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Psicologia USP

versión On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.19 n.2 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Reconciliando divergências: conhecimento implícito e explícito na aprendizagem1

 

Integrating divergences: implicit and explicit knowledge in learning

 

Reconciliant les divergences: connaissances implicites et explicites dans l’apprentissage

 

Reconciliando divergencias: conocimiento implícito y explícito en el aprendizaje

 

 

Maria Isabel da Silva Leme

Universidade de São Paulo, Docente do Instituto de Psicologia, Brasil


 


RESUMO

O trabalho busca integrar, com base em propostas recentes de vários autores, perspectivas acerca da aprendizagem concebidas como mutuamente excludentes. Essa reflexão se justifica em vista da importância de não se introduzir descontinuidade filogenética em um processo concebido como adaptativo, mas que é também cultural. Assim, são examinadas propostas acerca da coevolução da mente humana e da cultura que apoiariam tal perspectiva, propondo-se uma visão integrada da aprendizagem como um conjunto de processos organizados em um continuum implícito-explícito.

Palavras-chave: Aprendizagem. Cultura. Mente. Conhecimento.


ABSTRACT

The work aims to discuss different perspectives about learning, in order to examine how they can be reconciled. This objective is justified on learning’s adaptive and cultural role. Thus, we examine some proposals of mind and culture co-evolution, that provide a new theoretical basis for the explanation of learning, and also to reconcile different learning processes, organized in a implicit-explicit continuum.

Keywords: Learning. Culture. Mind. Knowledge.


RÉSUMÉ

Ce travail a pour but de réfléchir et d’intégrer diverses perspectives théoriques de l’apprentissage, qui sont apparemment contradictoires entre elles. Ce but se justifie par la nécessité de ne pas introduire des descontinuités dans un processus conçu comme adaptatif et, en même temps, culturel. Ainsi, nous examinons quelques propositions sur la co-évolution de l’esprit humain et de la culture qui appellent une perspective plus intégrée de l’apprentissage conçue comme un ensemble de processus organisés sur un continu implicite/explicite.

Mots-clés: Apprentissage. Culture. Esprit. Connaissances.


RESUMEN

En base a las propuestas recientes de varios autores, este trabajo pretende integrar perspectivas divergentes acerca del aprendizaje concebido como mutuamente excluyentes. Esta reflexión justificase en vista de la importancia de no introducir discontinuidad filogenética en un proceso concebido como adaptativo, que también es cultural. Así, son examinadas las propuestas sobre la co-evolución de la mente humana y de la cultura que apoyarían tal perspectiva, proponiendo una visión integrada de aprendizaje como un conjunto de procesos organizados en un continuum implícito-explícito.

Palabras-clave: Aprendizaje. Cultura. Mente. Conocimiento.


 

 

A preocupação em superar dicotomias é uma posição relativamente recente, que vem se fortalecendo no seio da Psicologia, que, a nosso ver, constitui um avanço. Reconciliar divergências no contexto deste trabalho significa conceber a aprendizagem humana não só como um processo de mudança resultante da experiência, mas como aquisição de conhecimento, por processos tanto implícitos quanto explícitos (Dienes & Perner, 1999). Tal posição, como procuraremos demonstrar a seguir, tem como vantagem uma visão não reducionista do processo de aprendizagem, diversa de perspectivas que a vêem ou só como mudança de comportamento, ou apenas como mudança de processos e representações. O primeiro caso trataria dos processos implícitos, como a associação, e os segundos dos explícitos, como a reestruturação. Tal posição tem ainda como vantagem não estabelecer descontinuidade entre a espécie humana e outras com um ascendente comum, como os primatas superiores, o que ocorreria se concebêssemos a humana como exclusivamente explícita.

Para explicar a validade de tal argumento de integração de diversos processos na aprendizagem humana, vamos, em primeiro lugar, procurar mostrar que a explicação baseada em só um processo, implícito ou explícito, é insuficiente. Passaremos então para a explicação de como é possível tal integração, buscando apoio em explicações oferecidas por teóricos como Mithen (2003) e Donald (1993), que postulam que a mente humana e cultura coevoluiram, o que favoreceu a progressiva explicitação da primeira e seus conhecimentos.

 

Processos implícitos como a associação

A aprendizagem é concebida como um mecanismo adaptativo no sentido de que as espécies que são dotadas de flexibilidade para se adaptar às mudanças ambientais tiveram mais sucesso reprodutivo. Ao que tudo indica, o primeiro mecanismo de tal adaptação, principalmente para as espécies bilaterais, que se locomovem para se alimentar, é a capacidade de detectar regularidades ambientais e realizar cômputos probabilísticos acerca das mesmas. Tal mecanismo é a associação, na forma de discriminação de diferenças e generalização de semelhanças, e também mecanismos pré-associativos como reação de orientação e habituação.

Na espécie humana há indícios de tal aprendizagem até em artefatos culturais como a linguagem escrita. Crianças ainda não alfabetizadas em idade pré-escolar são capazes de identificar classes de palavras como verbos, baseadas em regularidades como a sua terminação (Litman & Reber, 2005). Entretanto, as crianças não permanecem nesse estágio de mera discriminação ou associação do som final com o tipo de palavra, pois aprendem a identificar e extrair significado de verbos na escrita, de modo flexível, estando eles expressos em terminações variadas como tempo, pessoa etc. São ainda capazes, em um segundo momento, baseadas em seu conhecimento gramatical, de usar um verbo de modo correto, mesmo que nunca o tenha encontrado antes. Verifica-se, assim, que a associação é insuficiente para explicar esse progresso e flexibilização do conhecimento humano demonstrado pela criança em resultado da alfabetização.

Mas o que explicaria essa passagem de um conhecimento implícito, que a pessoa não sabe que tem, nem como adquiriu, para um conhecimento explícito, manipulável, sem estabelecer rupturas com outras espécies? E como explicar a passagem do conhecimento implícito, de natureza associativa, para um conhecimento que a pessoa é capaz de relatar e sabe como aprendeu?

Ao que tudo indica, a ausência de ciência desses conhecimentos resulta de seu processamento em módulos especializados no tratamento de informação ambiental, de modo relativamente independente e inacessível à consciência, resultante da sua seleção e adaptações ao longo da filogênese. Porém, como propõem alguns autores, tal acesso foi propiciado à espécie humana por ter criado cultura e, ainda, pelo fato desta ter coevoluído com a mente em um processo de interdependência. Essa evolução conjunta da mente e da cultura é o que permite que nossas representações sejam acessíveis e modificáveis, seja por meio da reflexão, seja pela reestruturação.

Para tanto, é preciso adotar a perspectiva de uma modularização moderada no cérebro e mente humanos, que, na analogia proposta por Mithen (2003), teria evoluído como as igrejas medievais: de um simples recinto para uma nave rodeada de capelas relativamente isoladas, e desta para uma nave central para onde convergem capelas laterais. A consciência humana seria essa nave central, situada no córtex frontal, estrutura relacionada ao aumento do cérebro de espécies sociais, que dependem da cooperação para sobreviver. Nesse estágio inicial, os processos nela realizados seriam gerais, adaptáveis a uma ampla gama de situações. À medida que adaptações a pressões ambientais foram sendo selecionadas, resultando em processamentos de informação mais específicos, como, por exemplo, o lingüístico, módulos especializados nesses processos foram sendo incorporados, mas ainda operando de modo independente. Novas adaptações, provavelmente ligadas à emergência das primeiras culturas, resultaram no acesso de processos consciente da nave central a essas informações processadas nos módulos. A comunicação dos módulos, por exemplo, perceptivos, se daria com essa nave que explicitaria a informação por eles processada.

Atribuiu-se, inicialmente, a diferenciação humana de outros primatas superiores ao bipedismo, que permitiu a liberação das mãos e conseqüente uso de ferramentas. Porém, como primatas também fazem uso de ferramentas, atualmente a explicação mais aceita para a emergência da complexificação da mente humana seria o viver em sociedade, pois o ambiente social é mais complexo, na medida em que provê mais variação mas, ao mesmo tempo, estabilidade, favorecendo a previsão de eventos rotineiros, comportamentos etc.

Nesse sentido, teríamos uma consciência primária, que seria o seu estado de vigília, por exemplo, e teríamos consciência como processo: estrutura que planeja, executa e avalia a ação.

Essa noção de consciência como processo dotado de intencionalidade demanda mecanismos de aprendizagem que permitam tornar explícito, para si mesma, o conhecimento. Essa passagem se daria em níveis de explicitação, como propõe Karmillof-Smith (1994), que postula a existência de três mecanismos para a explicitação, examinados a seguir.

 

Os processos explícitos de aprendizagem

O primeiro processo de explicitação seria a supressão representacional, que reprime ou ignora a contribuição de um estímulo. Um bom exemplo seria dado pela percepção de figura e fundo, como a bem conhecida taça e os perfis, análoga às estudadas pela Escola da Gestalt (Koffka, 1935/1955). Para ver a taça é necessário que se suprima o fundo, isto é, as bordas externas dos dois perfis, alocando-se a atenção apenas aos contornos internos, que configuram a taça. Da mesma forma, para que se veja os dois perfis frente a frente, é necessário reprimir a percepção da figura da taça, isto é, os contornos internos. Nosso aparato perceptivo não permite que vejamos as duas figuras ao mesmo tempo, mas conseguimos ver os dois alternadamente, controlando explicitamente uma dimensão de estímulo. É preciso salientar que alguns módulos são relativamente impenetráveis, não sendo, portanto, controláveis, o que está relacionado à sua antiguidade filogenética, ou seja, quanto mais arcaico, mais impenetrável. Quando isso ocorre, só resta a construção de representações alternativas.

O segundo mecanismo seria a suspensão representacional, que é um pouco mais construtivo. A representação inibida é substituída por outra função ou significante. Um bom exemplo seria o jogo de faz-de-conta da criança de dois a três anos, brincando em um tanque de areia. Ao oferecer areia a alguém, transformada simbolicamente em alimento em uma colher, demonstrará surpresa se a pessoa a quem ofereceu, como parte da brincadeira, a ingerir. Essa surpresa mostra uma relativa consciência existente na ação.

A redescrição representacional seria o terceiro mecanismo, operando em três níveis, sendo o primeiro o mais impenetrável. Isso porque explicitar envolve não só o objeto de representação, mas, ainda, a teoria mantida a seu respeito, e a perspectiva que orienta essa teoria, o agente, sua atitude, pragmática ou epistêmica. Só assim é possível superar o realismo ingênuo e aceitar que existem outras perspectivas de mundo, o que explica nosso sentido de agência e, portanto, de continuidade reconstruída, pela supressão de alguns componentes da experiência. A narrativa é um desses recursos culturais que dá sentido de continuidade em termos de experiência que, de outra forma, seria fragmentada e distribuída em estados representacionais descontínuos.

É importante salientar ainda que as representações implícitas não são eliminadas pela supressão, mas são apenas reprimidas e ativadas para uso em situações que demandam rapidez e automaticidade. Nessa concepção, conhecer em um sentido humano não consiste em substituir, mas, sim, em integrar, diferenciar e organizar. Entretanto, o conhecimento realmente humano, aquele que nos diferencia de outras espécies, é constituído pelas representações explícitas, representações sobre representações. Por exemplo: duvidar de algo envolve representar uma situação, mas também o seu inverso. Da mesma forma, prometer envolve a construção de uma realidade virtual, coexistente com uma atual, da qual difere no sentido de uma transformação de um estado ou mais.

Verifica-se, assim, que a explicitação só pode ser concebida com os recursos providos pela cultura, como, por exemplo, a representação de si, como um eu separado do outro, tempo representado e organizado e outros conceitos por ela forjados.

 

A evolução conjunta da mente e da cultura e os mecanismos de explicitação

Mente e cultura devem ter coevoluído juntas, como propõe Donald (1993), baseado em evidências das Neurociências, Paleontologia, Lingüística e Antropologia. Esse autor propõe três transformações cognitivas que levaram a novos modos de representação da realidade, e a novas formas de cultura. Essas novas formas de cultura, por sua vez, favoreceram a transformação da mente.

No nível inicial, teríamos a mente episódica, semelhante a de primatas como os chimpanzés. Essa mente seria dotada de uma Física intuitiva, e de outras noções como senso de numerosidade. Seria uma mente implícita e fortemente presa ao “aqui agora”. No segundo nível, teríamos a mente mimética, com acesso a um novo tipo de comunicação, apoiado em um sistema de representação corporal. A comunicação, que até então era mais rígida, se flexibiliza. A mimese poderia ser considerada precursora da capacidade de simular os estados mentais alheios, uma habilidade sofisticada que também seria responsável pela progressiva explicitação da mente humana. A mimese é uma habilidade mais complexa porque exige um controle progressivo da ação, no sentido de que é necessário representar simultaneamente o observado e transpô-lo para conduta.

O passo seguinte seria, segundo Donald (1993), a invenção do léxico, permitindo a emergência da mente simbólica. A conquista da linguagem não só permite representar o mundo, mas, ainda, favorece o avanço do conhecimento porque possibilita a representação na ausência do objeto. Permite, assim, perceber outras perspectivas de mundo e dialogar a respeito delas. Inicialmente, enquanto a linguagem é oral, a cultura se conserva e se transmite por narrativas, mitos e outras práticas. Porém, quando se dá a última transição, da externalização da memória na escrita, é que a cultura avança e permite a emergência da mente teórica há cerca de 3.000 anos. O surgimento da escrita liberta a memória da sobrecarga da retenção de informação oral, permitindo outras operações mentais sobre o mesmo. O conhecimento pode, então, ser objeto de reflexão, discussão, transformação e, portanto, de maior explicitação. A escrita muda a organização social do conhecimento. E, com isso, muda a mente, que passa de pragmática a epistêmica, passando a questionar, indagar, querer explicar. Parece legítimo, então, concluir que não existe mente sem cultura, nem cultura sem mente, como propõe Pozo (2005).

As representações culturais são geradas, preservadas, distribuídas e transmitidas como representações mentais. Mesmo apoiadas em representações externas, como, por exemplo, a escrita, só se tornam conhecimento quando há uma mente para lê-las e interpretá-las. Caso contrário, não passam de meros rabiscos ou desenhos, bem de acordo com a interpretação das crianças pequenas sobre a escrita (Ferreiro, 1985).

Concluindo, conceber a aprendizagem humana como exclusivamente implícita ou explícita implica em destituí-la, ou de cultura ou de uma história filogenética, introduzindo descontinuidade, impedindo sua compreensão enquanto algo dinâmico e em evolução.

 

Referências

Dienes, Z., & Perner, D. (1999). A theory of implicit and explicit knowledge. Behavioral and Brain Sciences, 22, 735-808.        [ Links ]

Donald, M. (1993). Précis on the origin of the modern mind: 3 stages in the evolution of culture and cognition. Behavioral and Brain Sciences, 16, 737-791.        [ Links ]

Ferreiro, E. (1985). As representações da linguagem e o processo de alfabetização. Cadernos de Pesquisa, 52, 7-19.        [ Links ]

Karmillof-Smith, A. (1994). Précis on beyond modularity. Behavioral and Brain Sciences, 17, 693-743.        [ Links ]

Koffka, K. (1955). Principles of gestalt psychology. London: Routhledge & Kegan Paul. (Trabalho original publicado em 1935)         [ Links ]

Litman, L. R., & Reber, A. S. (2005). Implicit cognition and thought. In K. J. Holyoak & R. G. Morrison (Eds.), The Cambridge handbook of thinking and reasoning. New York: Cambridge University Press.        [ Links ]

Mithen, L. (2003). A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência. São Paulo: UNESP.        [ Links ]

Pozo, J. I. (2005). Aquisição de conhecimento. Porto Alegre: Artmed.        [ Links ]

 

 

Recebido em: 30/10/2007
Aceito em: 10/04/2008

 

 

1 Prova escrita realizada para obtenção do título de livre-docente no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Maria Isabel da Silva Leme, Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Avenida Professor Mello, 1721, Butantã. CEP 05508-030. Endereço eletrônico: belleme@usp.br