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Psicologia USP

On-line version ISSN 1678-5177

Psicol. USP vol.17 no.3 São Paulo Sept. 2006

 

SOBRE SYLVIA LESER DE MELLO

 

Sylvia Leser orientadora - um muito de possível1

 

Syilvia Leser as thesis director − a lot of possibilities

 

Sylvia Leser comme directrice de thèse − beaucoup de possibilités

 

 

Heliana de Barros Conde Rodrigues2

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

O “muito de possível” − epistemológico, ético, estético e político − implicado na relação com Sylvia Leser como orientadora é sugerido no texto por meio do relato de memórias da autora, bem como da transcrição de parte de sua tese de doutorado intitulada “No rastro dos ‘cavalos do diabo’: memória e história para uma reinvenção de percursos do paradigma do grupalismo-institucionalismo no Brasil”, defendida em 2002, no Instituto de Psicologia da USP. Nesse intuito, foi utilizado um andamento de inspiração musical − atrever-se, conviver, escrever, ouvir e ler, prolongar −, capaz de se aproximar minimamente da oralidade, marca singular do vínculo de afeto-pensamento entre orientador e orientando.

Palavras-chave: Sylvia Leser de Mello. Orientador. História oral.


ABSTRACT

The epistemological, ethical, aesthetic and political possibilities that are present in the relationship with Sylvia Leser as thesis director are suggested in the text through the narration of some author’s souvenirs and the transcription of some sections of her doctorate’s thesis titled “In the track of the ‘devil’s horses’: memory and history for a re-invention of the paradigm routes related to grouping-institutionalization in Brazil”, defended in 2002 at Instituto de Psicologia da USP. With this aim, the style adopted is inspired in the musical tempo − to dare, to live together, to write, to hear and to read, to prolong −, which is partially able to approach orality, a singular characteristic of the affection-and-thought link between thesis director and student.

Keywords: Sylvia Leser de Mello. Thesis direction. Oral history.


RÉSUMÉ

Le ‘beaucoup de possibilités’ − épistémologique, éthique, esthétique et politique − impliqué dans la relation avec Sylvia Leser comme directrice de thèse est suggéré dans le texte au travers de la narration des souvenirs de l’auteur et de la transcription de part de sa thèse de doctorat nommée “À la trace des ‘chevaux du diable’: mémoire et histoire pour une reinvention des parcours du paradigme du grupalisme-institucionalisme au Brésil”, soutenue en 2002 à l’Instituto de Psicologia da USP. Dans cette direction, on a utilisé un mouvement d’inspiration musical − oser, vivre ensemble, écrire, écouter et lire, prolonger −, capable de s’approcher quelque peu d’oralité, marque singulière du lien d’affection-et-pensée entre directrice de thèse et thésard.

Mots-clés: Sylvia Leser de Mello. Direction de thèse. Histoire orale.


 

 

1. Atrever-se

Quando me dirigi ao campus da USP, naquele impreciso dia de 1996, não a conhecia. É claro que havia lido com entusiasmo Psicologia e Profissão em São Paulo e, mais recentemente, Trabalho e sobrevivência. Porém textos e pessoas não autorizam correspondências biunívocas, e eu estava inquieta − tantas pessoas, hoje, prefiro... em texto!!!! Era uma defesa de tese de doutorado acerca da formação de psicólogos, que Sylvia orientara. Lá pelas tantas, um dos integrantes da banca critica a doutoranda, alegando ser ela excesivamente severa com os formadores (professores, supervisores, orientadores): a experiência do examinador teria sido inteiramente distinta (porque libertária, analítica, crítica) da focalizada na tese (individualizante, privatizante, disciplinadora). Nesse momento, com o admirável ar indignado porém nada raivoso que eu viria a conhecer mais de perto desde então, Sylvia rompe o protocolo e diz sem alarde, à moda de uma observação ocasional, porém em tom audível: “Sorte sua!”.

Atrevida! − pensei. Sim, deliciosamente atrevida, daí minha coragem de entregar-lhe um antigo (e enorme) projeto, que eu abandonara porque inútil, após sua “qualificação” no mestrado. Ele me fora exigido − “É preciso explicar à banca o que é a Análise Institucional”, disseram-me então − e constituía um “elefante branco” destinado unicamente a provar que eu “dominava o tema ao qual me propunha”. Servia agora, ao menos, para explicar o que seria a tal “Análise Institucional” (AI) à qual voltava minhas pesquisas de cunho histórico3. No mestrado, escrevera uma História da Análise Institucional na França. No doutorado, pretendia abordar a trajetória brasileira da AI, ou melhor, do “grupalismo-institucionalismo”. Nada mais “bem encaminhado”, “carreirista” e adequadamente “seqüencial” se poderia esperar de um professor aspirante a doutorando. Exatamente por tudo isso, eu estava triste. Mas ela era “atrevida” e, assim, ... quem sabe?

Em 1997, ingressei no doutorado da USP. Orientadora: Sylvia Leser de Mello. Até aí, nada demais, a não ser...

 

2. Conviver

Ela jamais pretendeu determinar as disciplinas que eu poderia/deveria cursar. Não exigiu assinar, junto comigo, aquilo que eu porventura escrevesse − moda das atuais "orientações-crédito"... que tristeza!!! Em nada se preocupava com o fato de que minhas andanças acadêmicas tivessem, ou não, estrito enquadramento em áreas consagradas pelas agências de fomento. Presenteou-me sempre com uma imprescindível bibliografia: Lima Barreto, Nathaniel Hawthorne e, é claro, Kafka... Apaixonou-se de graça pelo que fazíamos em termos de História da Psicologia no Rio de Janeiro e lá falou, emocionada, acerca do “silêncio da Psicologia sobre os inocentes” (Mello, 2001). Surpreendia-se com a imensidão de comprovações que minha bolsa PICDT-CAPES exigia, mas sempre preencheu os formulários com abnegada paciência. E me falava de sonoridades, jamais de consagrações − acerca de Foucault, sabido objeto de minha paixão, dizia: “Não me esqueço da voz dele, aqui, na USP”. Há tantos e decerto eventualmente cansativos anos na Universidade, acompanhava minhas errâncias pelos caminhos da oralidade em história com a curiosidade de uma primeira vez. Em suas aulas, quando eu, com a impertinência da aluna que prazerosamente tornava a ser, ironizava o Freud de “Mal-estar na civilização”, dizendo-o o “Adam Smith da libido”, olhava-me com um rosto severo que sabidamente velava o riso. E o quanto prezava as risadas, sábia, cônscia de que a presunção dos “sérios” em nada favorece o exercício do pensamento. Irritava-se com meu prazer infantil em olhar as tartaruguinhas a deslizar pelo tanque dos experimentadores, antecipando-lhes os eventuais sofrimentos − partidária, com certeza, da advertência de Simondon (1958):

A máquina é apenas um meio; o fim é a conquista da natureza, a domesticação das forças naturais através de uma sujeição primeira, a máquina é um escravo que serve para fazer outros escravos. Tal inspiração dominadora e escravagista pode ir ao encontro de uma exigência de liberdade para o homem. Mas é difícil libertar-se transferindo a escravidão para outros seres, homens, animais ou máquinas; reinar sobre um povo de máquinas subjugando o mundo inteiro, ainda é reinar, e todo o reino supõe a aceitação do esquema de sujeição. (p. 36)

Soube dizer-me, com voz reasseguradora, quando lhe telefonei, em disfarçado desespero, antecipando a perda de todos os prazos possíveis − eu que tudo fazia por minha tese, menos finalmente redigi-la: “Conseguiremos uma prorrogação, escreva...”. A frase desencadeou uma atividade frenética, quase 500 páginas − as primeiras, bem como o resumo, reproduzidas abaixo − em cerca de três meses, num empurrão doce ao que precisava ser feito. Aturou meus “cavalos do diabo” a galopar por sua casa já cheia de letras bem melhores − ah... a literatura!!! −, mestre na arte de receber as tonterias de pós-graduandos obcecados por minúcias. Acima de tudo, porém, o abraço: ver Sylvia chegar à USP em seu passo rápido, continuidade aparente da velocidade de um carrinho que a trazia de Cotia, correr para ela e abraçá-la, tocando de perto seus cabelos prateados e a borda de seu sorriso tipo “que-bom-te-ver-viva” fazia daquela suposta “exigência” de doutorado a oportunidade, por fim, de acercar-se dos saberes naquilo que carregam de disruptivo-amoroso.

Somente a linguagem dos poetas poderia se aproximar do que Sylvia tece: um muito de possível em meio a tantas práticas que sufocam. Não sendo artesã de versos, prefiro parodiar Bertold Brecht:

Há aqueles que orientam um dia; e por isso são muito descuidados;
Há aqueles que orientam muitos dias; e por isso são eventualmente inconvenientes;
Há aqueles que orientam anos; e são, por vezes, ainda piores;
Porém há aqueles que orientam para toda a vida; esses, como Sylvia, são os imprescindíveis.

 

3. Escrever

Resumo

No rastro dos “cavalos do diabo” − memória e história para uma reinvenção de percursos do paradigma do grupalismo-institucionalismo no Brasil

Os andaimes que sustentam uma pesquisa histórica sobre percursos do paradigma do grupalismo-institucionalismo no Brasil são trazidos à luz, neste trabalho, por uma não-especialista no campo da ciência das transformações do/no tempo. Frente aos desafios epistemológicos, éticos e políticos promovidos pela prática da história oral, o texto percorre uma série de indagações incluindo a formação do pesquisador, a permeabilidade entre saberes, os nexos e contrastes entre a voz e a letra, o caráter do documento, as novas (e móveis) fronteiras da historiografia contemporânea, os limites dos esquemas explicativos, a noção de tempo histórico, as relações entre história e literatura e, particularmente, o lugar da subjetividade nessa complexa trama. Um breve ensaio sobre a presença do paradigma em apreço em Belo Horizonte, ao início dos anos 70, funciona como experimentação metodológico-narrativa na construção, sempre inacabada, de uma história das lutas em torno da verdade no âmbito psi.

 

 

Em andanças por folhas e letras, li em algum lugar que as introduções de livros ou teses em muito lembram manuais de eletrodomésticos: previnem o usuário quanto aos riscos que corre, caso, apressado em ver funcionar a nova geringonça, dispense a prévia consulta ao folheto anexado pelo fabricante.

Quando me deparei com essas considerações, compreendi afinal por que razão, a cada vez que pensava em redigir estas páginas, uma imagem se formava em minha mente &– aquele pequeno ícone, espécie de placa triangular contendo um ponto de exclamação, que admoesta: CAUTION. Dupla tradução: cautela, prudência; ou então, aviso, advertência.

Não surpreende que a palavra me ocorra em inglês, a despeito de minha paixão por resistências, contrariedades e implicâncias. Ensimesmada, crio desculpas às expensas de meu método (ou objeto?): percorrendo a literatura sobre história oral, fui obrigada a tirar do baú meus irregulares conhecimentos do idioma de Shakespeare (e do Tio Sam...) a fim de entrar em contato até mesmo com os oralistas italianos4, que tanto me seduziram. Logo, ao invés de sedimentação dominadora, o inglês pode ser mero vício passageiro...

Não se trata aqui, todavia, do tema da submissão ou reação a hegemonias lingüísticas, e sim de uma capitulação a exigências acadêmicas, que imagino apenas parcial ao lhes impor um leve desvio. Explico-me melhor: todo mundo sabe (e quem não sabe virá, feliz ou infelizmente, a aprender) que a introdução de uma tese deve ficar para o final. Por conseguinte, promete-se... o já feito! Aluna pouco aplicada, jamais havia obedecido a tal diretiva: sempre me lançara ao jogo da escritura com sonhos, quimeras ou intuitos bastante fluidos e fora construindo promessas ao ritmo da descoberta de problemas e nexos. Com isso, invariavelmente acumulava tarefas; quanto a algumas, alcançava realizações; quanto a outras, colecionava fracassos. Esta é a primeira vez em minha vida que acrescento uma introdução &– digo, advertência! − a um trabalho depois de concluído.

O escrito que o leitor começa a explorar é um projeto de tese que se transformou na tese propriamente dita. Minha intenção primeira era apelar a depoimentos orais como um dos recursos para a construção de uma história da Análise Institucional no Brasil. Foi uma ilusão à toa: na busca de ancoragens para o manejo da oralidade, minha insegura barca historiográfica pôs-se à deriva; ao tentar narrar a viagem sob a forma de um projeto, este se viu a tal ponto agitado pelas intempéries das vozes, que de meio se fez meio-fim.

Os primeiros a lê-lo sentiram falta do manual de instruções e, com simpatia e bom humor, preferiram compará-lo às artes que às travessuras5. Presentearam-me com uma cópia em vídeo de E la nave va, filme de Federico Fellini: em 1914, às portas da Primeira Guerra Mundial, o transatlântico Gloria N, fretado por um grupo de pessoas ligadas ao teatro e à música, singra o Mediterrâneo em direção a Erimo para, em suas vizinhanças, dispersar as cinzas da famosa cantora Edmea Tetua. Está a bordo Orlando, para colher entrevistas, e é ele o narrador da viagem, encerrada com o naufrágio da nave no momento em que o conflito bélico a alcança, depois que refugiados sérvios são recolhidos ao mar.

Sugeriram ainda os primeiros leitores que, na transformação do plano em produto, eu o ilustrasse − discursiva e graficamente − com a Sagrada Família, catedral inacabada projetada pelo arquiteto catalão Antoni Gaudí (1852-1926) que, diz a lenda − e de quantas lendas se faz uma história? −, morreu atropelado por um bonde cujo condutor se distraíra contemplando a beleza da obra...

 

 

Você se lembra de E la nave va? Há quem diga que é um filme sobre a música ou mesmo um filme-ópera. Em uma das primeiras cenas, à beira de zarpar, entoa-se: “Vamos enfrentar o insondável!”. Qual nas obras de Fellini, eterno inimigo dos maniqueísmos, o verso me foi cantado sem se aferrar a elogio ou crítica, apenas como imagem provocativo-sugestiva do roteiro que eu compusera. Mas Fellini, sim, é incansável travesso, conforme me revelou uma tarde passada no sofá: qual nas metáforas marítimas de que, se verá, uso e abuso, o Gloria N evoca a Nau dos Loucos medieval; qual nas diferenças de perspectiva e de ritmo narrativo que a oralidade oferece à história, as cenas do filme mudam de enquadramento e velocidade quando se passa do salão de refeições à cozinha ou às caldeiras; consoante sugerem muitos estudiosos acerca da oralidade, os diálogos de E la nave va revelam vozes que, mesmo para uma cega6, têm cor; na mesma medida em que a problemática da memória confere particular encanto à história oral, são as versões discordantes que transformam o “diário banal” de Orlando no fio condutor de uma narrativa nada onisciente, na qual tudo se faz “estranho e misterioso” e que comporta quatro diferentes versões para o mesmo naufrágio − inclusive uma... que ele não nos conta!

Falar em Orlando, o personagem-jornalista, é talvez encontrar o foco da advertência − a que me fizeram os primeiros leitores, a que extraí do filme e a que faço a meu presente companheiro. Orlando se mete no meio das cenas, interfere, “atrapalha o serviço” − como lhe diz o mâitre em sua primeira aparição. Em tudo o que relata, interpõe ressalvas: “Falo porque me contaram, claro que não vi”; “o estudante anarquista atirou a bomba, ou não houve nem anarquia nem bomba...”. Ao compor a narrativa de certo acontecimento, imagina versões alternativas, diversas do realmente (?) ocorrido: “Não, não os entregaremos” − entoa a tripulação do navio (e nós o vemos), recusando-se a entregar os sérvios ao comando do encouraçado austro-húngaro, embora (como igualmente vemos) os entregue em seguida.

Um historiador oral tem incômodos parentescos com o jornalismo; a história oral “atrapalha o serviço” arquivístico da história documental tradicional; o chamado documento oral reconhece-se construído e eventualmente infiel, criando um interesse singular por aquilo que é muito verdadeiro... exatamente por ser falso!

Mas se tudo isso avisa quanto ao que em nosso texto será dito, pouco informa acerca de seus possíveis destinos, de sua recepção pelo leitor. Neste caso, outra é a cena apropriada. De tanto comprazer-se em multiplicar indagações, pondo-se em uma errância crítica sob a égide do interminável enquanto se avizinha o rumor da batalha7, esta tese (e sua autora?) pode(m), eventualmente, ter o mesmo destino de Orlando: ver-se, na tomada final, em um bote salva-vidas, na companhia... de um rinoceronte8! Decidida a correr o risco e convidando o leitor a compartilhá-lo, relembro a última frase do personagem: “O rinoceronte dá um leite formidável!”

E la nave va foi inteiramente rodado em estúdio. Para sabê-lo, não precisamos consultar especialistas em cinema: numa breve fração de tempo, antes do desfecho que reúne o jornalista (historiador oral?) e o monstro, põem-se à mostra as câmeras, a estrutura dos cenários, os equipamentos de sonorização, a equipe de produção etc., desmontando quaisquer resquícios de realismo e fazendo, do simulacro, o principal protagonista. Nada disso é alheio, como veremos, ao funcionamento da história oral. Mas aquilo que no filme é breve instante, nesta tese ocupa quase todo o tempo de projeção. Daí decorre, penso, a sugestão quanto à imagem da Sagrada Família.

 

 

 

Gaudí trabalhou no projeto e realização desse templo expiatório durante quarenta e três anos, os doze últimos − quando se mudou para um estúdio dentro do canteiro de obras − em tempo integral. Porém a Sagrada Família permanece, ainda hoje, inacabada e talvez daí advenha o encantamento que provoca: comporta tal multiplicidade de delineamentos, esboços, desvios e desvãos, que nunca se sabe se fascina mais pelo efetivamente completado ou, ao contrário, por exibir a plena luz seus andaimes, seu processo. Ao compor, de forma intrigante, o estrutural e o plástico, a obra (ou anti-obra) tem sido objeto de inumeráveis versões e apreciações, impróprias ao consenso.

Há muito que admiro a arquitetura processual de Gaudí e, quando a idéia de recorrer à Sagrada Família foi formulada, senti-me momentaneamente em paz: meu próprio trabalho via-se reafirmado em sua aposta no inacabamento e nas eventuais ética e estética que dele possam resultar, em alternativa ao recobrimento perfeito que dignifica as obras que se preferem concluídas, ou mesmo conclusivas. Logo a seguir, no entanto, balançaram os antes exaltados andaimes e se instalou um clima neofelliniano: em suas polêmicas com a historiografia marxista − aliás, junto com Engels, o “velho” também escreveu uma A Sagrada Família9 −, sua exaltação foucaultiana e sua lusitana tendência a enfrentar mares nunca dantes navegados sem jamais dobrar o Cabo da Boa Esperança, a tese-nave, no sentido marítimo, poderia marear o futuro leitor ou, no eclesiástico10, fazê-lo abandonar o livro sagrado às primeiras páginas. Mais tarde, buscando material para elaborar a presente advertência, peguei-me, entre divertida e assustada, envolvida na possibilidade de forjar novas lendas. Assim como o lento artesanato de um projeto iniciado em 1883 e ainda inconcluso em 1926 contribui para que se procure, hoje, canonizar (!!!) Gaudí11, a “sagrada família” institucionalista12 se arriscaria a ser demonizada por minha narrativa: de tanto conceber fachadas monumentais para os documentos orais, ela acabaria por habitar o inferno da produção acadêmica mais aborrecida do mundo...

Pronto, está feito! Qual nos manuais de eletrodomésticos, o leitor está avisado de que não deve remover a cobertura do aparelho, visto que dentro dele não existem componentes a serem manejados pelo usuário, apenas peças cujo conhecimento e utilização se restringem ao pessoal qualificado. Contraditoriamente, todavia, o que esta tese pretende é destampar um aparelho de pesquisa, dando acesso àquilo que pode causar choque elétrico quando se desobedece à cautela acadêmica. Assim como raramente resistimos, quando crianças, a desmontar o brinquedo eletrônico que acabamos de ganhar (ou, no mínimo, o gravador de nosso irmão...), fui imprudente com a história oral: à medida que retirava os parafusos, ela me pôs frente a uma tal profusão de questões, que meu objeto se deslocou do ato de efetuar uma história do grupalismo-institucionalismo para o de deixar-me conduzir pelas vicissitudes do procedimento metodológico. Foi ele que, transformando meu pensamento − consoante sugere a epígrafe de Lévy −, ditou a forma assumida pela produção.

Depois de tanto escutar e discutir histórias de vida, ouso contar e reinventar um pouco da minha: mais que a presença de Fellini ou Gaudí, nela relembro a do gravador e do contar histórias. Em um, então último tipo, Revere de dois carretéis, ouvia os programas infantis que meu tio-avô gravava do rádio para que eu o deixasse em paz antes de dormir ou em longas viagens de carro durante as férias. Relata a família − ou será que me lembro? − que, volta e meia, eu apertava a tecla stop e, num misto de pedido e ordem, dizia: “Agora, conta com a boca!”. Pouco depois, descobri as primeiras letras, tanto em livros ilustrados como, principalmente, nas histórias em quadrinhos. Neste caso, tenho uma recordação simultaneamente nítida e enigmática: era capaz de lê-las com total compreensão, mas... seria apenas a seqüência de imagens ou já decifrava os traços da escrita?

Estas associações biográficas com o âmbito da história oral e o caráter do documento em história fazem brilhar novamente, qual num anúncio em neon, a plaquinha triangular: CAUTION! Prometera introduzir o leitor à andadura deste trabalho para prevenir o enjôo marinho e o aprisionamento no labirinto ou, ao menos, o naufrágio e o desabamento, e lá estou eu a começar novos volteios... Explico-me mais uma vez: é que mais do que na arte cinematográfica ou arquitetônica, foi nos quadrinhos que, por acaso, descobri o que penso avise o leitor mais fielmente a respeito do que vai encontrar. Por isso, à nave de Fellini e ao templo de Gaudí, acrescento o cartoon de Laerte:

 

 

Expressas, sob sua inspiração, em poucas palavras, seguem-se as instruções:

Capítulo I De como eu começaria, sem instruções

Capítulo II Para remover os efeitos silenciadores de uma barulheira, chega-se a outra

Capítulo III Pego minha caravela lusitana e viajo pela história da história oral

Capítulo IV Vou mudando, mas não muito

Capítulo V Erros e errâncias compõem uma nave futurista

Referências bibliográficas Sou um rato de biblioteca

Anexo Como era esta história. Como virá a ser?

Boa sorte, leitor, para nós dois.

Tanto você como eu temos questões que, como acontece nas longas conversas, só se esclarecerão... muito depois!

Capítulo I − Domesticar o pensamento selvagem?

Os analistas franceses da vertente socioanalítica13 preferem os efeitos às leis. Mediante tal privilégio, fazem decidida opção antipositivista: ao contrário da lei científica, em que o ver faculta o prever &– preceito sintetizável pela fórmula “assim tem sido, assim será” −, o efeito está invariavelmente ligado à preservação, deliberada ou involuntária, de determinadas condições (institucionais)... de efetuação! Efeitos são contingências repetidas, não legalidades universais às quais estejamos, sem escapatória, submetidos ou sujeitados.

Durante o longo período em que o presente trabalho me acompanhou como fantasmática exigência − e quanto durou este tempo! −, um efeito em particular, dentre os inúmeros batizados14 pelos socioanalistas, me assediou à maneira do risco e da provocação: o Efeito Goody.

No caso, o sobrenome do antropo-historiador britânico Jack Goody resume um curioso a posteriori, designando as conseqüências que um contexto de justificação pode possuir, a partir do futuro, sobre um contexto de descoberta. Em termos mais formais, assim podemos caracterizá-lo:

A relação à exposição final, transmissível e/ou publicável, [é] de tal modo interiorizada em suas normas institucionais que chega a determinar, por retroação, os procedimentos de investigação, de coleta de dados. Não é suficiente dizer: “Não vejo senão o que quero ver”. É preciso acrescentar: “Não vejo senão o que quero escrever”. (Lourau, 1988, p. 15)

A imagem dessa virtual retroatividade me perturbou nos últimos meses. A injunção a apresentar um projeto de pesquisa a cada dia me parecia circunstância mais propícia a uma efetuação Goody.... quiçá elevada ao quadrado! Paralelamente, nuances da produção intelectual de Jack Goody teimavam em reaparecer em qualquer plano do debate historiográfico contemporâneo do qual eu me acercasse. Não carecendo de articulação os dois aspectos, exploremos cada um deles, começando pelo último.

Na trajetória de Goody se destaca a publicação de um livro sugestivamente intitulado A Domesticação do Pensamento Selvagem (Goody, 1977), em que o pesquisador está atento às diferenças entre sociedades de memória essencialmente oral e de memória essencialmente escrita, bem como ao que caracteriza um eventual processo de transição entre ambas. Contrariando nossas pressuposições de civilizados, orgulhosos da própria grafia e da liberdade que esta ofereceria em face das sociedades sem escrita − conseqüentemente obrigadas a custosos automatismos mnemônicos −, Goody nos força a radicais reversões de perspectiva. Estudando a transmissão de mitos entre os Lo Dagaa, ao norte de Gana, observa que não se instaura entre os narradores − os homens-memória − qualquer tipo de armazenagem palavra por palavra, sequer sendo esse tipo de atividade, ademais, percebido como necessário. Nessas sociedades de oralidade, a rememoração exata é vista como “menos útil, menos apreciável que o fruto de uma evocação inexata”, podendo-se supor que “o papel importante cabe à dimensão narrativa e a outras estruturas da história cronológica dos acontecimentos” (Goody, 1977, citado por Le Goff, 1990, pp. 429-430).

Este aspecto gerativo15 atribuído à memória ligada à oralidade tem por correlato o questionamento da literacy − capacidade de leitura/escrita, ou letramento − como dimensão necessariamente inovadora porque maleável e perfectível. Conforme sublinha Le Goff (1990), “o estudo da tradição num meio oral mostra que os especialistas dessa tradição podem inovar enquanto que a escritura pode, pelo contrário, apresentar um caráter ‘mágico’ que a torna mais ou menos intocável” (p. 53). Residiria em tal caráter a domesticação do pensamento associada à escritura, atividade em cujo cerne se encontra a lista − seqüência de palavras, conceitos, nomes, gestos ou operações colocados em certa ordem, facultando descontextualizar experiências mediante uma recodificação lingüística.

Exemplificando a forma pela qual o relato do vivido pode ultrapassar o biográfico-e-íntimo − alavancando invenções teóricas desconstrutoras de asserções tidas por óbvias, como a que associa a escritura à liberdade −, Goody, em entrevista recente, relata como observou, na África, o processo de domesticação do pensamento em plena atuação. A narrativa remete à noção de propriedade privada e ao estabelecimento, na região, de escolas centradas na escrita: “Vi as pessoas sendo chamadas para registrar suas terras no cartório, e o que fora, até então, partilhado de certo modo por muitos, com a introdução daquela exigência passou a ser ‘meu’ e a excluir os outros” (Pallares-Burke, 2000, p. 52).

Considerações similares encontram-se nos autores que, na esteira de Goody, preocupam-se com as correlações existentes entre a emergência do letramento e outras séries de fenômenos, de caráter sociopolítico. Ong (1982), por exemplo, associa o dispositivo da escritura à irrefutabilidade/imutabilidade, pondo em pauta os nexos entre a descontextualização do vivido e os exercícios de poder:

Escrever fomenta abstrações que desengajam o conhecimento da arena onde os seres humanos lutam uns com os outros. Separa o conhecedor do conhecido. Ao manter o conhecimento incrustado no mundo da vida humano, a oralidade situa o conhecimento dentro de um contexto de luta. (Ong, 1982, pp. 43-44)

Enfatizando o vínculo irrefutabilidade-imutabilidade, o mesmo autor nos ajuda a entrever a nova relação entre Clio e Cronos implantada pelas tecnologias da escritura, dentre as quais se destaca o livro:

[ele] retransmite uma elocução de uma fonte, a única que realmente ‘disse’ ou escreveu o livro. O autor poderia ser desafiado somente se pudesse ser alcançado, mas o autor não pode ser alcançado em nenhum livro. Não há forma direta de refutar um livro. Depois de uma refutação total e devastadora, ele diz exatamente a mesma coisa que antes. (pp. 78-79)

Fora da arena das lutas e impossibilitado de refutar o que digo, meu leitor estará perguntando: por mais instigantes que sejam as idéias de Goody, ou mesmo de Ong, sobre o oral e o escrito, que fazem elas no primeiro capítulo de uma pesquisa que, ao menos explicitamente, versa sobre a história do grupalismo-institucionalismo no Brasil? Imaginando ser esta a questão do leitor − igualmente fora da arena, não o posso assegurar −, deixo provisoriamente de lado as considerações do antropo-historiador para regressar ao efeito batizado com seu nome.

Os projetos de pesquisa estão sujeitos a objeções análogas às que o personagem discursivo precursor tem merecido por parte dos estudos de história do pensamento. Projetos que efetivamente dizem algo já não são projetos; aqueles que se restringem a intuitos ou promessas, nada em verdade projetam. E se uma efetuação Goody − limitação retroativa da justificação (descontextuação, escritura) sobre a descoberta (processo, oralidade, experiência, luta, contexto) − revela-se coextensiva a ambos, no último caso parecemos condenados a uma domesticação exponencial: prever sob certa forma, reconhecida como lógica pela cidade científica, o que deverá ser futuramente redigido/realizado... da mesma forma!

Dividida entre um projeto-telos (falso precursor que já é limitado produto) e um projeto-origem (falso precursor que limita a priori o limitado que poderia vir a ser), debati-me até encontrar uma dimensão para o presente escrito. Ele constitui, neste sentido, um ensaio, inevitavelmente parcial, de contra-efetuação − efeitos são circunstâncias, não determinações. Assim, não começo pelo fim nem pelo princípio; tento manter-me no meio16 − entre estudos, entre escritos, entre falas, entre debates, entre confrontos, entre afecções e afetos...

Estou ciente, no entanto, de que uma pesquisa acadêmica é instada a pautar-se por um modelo (lista lógica de componentes) e, particularmente, a propor um método de investigação. Pois é em relação aos dois aspectos que começo pelo meio. Daí, quanto à desejável lista de itens, a presença destas páginas iniciais a estender-se sobre o confronto entre escrita e oralidade − exatamente o problemático ‘meio’ em que estou mergulhada. Daí igualmente, quanto à proposta de método, as exposições que se seguirão, em que territórios, campos ou canteiros da história até hoje freqüentados se verão profundamente alterados pela invasão da história oral − procedimento em meio ao qual se vêm produzindo minhas recentes descobertas, tantas vezes injustificadas ou injustificáveis.

Enquanto, para alguns, como Marcel Granet, o método constitui “o caminho depois de percorrido” (citado por Eribon, 1996, p. 144), o deste trabalho é, alternativamente, um meio do caminho. Tanto oferece um relato de passos já efetuados em busca de uma auto-reflexividade crítica, como duvida, treme e hesita quanto aos futuros movimentos a empreender. Por isso se encontra, creio, sob a égide de novo efeito, que batizo Efeito Antonio Machado: “Caminante, son tus huellas / el camino, y nada más; / Caminante, no hay camino / se hace camino al andar” (Machado, 1983, p. 223).

Se o Efeito Antonio Machado poderá, ou não, no que diz respeito ao Efeito Goody, favorecer uma contrariedade, uma desconstrução e mesmo uma rigorosa contra-efetuação, somente a arena das lutas − o processo da pesquisa − e da oralidade − o momento da defesa deste escrito − estará apta a decidir.

 

4. Ouvir, ler

Transcrevo, nesta seção, o que Sylvia me disse quando da defesa da tese. Posteriormente, ela me enviou o texto por e-mail e eu, nem sempre boa arquivista, o guardei com carinho. Torná-lo público é uma escolha ética, pois seu teor ultrapassa, em muito, nossa relação.

Cara Heliana

Enrolada no histórico cipoal dos seus argumentos e contra argumentos, das idas, vindas e voltas, das descobertas e das redescobertas, mas também das perdas e ganhos, chegamos todos ao final. Você desta tese que, acho que deveria ser confessado, não representou pena e dor, mas muita alegria e o prazer de navegar à vontade, um pouco como Ulisses na sua Odisséia, obedecendo aos ditames dos ventos, ou, deixando-se, mais propriamente, levar por eles, saboreando perigos e dificuldades, pronto sempre a tirar proveito do destino que ali o conduzia, mas, insubmisso ao destino, tendo por ponto de chegada a visão de sua ilha. Acho que a história oral do grupalismo-institucionalismo no Brasil foi um pretexto. E também a história oral. Quantos fios saíram dela e voltaram a ela no seu trabalho? No oceano da história, o seu barco foi meio sem rumo, como o de Ulisses, perdido num desejo de ilha, mas desviado por todos os ventos, seduzido por todas as belas palavras, por todas as idéias-ondas. Pensando em Ulisses e Ítaca lembrei-me de um grande poeta, um arquivista mergulhado na história de seu povo, também ele insatisfeito, rebelde e pobre, cuja Odisséia interior construiu um modesto, mas exemplar, mundo de versos: Konstantinos Kafávis, e fui procurar um belo poema dele &– Ítaca &– para te oferecer hoje como signo da amizade. Ele termina assim:

Ítaca te deu essa bela viagem.

Sem ela não te punhas a caminho.

Não tem, porém, mais nada que te dar.

E se a fores achar pobre, não te enganou.

Tão sábio te tornaste, tão experiente,

Que percebes enfim que significam Ítacas.

Um dos bens mais preciosos que a universidade dá à gente é o dom da amizade que se vai formando devagar, sem pressa porque não é uma tarefa. Estes alguns anos nos deram essa alegria. Não sei como você veio parar comigo, para juntas fazermos de conta que orientar é possível. Mas agradeço muito esse igarapé, esse braço de mar, que nos aproximou.

Gosto de pensar que uma simples assinatura permitiu a nós duas esse prazer. Porque eu quero crer que você cresceu e se multiplicou ao redigir esse trabalho, conviveu com Clio mas também conheceu a fragilidade das argamassas de que é feita a deusa. O trabalho, é claro, é uma exigência acadêmica, mas é também um instrumento para dar vazão a essa sua vocação inquisitorial, que nunca está satisfeita com uma resposta, e vai além. Às vezes as formalidades burocráticas desencadeiam relações carregadas de outros materiais que não a simples formalidade.

Além disso, também o prazer foi muito meu. A cada nova página eu pensava: qual será a pedra que vai estar agora no meio do caminho?

“Os cavalos”, como ficou conhecido o seu trabalho em minha casa, estavam em todos os lugares. Na mesa da sala, no quarto, na mesa do escritório, no jardim &– também passearam lá os seus cavalos. Na verdade, sem as responsabilidades de uma orientadora, pude me divertir com a sua escrita fácil e leve, com o seu infatigável procurar pelo mot juste. Ou, melhor, a idéia justa. Acho que poderemos, aqui, sem nenhum remorso, aplicar a você as palavras com que definiram Lapassade: é uma grande intelectual, alguém que nasceu para viver de e com as idéias e as palavras.

A este papel residual a que me submeto nesta mesa penso que os comentários, do modo como foram aprendidos com você − ver Foucault na p.413 − devem ser curtos, não aventurosos. Porque é uma aventura a que você nos propõe nas quase 600 páginas do seu trabalho. Como diria meu marido (desculpe a citação familiar e imprópria), só mesmo a cavalo!

Se eu não sabia bem por que eu gostava tanto de ler a história velha ou nova − desculpe a imprecisão &–, acho que agora posso ler sem problemas: nem os historiadores têm respostas para o ser da história. Porque acho que faltou um personagem aí: o leitor. Este gostoso escorrer do tempo que os livros de história trazem ao leitor &– talvez ao leitor preguiçoso, que ainda se deleita com a narrativa − está todo no seu trabalho e, nesse sentido, você é o leitor da história (aquele de que nos fala Barthes), um leitor que seduz o outro leitor &– seu metaleitor &– garantindo que escolheu sempre a melhor rota entre Scila e Caribdis, e que está removendo os escolhos para os que vêm depois, em busca de uma Ítaca que, para você, se não estou enganada, é o Foucault. Resta-nos acompanhar os sobressaltos da viagem, discordar aqui e ali das suas rimas e dos seus rumos, pensar que talvez houvesse uma outra saída para o labirinto. Mas, confesso-me seduzida. Penso, porém, que seria adequado considerar que há muitos tipos de leitores. Embora sua advertência seja perfeita, existem perguntadores incautos (ou de ofício, como os membros desta banca) que pretendem se aproximar sem desassossego. Acho que seria importante colocar a outra advertência ao leitor, à maneira do mestre Machado: "a obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus."

Sylvia, setembro de 2002

 

5. Prolongar

A tese já estava pronta e defendida, mas Sylvia seguiu comigo na partilha do “Professor Gaivota” − boêmio de Greenwich Village que dizia redigir uma “história oral de nosso tempo” −, sem nada se importar com a revelação do “segredo” de Joe Gould”17, ou seja, com a “verdade documental” de tal façanha, porque encantada, mais uma vez num terno abraço, com o sonho, cotidianamente afirmado pelo personagem, de fazê-lo. Falava-me também de suas filhas, crianças outrora quase soterradas por livros, jovens que hoje se enlaçam aos destinos dos ditos “autistas” e dos ditos “animais em extinção”. E jamais pensou que saborear um Campari junto com alguém que saboreia um chopp fosse espaço pouco propício à amizade que alimenta o árduo brotar do pensamento. Em sua pele eventualmente morena do sol de Ubatuba vibra o contato com o sol que tanto perdemos, fechados em nossos escritórios a redigir teses pouco lidas, enquanto a vida abre caminho.

Em meio a uma greve na USP, ela me escreve.

Caríssima

Gostaria muito de morar no Rio para poder, de vez em quando, sentar com a turma e bater papos imensos. Como não posso fazer isso, vamos escrever bilhetes eletrônicos com mais freqüência? Greve é uma das piores coisas que pode acontecer na Universidade porque ninguém liga, a sociedade não está nem aí. Se  a USP morresse amanhã de manhã sua falta ninguém sentiria... às vezes ser supérfluo é um sentimento muito poderoso. Por essas coisas é que tinha razão o nosso amigo Professor Gaivota − tanto faz ser supérfluo sério, escrevinhador de artigos e teses, como ser  um intelectual-supérfluo-pedinte-mendigo.
Acho que hoje estou down. Você conhece um blues cantado pela Bessie Smith chamado Nobody Knows You when You're Down and Out − maravilha!!
Vou gravá-lo para você − é um disco velho ganho de um velho e querido amigo que já morreu − e faz barulhos, mas vale a pena. O Cortazar diz que é a única maneira de se ouvir o jazz. E depois, quando estivermos juntas em algum lugar deste mundo, conto uma história para você.

Saudades,

Sylvia (30/06/2004)

Hoje, mais uma vez, lhe respondo.

Sem dúvida, Sylvia. Ainda, e sempre, contaremos muitas e muitas histórias em nossas escolhidas Pasárgadas: lá, todos somos supérfluos porque.... todos somos amigos do rei.

 

Referências

Deleuze, G. (1992). Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34.        [ Links ]

Eribon, D. (1996). Michel Foucault e seus contemporâneos. Rio de Janeiro: Zahar.        [ Links ]

Goody, J. (1977). The domestication of the savage mind. Londres: Cambridge University Press. (Tradução portuguesa: Domesticando o pensamento selvagem. Lisboa: Presença, 1988)        [ Links ]

Hess, R., & Savoye, A. (1993). Perspectives de l’analyse institutionelle. Paris: PUF.

Le Goff, J. (1990). História e memória. Campinas, SP: Ed. UNICAMP.        [ Links ]

Lourau, R. (1988). Le journal de recherche. Matériaux d’une théorie de l’implication. Paris: Méridiens Klincksieck.

Machado, A. (1983). Poesias completas. Madri: Espasa-Calpe.        [ Links ]

Mello, S. L. (2001). Prosopopéia ou o silêncio da Psicologia sobre os inocentes. In A. M. Jacó-Vilela, A. C. Cerezzo, & H. B. C. Rodrigues (Orgs.), Clio-Psyché hoje. Fazeres e dizeres psi na história do Brasil (pp. 217-225). Rio de Janeiro: Relume Dumará.        [ Links ]

Pallares-Burke, M. L. G. (2000). As muitas faces da história: nove entrevistas. São Paulo: Ed. UNESP.        [ Links ]

Ong, W. J. (1982). Orality and literacy. The technologizing of the world. London: Methuen.        [ Links ]

Simondon, G. (1958). Du mode d’ existence des objets techniques. Paris: Aubier.

Veyne, P. (1992). Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história. Brasília, DF: Ed. UnB.        [ Links ]

 

 

Recebido em: 14/11/2006
Aceito em: 27/11/2006

 

 

1 Título inspirado na frase que, para Deleuze, se aplica aos últimos trabalhos de Foucault, relativos à ética: “Um pouco de possível, senão sufoco!” (ver Deleuze, 1992, p. 131).
2 Orientanda de Sylvia Leser de Mello no Doutorado do Instituto de Psicologia - USP (período 1997-2002). Docente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Endereço eletrônico: helianaconde@uol.com.br
3 Logo descobri que Sylvia não precisava dessas longas “explicações” (se é que as demandaria...), pois orientara, na USP, a dissertação de Lazslo Ávila, fortemente marcada pelo paradigma institucionalista.
4 Os trabalhos de Alessandro Portelli, historiador oral italiano a quem muito se recorrerá, são acessíveis principalmente em edições norte-americanas.
5 Agradeço a João Frayze-Pereira, Maria Helena Souza Patto e Sylvia Leser de Mello pelo estilo adotado em meu exame de qualificação &– componente essencial para a feição que ganharam estas páginas.
6 A afirmação é da princesa, irmã do grão-duque, interpretada pela coreógrafa Pina Bauch. Vale acrescentar que apenas a voz do general é por ela vista como “sem cor”.
7 William Castilho, um de meus entrevistados, quando lhe perguntei como avaliava o atual panorama da Análise Institucional em Belo Horizonte, disse-me: “Acho que não posso falar muito porque quando a gente começa a fazer uma tese, se aliena do mundo. Eu fiquei quatro anos sem botar o nariz aqui fora, tem apenas três meses que voltei a ser um cidadão normal”. A referência ao “rumor da batalha” remete também a Michel Foucault (últimas palavras de Vigiar e punir) e, evidentemente, a nosso presente: enquanto nos dedicamos à produção acadêmica (levando as cinzas de uma cantora morta?), a vida pulsa.
8 O rinoceronte habita o porão do transatlântico e, em certo momento, passa a exalar um cheiro insuportável. Em uma belíssima cena, é içado ao convés pela tripulação e devidamente lavado. Muitos analistas o comparam a Mobby Dick, mas jamais pensei em ser crítica de cinema; logo...
9 Die Heilige Familie. Oder Kritik der Kritichen Kritik, eine Streitschrift gegen Bruno Bauer und Consorten, originalmente publicada em 1845, é na verdade uma obra de ruptura com o grupo dos Jovens Hegelianos e não uma análise da família no sentido vulgar do termo.
10 A Sagrada Família foi projetada para ter cinco naves e três fachadas. Apenas a fachada do Nascimento, com suas quatro famosas torres − estranho marco monumental da Barcelona de todos os nossos sonhos anarquistas −, foi parcialmente concluída durante a vida de Gaudí.
11 O tema “São Gaudí, o arquiteto de Deus” começou a ser promovido por um grupo de devotos sob a bênção de um cardeal espanhol e, no ano de 2000, o Vaticano autorizou o início do processo de beatificação. Pode-se imaginar que se trata de uma iniciativa bastante polêmica, em relação à qual os objetores reagem ironicamente: “O céu não precisa de arquitetos, Deus já fez tudo”.
12 Em curiosa coincidência, La Sainte Famille é o nome do boletim, de caráter artesanal, publicado pelo Laboratório de Análise Institucional da Universidade de Paris VIII, Saint Dennis.
13 Identificam-se como socioanalistas os praticantes da Análise Institucional reunidos, a partir dos anos 70, no Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Paris VIII, entre os quais René Lourau e Georges Lapassade. Em solo carioca, dizemo-nos socioanalíticos ou esquizoanalíticos conforme nossos discursos/práticas se aproximem mais desse grupo ou, predominantemente, das proposições de Gilles. Deleuze e Felix Guattari.
14 À guisa de ilustração, podemos citar: efeitos Weber, Lukács, Heisenberg, Lefebvre, Mühlman, Lapassade, Guizot, Ben Barka, analisador, quente e frio,... Al Capone! Estas formalizações de fenômenos que se repetem em certas condições oscilam entre a seriedade acadêmica e o jogo de uma ocasional inventividade. Para uma apresentação sintética, pode-se consultar Hess e Savoye (1993).
15 O termo é usado em analogia com a gramática gerativa de Chomsky.
16 Advém de Deleuze o princípio metodológico de sempre começar pelo meio. Sobre a aplicação do mesmo ao campo da história (ver Veyne, 1992).
17 O segredo de Joe Gould é o título do livro de Joseph Mitchell, jornalista de The New Yorker que, em 1942, publicou nessa revista um perfil de Gould, o “Professor Gaivota”. O livro traz tal perfil, bem como um segundo artigo, publicado em 1964 − sete anos após a morte do personagem −, em que Mitchell revela sua suspeita de que a obra monumental que Gould dizia escrever não existiria.