ocupará no discurso da mãe, no qual será um mero pedaço de carne, uma extensão do seu corpo, uma coisa a quem não é suposta alteridade, subjetividade, autonomia ou desejo. O psicótico paga o preço pelo lugar que lhe é destinado e, ao mesmo tempo, se organiza psiquicamente da melhor forma, dados os recursos que possui, para fazer frente a seu destino de total alienação no outro e na esperança de construir alguma subjetividade. Ou seja, a psicose é a organização possível frente ao lugar atribuído a um sujeito pelo mundo e, concomitantemente, a tentativa possível de rebelião, de fazer desse mandato um lugar próprio. Todo o arco entre o adoecimento e a cura estão circunscritos na acepção psicanalítica das psicoses.

Se me detenho longamente nessa maneira de entender o que seja a psicose, é porque me parece que aí reside o nó dos dois perigos mencionados no âmbito da discussão a respeito dos CAPS. Como já mencionado anteriormente, a discussão se desloca para o que se entende por psicose e por psicótico e esse é o ponto de partida para qualquer reflexão que se possa fazer sobre os riscos anteriormente citados.

No que diz respeito à questão da alta, ou seja, da possibilidade de inserção de um usuário em um determinado serviço, propus compreender que a discussão desloca-se de uma questão técnica (Dar ou não alta? Quando? Mediante quais critérios?) para uma questão ética, que demanda a reflexão acerca de quais pressupostos baseiam uma abordagem do tratamento das psicoses no dispositivo CAPS: quer seja a partir da perspectiva da tríade doença–tratamento–cura ou, por um outro viés – psicanalítico e condizente com a Reforma Psiquiátrica –, pela perspectiva do acompanhamento e da sustentação do paradoxo presença–ausência.

A reflexão acerca da alienação na técnica, risco que correm os disposi-tivos CAPS desde que se tornaram objeto de uma política de saúde mental, também parece se encaminhar para o mesmo campo de discussão, ou seja, desloca-se igualmente para a dimensão ética.

Na medida em que compreendemos que a psicose remete a uma questão pungente no campo da alienação–apropriação de si, não causa tanto espanto – ainda mais quando tomamos em consideração conceitos como os de repetição, transferência e transferência institucional – que as instituições que tratam de psicóticos vejam-se ameaçadas pela repetição dos mesmos riscos de manutenção de uma condição alienante, na qual aquela condição psicótica foi gestada. Trata-se, novamente, de lançar a questão: se apostamos que o psicótico se organiza na tentativa de construção de si como um sujeito, e a idéia e o dispositivo CAPS se constróem exatamente na intenção de acompanhar e legitimar tal movimento, mantê-lo assujeitado em uma situação, na qual atividades desprovidas de sentido lhe são impostas, sem qualquer conexão com um projeto singular, não seria alimentar um movimento contrário, de resistência a que esse indivíduo conquiste sua condição de falar em nome próprio?

Afinal, de que lado estamos? Qual aposta podemos sustentar? A resposta para essas indagações parece fácil de ser dada, mas, se examinarmos com cuidado a complexidade dos dispositivos criados, da tecnologia desenvolvida e dos acontecimento clínicos cotidianos, veremos que tal questão e sua resposta fazem-se necessárias como pontos de provocação e reflexão permanentes, como analisadores dos movimentos individuais, institucionais e políticos e do caminho que vem sendo traçado.

 

À guisa de conclusão: uma aposta contundente

Vale lembrar, para encerrar esta reflexão, por ora, de um dos fundadores do CAPS-Itapeva &– Jairo Idel Goldberg &–, um apostador contundente e coerente que, em uma situação “simples e cotidiana”, ensinou, a todos os que estavam envolvidos nos acontecimentos, mais a respeito da ética psicanalítica e da ética de uma Reforma Psiquiátrica do que muito do que já foi escrito acerca de tais temas.

Quando comecei a trabalhar no CAPS-Itapeva, o diretor do serviço era um psicanalista – um de seus fundadores – chamado Jairo Idel Gold-berg. Não havia tido muito contato com ele, até que uma situação se deu.

Havia uma mulher de cerca de quarenta anos que estava sob nossos cuidados. Parecia uma criança, algo como uma deficiente mental bastante comprometida. Vivia com a mãe, que não a deixava sair de casa para nada, apenas para vir ao CAPS e, na instituição, começou a se inserir em outros projetos, além das consultas destinadas a obter a renovação de sua prescrição médica.

Sabíamos pouco dela e, dada sua dificuldade em falar e o fato de falar muito pouco, perdíamos a curiosidade facilmente. Exigia esforço demais. De qualquer maneira, a moça começou a passar alguns dias na instituição, a almoçar, a participar de alguns projetos. Gostava de desenhar e, também, de ficar com as pessoas na cozinha.

Num dos passeios de sexta-feira à tarde – nos quais ela sempre ia –, desapareceu. Estava com o grupo e, no instante seguinte, já não estava mais. Houve um sentimento de pânico generalizado. Para onde ela teria ido?

Em uma sexta-feira à tarde, quando a instituição está prestes a fechar suas portas para o final de semana, refazíamos o percurso que tínhamos feito. Procurávamos nos lembrar de quando a víramos pela última vez. A mãe, que depositara tanta confiança em nós, se desesperou. Como nós a deixamos sumir? Justo ela que não sabia nem dizer onde morava, não sabia dizer seu nome, nem se deslocar pela cidade com autonomia? Como pudemos perdê-la?

Todos nos mobilizamos para procurá-la. Usuários e funcionários fa-ziam grupos de busca pela cidade, distribuíam cartazes, telefonavam para hospitais... nada. Tive de ir à polícia, já que era uma das pessoas responsáveis pelo tratamento dessa mulher no CAPS – o que chamamos de referência. Veio a televisão, os programas sensacionalistas e nada. Ela foi encontrada, mais ou menos dois meses depois, em um hospital na Aclimação. Tinha sido abrigada pelos funcionários de lá e, como não dissesse quem era, deixaram-na ficar até que descobrissem, o que fizeram graças à televisão.

Meses depois do ocorrido, Jairo encontrava-se em um dos auditórios da Faculdade de Medicina da USP, defendendo sua tese de doutorado, que dizia respeito aos efeitos do tratamento no CAPS para os que dele faziam uso. Sua aposta era a de que, ao freqüentarem o CAPS, os usuários podiam construir a possibilidade de se apropriarem daquilo que eram e faziam. Assim, se uma pessoa quisesse passar o final de semana inteiro deitada na cama, Jairo apostava e entendia isso como um movimento singular desse sujeito, que revelava sua autonomia e a singularidade de seu desejo.

Jairo falou, então, sobre essa moça – a que sumiu – como uma pessoa que tomou para si suas ações e foi embora. Tratava-se de uma escolha, de uma ação e não de algo de que ela tenha sido vítima. (Ribeiro, 2004, pp. 45-46)

Eis aí uma aposta radical na possibilidade de existência de uma pessoa. No caso dessa mulher, talvez Jairo tenha sido o único a poder ver seu sumiço como um ato realizado por ela e não como contingência, à qual foi submetida de forma passiva e involuntária. Essa mudança de perspectiva colocou-a no lugar de sujeito de suas ações, um lugar até então inesperado e impensável, ao menos para mim.

Jean Oury (1988/1989), em um seminário apresentado na clínica de La Borde a respeito da transferência, discorre acerca da mesma aposta. Apresenta a idéia de que supor o psicótico como um sujeito, supor que ele tenha inconsciente e desejo, supor que faça transferência são, antes de tudo, decisões éticas daqueles que o acompanham. Citando-o:

Me parece que o que está em questão (...) é que se não levarmos em conta os conceitos como o inconsciente, a transferência, a pulsão... se não levarmos em conta, mesmo implicitamente (...) escorregamos rapidamente para uma organização de serialidade, com uma hierarquia medonha e no fim das contas, uma organização concentracionária, mesmo se tentarmos retomar isto com as teorias da moda. Dizendo de outro modo, essas noções fazem parte de um arsenal conceitual, com a ajuda do qual podemos procurar separar o que há de mais específico em cada um e considerar cada indivíduo que está aí numa dimensão ética (que seja um imbecil, um idiota, um encefalopata, um gênio, etc): como uma pessoa, quer dizer, numa dimensão de unicidade, com um respeito absoluto. (p. 12)

Se me estendo na citação de Oury é para ressaltar que a aposta que se faz no psicótico como uma pessoa é uma aposta ética, algo que a psicanálise com seu arcabouço conceitual possibilita e exige, tanto quanto os pressupostos que deram origem a uma Reforma Psiquiátrica: que o outro seja sempre considerado em sua singularidade, quem quer que ele seja. Aqui, os conceitos psicanalíticos esbarram em uma dimensão política de concepção de sujeito e de mundo e se reaproximam da dimensão política da Reforma. E, talvez, não seja nada ruim percebê-las próximas naquilo que possibilitam de um engajamento ético e político, mais do que como “meros” dispositivos técnicos.

 

Referências

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Recebido em: 26/11/2004
Aceito em: 14/03/2005

 

 

1 Texto baseado em aula ministrada , como professora-convidada , para o módulo : “Atualidades no atendimento de psicóticos” do Curso de especialização em Psicopatologia do NAIPPE-USP , em setembro de 2004.
2 Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Endereço de consultório: Rua Sampaio Viana, 75, cj. 505, Paraíso, São Paulo, SP. CEP: 04004-000, Telefone: 3885-8755. Endereço Eletrônico: alemonachesi@uol.com.br
3 Ao escrever sobre o CAPS, procurarei referir-me às suas múltiplas facetas: o CAPS como idéia, como dispositivo, como tecnologia, como instituição e como produto de uma ética. Tais facetas serão esclarecidas ao longo do texto.
4 Mesmo que eu não tenha me detido em considerar o notável trabalho de tantos psicanalistas no campo da saúde mental, existente desde longa data, dado que isso desviaria por demais os caminhos que sigo nesta reflexão, tais consonâncias e aproximações podem ser claramente apontadas.
5 Para um maior aprofundamento nessa discussão, ver Ribeiro (2004) ou, dos autores citados, Aulagnier (1990), Calligaris (1989), Lacan (1956/1988), Waelhens (1995), além de, segundo um outro viés psicanalítico, Winnicott (1945, 1952, 1963, 1964, 1965), entre outros.
Tenho em mente os trabalhos do próprio Lacan (1956/1988), de Calligaris (1989), de Waelhens (1995) e, principalmente, de Aulagnier (1990), com os quais trabalhei de forma mais aprofundada em Ribeiro (2004).
6 Tenho em mente os trabalhos do próprio Lacan (1956/1988), de Calligaris (1989), de Waelhens (1995) e, principalmente, de Aulagnier (1990), com os quais trabalhei de forma mais aprofundada em Ribeiro (2004).