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Psicologia USP

versión On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.17 n.3 São Paulo sep. 2006

 

SOBRE SYLVIA LESER DE MELLO

 

Os processos de socialização e a família no trabalho de Sylvia Leser de Mello

 

Socialization processes and family in the work of Sylvia Leser de Mello

 

Les processus de socialisation et la famille dans le travail de Sylvia Leser de Mello

 

 

Belinda Mandelbaum1

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

Este artigo procura descrever os eixos principais do trabalho de Sylvia Leser de Mello como professora de Psicologia Social, pesquisadora dentro do campo de estudos dos processos de socialização, da família e do trabalho, e coordenadora da incubadora de cooperativas populares da Universidade de São Paulo. Atividades estas norteadas por relações com alunos e com trabalhadores que, a partir de um exame crítico das condições psicológicas de homens e mulheres em situações de dominação, pautam-se pela cooperação, pelo diálogo e por processos de aprendizagem mútua. Em seus estudos e pesquisas sobre os processos de socialização, Sylvia articula a cena social, a vida familiar e a subjetividade, recorrendo a conhecimentos advindos de todo o campo das Ciências Humanas. Seu trabalho com famílias consolidou-se na criação do Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP que, numa perspectiva transdisciplinar, integra em pesquisa, ensino e extensão professores e alunos de graduação e pós-graduação de diversas unidades da Universidade.

Palavras-chave: Sylvia Leser de Mello. Psicologia social. Socialização. Família. Trabalho.


ABSTRACT

This paper is an attempt to describe the main axis of Sylvia Leser de Mello´s work as Social Psychology teacher, researcher of socialization processes, family and work, and as coordinator of the incubator of popular cooperative enterprises of the University of São Paulo. All of these activities were oriented by relations to students and workers that, starting from a critical scrutiny of the psychological conditions of men and women in situations of domination, are regulated by cooperation, dialogue and processes of mutual learning. In her studies and researches about socialization processes, Sylvia articulates the social scene, family life and subjectivity, resorting to the whole Human Sciences knowledge. Her work with families was consolidated in the creation of the Laboratory of Familiy, Gender Relations and Sexuality Studies of the Department of Social and Work Psychology of the Psychology Institute of the University of São Paulo which, in a transdisciplinal perspective, integrates in research, teaching and extension a group of teachers and graduation and postgraduation students from various units of the University.

Keywords: Sylvia Leser de Mello. Social psychology. Socialization. Family. Labour.


RÉSUMÉ

Cet article presente les axes principales dans le travail de Sylvia Leser de Mello, comme professeur de Psychologie Social, rechercheur dans le champ d’études des processus de socialisation, de la famille et du travail, et aussi comme coordenatrice du Couveuse des Coopératives Populaires de l’Úniversité de São Paulo. Ces activités s’orientent a partir de son relations avec les étudiants et les ouvriers qui, en faisant une réflexion critique sur les conditions psychologiques des hommes et des femmes sous condition de domination,se réglent par la cooperation, pour le dialogue et les processus d’apprentissage réciproque. Dans ses études et recherches sur les processus de socialisation, Sylvia articule la scène social, la vie familiale et la subjectivité, en parcourrant les connaissances qui survint de tout le champ des Sciences Humaines.Son travail avec les familles s’afferme dans la création du Laboratoire des Études de la Famille, Relations de Genre et Sexualité qui appartient au Departement de Psychologie Social et du Travail de l’Université de São Paulo. Dans une perspective multidisciplinaire, ce laboratoire intégre, sous les axes de la recherche, enseignement et extension, professeurs et étudiants de graduation et post gradué, venu de différents unités de la université.

Mots-clés: Sylvia Leser de Mello. Psychologie social. Socialisation. Famille. Travail.


 

 

Durante os últimos meses de 1978, quando o Brasil iniciava o processo de abertura após os anos sombrios da ditadura militar, a professora Sylvia Leser de Mello lia em sala de aula, com seus alunos do segundo ano da graduação do curso de Psicologia, o livro Manicômios, Prisões e Conventos, de Erving Goffman (1974). O livro de Goffman é um estudo sociológico sobre o que acontece aos seres humanos e às interações entre eles quando confinados ao que ele chama de instituições totais - instituições tais como os manicômios, asilos, prisões e claustros religiosos, que regulam a totalidade da vida dos que dela fazem parte, excluindo-os da possibilidade de convívio em outras instituições ou com pessoas fora delas. Todos os que fazem parte da instituição devem se despojar de sua história anterior para entregar-se a um processo novo de formação da identidade, agora forjada pela própria instituição. Por meio da análise da vida vivida em instituições totais, Goffman permitia-nos falar de modo mais amplo sobre a formação da identidade e os processos de socialização próprios daquele momento histórico em que vivíamos, numa sociedade profundamente dividida e hierarquizada, tendo como sombra de nossas reflexões os acontecimentos que se sucediam no país sob a tutela do regime militar, que aniquilou vidas e pensamentos discordantes de uma ideologia hegemônica que buscara forjar para todos os brasileiros uma identidade de cunho nacionalista, patriótica, acomodada às injustiças sociais e acrítica.

Em sala de aula, no entanto, em consonância com a postura crítica que o texto de Goffman permitia-nos elaborar em relação a toda instituição que busca o controle dos indivíduos nas múltiplas facetas de suas vidas, a professora Sylvia Leser exercia uma pedagogia singular. Sua opção não era pelas aulas expositivas, nas quais passasse aos alunos praticamente recém-chegados à universidade sua visão do autor e das questões por ele trabalhadas. Sylvia exigia a leitura singular de cada aluno, sua reflexão pessoal trabalhada através da escrita. O fundamental não era o que ela tinha a dizer sobre o texto de Goffman, mas o que este texto suscitava em nós, obrigando-nos a pôr em palavras o que experimentávamos na leitura.

Muitos anos depois, em 2006, Sylvia deu-me para ler um artigo que escrevera para a Revista de Cultura e Extensão da USP, sobre o Programa de Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP) da Universidade. Agora, o contexto histórico e social era outro, e Sylvia coordenava este programa de extensão universitária do qual participam professores e alunos da USP, para incrementar propostas de trabalho autogestionário e de geração de renda com uma população marginalizada em relação às esferas do trabalho e do capital. Este programa de incubação de cooperativas populares teve início na USP em 1998 e Sylvia participa de sua coordenação desde o início. No cerne da relação que professores e alunos que fazem parte da Incubadora estabelecem com a população, ela propõe que esteja a cooperação. Não se trata, portanto, de uma relação hierarquizada, de cunho assistencialista ou iluminista, em que membros da universidade, que deteriam um suposto saber, ofereceriam-no à população que não sabe. Neste artigo, Sylvia diz:

também não tínhamos as respostas para os problemas que colocavam, problemas urgentes que transcendiam muito a nossa limitada e teórica formação acadêmica. Além disso, ficava muito nítido o processo de aprendizagem pelo qual passávamos mutuamente, os grupos populares e os membros da ITCP... O esforço da ITCP para fundamentar uma prática emancipatória parte da idéia de que todo processo educativo precisa estar assentado no conhecimento dos educandos, da realidade em que vivem e como a vivem. A construção desse conhecimento possui sentido duplo: conhecer os sujeitos com os quais trabalhamos e reconhecer que os sujeitos são portadores de conhecimentos que nós não possuímos. Assim, é possível estabelecer o princípio da pedagogia dialógica, ou seja, aquela que coloca o diálogo (a troca) como o centro do processo educativo, marcando as relações entre educador e educandos. (Mello, no prelo)

O modo de Sylvia ser professora, sua compreensão da pedagogia a ser realizada nas salas de aula da universidade, ela transportou para o trabalho de incubação das cooperativas populares. Sua inspiração, explicitamente enunciada no texto, está nas idéias do educador Paulo Freire, que tinha como motivo inicial de sua pedagogia “o compromisso com os oprimidos, ausente nas pedagogias tradicionais, criadas e praticadas pelos opressores. Pedagogias, portanto, da dominação e da reafirmação da dominação, estabelecendo muito claramente quem sabe e quem não sabe” (Mello, no prelo).

O exame crítico das condições psicológicas dos homens em situação de dominação é um fio condutor das investigações e reflexões de Sylvia Leser. Durante muitos anos, em sua disciplina de pós-graduação Problemas Humanos no Trabalho, ela leu com os alunos autores que denunciaram a opressão e a degradação dos homens pelo trabalho, a reificação e a alienação, a privação da liberdade, a ameaça de extermínio do pensamento e da ação criadora na sociedade industrial moderna - ou seja, todas aquelas situações em que os processos sociais apresentam uma dinâmica de violência, ao reduzir homens e mulheres a meros instrumentos, retirando deles sua própria condição de humanidade, isto é, a liberdade e a dignidade essenciais à manifestação da vida humana. Sylvia lia Marcuse, cujas análises constituem uma denúncia radical do quanto os homens podem ser atravessados por processos violentos de socialização. Para ele, toda subjetividade é atravessada pela ideologia dominante, e aquilo que consideramos como nossas necessidades mais pessoais, nossos desejos mais íntimos, seriam na verdade impostos a nós a partir de fora - dito de forma genérica, pelos interesses do capital. Para Marcuse (1979), mundo interno e mundo externo nestas condições se equiparam, não há mais aquilo que poderíamos chamar de vida interior, com liberdade para uma existência independente do mundo social administrado.

Sylvia, no entanto, preserva, no aprofundamento do estudo dos autores selecionados, a liberdade de dialogar com eles. Sua questão - uma questão central para a Psicologia Social e com a qual ela trabalha persistentemente - parece ser a da busca e fortalecimento do território pessoal de cada homem e mulher, no qual o melhor de cada um possa se desdobrar numa dialética que inclui resistência diante dos processos sociais mais violentos de alienação e desenvolvimento pessoal, com abertura para o social. Em seu trabalho de livre docência Trabalho e Sobrevivência: Mulheres do Campo e da Periferia de São Paulo (1988), em que se debruça de forma sensível sobre longos depoimentos de mulheres pobres, empregadas domésticas, a respeito do seu próprio trabalho e de suas condições de vida, ela conclui, ao final “A submissão é a herança incontestável das narradoras”. Mas também se pergunta:

É possível opor uma dúvida ao caráter absoluto da submissão? A fome, o trabalho, as ordens, as punições, o medo, a sujeição serão os únicos conteúdos das narrativas? Não há um vislumbre da individualidade das narradoras que se intromete, tímido, arranhando a superfície opaca de um destino coletivo de rebanho dócil?

E é ela própria quem responde, a partir do que recolheu nos depoimentos das mulheres:

Acredito que sim, e que é preciso pesar bem pesado o valor de uma explicação que reduz a subjetividade ao domínio da ideologia, que aí estaria livre para compor como quisesse os corpos dóceis e a homogeneidade do comportamento. Porque nenhuma das mulheres, que me ajudaram a alinhavar esta narrativa das suas narrativas, permitir-me-ia supor que elas são cegas ou surdas aos conflitos que dilaceram suas vidas, nem mesmo supor que apenas vivam os conflitos e não reflitam sobre eles, que não saibam onde localizá-los. (Mello, 1988, p. 186)

A busca da expressão individual, do saber de cada um, como um fio condutor: em sala de aula, na formação de cooperativas, na escuta das narrativas das mulheres pobres da Vila Helena, trabalhando sempre na tensão da consciência da opressão com a esperança de encontrar a liberdade.

Para aprofundar o exame desta tensão, Sylvia também recorre à literatura, propondo-a como instrumento privilegiado de auxílio à Psicologia Social. A literatura é trabalhada por ela com o objetivo de que emerjam elementos para a interpretação dos fenômenos que presidem a formação da subjetividade. Em outro de seus cursos na pós-graduação, Sylvia elegeu um autor, Kafka, que expressou em letra o espírito da vida na sociedade administrada de nossos tempos. Por meio da obra de Kafka, Sylvia põe seus alunos em contato com os conflitos dos homens no século XX, dentro da família, do mundo do trabalho, da vida na sociedade burguesa. Sua disciplina tem o sugestivo nome de Ação e Submissão: a Ambigüidade na Experiência de Franz Kafka, que nos permite pensar a própria escrita de Kafka como ação - termo que Sylvia empresta de Hannah Arendt - em seu sentido político, o da “ação individual, cheia de sentido e de conhecimento, voltada para o mundo comum, criado e mantido conscientemente pelos homens” (Mello, 1988, p. 19). A literatura aqui é tratada como espaço de ação individual, de expressão da subjetividade singular, ao mesmo tempo em que expõe as condições de submissão que tanto impelem como impossibilitam esta expressão.

A opção por Kafka no campo literário ilustra a particular compreensão que Sylvia tem dos processos de socialização inerentes à realização dos homens. Sob o conceito de socialização englobam-se os múltiplos modos de compreender esse incrível fenômeno pelo qual crianças, homens e mulheres formam para si com os outros um tecido de comportamentos, atitudes e visões de mundo que os inserem no interior da vida em sociedade, ao mesmo tempo que permite a cada uma destas crianças, homens e mulheres se constituírem em território singulares nos quais essa vida social se realiza. Como moeda de dupla face, o tecido coletivo ganha expressão na tessitura singular de cada pessoa que, por sua vez, se torna território expressivo e atuante do grupo social mais amplo. Kafka, à sua maneira, como Goffman, põe de manifesto a violência que está implicada na forma singular que se manifesta neste urdir de entrelaçamentos dos quais resulta o que somos. Uma violência que ecoa para Sylvia em diversos níveis ou substratos de uma topografia que vincula a cena social manifesta, a vida familiar e a subjetividade de cada um. Violência que pode ser reconhecida na alienação e estranhamento de cada um consigo próprio e do social com os grupos humanos que o constituem.

As questões que Sylvia privilegia em sala de aula exibem, antes de tudo, o seu esforço por privilegiar uma leitura crítica de todo este estranho e gigantesco campo de estudos da socialização. Não se trata tanto de privilegiar um ou outro autor, não se trata tanto de criticar uma ou outra visão, mas de despertar, diríamos com urgência, um espírito crítico fundante diante dos processos de vir a ser de cada um. Poderíamos dizer que sua ação como professora, mais do que pôr novos conhecimentos ao alcance de alunos na sala de aula ou de trabalhadores nas cooperativas, é atuar no sentido de suscitar um desdobrar de cada um, mobilizando todo o processo identitário dos implicados, no sentido de virem a assumir uma nova configuração &– os alunos como psicólogos e os trabalhadores a partir de novos modos de conceberem e realizarem o seu trabalho. E para esta ação ela convoca, sem privilégio exclusivo, tanto diferentes campos do saber &– a Psicologia Social, a Psicanálise, a Educação, as Ciências Sociais, a Antropologia, a História, a Literatura &–, quanto diversos procedimentos de pesquisa &– a entrevista, a observação participante, o trabalho com grupos, o debate, a análise de discurso, a clínica social, entre outros &–, com a finalidade de permitir a revelação das brechas por onde seja possível superar os limites do tecido individual e social dos implicados. Para ela, a socialização é um processo contínuo, que se dá em todas as esferas da vida e, por isto, seu campo de estudos e de trabalho levou fortemente em consideração o campo da socialização de adultos. Talvez mais do que se perguntar sobre as origens do modo como chegamos a nos constituir, território privilegiado do campo de estudos da socialização, da educação e do desenvolvimento infantil, Sylvia se lança atrás da tentativa de superar os sólidos limites do que somos, das ideologias que nos constituem, do nosso modo de nos inserirmos no mundo do trabalho e de uma sociabilidade mais ampla. E é neste sentido que seu trabalho se aloca num território utópico, ou melhor, transfere a atividade prática do ensino e do trabalho para esse território, porque o que é ela aborda de forma a vir a ser, num movimento de superação das forças de alienação que suportam e tencionam a trama que nos constitui. E mais do que à procura de formular uma técnica de socialização mais adequada, isto é, menos violenta na operação de integrar uma identidade profissional, seja dos alunos ou dos trabalhadores, Sylvia privilegia a reflexão, uma reflexão cujo foco incida ao longo de toda essa ampla topografia que abarca a dinâmica social, os textos selecionados e a própria história pessoal de cada um. Daí Kafka, cuja leitura permite a simultaneidade da visão bifocal do coletivo e do singular, da estrutura social e da biografia pessoal, da objetividade e da subjetividade, do externo e do interno, do outro e do eu, do macro e do microssocial. Se Sylvia entrelaça utopia com realidade, entrelaça também, em sua atividade como professora, a formação de seus alunos com suas histórias pessoais e as realidades sociais mais amplas, deixando surgir assim um estudo da Psicologia que é, também, um refazer de cada um em torno da urgência de um refazer do tecido social que supere os violentos limites que dele fazem parte.

Com o mesmo olhar bifocal que leva em consideração simultaneamente as estruturas macro-sociais e os homens que as constituem - olhar voltado para o amplo espectro de instituições sociais nos quais se fazem os processos contínuos de socialização -, Sylvia debruçou-se, em seus trabalhos de ensino e pesquisa, sobre a família. Em seu artigo “Família, uma incógnita familiar” (Mello, 2002), ela demanda este olhar, se quisermos compreender algo das organizações familiares: “Retirar a família de seu isolamento, colocá-la na história, tratá-la como instituição cujas raízes sociais são inequívocas, compreendê-la aí dentro e, ao mesmo tempo, reconhecer o âmbito da intimidade e a formação da subjetividade é tarefa complexa” (p. 16). Sylvia enfrenta a tarefa com entusiasmo intelectual, recolhendo de suas leituras da História, da Sociologia, da Antropologia, da Psicanálise elementos para compreender esta complexa instituição. Ela assim justifica o empenho de entretecer estes saberes:

Ambas as modalidades de conhecimento são importantes. Sem a perspectiva macro-social, seja histórica, antropológica ou sociológica, corremos sempre o risco de hipostasiar formas momentâneas, ou pelo menos não-eternas, de organização, quer do parentesco quer da sexualidade e do casamento. Desde Freud, a psicanálise se aproveita desses conhecimentos colocando-os em nova chave.... A psicanálise chega aos sujeitos, ou seja, dá o passo seguinte que é transformar os protagonistas culturais em sujeitos únicos, psicológicos, analisando seus conflitos com a cultura e os reflexos deles que se manifestam nas transformações das relações sociais. (p. 16)

Com liberdade de ir e vir nos caminhos que vão do macro ao micro, da cultura ao homem, Sylvia refletiu sobre a família como agente socializador por excelência, núcleo humano em que nascemos e que nos introduz numa língua, numa cultura, numa dinâmica complexa de relações humanas. A família é a primeira intermediária de nossas relações com o mundo, mas também um obstáculo potente a essas relações. Os trabalhos de Sylvia com trabalhadores, seja em sua pesquisa com as mulheres da Vila Helena ou na incubadora de cooperativas populares, nos permitem ver com clareza que os processos de socialização que se dão no interior da família nunca estão desvinculados do conjunto maior dos processos contínuos de socialização que se dão na vida social mais ampla, particularmente na esfera do trabalho. Para as mulheres da Vila Helena, empregadas domésticas oprimidas e exauridas por seu infindável cotidiano de labuta, esta só tem sentido, segundo Sylvia, porque possibilita, por meio do parco salário, a sobrevivência delas e de suas famílias, de seus filhos. E é na família, na família de origem, que estas mulheres aprenderam a trabalhar. As mulheres da Vila Helena desde cedo foram para a roça ou trabalharam em casas de família, na dos outros ou na própria. É na família que aprenderam este modo opressivo, extenuante, de viver, que se vêem obrigadas a reproduzir na vida adulta. Adorno e Horkheimer (1973) mostraram como, na sociedade burguesa, a família serve à reprodução de homens moldados para as relações de trabalho próprias do sistema de exploração capitalista. É a partir da submissão incontestável à autoridade paterna que os homens aprenderiam a ser empregados submetidos docilmente aos seus patrões. Sylvia cita estes autores: “Só a família podia fazer surgir nos indivíduos a identificação com a autoridade, idealizada como ética do trabalho, que substituiu funcionalmente o poderio imediato sobre os servos da precedente época feudal” (Mello, 2002, p. 21). Adorno e Horkheimer integram a teoria marxista e a teoria psicanalítica para compreender o impacto, na vida psíquica, das formas de relação entre os homens próprias da sociedade capitalista. Em seus trabalhos com famílias, Sylvia também trabalha entretecendo saberes e metodologias para compreender as transformações por que passam as famílias brasileiras. Diz ela: “Nesse processo comparativo e de cruzamento de referências, presta-se às mais sérias discussões o modelo da família burguesa em comparação aos modos como ela pôde se organizar no Brasil, seja no passado, seja no agora” (Mello, 2002, p. 23).

Pensar a família, as relações de gênero e a sexualidade no Brasil, hoje, e o impacto de suas transformações, tornou-se para Sylvia um programa de ação que ganhou corpo e espaço quando, em 1993, ela criou, dentro do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, o Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade (LEFAM). Seu objetivo era desenvolver estudos e pesquisas que propiciassem aos alunos de graduação e pós-graduação oportunidades de trabalho com professores, psicólogos e outros profissionais que, numa perspectiva transdisciplinar, tratam das problemáticas da família, do gênero e da sexualidade em seus contextos psicossociais. O Laboratório, desde o início, abrigou a formação do NEPAIDS, Núcleo de Estudos e Pesquisas em Prevenção à AIDS, coordenado pela Professora Vera Paiva, que desenvolve trabalhos de pesquisa, formação e assistência voltadas para os temas da sexualidade, relações de gênero e AIDS numa perspectiva psicossocial.

Desde a sua criação, o LEFAM vem sendo um pólo de aglutinação de pesquisas que envolvem famílias em suas relações com o mundo do trabalho, com os processos de socialização e com outras instituições sociais, tais como a escola e o poder judiciário - pesquisas essas que se desdobraram em dissertações de mestrado, teses de doutorado, simpósios e intercâmbios com outras instituições. Suas linhas de pesquisa abarcam formas de intervenção junto a famílias em contextos sociais diversificados, visando ao atendimento psicossocial de grupos familiares que vivem situações de instabilidade e sofrimento. Para tanto, os projetos de pesquisa do Laboratório têm investigado diversas formas de atendimento a famílias, em diferentes instituições e espaços sociais. Na formulação de seus objetivos, Sylvia pensou um laboratório de Psicologia Social que se constituísse como um amplo guarda-chuva para acolher diversas linhas de pesquisa e assistência a famílias, propiciando, ao mesmo tempo, o aprimoramento das formas de intervenção, a verificação de sua aplicabilidade e o cotejamento entre diferentes modos de abordar e intervir em contextos diversificados, buscando a eficácia dessas intervenções, além da emergência de situações de pesquisa teórica, de formação de alunos e de trabalhadores da área da saúde. Como parte deste plano, foram realizados alguns trabalhos. Uma pesquisa sobre o impacto do desemprego na dinâmica familiar, que envolveu o atendimento a famílias pobres, de trabalhadores desempregados, no Centro de Referência em Saúde do Trabalhador da Freguesia do Ó,2 trabalho realizado em parceria com este Centro, que envolveu também diversos profissionais daquela instituição. Um projeto de cultura e extensão da USP, pelo qual alunos de graduação em Psicologia atenderam, com supervisão do laboratório, famílias cujos filhos vivem num abrigo da Prefeitura, no bairro do Butantã. O objetivo do atendimento conjunto dos familiares e da criança abrigada foi o de melhorar a qualidade dos vínculos entre eles e investigar junto às famílias suas possibilidades e limites para o retorno da criança à casa, já que o abrigo funciona como instituição de acolhimento temporário, até que a família possa se organizar para voltar a acolher os filhos. Em outro projeto de cultura e extensão, alunos de graduação trabalharam na Casa do Migrante, junto a famílias de imigrantes latino-americanos, com o objetivo de oferecer um espaço de acolhimento e escuta a famílias num momento de difícil transição entre os seus países de origem e a nova realidade com que se defrontam na cidade de São Paulo. As famílias foram atendidas na própria instituição em que vivem, num processo breve de cinco encontros que trouxe elementos muito significativos para a investigação das dinâmicas familiares mobilizadas pelo movimento migratório.

O NEPAIDS tem, desde o início, atuado no campo da prevenção e do cuidado em relação a AIDS, buscando descrever a vida cotidiana e a experiência dos jovens com a sexualidade, a saúde sexual e reprodutiva, incluindo a gravidez não planejada e o uso de drogas. Atua em equipes multidisciplinares junto a serviços de saúde, em escolas públicas e universidades, na FEBEM e em comunidades pobres. Entre adultos, trabalhou com grupos de presos, motoristas de caminhão e com a comunidade homossexual. Entre crianças, abordou as experiências e os desafios do cuidado às crianças portadoras de AIDS e o impacto sobre os órfãos de pais aidéticos.

Pode-se ver assim como o amplo plano de pesquisas, inicialmente concebido, tem se caracterizado por um desdobrar contínuo, a partir de um núcleo inicial que, aos poucos, foi absorvendo e sendo transformado por novas intervenções que, no processo, são estruturadas e realizadas, com a intenção de constituir um conjunto de situações de atendimento diversas o suficiente para oferecer um campo de debates crítico-comparativos, ricos para a produção de reflexões teóricas que visem a um melhor entendimento do trabalho com famílias e relações de gênero, em diferentes situações e contextos institucionais.

Como parte deste processo contínuo de reflexão e desdobramento de novas possibilidades de intervenção, a Profa. Sylvia e eu3 passamos a oferecer aos alunos de graduação, a partir de 2001, uma disciplina optativa intitulada Família: abordagens psicossociais e psicanalíticas. Esta disciplina tem como um de seus objetivos centrais o desenvolvimento de uma compreensão ampla da família que integre conhecimentos advindos das Ciências Sociais, da Demografia, da História, da Antropologia, da Economia, da Psicanálise e da Psicologia Social. Na parte prática, os alunos são envolvidos em estágios que incluem atendimentos psicológicos a famílias e casais, bem como trabalhos institucionais em creches, escolas, varas de família, juizados especiais de família etc., tendo como foco de atenção e acompanhamento o trabalho realizado com famílias nessas instituições Vale a pena salientar que, como resultado das atividades desta disciplina, tem-se fortalecido uma demanda cada vez maior de intervenção em diferentes instituições, bem como de atendimento a famílias e casais, o que sugere fortemente que este trabalho tem um lugar legítimo no processo de desenvolvimento das atividades de ensino e pesquisa do Instituto de Psicologia, isto é, encontra-se amparado pelo trabalho que o antecedeu e pelas expectativas de continuidade e aperfeiçoamento que já estão colocadas. Assim, vinculado a esta disciplina, criou-se em 2006, no Instituto de Psicologia, um Serviço de Atendimento a Famílias e Casais que se pretende ampliar num futuro próximo, de maneira a poder realizar atendimentos durante todo o ano, com alunos e profissionais em especialização, desvinculando-se esse serviço do estágio obrigatório da disciplina. Além disso, o Laboratório presta assessoria às equipes técnicas das creches do campus da USP, tendo como foco as dificuldades nas relações creches/famílias, e mantém um grupo de estudos sobre a família, aberto a alunos e profissionais interessados no tema.

Com a implantação de um projeto de pesquisas e estudos assim concebido, o Laboratório buscou, desde a sua criação, contribuir de modo efetivo para o desdobramento da função tríplice da universidade: estender sua ação à comunidade, realizar pesquisas e formar alunos de graduação e pós-graduação. Na formação dos alunos, o Laboratório tem propiciado, para além de um contato mais direto com a nossa difícil realidade, a ocasião para desenvolver uma escuta e uma compreensão dos limites e possibilidades de aplicação e/ou criação prática de diversas formas de intervenção psicossocial. Se a Psicologia Social deve ter como preocupação realizar as pontes entre as diversas teorias e a realidade dos homens, torna-se importante um espaço aberto, na formação dos alunos, para um campo que integre teoria e prática, textos e vivências que se entrelacem na compreensão da realidade - campo por excelência da Psicologia Social.

Com tudo o que dissemos, fica claro que lidar com a socialização em seus diferentes processos, agentes e lugares institucionais é, ao mesmo tempo, estudo e prática, conhecimento da realidade e tentativa de transformá-la. Sylvia parece não se satisfazer apenas com compreender como as coisas se dão no terreno da socialização, mas mantém-se sempre alerta à imperativa demanda que o estado de coisas do país suscita, lançando-se sempre na direção de construir territórios que contribuam para introduzir no campo da cidadania plena a gigantesca multidão de homens e mulheres que, como resultado do violento processo histórico-cultural de construção do modo de ser brasileiro, foram desapropriados das condições para participar com dignidade no interior de nosso tecido social.

 

Referências

Adorno, T., & Horkheimer, M. (1973). Família. In Intitut Fur Sozialforschung, Temas básicos de sociologia (pp. 132-150). São Paulo: Cultrix.        [ Links ]

Goffman, E. (1974). Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva.        [ Links ]

Marcuse, H. (1979). A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar.        [ Links ]

Mello, S. L. (1988). Trabalho e sobrevivência: mulheres do campo e da periferia de São Paulo. São Paulo: Ática.        [ Links ]

Mello, S. L. (2002). Família, uma incógnita familiar. In M. L. Agostinho & T. M. Sanchez (Orgs.), Família: conflitos, reflexões e intervenções (pp. 15-25). São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Mello, S. L. (no prelo). Programa de Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade de São Paulo: história, reflexões e práticas. Revista de Cultura e Extensão.        [ Links ]

 

 

Recebido em: 4/12/2006
Aceito em: 13/12/2006

 

 

1 Docente do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Agradeço à Profa. Maria Helena Souza Patto pela leitura atenta e suas inúmeras sugestões. Endereço eletrônico: belmande@usp.br
2 A síntese dos achados desta pesquisa constitui a minha tese de doutorado, O Desemprego em Situação: Esboços de Estruturação de uma Clínica Social, defendida em maio de 2004, sob a orientação de Sylvia Leser de Mello
3 Desde o início desta atividade contamos, nas atividades de ensino e supervisão, com a colaboração de Sidney Shine, psicólogo do Poder Judiciário e doutorando do Instituto de Psicologia da USP.