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Psicologia USP

versión On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.19 n.4 São Paulo dic. 2008

 

DOSSIÊ

 

Consumo e obediência: a desarticulação da liberdade

 

Consuption and obedience: the dismantling of freedom

 

La consommation et l'obéissance : de démantèlement de la liberté

 

El consumo y la obediencia: el desmantelamiento de la libertad

 

 

Dulce Critelli*

Departamento de Filsofia da PUC/SP

 

 


RESUMO

Hannah Arendt inspira a reflexão do consumo em nossa atualidade e sua relação com a condição humana. A análise ocorre pela consideração de um fio condutor: a saciedade como comportamento básico da contemporaneidade.

Palavras-chave: Filosofia do cotidiano, Política, Ética.


ABSTRACT

Hanna Arendt inspires a reflection about presentday consumption and its relation with the human condition. The analysis describes the concept of saciety as a basic behavior of present times.

Keywords: Philosophy of daily life, Politics, Ethics.


RÉSUMÉ

Hannah Arendt inspire la réflexion de la consommation dans notre époque actuelle et sa relation à la condition humaine. L'analyze est l'examen d'un point commun: la satiété que le comportement de base de la contemporanéité.

Mots-clés: Philosophie de la vie quotidienne, Politique, Éthique.


RESUMEN

Hannah Arendt inspira a la reflexión de consumo en nuestro momento actual y su relación con la condición humana. El análisis es la consideración de un hilo común: la saciedad, como el comportamiento básico de la contemporaneidad.

Palabras clave: Filosofía de la vida cotidiana, Política, Ética.


 

 

Um convite à reflexão, esse é o propósito das considerações tecidas aqui. Ainda que, em especial, o pensamento da filósofa e teórica da política Hannah Arendt tenha nos fornecido luz e orientação, as referências conceituais não são tomadas aqui como fins em si mesmas, e sim como ferramentas para a compreensão mais alargada da existência. Há um pressuposto que sustenta essa escolha: a convicção de que só desvelando o contexto e o significado de nossas vivências poderemos nos alocar nelas com liberdade para transformá-las.

Nossas considerações começam pelo enunciado dos pressupostos que orientam nossa reflexão e, então, prosseguem com a análise do consumo, selecionando nele um fio significativo para elucidarmos tanto o problema mesmo do consumo quanto sua possível superação.

 

Pressupostos - Condição Humana

1 Exercício de Atividades

Em A Condição Humana, Hannah Arendt (1981, pp. 15-20) desenvolve a perspectiva de que a presença dos homens no mundo se faz através do exercício de atividades. Desde Aristóteles, essas atividades se dividem em dois grupos, as relativas à ‘vida do espírito’ ou vida contemplativa (pensar, querer e julgar) e as atividades mundanas, ou relativas à ‘vida ativa’ (labor, trabalho e ação). Cada uma dessas atividades visa a atender às finalidades que, de uma perspectiva ontológica, se originam das próprias condições humanas. Entre elas, e para o propósito deste texto, interessa lembrar as atividades relativas à vida ativa e as condições humanas às quais correspondem:

– a atividade do Labor visa a atender às exigências ou fins da condição humana da Vida Biológica: preservar a própria vida, individual e da espécie, e satisfazer as necessidades vitais;

– a atividade do Trabalho visa a atender a condição humana da Mundanidade, que é a de construir sobre o mundo natural um habitat, ou seja, um mundo artificial, de artefatos, que perdure por gerações;

– a atividade da Ação visa a atender a condição humana da Pluralidade, o fato originário dos homens viverem em conjunto, e a condição inerente a essa, que é a Singularidade, o fato de cada homem ser um indivíduo exclusivo e irrepetível. A Ação visa a permitir esse viver em conjunto e diz respeito aos ‘negócios’ humanos.

Há uma outra condição humana, de capital importância para Arendt e para nossas reflexões sobre o consumo, que não é atendida, especificamente, por nenhuma atividade em particular, mas que tem um vínculo particular com a Ação. Trata-se da condição humana da Natalidade, que se refere ao nascer como indivíduo singular para uma comunidade humana. Cada ser humano, só com seu nascimento, mesmo sem saber e querer, instaura uma nova cadeia de relações entre os que já estavam no mundo. Nascer é trazer o novo ao mundo e instaurar nele a possibilidade de uma nova ordem. Arendt encontra nas palavras de Santo Agostinho, de que “o homem foi criado para que no mundo houvesse um começo”, a inspiração para seu delineamento da condição humana da ‘natalidade’. Natalidade, portanto, é iniciar, introduzir e possibilitar o novo. É o mesmo que ser livre e o mesmo que agir. Ação, Liberdade e Iniciar são três termos que, em Arendt, se correspondem e equivalem.

O consumo pertence à atividade do Labor.

2 Temporalidade

Uma das marcas fundamentais da condição humana é ser ‘temporal’. Viver é estar em constante trânsito entre três horizontes temporais: o passado, o presente e o futuro. Somos, fomos, seremos, ou é, foi, será, são as três convocações que coabitam em todos os nossos pensamentos, palavras e obras cotidianos. Portanto, estamos sendo chamados e correspondendo a apelos, isto é, num constante aprontamento de nós mesmos, e da nossa condição humana.

Heidegger (1997, pp. 361-471) nos lembra que, dentre esses três horizontes temporais, aquele que, de fato, cria mobilização, é o futuro, pois dele emergem os apelos que nos convocam e se instauram como fins que queremos realizar. Entre eles, tanto podem se manifestar o desejo de estar do outro lado da rua quanto fazer uma poupança, ou viver em um mundo mais justo.

Ouvimos a convocação do futuro a partir da nossa inserção no presente. Mas antes que tal convocação atinja efetivamente o presente (onde, efetivamente, podemos agir para realizar o que potencialmente ‘está por ser’), o futuro promove uma conexão imediata e original com o passado. Nele está o registro das experiências realizadas e/ou afastadas frente às convocações semelhantes a estas que o futuro nos faz. Atravessamos a rua, em direção à calçada do outro lado, dirigidos pelas lembranças e condicionamentos, pelos hábitos adquiridos de como atravessar uma rua e pelos significados aí implicados. É verdade que não percebemos que o passado está dirigindo nossos gestos, pois parece sempre que o fazer concreto e imediato é único e inaudito. Talvez o que está sendo feito seja, de fato, algo único, mas não o ‘modo’ de fazê-lo.

O ‘modo de fazer’ (também de pensar, de falar, sentir) é uma herança do passado, longa e historicamente construído. O hoje é sempre a consolida ção das respostas do passado a apelos de um futuro. E são os ‘modos de se fazer’ que, entrelaçados, dão corpo ao que Arendt (1968, p. 127) chama de Tradição.

Se o que convoca nosso existir é o futuro, é a tradição que instrui o presente. Distraídos, apenas repetimos a tradição. Mas, se estivermos atentos a essa junção dos três horizontes temporais, podemos nos situar melhor no presente e escolher os modos de corresponder a essa convocação do porvir.

O tempo, portanto, se oferece como a base da história humana. Em outras palavras, a história é uma resposta humana ao tempo.

3 Sociedade de Massas

Enquanto consolidação das respostas que nossa história deu aos apelos do futuro, nosso presente é nossa tradição concretizada, ou seja, ele é nossa contingência: lugar e modo da nossa existência. E nossa contingência é, hoje, a de uma Sociedade de Massas. Dos elementos que dão à sociedade de massas suas características fundamentais, destacamos três: o liberalismo, a massificação mesma e o controle.

Ao colocar em foco o liberalismo, salientamos nele a finalidade de acumulação de riqueza. É uma convocação que se perpetua como algo ainda a ser, incessantemente, realizado. Historicamente, nos lembra Arendt (1981, p. 121) que quando a riqueza deixa de ser um meio para garantir a preservação da vida humana e a satisfação das necessidades vitais (individual e da espécie), tornando-se um fim em si mesma, temos o nascimento do que chamamos de Capital. Um processo que visa exclusivamente, e cada vez mais, a produção de riqueza. Um processo que se torna fim de si mesmo, isto é, que visa manter-se como processo. Um circuito sem fim. O meio articulado para promover a produção inesgotável da riqueza é o esquema da produção-consumo. Mas é um esquema que só garante o crescimento da riqueza para o próprio produtor ou detentor do capital e dos meios de produção. O consumidor não produz a própria riqueza através do seu consumo, embora o consumo se torne, para ele, o emblema equívoco de acesso à riqueza. Nesse esquema, portanto, o consumo, e não a riqueza, é o que se mostra como finalidade para o consumidor, aquilo que lhe faz constantes convocações.

A segunda característica de uma sociedade de massas é exatamente o processo que lhe dá o nome: a massificação. Algo que é, simultaneamente, resultado e processo. Implica na produção da mesmidade. Espera-se, com seu emprego, que os indivíduos se tornem equivalentes entre si, no que diz respeito aos seus valores, interpretações da vida, anseios, receios, juízos, desejos, linguagem e atitudes. Trata-se da configuração de um mesmo modo-de-existir a ser adotado por todos e por ninguém em particular. Difunde-se a aversão às diferenças e o incentivo ao comportamento propriamente dito, definido exclusivamente como obediência. Toda a ‘ação’ humana, ou seja, todo gesto que inicie uma nova cadeia de reações e interpretações de ser, novos modos-de-ser, são repudiadas. Reprimir a ação é o mesmo que reprimir a liberdade ontológica dos homens. É impedi-los de ouvir os apelos do futuro de forma inaudita e de encontrar novas maneiras de corresponder a eles.

Por fim, a sociedade de massas é definida pelo exercício inesgotável do controle. O controle do consumo, o controle dos modos-de-ser, o controle dos fins e dos processos gerais da existência. Em nossos dias, o recurso mais desenvolvido e disponível do controle é a formação da Opinião. Para tanto, constitui-se uma interação entre a mídia, a burocracia e a escola, como os canais e as ferramentas básicos e indispensáveis para a modelagem da estrutura social e dos modos-de-ser (aparentemente) individuais. A literatura ficcional, a filosofia, os estudos culturais e antropológicos, entre outros, têm se dedicado muito e há tempos à delimitação e análise desse fenômeno contemporâneo.

4 Condicionamento

O último pressuposto eleito diz respeito a uma outra condição humana que Arendt (1981, pp. 15-20) nomeia de “condicionamento”. Para ela, tudo aquilo que adentrar nossa realidade e perdurar entre nós tornase nossa nova condição humana. Diante desse novo elemento, é a própria humanidade dos homens que se transforma e redefine. Por exemplo, desde o desenvolvimento e a introdução em nossa vida da ciência, da tecnologia e da informática, nossa humanidade sofreu uma espécie de mutação. É o mesmo que ocorreu com a descoberta do fogo pelos homens, com a invenção da imprensa e equipamentos semelhantes. O condicionamento acontece, também, em referência aos nossos valores. Podemos, por exemplo, pelo condicionamento a certos valores, tornarmonos uma comunidade de assassinos, de fanáticos, de bárbaros, ou de solidários, de intelectuais, de justiceiros.

É o condicionamento que nos revela mais claramente o quanto nossa humanidade depende de nosso percurso e das realizações históricas. Somos o que fazemos, em que acreditamos, o que pensamos, como fazemos, cremos e pensamos... Nossa humanidade jamais está pronta, mas se apronta segundo seu próprio existir.

 

O fio condutor: consumo e saciedade

O fenômeno básico que escolhemos como guia para nossas reflexões a respeito do consumo é, na verdade, uma tendência de comportamento na nossa sociedade. Uma atitude, uma postura contemporânea que não só se repete à exaustão, mas parece traduzir nosso modo-de-ser corriqueiro e cotidiano. Trata-se de um modo-de-ser comum a todos nós: a busca da saciedade.

Todavia, não há a referência à saciedade diretamente. Nós a chamamos por outro nome: felicidade. Nossa atualidade vive o mito da felicidade como saciedade. Um exemplo claro são as diversas pesquisas feitas ultimamente, muitas delas realizadas pelas ciências econômicas, que buscam mensurar a felicidade dos indivíduos. Mas felicidade é um sentimento ou uma experiência humana que não pode ser objetivada. Ela é mais ou menos como um selo de qualidade que carimba ou autentica nossos gestos, conquistas e decisões, confirmando que estamos no caminho certo, que fizemos o bem, que nossa realização pessoal está na escolha que fizemos, na resposta que demos a alguma circunstância, na atitude que tomamos, no reconhecimento de que nossos esforços valeram à pena..

Felicidade não é, portanto, nada que possa ser classificado, padronizado, nem assumir tons de generalidade. Somos nós mesmos, enquanto indivíduos únicos, que sabemos o que nos realiza efetivamente. O padrão para o reconhecimento da felicidade é peculiar a cada um de nós, e não há padrões objetivos capazes de configurá-la. Ela pode ser compartilhada, mas dificilmente duas pessoas se sentiriam felizes com as mesmas coisas e no mesmo momento; é um evento raro. A única maneira possível, portanto, de medir a felicidade, é convertendo-a em algo que ela não é, e a revestindo de padrões universais que lhe serão sempre alheios.

Os estudos contemporâneos sobre a felicidade, para se efetivarem, têm que transformar a felicidade em algo palpável e mensurável. Interpretam a felicidade como saciedade para, então, poder calculá-la, e não fazem isso sem respaldo em nossa tradição. Porém, já não se trata mais de felicidade. Felicidade e saciedade são fenômenos distintos e irredutíveis entre si. Enquanto a felicidade é um anseio humano atemporal, a saciedade é um modo-de-ser determinante de nossa cultura ocidental moderna e contemporânea.

Vista em si mesma, a saciedade é um estado provisório, é o resultado de um processo cujo meio consiste em “consumir algo”. A saciedade corresponde à satisfação de desejos, apetites, necessidades, caprichos, objetivos. E é o corpo, sobretudo, que se sacia: satisfaz sua sede, fome, desejo sexual, frio, calor, reconhecimento, companhia... Através do ‘consumo ’ do alimento, da água, do calor, do corpo do outro. O corpo consome sorvendo, ingerindo. Destrói o que consome para reconstruir/satisfazer a si mesmo. É um processo inesgotável que, como tal processo, constitui o movimento específico da vida biológica, seu mecanismo principal. Quando elencamos nossos pressupostos, apontamos, com Arendt, que a atividade humana que visa a atender as necessidades vitais é o Labor. O Labor providencia a saciedade da vida biológica, prioritariamente.

É específico do processo da saciedade gerar o seu próprio contrário. Embora o consumo, ou o ato de consumir, tenha por finalidade imediata a satisfação de necessidades, a saciedade conquistada não perdura. O movimento de consumir para saciar-se acaba gerando outra vez a mesma condição que promoveu o consumir. A fome, por exemplo, promove as atitudes de buscar alimento, apropriar-se dele transformandoo, ingeri-lo, metabolizá-lo, mas, também, eliminá-lo. Pouco depois da saciedade, o corpo experimenta novamente a falta. Há, no movimento biológico da saciedade, o estabelecimento de um círculo vicioso que se alterna entre saciedade e falta.

Dessa contingência biológica, o esquema social de produção-consumo se aproveita, produzindo constantemente mais falta para provocar mais consumo. E, evidentemente, alastra a relação falta-saciedade-falta para todas as outras áreas da vida humana que transcendem o meramente biológico, submetendo-as a esse ‘modo’ peculiar que pertence à vida biológica. Tudo deve ser consumido, tanto o pão quanto o carro, o imóvel, as relações pessoais, amorosas.

O interessante é que, sob esse esquema, mais do que sentir-se satisfeito, importa manter-se na busca pela satisfação. Instaura-se o império do que é o mais particular do consumo: consumir sem consumar. A busca ininterrupta por saciedade acaba por tornar-se o modo-de-existir básico e fundamental da Sociedade de Massas e, assim, autoriza o mito da felicidade como saciedade. Ficamos todos atrelados ao ritmo do consumo, como se consumir fosse a única maneira que nos projeta em nossa contemporânea humanidade e nos pode trazer qualquer realização e sentido de vida.

O consumo, enquanto base da sobrevivência e da satisfação das necessidades vitais, é básico para todas as camadas da existência e para as demais atividades da ‘vida ativa’, como o Trabalho e a Ação. Todavia, o preço dessa saciedade, numa sociedade fundada no processo do Capital, é sempre e cada vez mais caro. Por isso é preciso, cada vez mais, tempo diário e mais empenho para conseguir acesso ao consumo mais primário. É dessa maneira que o esquema de produção-consumo do Capital mantém os homens submissos aos seus interesses de produção e acumula ção de riqueza. Absorvidos no ciclo incessante do Labor e do consumo, não há tempo para o novo ou para a reflexão, apenas para o comportamento disciplinado, para a pura e irrefletida obediência.

Os gregos antigos consideravam a busca da satisfação das necessidades vitais, a atividade do Labor, como aquela atividade que mais assemelhava os homens aos animais, por estar voltada unicamente para as necessidades do corpo e da sobrevivência. Uma atividade fundamental, mas que nos privaria do exercício de outras atividades em que o mais humano do homem pudesse se manifestar. O Labor é sempre uma atividade ditada pela condição da mortalidade. Uma defesa da morte, e não a tentativa de superá-la.

O que chamava a atenção dos gregos era que o animal morre com a sua morte, mas não o homem. Em função de seus feitos e discursos, os indivíduos têm sempre a chance se imortalizarem, permanecendo na lembrança das gerações que o sucederem exatamente por seus atos e palavras. A conquista da fama e da glória, por exemplo, era na época aquilo que convocava os homens para a ação e não apenas para o labor ou o trabalho. Seu existir era iluminado por esse modo-de-ser que os conduziria para o pleno de sua condição humana, e para a memória dessa plenitude singular.

Comparados aos gregos, vivemos hoje na sua exata contraposição. Submetemos todo o nosso agir, não para conquistar a imortalidade, fama ou glória, mas para saciar nossas necessidades vitais (naturais ou fabricadas). Vivemos aferrados ao Labor e à sua dinâmica. Aceitamos abrir mão da procura do pleno da nossa humanidade (que podem ser outras coisas além da fama e glória) em favor de nos mantermos abastecidos e saciados. Ávidos de saciedade e cada vez mais afundados na experiência da falta. Cada vez mais identificados com a repetição infinita do ciclo vital: falta-produção-consumo-saciedade-falta...

Na experiência unívoca do consumo expõe-se a repressão extrema da condição humana da natalidade e a priorização do labor. O que pode romper com a cadeia cíclica do labor é a Ação. Ligada, como lembramos anteriormente, à condição humana da natalidade, a ação é a única atividade que nos poderia lançar para longe do aprisionamento frente ao consumo e do círculo vicioso da saciedade. A capacidade da Ação é aquela que nos permitiria superar a obediência, em favor da inovação, do posicionar-se e expressar-se no pleno de nossa humanidade.

No entanto, nossa vida cotidiana, cultural e social, expressa profundo desprezo pela Ação e professa a exaltação do Labor; em detrimento, inclusive, de tudo o que pertence à esfera da ‘vida contemplativa’ (que não foi nosso intuito explorar aqui). A absorção total no consumo e, portanto, no Labor, exige a irreflexão, a equivalência entre as pessoas, a não diferença, o afastamento de si mesmo, nenhuma intimidade genuína consigo e com os outros, nenhuma escolha ou decisão. Portanto, nenhuma escolha, nenhuma iniciativa ou liberdade.

Na compreensão da experiência grega e de sua busca de fama e glória em razão da imortalidade, talvez encontremos não o modelo, mas a inspiração para a saída desse círculo vicioso em que nossa sociedade se aprisionou. Uma indicação de que merece incentivo o agir, e não a disciplinada obediência ou o comportamento. Que merece o foco de nossos projetos o cuidado com a condição humana da natalidade, pois ela é a nossa chance de um mundo novo e de qualquer transcendência.

 

Referências

Arendt, H. (1968). Que é autoridade? In H. Arendt, Entre o passado e o futuro (pp. 15-20). São Paulo: Perspectiva.        [ Links ]

Arendt, H. (1981). A condição humana. Rio de Janeiro: Florense Universitária.        [ Links ]

Heidegger, M. (1997). El ser y el tiempo. México: Fondo de Cultura Económica.        [ Links ]

 

 

Recebido em: 30/04/2008
Aceito em: 16/08/2008

 

 

* Dulce Critelli, Professora Titular do Departamento de Filsofia da PUC/SP – Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia e Coordenadora do Existentia – centro de orientação e estudos da condição humana. Endereço eletrônico: dulcecritelli@existentia.com.br