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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.17 n.1 São Paulo mar. 2006

 

DOSSIÊ: PSICOLOGIA E IDEOLOGIA - O PRECONCEITO RACIAL

 

Apresentação

 

 

Maria Helena Souza Patto

Instituto de Psicologia &– Universidade de São Paulo

 

 


 

 

Os temas dos artigos que se seguem são diversos e tomaram forma a partir de reflexão sobre as explicações hegemônicas do fracasso escolar que as autoras compartilharam como alunas de uma disciplina de Pós-Graduação, em 2003.1 Todos eles estão atentos à determinação histórica do conhecimento produzido pela Psicologia e pensam a dominação nas sociedades de classes. Por isso, todos tratam explicita ou implicitamente da relação entre Ciência e ideologia e da justificação da desigualdade social por discursos que se apresentam como politicamente neutros, embora façam parte dos instrumentos de exercício do poder numa sociedade dividida, desigual e injusta.

Entre as concepções inaugurais da Psicologia, apropriadas de modo muito particular pelos intelectuais brasileiros, as teorias raciais importadas da Europa no final do século XIX tiveram lugar fundamental na constituição do pensamento hegemônico nacional. Entender a natureza destas teorias como parte constitutiva do conhecimento científico dominante nas ciências humanas daquela época, requer o estudo da história social das idéias. Sobre a presença brasileira das teorias raciais, uma das referências bibliográficas fundamentais da referida disciplina de pós-graduação é O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil, 1870-1930, de Lílian M. Schwarcz (1993).

Na virada daquele século, os nossos auto-denominados “homens de sciencia” assumiram missão de pensar saídas para o progresso da Nação. Para tanto, muniram-se de alguns instrumentos intelectuais de prestígio em seu tempo, entre os quais o conceito de raça ocupava um lugar central. No interior do entendimento das desigualdades sociais inerentes às relações de produção como simples resultado de diferenças raciais intra e internacionais, aderiram à tese, então em voga, da superioridade biológica dos brancos e da degeneração dos mestiços. Esta adesão trouxe, sem dúvida, problemas aos que queriam pensar saídas para um país negro e mestiço &– o que exigiu contorcionismos teóricos para ajustar as versões darwinista social e evolucionista das teorias raciais aos interesses econômicos da classe dominante brasileira que não mais se interessava pelo modo de produção escravista. Estes ajustes teóricos são assim resumidos por Schwarcz (1993):

Do darwinismo social adotou-se o suposto da diferença entre as raças e sua natural hierarquia, sem que se problematizassem as implicações negativas da miscigenação. Das máximas do evolucionismo social sublinhou-se a noção de que as raças humanas não permaneciam estacionadas, mas em constante evolução e “aperfeiçoamento”, obliterando-se a idéia de que a humanidade era uma. Buscavam-se, portanto, em teorias formalmente excludentes, usos e decorrências inusitados e paralelos, transformando modelos de difícil aceitação local em teorias de sucesso. (p. 18)

Foram tempos da frenologia, que associava formas do crânio com predisposição à loucura e à criminalidade. Pouco depois, da antropometria, criada pelo antropólogo e psiquiatra italiano Cesare Lombroso como parte de uma nova ciência, a Antropologia Criminal, em busca de sinais de predisposição à loucura e ao crime que permitissem a prevenção por meio da análise minuciosa de formas e dimensões de partes do corpo.

No perfil dos perigosos à ordem social, porque tendentes à anormalidade psíquica, o biótipo do negro predominou no período que se sucedeu à abolição da escravatura, no qual levas de ex-escravos perambulavam pelas estradas e dirigiam-se às cidades maiores em busca de sobrevivência. A partir dos grandes movimentos populares e operários, o biótipo do imigrante passou a ser objeto do olhar de cientistas portadores de instrumentos métricos do corpo e da alma, precursores dos testes psicológicos. Por tudo isto, Eric Hobsbawm afirma que essas teorias fizeram parte não da ciência, mas da política do século XIX, pois se instituíram como instrumentos de dominação da sociedade a serviço do capital.

Aprofundar esta linha de reflexão exige a definição de um outro conceito: o de ideologia. Entre as várias concepções existentes, o entendimento materialista histórico, tal como trabalhado por Marilena Chauí em O que é Ideologia e em Cultura e Democracia: o Discurso Competente e Outras Falas, é a outra linha de sustentação teórica do curso. Assim, nos textos reunidos neste dossiê, entende-se por ideologia, explicita ou implicitamente,

um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir das divisões na esfera da produção. Pelo contrário, a função da ideologia é a de apagar as diferenças como de classes e de fornecer aos membros da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nação, ou o Estado. (Chauí, 1981b, pp. 113-114)

Ideologia, nesse contexto teórico, é “um conjunto de idéias que mascaram o real ao se referirem exclusivamente, e de modo convincente, às suas manifestações mais visíveis a olhos distraídos”, como eu já disse em outro lugar. Trata-se, portanto, de uma maneira de fazer ciência colada ao senso comum. Ancoradas nas primeiras camadas do real, as concepções ideológicas de homem e de sociedade dificultam a atitude reflexiva que estranha o que é tido como “dado”, pois naturalizam relações de poder construídas historicamente. Por isso, a ideologia é feita de abstrações e inversões. Na abstração o conhecimento da realidade coincide com o que se oferece à experiências imediata, sem atenção à mediaticidade. Neste sentido, o que aparece como empiricamente “dado” é abstrato, pois desconsidera seus determinantes concretos. Na inversão, o efeito é tomado como causa; é assim, por exemplo, que o resultado baixo em testes de inteligência que requerem conhecimentos escolares é tomado como causa do baixo rendimento escolar. Neste sentido, um texto de Ecléa Bosi, A opinião e o estereótipo, é o terceiro ponto de apoio da disciplina cursada pelas autoras. É nesse escrito que Bosi resume, com propriedade rara na área da Psicologia, a essência do conhecimento ideológico como produtor de reconhecimento-desconhecimento: “O mundo é opaco para a consciência ingênua que se detém nas primeiras camadas do real. A opinião afasta a estranheza entre o sujeito e a realidade. A pessoa já não se espanta com nada, vive na opacidade das certezas” (Bosi, 1992, p. 116).

Os três textos mencionados dizem, cada um a seu modo, do caráter lacunar do discurso ideológico e da força que ele tem, exatamente por conter lacunas, por omitir exatamente o que lhe dá existência. Esta característica das idéias ideológicas encontra formulação preciosa na seguinte passagem de Cultura e Democracia:

O discurso ideológico é um discurso feito de espaços em branco, como uma frase em que houvesse lacunas. A coerência desse discurso (o fato de que se mantenha como uma lógica coerente e que exerça um poder sobre os sujeitos sociais e políticos) não é uma coerência nem um poder obtidos malgrado as lacunas, malgrado os espaços em branco, malgrado o que fica oculto; ao contrário, é graças aos brancos, graças às lacunas entre as suas partes, que esse discurso se apresenta como coerente. Em suma, é porque não diz tudo e não pode dizer tudo que o discurso ideológico é coerente e poderoso. Assim, a tentativa de preencher os brancos do discurso ideológico e suas lacunas não nos levaria a “corrigir” os enganos ou as fraudes desse discurso e transformá-lo em discurso verdadeiro. É fundamental admitirmos que se tentarmos o preenchimento do branco ou da lacuna, não vamos transformar a ideologia “ruim” numa ideologia “boa”: vamos simplesmente destruir o discurso ideológico, porque tiraremos dele a condição sine qua non de sua existência e força. O discurso ideológico se sustenta, justamente, porque não pode dizer até o fim aquilo que pretende dizer. Se o disser, se preencher todas as lacunas, ele se autodestrói como ideologia. A força do discurso ideológico provém de uma lógica que poderíamos chamar de lógica da lacuna, lógica do branco. (Chauí, 1981a, pp. 21-22, grifos do autor)

Num mundo que cultua a cientificidade como única forma válida de produção de saber, o conhecimento científico é tido como o único verdadeiro e os que o produzem são considerados os únicos autorizados a dizer. É por esta via que, segundo Chauí (1981a), citando Claude Lefort (1977),

o homem passa a relacionar-se com seu trabalho pela mediação do discurso da tecnologia, a relacionar-se com o desejo pela mediação do discurso da sexologia, a relacionar-se com a alimentação pela mediação do discurso dietético, a relacionar-se com a criança por meio do discurso pedagógico e pediátrico, com o lactante, por meio do discurso da puericultura, com a natureza, pela mediação do discurso ecológico, com os demais homens, por meio do discurso da psicologia e da sociologia. Em uma palavra: o homem passa a relacionar-se com a vida, com seu corpo, com a natureza e com os demais seres humanos através de mil pequenos modelos científicos nos quais a dimensão propriamente humana da experiência desapareceu. (p. 12)

O discurso competente adquire, assim, estatuto de conhecimento verdadeiro e legítimo que produz, por complementaridade, os “incompetentes”, a quem se nega autoridade para falar. É assim que se garante, no plano das idéias, a reprodução de um estado de coisas injusto que só interessa a quem se beneficia dele. Os produtores e/ou porta-vozes da ideologia falam sobre os oprimidos e, assim, silenciam a fala dos oprimidos, uma forma poderosa de exercício do poder. É por isso que Chauí (1981a) dispara: “Talvez tenha chegado a hora da heresia. A ciência é o ópio do povo” (p. 83).

Embora as teorias raciais tenham perdido credibilidade e adeptos no campo científico, elas foram substituídas por teses culturalistas de caráter funcionalista, também dotadas de caráter ideológico porque conservam uma concepção naturalista de homem. Por isso mesmo, a influência do chamado “racismo científico” continua forte no imaginário técnico-científico e social. A crença de que pobres e não-brancos são inferiores intelectual e moralmente permanece viva, com maior ou menor sutileza, em teorias das ciências humanas.

Os artigos aqui reunidos abordam, a partir de vários ângulos, esta presença nos campos da Psicologia, da Educação, da Saúde e da Mídia, cenários de reprodução de concepções ideológicas que reiteram o preconceito social e racial, mas que encontram largo espaço de sustentação na crença da neutralidade da produção científica.

 

 

Referências

Bosi, E. (1992). Entre a opinião e o estereótipo. Novos Estudos CEBRAP, 32, 111-118.

Chauí, M. (1981a). Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas (9a ed.). São Paulo: Cortez.

Chauí, M. (1981b). O que é ideologia (6a ed.). São Paulo: Brasiliense.

Schwarcz, L. M. (1993). O espetáculo das raças: cientistas, instituições e a questão racial no Brasil &– 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras.

 

 

Recebido em: 24/03/2006
Aceito em: 3/04/2006

 

 

1 O fracasso escolar como objeto de estudo: uma visão histórica, disciplina do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, área de concentração: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano.