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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.19 n.1 São Paulo mar. 2008

 

ECLÉA BOSI

 

A letra viva de Ecléa Bosi

 

The alive letter of Ecléa Bosi

 

La lettre vivante d’Ecléa Bosi

 

La letra viva de Ecléa Bosi

 

 

José Moura Gonçalves Filho1

Instituto de Psicologia - USP

 

 


RESUMO

Este artigo pretendeu assinalar e comentar alguns temas e certos traços de estilo no trabalho de Ecléa Bosi. Tomou como base o livro O Tempo Vivo da Memória: Ensaios de Psicologia Social.

Palavras-chave: Bosi, Ecléa. Atenção. Escritores. Cultura popular. Memória social. Psicologia social.


ABSTRACT

This paper intended to show and to comment some subjects and some traces of style in Ecléa Bosi’s work. The examined book was O Tempo Vivo da Memória: Ensaios de Psicologia Social.

Keywords: Bosi, Ecléa. Attention. Writers. folk culture. Social memory. Social psychology.


RÉSUMÉ

Cet article a voulu indiquer et commenter quelques sujets et certains traits de style dans le travail d’Ecléa Bosi. O Tempo Vivo da Memória: Ensaios de Psicologia Social c’est le livre qui nous a permis cet examen.

Mots-clés: Bosi, Ecléa. Atention. Auteurs. Culture populaire. Mémoire sociale. Psychologie sociale.


RESUMEN

Este artículo pretendió señalar y comentar algunos temas y ciertos riesgos de estilo en el trabajo de Ecléa Bosi. Se tomó como base el libro O Tempo Vivo da Memória: Ensaios de Psicologia Social.

Palabras-clave: Bosi, Ecléa. Atención. Autor. Cultura popular. Memoria social. Psicología social.


 

 

O Tempo Vivo da Memória: Ensaios de Psicologia Social é um livro de lições longamente amadurecidas. Repontam nele teses de dois outros belos livros: Cultura de Massa e Cultura Popular: Leituras de Operárias e a obra-prima Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. Teses desses dois livros ganham aqui novos dados e novos contornos, prosseguindo escavações e descobertas. Tudo alcançando um grau tão fundo de investigação, e tão singular, que confirma o que já sabíamos das outras duas obras: Ecléa Bosi é autora.

O autor é quem lembra e quem inaugura.

Está ligado ao passado, lembra fatos e lembra o que foi dito deles. No autor, os fatos são reanimados e animam outra vez o que foi dito deles. Os fatos (eventos transcorridos e encerrados) como que voltam a correr diante de um autor. E o que se disse dos fatos (as idéias consagradas e que foram isoladas dos fatos que as exigiram; idéias repisadas que nos foram legadas como resultados acabados), no espírito de um autor, vão retomar o seu começo, vão começar outra vez. Quando Ecléa fala de escritores ou fala de depoentes que tenha ouvido, escritores e depoentes parecem conversar conosco, aproximam-se como se começassem a pensar agora, como nós começamos, e como se nos convidassem a pensar com eles.

Quem tenha sido aluno de Ecléa ou tenha lido o que escreveu haverá de me entender: as aulas e os textos não distribuem fatos e idéias, mas movem fatos e idéias. Os fatos assumem a figura de fatos vivos: acontecimentos. As idéias assumem a figura de idéias vivas: pensamentos. Uma autora: colhe fatos e idéias como quem os vai semeando outra vez.

Vem, então, a inauguração. Cada ensaio destampa um pequeno tesouro. Há passagens em que nada ou ninguém parece interpor-se entre o fenômeno examinado e a ensaísta: vibra em modo puríssimo o estilo inconfundível da escritora: as frases curtas, condensando ou abrindo um caminho. São como estações a meio caminho. O leitor vai parar, vai naturalmente demorar, matutando o caminho feito ou o caminho sugerido. Frases pequenas, como pedaços de pão: o leitor vai ler como quem se alimenta.

No conjunto do ensaio, entretanto, as mediações são claras e orientam o leitor desavisado. Estão lá os casos. Depoentes e escritores foram convocados.

Um caso é gradualmente aprofundado... sob ângulos diversos e entra numa espiral: a autora gira sobre um mesmo ponto, mas em níveis crescentes de complexidade. Exemplo disso sai logo do primeiro e belíssimo ensaio (A substância social da memória) que soube mover-se por teses, antíteses e sínteses maiores. Vejamos. Ecléa começa. Lamenta a história que estudamos na escola, porque afastam a crônica do cotidiano, os inúmeros comportamentos locais e muito singulares, os vários pontos de vista, as razões de quem não venceu, os eventos descontínuos. A história oficial deixa uma só versão dos eventos, muito compacta, onde a diversidade e os detalhes foram apagados, tudo que aconteceu ficou demais amarrado, unificado, nivelado. Quanta coisa foi esquecida! Foi tudo simplificado, muita coisa foi tragada: ficou o registro de sempre: o poder dos estados, o poder dos reinos, o poder das grandes famílias. Escreve Ecléa: “Uma ‘continuidade’ costurada pelo presente surge, unitária e teleológica, como se todos os eventos tivessem um fim (um fim, um mesmo fim): a glória de Luís XIV, (a glória) de Napoleão, (a glória) das monarquias nacionais (etc)” (Bosi, 2003, p. 14).

Os pequenos episódios são os fundamentos da Psicologia Social. E os episódios malogrados, que dão a razão dos vencidos, são os fundamentos de uma Psicologia Social do Oprimido, como certa vez o Prof. João Alexandre Barbosa caracterizou a obra de Ecléa Bosi. Compreendamos, daí, uma lição desta psicóloga dedicada à memória, uma lição em grande acordo com Walter Benjamin: a memória precisa devolver não simplesmente o passado, mas o que o passado prometia. A memória, quando devolve o que o passado vislumbrou e o presente esqueceu, vinga os vencidos!

Mas eis que Ecléa nos leva, então, a um outro nível e o problema anterior cede a um outro problema e que, em certa medida, é o problema oposto. O tema dos pequenos episódios e dos comportamentos muito singulares continua em cena. Mas, agora, na mesma cena, a história oficial, a história que engole qualquer detalhe e divergência, perde a luz do palco. Aparecem outras figuras. Ecléa introduz as grandes teorias da história, menciona a teoria evolucionista e a teoria hegeliano-marxista. As novas figuras são brevemente iluminadas. Logo a autora antecipa que estas teorias (estas teorias, sabemos, pretendiam agarrar o fio da história, mas, talvez a segunda, sem ignorar os fatos marginais e sem ignorar os mortos; Marx admirou e fomentou movimentos operários), estas teorias, na década de setenta, vão cair. A autora declara: quando as grandes teorias da história entram em crise, um oceano de pequenas estórias vai encharcar a cena. A paixão de pequenas histórias tomou a consciência. Cresceu, não caiu. Mas decaiu. Veio a paixão por história aos pedaços, onde os pequenos episódios são visitados como fragmentos. E a autora vai aturdir o leitor, antes preparado para encarecer a crônica do cotidiano, os episódios transitórios, os eventos sem continuidade, as cenas de rua vividas por anônimos, os casos felizes ou pitorescos, tudo que é preservado pela memória oral. O entusiasmo é interrompido ou temperado. Antes, uma tese alertava: a história das cidades, quando se torna uma sucessão unilinear de tomadas do poder por forças dominantes, despreza a crônica como um gênero literário menor. A tese que alerta, agora, é outra: quando as grandes teorias da história entram em crise, entra em crise também o sentido da História Política. E preparemo-nos para o que vamos ler: esquecer o tecido histórico que sustenta os fatos é o caso da psicologia dos microcomportamentos. É preciso cuidar quando damos as costas a Marx, só porque decidimos que, também ele, pretendeu tudo abranger num só golpe de vista; o desprezo por teorias da história pode arrastar desprezo pelo sentido político da vida cotidiana e pode distrair da dominação.

Há outro exemplo, no mesmo ensaio, dessa dialética. Vem logo em seguida e vai tornar ainda mais complexo o caso anterior. Ecléa volta a encarecer a memória oral: a memória oral é condão precioso para quem deseje a crônica do cotidiano. Valoriza a palavra dos velhos, das mulheres, dos trabalhadores manuais, estes todos excluídos da história ensinada na escola. Somos especialmente advertidos sobre a memória dos velhos: as lembranças dos velhos são como um mediador entre a nossa geração e a geração que testemunhou o passado; são nossa ligação viva com o passado. Existem os mediadores institucionais: a escola, a igreja, o partido político. A memória oral, longe das viseiras unilaterais para as quais tendem certas instituições, faz ver por muitos lados, por lados distintos e até contraditórios: “e aí se encontra a sua maior riqueza”, escreve Ecléa. A memória oral, seguimos com a autora, não pode atingir uma teoria da história nem pretendê-lo. Mas: traz os ingredientes do que hoje chamamos História das Mentalidades, a História das Sensibilidades. E vem outra vez o giro que aturde. Lemos: a memória oral sempre corre o risco de cair numa “ideologização” da história do cotidiano que é, em quem lembra, o avesso da história hegemônica ensinada na escola. A memória oral tem seus preconceitos. Minha memória é afetada pela interpretação que dominou meu grupo social.

E virão outros giros: desconcertantes, lúcidos, empolgantes. A gente sente que aprende tanto!

Quanto aos escritores convocados neste livro, deixo apenas dois comentários. Há aqueles com quem, por assim dizer, Ecléa Bosi está em casa, está em seu próprio elemento. São escritores que alteraram sua vida, retiraram-na de si mesma tornando-a ainda mais própria. Baste o exemplo maior de um desses escritores. Uma escritora a quem Ecléa dedicou, com quatro ensaios, toda a terceira seção do livro: Simone Weil. O que une as duas mulheres? Coisas além, insondáveis. Mas ouso uma resposta. O que as uniu? A atenção.

O quarto ensaio da terceira seção, o último do livro, é justamente este: “A atenção em Simone Weil”. É insuperável o modo como Simone Weil soube avaliar este dom do espírito, a atenção. E guardo como ouro a compreensão dessa avaliação trazida por Ecléa e Alfredo Bosi.

A atenção é mais que percepção, é percepção sem pressa. Percepção por muitos perfis, a atenção pede deslocamentos ao redor da coisa. A atenção é trabalho, diz Alfredo Bosi: quer alcançar tanto as regularidades quanto os acidentes da matéria. E pede paciência, que é a calma de acolher e assistir o tempo de aparição dos seres todos.

A atenção é delicadeza, não arromba, não invade. E torna-se um máximo de delicadeza quando é atenção para o que nas coisas ou em alguém é segredo ou mistério.

A atenção é a cura das conversas. Há conversas que são a coincidência de idéias, a justificação do medo, a confirmação de preconceitos: abominam as diferenças, o espanto e o conflito. Mas há as conversas feitas de atenção e que são como uma troca de lugares: fazem trocar de lugar com o interlocutor. Fazem passar para o lugar de outrem como se fosse meu. Fazem perceber o estranho como se fosse familiar e fazem perceber o familiar como se fosse estranho.

A atenção é também o elemento do silêncio. O silêncio que toma a gente nos lugares em que parecemos sentir que tudo tem alma. O silêncio que a gente divide com as pessoas muito amadas. O silêncio que dividimos com os amigos mais eleitos. O silêncio dividido também com pessoas que mal conhecemos mas com quem acontece de cruzar olhos desarmados na cidade.

A atenção é o que mais devemos aos outros humanos. Os de perto e os de longe: uma forma incomparável de respeito. Ninguém é um só: uma pessoa é mais de uma e ligada a outras pessoas, ligada a coisas e lugares, natureza e cidades. A atenção tem gosto em ser cada vez mais devolvida a um, passando por seus outros.

A atenção é amizade que não depende de intimidade e pode contar em praça aberta, entre cidadãos. A atenção é como um deslocamento político: retira a gente dos espetáculos, das imagens prestigiadas, socialmente controladas e que, tão controladas, já não fazem ver mais nada. A atenção desloca para fora do poder, retira a gente dos comandos, depõe a regra dos superiores, traz para perto dos pobres, para perto dos rebaixados. Faz ver pelo ângulo dos humildes e dos humilhados.

Um segundo comentário. Sobre outro grupo de escritores convocados. São cientistas de Psicologia da Gestalt ou Psicologia Social. Max Wertheimer, Solomon Asch, Leon Festinger e Stanley Milgram. Comparecem, sobretudo na segunda seção do livro, especialmente nos ensaios “Entre a opinião e o estereótipo” e “Submissão e rebeldia em ‘O Capote’ de Gogol”.

São cientistas capazes de uma notável tradução de fenômenos perceptivos e fenômenos eminentemente sociais para a forma de experimentos simples. Fenômenos políticos, que contam na pauta mais urgente de Psicologia Social são trazidos para laboratório. A tradução experimental nunca deixa de empobrecer fenômenos, sempre mais densos quando encontrados em seu ambiente histórico, o ambiente de muitas determinações: determinações físicas, biológicas, econômicas e determinações radicalmente simbólicas. Justamente, o que chama atenção nos ensaios de Ecléa Bosi que partem daqueles experimentos é a operação de um movimento inverso, que devolve fatos experimentais aos fatos inspiradores. A operação escora-se no constante diálogo da autora com antropólogos culturais, filósofos, filósofos políticos, sociólogos e historiadores, todos obrigados a investigações muito exigentes, sem o funil do laboratório, investigações que reivindicam pesquisa sem fim, pesquisa documental e pesquisa de campo. A operação inversa também bebe da dedicação de Ecléa à poesia e à prosa literária. No ensaio sobre submissão e rebeldia, por exemplo, é o recurso a Nicolai Gogol, o contista russo, que vai coroar o estudo e vai ligar submissão e rebeldia à vida de trabalho e à vida de cidade. Os problemas da submissão e da rebeldia assumem, então, uma incontestável realidade e perceptibilidade: o texto de Ecléa vai falar ao homem comum e despertar uma consciência incomum. O outro ensaio: “Entre a opinião e o estereótipo”: começa examinando o que chamamos de opinião, passa pelo que os psicólogos da Gestalt chamam de estereótipo, chega ao tema do preconceito e termina falando em dominação: é um texto de psicologia social, o mais extraordinário que conheço sobre o vínculo entre preconceito, personalidade autoritária e dominação, ligando por dentro minuciosa psicologia e ciência política.

E um último ponto: o gosto de Ecléa Bosi por histórias. Caso não me tivesse uma vez declarado, isso seria de adivinhar. É que, na voz da professora e no texto da escritora, várias vezes, os fatos... viram história! São incluídos num drama vivo. Mesmo quando Ecléa adota o modo descritivo ou dissertativo de dizer e escrever fatos, uma história desponta. A explicação disso pode ser bem geral: quem não ama ouvir e contar histórias?

Mas, no caso de Ecléa Bosi, aposto o parentesco desse amor com o amor que tem por valores da cultura popular. Menciono dois valores entre os que Ecléa mais ama: o sentido do concreto e a constante referência ao que foi vivido. A cultura popular é feita por gente de sensibilidade e mentalidade modeladas pelo trabalho.

Leiam-se os ensaios “Apontamentos sobre a cultura das classes pobres”, também “O trabalho manual: uma leitura de Gandhi”, e é isso que aprendemos.

O sentido do concreto: coisas são vizinhas de outras coisas, árvores são vizinhas de árvores, bichos são vizinhos de bichos, pessoas são vizinhas de pessoas. Coisas e árvores, bichos e pessoas, são vizinhos uns dos outros e só existem por companhia. Somos seres por aliança, troca e confronto com outros seres. Nossas alianças, trocas e confrontos dão-se no espaço, mas, sobretudo, amadurecem no tempo: quem queira atinar com relações, precisará considerar a história das relações. Cada coisa é o que é, crescendo com seres outros. Assim também as árvores, os bichos e nós mesmos. Somos quem somos em comunicação e em silêncio com os outros. Separar e isolar, arrancar algo ou alguém de seus outros, é o mesmo que ignorar ou matar.

O trabalhador é muito tocado pela dependência que nós todos guardamos uns dos outros e pela responsabilidade que daí advém.

O pensamento e a palavra do trabalhador vem de um regime de consciência e linguagem inclinado a retirar do mundo sensível todas as suas figuras. O trabalhador é amigo das coisas sensíveis. O trabalhador tem sede de instrução: só gosta de escolas, professores e livros quando isso tudo é capaz de devolvê-lo à coisa sensível. O trabalhador reconhece ligações e faz ligações: liga coisas e liga operações, desliga, liga outra vez, liga como antes ou diferentemente. O trabalhador encarece escolas, professores, livros capazes de devolvê-lo à coisa e não só a coisa, mas a coisa e seu mundo, a coisa e sua história. Encontrar o mundo e a história das coisas é encontrá-las ainda mais.

O trabalho fomenta um espírito menos dirigido pela consciência intelectual do que pelo corpo, o corpo que lavra e fabrica. O corpo que, lavrando e fabricando, pensa. Maneja instrumentos, máquinas e observa. O trabalho fomenta experiências, fomenta saberes que não são puramente mentais. O trabalhador enfrenta a oposição das coisas. Não só: o trabalhador assimila a oposição das coisas. O trabalhador sofre as coisas e encontra na resistência delas uma orientação para o passo seguinte, encontra inspiração e sugestão naquilo que refreia sua operação. O trabalho faz superar caprichos da personalidade que quer tudo poder e tudo dirigir. A liberdade não está condenada a cancelar-se na matéria: pode receber da matéria sua oportunidade mais consistente. Há quem diga, por isso, que o trabalho cruza e reúne necessidade e liberdade. O trabalhador, porque avalia a necessidade, estima como ninguém a liberdade.

O trabalho forçado, reduzido a um mecanismo de repetição, a máquina dominando o maquinista, o trabalho vigiado: é como um operário conhece a opressão: por experiência e, mais uma vez, experiência corporal. Uma experiência moral inacessível para quem não a viveu materialmente. Traz uma amargura, foi o que disse Simone Weil, traz um desgosto que é como um cansaço profundo, essencial, o cansaço de alma mais ainda do que o cansaço de corpo. Esta amargura, este desgosto, este cansaço, para Simone Weil, explicam a pressa com que operários e operárias saem da fábrica para casa quase sem trocar palavra. O operário amarga o trabalho servil e a perseverança de um trabalhador no trabalho alienado é quase inacreditável. Sente o desgosto e contorna o nojo de trabalhar. É um dever. O fato é que a condição operária multiplica a amargura tanto quanto multiplica a saudade do trabalho livre. Donald Woods Winnicott e Gilberto Safra falam disso: a saudade do que não foi vivido. A privação, a falta, não traz ignorância do que faz falta: curiosamente, a falta não traz a consciência do que faz falta, mas um sentimento do que faz falta, um pressentimento que é como uma quase consciência e que pode levar à consciência. Encontramos sinais disso em Simone Weil e seus estudos sobre o desenraizamento operário: o trabalhador, mesmo quando não tenha vivido suficientemente o trabalho livre, sente saudade disso, é quase consciente disso, vive um sentido de liberdade que quem não trabalhou não vive. A fábrica, escreveu Simone Weil, deveria ser um lugar de alegria: que fosse inevitável o sofrimento do corpo e da alma, mas que sofressem sem aquele cansaço moral e a alma pudesse alimentar-se de alegria. A condição operária multiplica aquele cansaço tanto quanto multiplica o sentido dessa alegria: multiplica a saudade da igualdade e da participação. Igualdade e participação são o mesmo que Simone Weil chamou de enraizamento.

O homem para quem outros homens sempre trabalharam, e que vive de comandar, não tem dificuldade em descambar para o tipo presunçoso, autoritário e licencioso. É como vive a liberdade: como arrogância, superioridade e abuso. O operário pode cair em falsa consciência, escreveu Simone Weil, pode buscar compensações no sonho de um imperialismo operário que é a mesma coisa que adotar para si um sentido de liberdade que é próprio dos patrões. Mas fica sempre a possibilidade de uma outra consciência, porque há o pressentimento disso, a alegre saudade do que não foi vivido, a alegria da participação no trabalho e a alegria da igualdade, o direito de agir e falar como um direito de todos e cada um.

Este livro é também feito de conselhos aos pesquisadores de psicologia social. Algum pronunciamento, a este respeito, deixei noutro texto (ver Gonçalves Filho, 2003). Vou passar a vida contando o que é um mestrado e um doutorado orientados pela professora Ecléa Bosi: é o que acontece quando o que recebemos é muito maior do que nós.

 

Referências

Bosi, E. (2003). O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial.        [ Links ]

Gonçalves Filho, J. M. (2003). Problemas de método em psicologia social: algumas notas sobre a humilhação política e o pesquisador participante. In A. M. O. Bock (Org.), Psicologia e compromisso social (pp. 193-240). São Paulo: Cortez.        [ Links ]

 

 

Recebido em: 1/09/2007
Aceito em: 17/12/2007

 

 

1 José Moura Gonçalves Filho, Docente do Instituto de Psicologia - USP. Endereço eletrônico: zecam@usp.br