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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.19 n.1 São Paulo mar. 2008

 

PONTO DE VISTA

 

Comunhão e solidariedade1

 

 

Rachel Léa Rosenberg

 

 

A antiga imagem da fogueira, com pessoas à volta confidenciando, cantando ou orando, repete-se através da história das religiões, das tribos, das festas e dos acampamentos e é claro que ela tem uma função importante na cultura universal. Parece ser verdade duradoura que o ser humano precisa de contato caloroso para se abrir, da dança de luz e penumbra que reflitam o que ele sente em si, da sensação de parada no tempo para se dar tempo. Precisa poder se deixar ser para poder ser mais plenamente. E quando se reúne a outros, ao pé do fogo, precisa da segurança de conhecer cada um destes rostos que se dissolvem e se transformam à luz das chamas.

Estamos, portanto, falando de comunidade – expressão máxima da associação humana. Estamos falando de comunhão e de solidariedade, virtudes maiores da realização pessoal e social. A essência desta fórmula é condensada e permanente: para se conhecer e se desenvolver como indivíduo, há que passar pelo outro, pelo grupo, pela sociedade. Há apelo e magia no encontro. Seja ele de paixão, identidade de pensamento ou, como raras e preciosas vezes ocorre, de reconhecimento absoluto e imediato do outro como alguém diferente, que é igual a nós mesmos. É uma fórmula, talvez, inerente, impressa em nós todos, e procuramos vivê-la de mil maneiras. Constituímos famílias, fazemos amigos, inventamos projetos sociais e até organizamos comunidades que nos permitam estar mais próximos do encontro através da moradia, do trabalho, da brincadeira ou da luta – juntos.

Lentamente, o pêndulo retorna e constatamos a falta de um tipo de contato humano que nos escapa no trabalho, nas terapias de grupo, nas concentrações de massas e até, quem sabe, no amor. Queremos o autêntico total, em nós e nos outros, e perdemos a esperança de encontrá-lo. Queremos algo que nos facilite ser nós mesmos, sem disfarces ou esconderijos necessários para contarmos com os outros. Queremos o direito de sermos apenas nós mesmos, e que isto baste. São desejos que nos parecem utópicos, pois que “a paz entre os homens de boa vontade” se tornou na competição, na violência, no anonimato, na institucionalização e na tecnocracia. Nossas necessidades mais profundas nos parecem deslocadas, mas aceitamos os paliativos e meias soluções que nos são oferecidas.

No meio desta confusa discordância, entre o que o homem quer e o que o homem encontra, surge uma possibilidade de esperança, uma verdade que, como costuma acontecer, é simples. A complexa engrenagem de estruturas rígidas, que tolhem as pessoas, contrapõe-se à existência da pessoa para além das engrenagens, a pessoa que vibra, que renuncia e ama, busca e perde, sente, pensa, quer, sabe, ri, dá e compreende. Enquanto as engrenagens nos dominam, vemos tão somente a pessoa que faz, o que ela faz e como faz. E a valorizamos, sobretudo, em termos deste seu fazer – dinheiro, filhos, poesia, amigos, sorrisos. Pouco nos detemos a ver quem é ou como sente uma pessoa, ou como ela gostaria de ser entendida, pois considerarmos tais dimensões como de pequena relevância na fabricação de nosso mundo – e é até um distúrbio na ordem das coisas.

O que foi chamado de “ Encontro da Comunidade” parece representar um modelo que nos permite inverter o processo de nossa alienação. Falo de alienação como a distância que estabelecemos entre o que somos e a imagem que nossas próprias fachadas, duramente construídas, nos refletem. A meta deste tipo de encontro é viver mais próximo de nossa realidade individual, grupal e comunitária. Talvez não seja revolucionária ou mesmo muito nova esta proposta. Mas é importante termos descoberto e desenvolvido, no universo das relações interpessoais, uma solução que é nova porque nosso problema é novo, criado pelos avanços do nosso poder atual. Ou seja, a forma que estamos criando recebe seu significado exato do momento que vivemos e somos, momento exclusivo que nunca foi e nunca será igualado.

O modelo é abrangente, mas se descreve sucintamente: criar condições tais que cada pessoa se sinta ouvida, vista e respeitada exatamente como ela é realmente. Os termos são tão convencionais que seu som hoje parece oco, mas, em seu melhor sentido referem-se às funções superiores da capacidade humana. Vale lembrar que ouvir sem julgar, ou respeitar sem qualificar, são modos de relação em desuso no nosso convívio habitual. O que chega a ser assustador é o impacto que provocam estas armas tão singelas.

Elas liberam forças pessoais imensas e insuspeitas em cada participante desta experiência, às vezes com uma intensidade inicial difícil de suportar. É como se estas forças em nós permanecessem represadas até o momento em que podem ser plenamente acolhidas pelo grupo. É o que lhes confere harmonia e também a confirmação pelo grupo de modo que, gradualmente, estas forças recém desenterradas se integrem num novo Eu mais amplo e mais seguro, mais preparado para enfrentar as exigências da vida. A vivência particular, individualizada, constitui-se necessariamente no contexto do grupo e é nela que claramente entrevemos e aceitamos a nossa forma de ser. E é assim que nos descobrimos mais fracos, melhores e mais compadecidos do que sabíamos.

Muitas comunidades se formam com a perspectiva de ampliar o efeito somatório de esforços individuais para servir melhor a todos. Não tem ficado claro a razão de tantas fracassarem em seus propósitos, impossibilitadas de construir ou manter, no tempo, uma comunidade de fato. As experiências recentes com encontros centrados na pessoa – como o realizado em Piraçununga – permitem-nos sugerir que o erro básico nas tentativas de vida comunitária tem sido o de se conceituar a comunidade como uma entidade possível de ser planejada e construída, ao invés de uma qualidade transcendental, especial na convivência entre as pessoas. Trabalha-se pela comunidade como algo acima e fora dos membros que a compõem. Fala-se nos objetivos e nas direções de uma comunidade como de algo a que o indivíduo entrega as suas próprias aspirações. A vida em comunidade tem sido vista, sobretudo, como condição prévia para um convívio mais convergente quando, mais provavelmente, ela só pode ser resultante deste convívio convergido. A tese que hoje começa a se comprovar, neste tipo de encontro centrado na pessoa, é a de que paradoxalmente a verdadeira comunidade nasce do desenvolvimento pleno de cada indivíduo que nela se insere.

A tarefa em comum passa a ser vista não mais como o laço iniciador. Ela se cumprirá mais eficazmente quando decorrer da convicção plena de indivíduos, que dispõem de toda sua energia psíquica para nela se envolverem em uníssono. A maioria das comunidades ainda se forma com a expectativa de “produzir” resultados e pessoas melhores. Corre o risco involuntário e grave de, ao invés disto, transformar-se em mais um órgão repressor e tirânico, em que alguém se vê impedido a “tomar conta” dos rumos seguidos.

O “Encontro de Comunidade” apontou para a sabedoria do caminho inverso: o da comunidade voltada para a pessoa. Tudo isto tem a ver com o fato que a toda hora esquecemos: quando temos, podemos dar; quando recebemos, queremos dar.

 

 

1 Artigo original publicado na Folha de São Paulo, Agenda Especial: A “Folha” e as respostas da sociedade - Psicólogos apontam alternativas, 08 de agosto de 1981, p. 17.