SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 número2A paralisia cerebral na adolescência: resultados de uma investigaçãoA transição para a paternidade: da gestação ao segundo mês de vida do bebê índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.20 n.2 São Paulo jun. 2009

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Migração e referenciais identificatórios: linguagem e preconceito

 

Migration and identified referncials: language and prejudice

 

Migration et référentiels identificatoires : langage et préjugé

 

Migración y referenciales de identificación: lenguaje y preconcepto

 

 

Sueli Damergian

Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

A ausência de diálogos no mundo massificado impõe um discurso padronizado. Tenta-se eliminar as diferenças e os limites que estruturam as identidades são ameaçados. A violência desse mundo joga para a periferia grandes segmentos da população, condenados a viver em condições desumanas. Migrantes e imigrantes, desenraizados dos fundamentos de suas identidades, constituem parte expressiva dessa população. Grandes metrópoles, como São Paulo, são verdadeiros lócus do embate intercultural que os ameaça. Nossa discussão se apóia em trabalho de pesquisa anterior com crianças nordestinas em escolas paulistas – pudemos constatar o preconceito, a humilhação que atingem essa população. O ponto de partida para a humilhação é, quase sempre, sua linguagem regional, vista como errada e inadequada. A lingüística e a sociolingüística nos mostram o contrário. Entretanto, tudo que enraíza e fortalece a identidade é negado. A “barbárie civilizada” destrói desejo, sonhos, esperança, alteridade.

Palavras-chave: Migração. Referenciais identificatórios. Linguagem. Preconceito.


ABSTRACT

The absence of dialogues in the massive world obligates a standardized speech. We try to eliminate the differences, and the limits that identities are threatened. The violence of this world transfers to the periphery a big section of the population, condemned to live in inhuman conditions. People from other cities or other countries, extirpated of their identities bases, constitute expressive part of this population. Big metropolis, like São Paulo, are the whole locus of the cultural impact that threatens them. Our discussion supports in a earlier scarch work with children native of of northeastem in schools of São Paulo – we could evidence the prejudice and humiliation that affect this population. The starting point for the discrimination is almost always their regional language, almost always considered as wrong and inappropriate. The linguistics and sociolinguistics shows us the opposite. However, everything that establish oneself is denied. The civilized barbarity destroys desires, dreams, hopes and alterity.

Keywords: Migration. Identified Referiancials. Language. Prejudice.


RÉSUMÉ

L’absence de dialogues dans le monde massifié impose un discours standartisé. On essaye d’éliminer les différences et les limites qui struturent les identités sont menacées. La violence de ce monde envoie vers le banlieue d’immenses segments de la population, condamnés a vivre en conditions inhumaines. Migrants et immigrants déracinés des fondements de leurs identités, constituent partie expressive de cette population. Les grandes métropoles, comme São Paulo, sont véritables locus du choc interculturel qui les ménace. Notre discussion s’appuye sur un travail de recherche précédent avec les enfants du nord-est à des écoles de Sao Paulo. Nous avons pu observer le préjugé, l’humiliation que touchent cette population. Le point du départ pour l’humiliation est, presque toujours, son langage régional, vu comme incorrect et inadéquat. La linguistique et la sociolinguistique nous enseignent le contraire. Néanmoins, tout ce qui enracine et renforce l’identité est refusé. La «barbarie civilisée» détruit envies, rêves, espoir, alterité.

Mots-clés: Migration. Réferentiels identificatoires. Langage. Préjugé.


RESUMEN

La falta de diálogo en el mundo masificado impuso un discurso unificado. Se plantea la eliminación de las diferencias y así los límites que permiten estructurar a la identidad suelen estar amenazados. La violencia del mundo empuja grandes segmentos de la población hacia la periferia, condenados a condiciones de vida deshumanas. El que migra y el inmigrante que se pierden de las raíces que sostienen sus identidades constituyen parte sustancial de esta población. Grandes metrópolis, como São Paulo, son verdaderos locus del encuentro entre culturas que amenaza a los que ahí llegan. Nuestra discusión está apoyada en la pesquisa que se realizó anteriormente con criaturas de familias inmigrantes que llegaron del nordeste brasileño a las escuelas de São Paulo – hemos constatado el preconcepto y la humillación que se manifiestan perjudicando a esta población. La humillación se inicia casi siempre por el uso que esa población hace de su lenguaje regional que se lo considera como si fuera errado u inadecuado. La lingüística y la sociolingüística plantean el contrario. Entretanto todo que le permitiría a la criatura establecer raíces y fortalecer su identidad le es negado. La “barbarie civilizada” lleva a la destrucción del anhelo, de sueños, esperanza y alteridad.

Palabras-clave: Migración. Referenciales de identificación. Lenguaje. Preconcepto.


 

 

Dissemos, em trabalho anterior que “o mundo massificado é ausente de diálogos, impondo um discurso padronizado na tentativa de eliminar as diferenças, forma de eliminar os limites que estruturam as identidades”.

Assim como a troca de experiências é fundamental para a construção da subjetividade, a aceitação do outro como singular, como ser desejante, portador de uma identidade psíquica e de uma identidade cultural, é crucial para a sobrevivência do humano.

Quando o contato intercultural leva a um choque em que o dominador tenta eliminar as diferenças que caracterizam o dominado (o que já ocorre inconscientemente por parte desse, através da identificação com o agressor), não é apenas a sobrevivência de uma dada comunidade cultural que está ameaçada. O humano está ameaçado. (Tassara & Damergian, 1996, p. 307)

Essa ameaça, violência crescente ao humano, desfila cotidianamente, das mais variadas formas, diante de nossos olhos espantados. Uma das mais dolorosas formas de sua expressão é a que atinge os migrantes, pelo sofrimento psíquico causado àqueles que a fome, a sede, a perseguição, a falta de trabalho arrancam de sua terra natal. Infelizmente não estamos imunes, no Brasil, à discriminação étnica, racial, social, cultural que se volta contra o diferente, e o migrante é um diferente a enfrentar o embate intercultural.

Negados na sua diferença, discriminados, desenraizados territorial, cultural e psiquicamente, os migrantes são os grandes perdedores desse embate, em sua maioria. Os elementos obtidos em pesquisa que fundamenta outro de nossos trabalhos (Damergian, 1981) nos permitem exemplificar nossa discussão (acrescida de outros dados de observação) através de um caso de preconceito contra crianças nordestinas na área metropolitana de São Paulo, a partir do uso de seu dialeto regional.

 

A linguagem dialetal como fator de discriminação e humilhação

Nesse trabalho, nosso interesse era investigar a existência ou não de rejeição contra falantes do português não-padrão nordestino em escolas paulistas e, se existente, qual a extensão dessa rejeição, objetivo maior de nossa pesquisa. Entrevistamos e fizemos observações em salas de aula de escolas de 1º grau (1ª a 4ª série) da periferia do ABC paulista, trabalhando com crianças nordestinas, não nordestinas e professoras.

A explicação sociolinguística das relações entre língua-padrão e língua não-padrão nos permitiu encarar essa relação não só do ponto de vista da língua como tal, mas também do ponto de vista dos falantes que interagem numa sociedade. Tal possibilidade nos levou imediatamente para o problema do grupo minoritário como alvo de preconceito.

Discutindo e analisando primeiramente o material das entrevistas à luz das concepções da Sociolinguística, apoiando-nos em Labov (1973), evidenciou-se para nós a adequação do falar regional enquanto variante dialetal da língua padrão. Utilizando-se de construções complexas, relações lógicas, as crianças nordestinas demonstraram habilidade para manejar a língua de modo a poder se orientar de forma adequada no meio social e a se fazerem compreender quanto ao conteúdo daquilo que queriam comunicar.

O que se configurou, então, foi uma situação em que a rejeição não se limitava apenas à língua utilizada mas que comprometia aspectos mais amplos da vida do falante, indo além das explicações que a Sociolinguística podia nos oferecer. E são as implicações dessa situação que nos interessa discutir aqui, seguindo o caminho da Psicologia Social que estamos acostumadas a trilhar.

Reproduziremos parcial e resumidamente uma parte dos dados obtidos em nossa pesquisa a fim de ilustrarmos nossa discussão. Apesar do tempo decorrido, a nossa observação e os fatos do cotidiano apontam para a atualidade do problema.

Um dos aspectos que mais se destacam no conjunto do material obtido é a explicitação de atitudes etnocêntricas por parte de professoras e alunos paulistas em relação aos alunos nordestinos. Como a literatura da Psicologia Social tem demonstrado, a pessoa etnocêntrica tende a atribuir ao seu grupo todas as boas qualidades e ao grupo diferente as más qualidades, uma vez que o grupo “diferente” é a negação do bom.

Esse aspecto aparece de maneira quase padronizada em certo tipo de afirmação comum à maior parte das professoras ouvidas, ou seja, “elas são mais fracas que as crianças daqui”. Tal tipo de afirmação (com algumas variações estilísticas, mas sempre com o mesmo significado) denota uma visão de superioridade das crianças paulistas em relação às nordestinas. O juízo, aqui, é de valor e não de realidade, pois nem todos os alunos paulistas são mais fortes e nem todos os nortistas e nordestinos são mais fracos, necessariamente, o que pode ser comprovado pela prática pedagógica.

Mas há outros exemplos que acentuam ainda mais a base etnocêntrica de tal tipo de explicação.

Quanto ao rendimento escolar das crianças que vêm do nordeste, nunca serão alunos excelentes. Em geral, são alunos de médio para baixo. (Profa. A, entrevista nº 10)

Os alunos que vêm do nordeste apresentam muito mais dificuldades do que os daqui. (Profa. C., entrevista nº 1)

As nossas crianças são alfabetizadas pelo método global. Seus erros são normais e a criatividade é muito rica. Os nordestinos não têm criatividade como os nossos alunos. (Profa. M. J., entrevista nº 3)

Agora, quanto ao seu rendimento escolar, de modo geral eles são inferiores mesmo. (Profa. S. entrevista nº 5)

Eles são bem mais fracos, o modo de escrever é errado (Profa. A, entrevista nº 6) As crianças nordestinas apresentam um rendimento muito fraco. Elas são lentas. São mais fracas que as crianças paulistas. Têm mais problemas em linguagem, mais problemas para conversar.... Elas não têm coordenação motora, não sabem nem usar a borracha. Os daqui são normais, a gente nota a diferença. (Profa. M. G., entrevista nº 14)

As crianças paulistas usam termos muito mais elevados, possuem um vocabulário melhor. (Profa. A, entrevista nº 12)

Levando-se em conta que as escolas estavam situadas em áreas desfavorecidas pelo poder público, habitadas por população de baixa renda, que assistimos as aulas e pudemos observar o quanto de irreal havia nas falas das professoras, fica mais evidente a sua atitude de privilegiar tudo o que está ligado ao seu grupo. Há uma idealização de seus padrões à medida em que, comparada à “outra”, a nossa escola pública parece perfeita.

Tem-se a impressão de que os alunos paulistas não apresentam problemas de rendimento, mas pudemos observar muitas crianças paulistas com sérios problemas de aprendizagem. Como esse aspecto não é sequer considerado, pode-se ver que a atitude das professoras está muito mais voltada para uma afirmação dos valores e padrões de seu grupo que fundamentada em dados de realidade. São os critérios do in-group os referenciais absolutos dos quais se valem para emitir seus julgamentos a respeito das crianças nordestinas.

Como se observa, é mais um embate no qual o migrante é perdedor. Afirmar que os alunos paulistas são melhores, mais criativos, mais aplicados, usam termos mais elevados, enquanto “os nordestinos são inferiores mesmo”, expressa não só um exagero como um juízo de valor. Ao desenvolver valores (o falar, os costumes, o agir de determinada forma) ligados ao seu grupo e assumir uma atitude etnocêntrica, a pessoa rejeita tudo aquilo que lhe soa como estranho, que não está vinculado à familiaridade de seu cotidiano.

A afirmação do modo de vida da pessoa pode levá-la ao preconceito, pois a identificação exagerada com os valores de seu grupo a leva a subestimar os seus contrários e a desenvolver atitudes negativas em relação a eles. Isso aparece quando do contato com outros grupos socioculturais diferentemente estruturados em termos de costumes, modo de falar, regras de conduta, enfim, de tudo aquilo que a familiaridade transformou em valor e que a intolerância à diferença transforma em hostilidade e rejeição

Jones (1973) diz que o etnocentrismo, além de ser uma forma de julgamento, pode ser visto também como um preconceito comum em favor de nosso grupo. À medida em que ele está ligado à necessidade de afirmar o nosso modo de vida, tende a deformar a percepção da cultura de outro grupo, o que leva a pessoa a acentuar as diferenças e a condenar os desvios em relação à norma do grupo ao qual pertence.

Essa concepção de Jones pode ser melhor entendida se pensarmos que a deformação da percepção da cultura faz com que a pessoa perceba como “errado”, “inferior”, “ pobre”, “impróprio”, “anormal” simplesmente aquilo que é diferente por ser estranho, por pertencer aos padrões de um grupo com o qual nunca teve a intimidade da vivência cotidiana. Esse fato leva realmente a pessoa a condenar as diferenças que constata, agrupando-as debaixo de rótulos depreciativos. Entretanto, é importante destacar que o aspecto cognitivo é apenas um lado da questão do etnocentrismo, da intolerância, do preconceito. O elemento afetivo, às vezes inconsciente, subjacente, é, para nós, o principal motivador até a deformar a percepção: é o estranho que ameaça a hegemonia do eu.

Voltemos ao discurso das professoras:

Além disso, o meio também influi bastante. O meio deles deve ser paupérrimo e isso atrapalha. (Profa. M. L., entrevista nº 3)

O maior problema que eu sinto em relação a eles é a ignorância dos pais e a falta de escola. Os pais são analfabetos e transmitem sua ignorância aos filhos... Eles ainda são muito enraizados nos seus costumes, não têm os nossos modos de paulistas. (Profa. B, entrevista nº 4)

Não acho que eles têm problema de adaptação ao nosso meio. Ao contrário, sinto que são felizes pela situação oferecida na escola: recebem merenda, atenção das professoras e acho que se sentem bem com isso. (Profa. S., entrevista nº 5)

Se a mãe vai ensinar alguma coisa, por exemplo, ensina tudo errado e acaba reforçando os problemas que a criança já tem. Assim, ao invés de ajudar, a família, por ignorância e pobreza acaba atrapalhando. É o meio deles que é ruim, é bem mais pobre e eles não encontram apoio em casa... Eles são tão fracos que é difícil explicar para eles o que é o estado de São Paulo. Imagine que tem até verduras que eles não conhecem. (Profa. I, entrevista nº 6)

A origem influencia em todo o rendimento escolar. Tem um que vai voltar e eu fique admirada, porque quem vem para cá jamais volta. As crianças daqui apesar do bairro ser pobre, encontram apoio em casa. As nordestinas não, os pais não sabem ler nem escrever... O problema não é eles serem pobres, porque pobre também tem aqui. O problema é eles terem vindo do nordeste. (Profa. A., entrevista nº 7)

A alimentação também influi, eu acho, pois eles comem carne de sol, de charque. (Profa. M. I., entrevista nº 2)

As declarações das professoras têm em comum a ênfase na questão da pobreza do meio em que vivem as crianças nordestinas, a sua origem e a ignorância dos pais. Uma vez que as escolas pesquisadas se encontravam em áreas onde se concentram populações mais pobres, então a pobreza era geral e não justificaria a inferioridade das crianças nordestinas. Entretanto, o fator pobreza, aqui, funciona como uma espécie de “muleta” na qual as professoras se apoiam para justificar seus preconceitos, o que fica exemplificado na afirmação: “pobre também tem aqui, o problema é eles terem vindo do nordeste”.

Está implícito na afirmação: “problema é eles terem vindo do nordeste...” que o rótulo define tudo e não dá ao seu portador grandes possibilidades. Essas já estão definidas pela filiação a um grupo cujos padrões não são aceitos pelo grupo culturalmente dominante com o qual devem interagir.

Não é sem razão que Jones (1973) afirma que o etnocentrismo leva a uma acentuação das diferenças e condenação dos desvios quando a pessoa estabelece comparações entre o seu grupo e o grupo estranho. Assim, pelo que se pode concluir a partir dos discursos das professoras, “a pobreza dos nordestinos” é “mais pobre que a pobreza paulista” e “a ignorância dos pais nordestinos é mais ignorante que a dos pais paulistas”, se assim se pode dizer. Na verdade, pudemos constatar que o meio em que se situavam as escolas era composto, em grande parte, por pessoas “analfabetas e ignorantes”, além de desfavorecidas economicamente. Então, porque é que apenas a “ignorância e a pobreza” dos pais nordestinos pesa no processo educacional e na formação de seus filhos?

É interessante notar-se como esse preconceito comum em favor do grupo de paulistas e em prejuízo ao grupo de crianças nordestinas, coloca questões que seriam até pitorescas, se não provocassem repercussões bastante negativas sobre os referenciais identificatórios dessas crianças. Refiro-me às observações sobre a alimentação das mesmas, dado que se entende que a carne de sol e de charque, alimentos regionais, influem no rendimento escolar das crianças. Há também a que diz: “tem até verduras que eles não conhecem”, com ar de espanto, como se isso atestasse uma incapacidade, um déficit. E nem se dar conta de que nós, paulistas não conhecemos a maior parte das frutas regionais e não nos espantamos com isso.

Como dissemos acima, o grave são as consequências negativas de um processo que rejeita, desqualifica, ataca elementos que fazem parte da identidade cultural do grupo nordestino e que estão ligados diretamente aos referenciais identificatórios dessas crianças. As considerações e efeitos de ordem psicológica não são jamais colocados pelos representantes do grupo dominante, educadoras, por sinal. Ao invés disso, elas acreditam que as crianças nordestinas não devem ter muitos problemas de adaptação (a não ser pelo problema da fala regional, como veremos), sendo até felizes já que a escola, segundo elas, oferece a essas crianças um certo “conforto material” que elas não possuíam.

Trata-se, ao que tudo indica, de uma “ideologia do modo paulista de viver” pois, não só é impossível não ser feliz no “paraíso paulista”, como mais impossível ainda é alguém querer ir embora do mesmo. Como disse uma delas: “tem até um que quer voltar para o nordeste, coisa absurda, porque quem vem para cá nunca quer voltar”.

E nem se consegue captar a nostalgia, o saudosismo, a tristeza dos que, arrancados de suas raízes sonham em voltar às suas origens. Como nos disse uma criança: “... a casa lá era de sete cômodo, fora o banheiro. O quintal era grande. A casa aqui é de dois, três cômodos. Nois num se acostumava aqui e de meis em meis a gente voltava”.

Algumas das falas dessas crianças mostram não apenas o conteúdo etnocêntrico expresso pelas professoras, como também o de colegas e vizinhos com quem convivem:

A professora diz que a fala de lá não é certa como a daqui e que tenho que aprendê a daqui. (entrevista 1, J.)

Já dissero que o nosso modo de falá é errado. Os colega fala que tenho que aprendê os modos daqui. (entrevista 4, Ju)

Uma vizinha disse prá nois que se a gente não aprendesse a falá as coisa certa daqui a gente nunca pegava emprego. (entrevista 16, J. S.)

Há muitos outros depoimentos com o mesmo teor e que enfocam mais a rejeição à fala regional, apesar de haver referências também à necessidade de se aprender os “modos dos paulistas”. Isso significa que aquilo que é trazido por pessoas de grupos culturais diferentes é visto como inadequado até para se poder lutar pela sobrevivência (arranjar emprego, estudar, etc), condicionando-se a participação no grupo dominante à submissão sociocultural. Ora, o aprendizado dos padrões dominantes não pode ter como exigência o abandono dos padrões originais do grupo de migrantes.

O outro dado que se destaca aqui é que se vizinhos e outras pessoas se referem aos padrões linguísticos e socioculturais dos migrantes como inadequados é porque o problema não se circunscreve apenas ao contexto escolar, aparecendo disseminado na população mais ampla.

É preciso considerar que a atitude de admirar ou rejeitar os padrões de um grupo sociocultural diferente daquele ao qual se pertence tem, por detrás, um contexto maior a ser considerado, que é o tipo de estrutura social à qual os grupos pertencem. Allport (1954), um clássico da Psicologia Social, nos diz que personalidades preconceituosas são mais numerosas onde estão presentes a heterogeneidade, o aumento do grupo minoritário, a rápida mudança social, etc.

Essas e outras condições mais complexas são visíveis em nossa estrutura social, bastante heterogênea, marcada pela diversidade trazida pelas constantes correntes migratórias; a pressão do desemprego ou a constante ameaça de perder o emprego, a falta de moradias, escolas, assistência médica e por aí vai. Não se olha com bons olhos para “elementos de fora”, vistos como estranhos a ameaçar nossa falsa estabilidade, aumentando a competição entre as pessoas.

A heterogeneidade favorece as condições para o conflito de grupo e o preconceito, associando-se o estranho e diferente àquilo que pode se constituir em uma ameaça para a preservação dos padrões do grupo ao qual se pertence, como se pode verificar a seguir:

As outras crianças acabam se influenciando com as nordestinas e acabam falando errado também. (Profa. C., entrevista nº 1)

O problema é que os paulistas começam a falar como os nordestinos. Então a gente tem que isolar essas crianças para a recuperação, senão não tem jeito.

Além disso, têm o problema de casa, de costumes enraizados, não corrigem os pais. O maior problema acaba sendo o ambiente. (Profa. D., entrevista nº 2)

Há ainda o agravante de sua linguagem regional, que ajuda a atrapalhar mais porque eles erram muito ao falar. (Profa. B., entrevista nº 4)

Eles escrevem errado porque falam errado. Eles falam errado mesmo... e o modo de falar acaba influenciando o seu rendimento em todas as matérias. (Profa. L., entrevista nº 6)

Eu não daria dez se um aluno nordestino fizesse uma composição sem nenhum erro ortográfico mas com o linguajar de seu estado. Apenas eu não deixaria de castigo. Daria uma nota regular mas dez não... Eles são agressivos no modo de falar. A gente está acostumado com os daqui, que são pobres mas educadinhos. (Profa. A., entrevista nº 7)

São também os mais briguentos, os que mais respondem. Os nordestinos são também mais relaxados do que os outros alunos. (Profa. C., entrevista nº 8)

Os alunos são esquentados e respondem mal, brigam, são valentões, tipo Lampião. (Profa. C., entrevista nº 1)

Têm vários problemas ligados ao seu meio, problemas de pobreza, de carência afetiva e têm um temperamento mais agressivo, são geniosos, briguentos, comigo e com os colegas. É o temperamento nordestino mesmo. (Profa. M. G., entrevista nº 14)

A ameaça do estranho, nesses exemplos (e em outros já comentados) vai da fala aos modos; do temperamento aos alimentos e chega na origem: são nordestinos. Ou seja, num efeito de halo, como explica a Psicologia Social, generaliza-se uma característica (a fala regional) como negativa e ela atinge todo o indivíduo (o falante, no caso), desqualificando-o em sua identidade grupal e individual.

Não só a rejeição ao modo de falar regional aparece em praticamente todas as entrevistas como inadequado, fator de atraso do aprendizado, ignorância, como, pior ainda, na percepção dessas professoras o grupo nordestino é visto como um “foco de contaminação”, que deve ser isolado para preservar as demais crianças.

O que ocorre, na verdade, é um juízo de valor e uma discriminação, que se evidencia na declaração da professora, que não hesita em dizer que mesmo sem erros ortográficos não daria dez a um aluno que fizesse uma composição com a linguagem de seu estado. E ainda afirma que faria uma concessão: apenas não deixaria de castigo. Assim, o que a leva a punir ou atribuir má nota a um aluno nordestino não é o erro e sim o valor negativo que dá ao seu falar regional. E ainda afirma que o problema é os alunos terem vindo do nordeste, o que traduz uma atitude total de rejeição ao grupo de migrantes.

E, pior ainda, aplica-se a essas crianças o estereótipo típico a respeito do nordestino, vinculando-o ao famoso “herói-bandido” Lampião. Acompanhado dos qualificativos “esquentados”, “respondões”, “valentões”, atribui-se ao grupo nordestino tudo aquilo que a figura de Lampião contém de negativo, como se tivesse recebido essa marca por herança, biológica ou cultural. Aliás, esse é um rótulo bastante generalizado em nosso contexto a respeito dos migrantes nordestinos.

E o estereótipo, uma vez colocado, acaba funcionando como uma profecia autorrealizadora, ou seja, já há, preventivamente, uma ação agressiva contra as pessoas desse grupo, que seria uma defesa contra a agressividade do mesmo. Projeção de hostilidade despertando a agressividade que todos possuímos, o que confirma ser essa uma característica dominante na personalidade do nordestino. E os efeitos desastrosos e desumanos que se produzem na identidade dessa população migrante, principalmente as crianças, não são sequer considerados.

Ouvindo-se as crianças nordestinas é possível perceber a violência que as atinge:

Dissero quo somo burro porque nóis falava errado. Uma colega disse: os povo do Norte são tudo burro. (J., entrevista 4)

Os coleguinha xinga de baiano da peste quando eu falo e não entendem; xinga de cabeça de mamão. (F., entrevista 7)

As crianças dão risada quando falo e diz que sou baiano. Baiano é gente. Eles fala prá gozá. (C. entrevista 8)

Falaro que a gente não sabia falar, que a gente era baiana. Eu falei que baiano era mais sabido que paulista... Quando os menino fica me atentando, diz que baiano não sabe falar, falam mal da terra da gente, que lá é feio que a gente é boba. Falam que baiano não sabe nada, não presta, é besta. (T., entrevista 10)

Quando eu falava do jeito do norte, eles ficava gozando de mim e me chamando de baiano. Até o meu colega do norte fica xingando. (M. C., entrevista 12)

No começo os caras logo me chamava de baiano, porque falava do jeito de lá. Logo que cheguei os colega me chamava de índio e depois de baiano. De qualquer lugar que a gente vem, Pernambuco, Ceará, Bahia, chamam a gente de baiano. (M., entrevista 14)

As veis tenho um jeito de falar igual baiano, mas não sou baiana... Acho o jeito daqui mais bonito, as pessoas são muito elegantes, falam direito. Outras fala igual baiano. Baiano não fala direito, eles falam puxando a palavra. Baiano também é muito briguento. (T., entrevista 16)

Uma vez eu briguei com uma menina que tinha o costume de bate na gente e xingá de baiana. Acho bom ser baiana, não acho ruim não. Prá mim tudo é uma coisa daqui. (J., entrevista 18)

A professora não deixava fala vexado, aperreado. Dava bronca e dizia que a gente tinha cabeça de burra, por isso não aprendia. (I., entrevista 27)

Evidencia-se, no que foi apresentado, a presença do estereótipo que indica a falta de capacidade intelectual das crianças nordestinas. Traduzido pelos rótulos: “cabeça dura”, “cabeça de mamão”, “povo do norte é burro”, “cabeça dura de aprender”, são utilizados não apenas pelas professoras, mas também pelas crianças não-nordestinas.

Tais rótulos comprometem de forma generalizada a capacidade intelectual dos nordestinos, que acabam sendo vistos como tendo dificuldades para aprender qualquer coisa. Eles estão estreitamente ligados ao modo de falar regional, que parece ser entendido como a expressão dessa incapacidade, uma vez que o sotaque desperta a atribuição do rótulo.

Acrescenta-se, ainda, a presença frequente de um outro estereótipo, que se revela como muito incômodo para a maioria das crianças nordestinas, que é o rótulo de “baiano”. Em termos de estereótipo, “baiano” é o rótulo que parece condensar em si tudo o que existe de negativo, tanto assim que as crianças nordestinas reagem ao mesmo dizendo que são “xingadas de baiano” e que “não são baianos não”. A sua reação demonstra que sentem o rótulo como alguma coisa extremamente pejorativa, estigmatizante mesmo.

Do ponto de vista psicossocial há outra consequência séria: a xenofilia. Ou seja, ao mesmo tempo em que integrantes do grupo nordestino são alvo de estereotipias e discriminações, eles mesmos colocam em prática (talvez por aprenderem em nosso meio) algumas das atitudes de que são objeto, dirigindo o estereótipo e discriminando uma parte do grupo, ou seja, os baianos.

Por outro lado, nota-se entre as crianças baianas, duplamente discriminadas, uma atitude de defesa de sua origem, como T. (entrevista 10), que diz que “baiano é mais sabido que paulista”, reclamando das crianças que falam mal de sua terra e sua gente, ao dizerem que “baiano não presta”. A mesma coisa faz J. (entrevista 18), afirmando que não “acha ruim ser baiana e que tudo é uma coisa daqui”, ou seja, criação de nosso meio cultural, o que é bastante significativo. Ao dizer que “baiano é gente”, C. (entrevista 9) está nos chamando a atenção para o fato de haver um ser humano por detrás do rótulo e é esse que deve ser levado em consideração. Ou seja, está nos dizendo que a qualidade do ser deve se sobrepor à qualidade negativa do rótulo.

“Baiano”, “cabeça chata”, “cabeça de burro” são rótulos disseminados em nosso contexto social, usados de forma pejorativa, instrumento de discriminação daqueles cujo sotaque os identifica como membros de um grupo visto de forma desfavorável, ou de baixo status, como mostra Jones (1973).

O preço dessa discriminação é bastante alto para os migrantes, uma vez que, longe de sua terra, de suas raízes, dos referenciais que caracterizam sua identidade cultural e compõem sua identidade psíquica, são hostilizados em função desses mesmos referenciais e forçados a abandoná-los ou modificá-los. Ouvindo ainda uma vez algumas crianças nordestinas, podemos perceber melhor as dificuldades por que passam e pensar nas consequências das mesmas:

Aqui se fala filho e minha mãe dizia fio. Tem deles que corrige e diz que eu falo engradeço. Aí chamavam todo mundo prá escuta. Então os meninos juntava e me batia, porque falava errado. (J., entrevista 1)

Eles fala que é errado fala desse jeito porque aqui é outro Estado e eu digo que essa é a fala de lá..., eu digo que esles não pode mangar de mim porque no meu Estado se fala diferente. Se fosse lá o jeito deles também não era certo. (J., entrevista 2)

Tem vez que o jeito de lá é certo, tem vez que não. Eu ficava com vergonha porque tinha uns três, quatro que ria de mim e corrigia. Eu prestava atenção no que eles falava prá aprende com eles. (E., entrevista 3)

A professora mandava eu calá a boca e eu ficava chateado. Ela punha de castigo atrais da porta quando eu falava errado... Eu ficava nervoso quando a professora punha de castigo e quando saia e sentava na carteira, todo mundo ficava mangando de mim. Aí eu ficava chorando na carteira. (C., entrevista 5)

Prá mim lá é melhor de vivê. A gente pode andá com estilingue na mão, se diverte, brinca de sítio. Aqui o juizado de menor pega a gente, o povo pega e leva pra outro canto e mata. Lá a gente brincava, aqui não. Tinha festa de São João com fogueira, bolo, pastéis, sonho. (R., entrevista 6)

Quando eu falo diferente a professora corrige. Eu não falo mais porque dá vergonha. Todo mundo dá risada. Tem a mandioca. Lá a gente chama macaxeira e eles diz que é errado. Não é não. A professora dá risada quando eu falo e diz: o que você falou aí? (F., entrevista 7)

A professora dizia que a gente não podia falá pelo nariz, fala pela boca! Ela ponhava a gente de castigo atrais da porta. Agora ela não coloca mais porque eu falo direito. Eu ficava chateada. (R., entrevista 11)

Achei muitas coisa daqui diferente lá de Pernambuco. As casa, o modo de falá, o jeito das pessoa. Acho que é difícil acostumá com o jeito daqui. Eu mesma achei difícil. (T., entrevista 15)

Eu esqueci muito de minha língua, mas não quero esquece. Quando falo com minha mãe aprendo de novo. Não quero esquecer, porque se um dia resolver ir prá lá ainda quero falá a língua de meu povo. Lá eles acredita se eu falá uma coisa que não tem aqui. Aqui não acreditam quando a gente fala. (J. S., entrevista 16)

Mas eu acho que é melhor não esquece o jeito de lá porque senão quando a gente chega lá, já sabe. A gente chega lá falando a fala daqui e o povo de lá não entende. A gente não pode esquece a fala da terra da gente, porque é onde a gente nasceu, se criou desde pequena. A gente sempre fala o modo de onde a gente se criou. (M. J., entrevista 24)

Harrison (1974) afirma que a psicologia social do preconceito tem uma tendência a focalizar o preconceito e a se esquecer das vítimas do mesmo. Concordamos plenamente com sua afirmação: essas vítimas não podem ser esquecidas, até porque os processos migratórios se intensificam cada vez mais, acentuando as hostilidades e discriminações aos diferentes que eles conduzem a novos habitats.

Queremos agora enfatizar alguns dos problemas sofridos por essas vítimas, destacando desde já o primeiro deles: tratamos aqui com crianças, especialmente, e sua fragilidade é, obviamente, maior. Um desses problemas, bastante sério do ponto de vista psicossocial, diz respeito ao aspecto da identidade social dos componentes do grupo, ligada à sua cultura, suas raízes e importante para a elaboração de suas identidades psíquicas, como diz Palmonari (1986).

Essa identidade é fortemente atingida quando se rejeita como incorreto e inadequado seu modo de falar. Sabemos que o aprendizado da língua está diretamente ligado às raízes culturais e psicológicas do meio em que a criança se desenvolve e às figuras que lhe são mais significativas. Afinal, essa é a língua de sua gente, de seus pais, avós, marca de sua terra... Essa identidade é atingida também quando se rejeita os costumes, as crenças, hábitos alimentares, o modo de ser do nordestino, enfim, o “ser nordestino”.

A repercussão negativa e o sofrimento que essa rejeição acarreta estão presentes nas falas das crianças nordestinas, já citadas. Vale relembrar as seguintes:

Eu não falo mais porque dá vergonha. Todo mundo dá risada. (F.)

A gente não pode esquece a fala da terra da gente, porque é onde a gente nasceu, se criou desde pequena, porque é onde a gente nasceu, se criou desde pequena. A gente sempre fala o modo de onde a gente se criou. (M. J.)

Na maioria dos discursos se evidencia o apego dessas crianças a seus valores culturais, hábitos, folclore, lugares: a casa grande, o quintal, as frutas, a liberdade, o espaço para sonhar de que não mais dispõem. Não há brincadeiras, festa com fogueira, pastéis, “sonho”. Há ameaças, gozações, castigo, rótulos, humilhações, violência física e psíquica. Que se explicitam no terem que calar a boca, envergonhados, e chorar na carteira, diante das risadas dos colegas. Em ficarem de castigo atrás da porta porque sua língua é errada e não serve; em serem xingadas, desacreditadas, apanharem, porque sua fala é desacreditada. E, fundamentalmente, em serem desqualificadas por terem vindo do nordeste.

Promover a adaptação do migrante a um novo contexto significa respeitar o humano que está em jogo, com todas as suas especificidades, valores, hábitos, costumes, enfim sua identidade psíquica e cultural. Em outras palavras, aceitá-lo em sua diferença, oferecendo-lhe a oportunidade de acrescentar novos conteúdos aos que possui, até para instrumentalizá-lo na luta pela vida.

Entretanto, um olhar mais amplo e atento para a situação do migrante, principalmente o nordestino, em termos de Brasil e de modo mais geral, planetário, mostra que não é isso o que acontece. Em termos mundiais, o que observamos é um jogo de manipulação e poder que interdita o deslocamento dos diferentes, migrantes e imigrantes, confinando-os em guetos e impedindo-os, muitas vezes, de satisfazer às suas necessidades mais elementares, como dissemos em trabalho anterior já aqui citado (Tassara & Damergian, 1996)

O que dizer, então, da esfera do psíquico, do desejo, da alteridade, constantemente negados, violentados. Ainda estamos longe da aceitação do diferente, da superação do que Freud chamou de “narcisismo das pequenas diferenças”: fenômeno de ódio ou desprezo contra o exterior que reforça a coesão do grupo e o coloca em posição de guerra potencial contra os inimigos – os de fora, os estranhos (1976). Ao invés da aceitação, são a intolerância e a discriminação que se espalham pelo mundo, o etnocentrismo exacerbado, a afirmação narcísica dos “vencedores”, que temem a ameaça do estranho à sua pretensa superioridade, fruto, na verdade, da dominação econômica e, consequentemente, política.

O desenho do mundo atual nos mostra grandes segmentos da população cada vez mais concentrados em pequenas áreas, jogados para a periferia, excluídos do sistema e, principalmente, da possibilidade de viver e serem tratados em condições dignamente humanas. Parte expressiva dessa população é composta por migrantes e imigrantes, alvejados pela hostilidade, estereotipia e pela indiferença às carências, sofrimentos e humilhações que marcam sua existência.

Matteí (2001) afirma que entre as expressões de barbárie geradas pelo século XX estão guerras mundiais, extermínios e genocídios em um grau jamais igualado na história. Para não falar da humilhação generalizada da figura humana, diz ele.

Entretanto, precisamos falar dessa humilhação, tão presente nas ocasiões em que as crianças nordestinas eram obrigadas a calar a boca porque “falavam errado”; a ficar de castigo atrás da porta porque “falavam errado”; em que choravam na carteira a humilhação que sofriam, a vergonha. Em que eram xingadas e apanhavam por causa de seu linguajar, de seu sotaque, de sua origem. Por serem nordestinas.

“Relaxados”; “violentos”; “briguentos”; “valentões”; “esquentados”; “tipo Lampião”; “é o temperamento nordestino mesmo”. “Acho que a dificuldade [para aprender] é herdada...” Todos eles rótulos colados a essas crianças, definições congelantes que impedem a visão do humano, sofrido e humilhado, que a desumanidade não nos permite enxergar.

Ecléa Bosi (2003) pergunta: “Como podemos encontrar o caminho das coisas se já nos disseram tudo antes que as experimentássemos? Como nos salvar dos preconceitos penetrantes que governam nosso processo de percepção? Onde começam as nossas ideias sobre as coisas? Porque as aceitamos?”

E diz ainda: “O estereótipo nos é transmitido com tal força e autoridade que pode parecer um fato biológico”.

Costumamos dizer que o estereótipo se assemelha a uma moldura já pronta, dentro da qual procuramos colocar a imagem que se apresenta à nossa percepção. E vamos distorcendo, aumentando aqui, diminuindo ali, para que ela se encaixe no tamanho da moldura. Dialogando com Ecléa, acreditamos que para encontrar o caminho das coisas, é preciso esquecer, suspender, colocar entre parênteses tudo o que nos disseram sobre as coisas. E ter a coragem e a humildade para experimentá-las.

Suspender, principalmente, tudo o que nos é dito sobre as pessoas antes de encontrá-las. E conviver, interagir com elas, desarmando nossa percepção feita de conceitos prévios, buscando dentro de nós o olhar solidário e empático que nos permite enxergar o outro. Como um diferente, sim, na sua singularidade de ser desejante, mas igual a nós, porque humano.

O outro diferente de nós, o migrante de quem estamos falando, é estranho enquanto desconhecido, mas não enquanto humanidade. É tão portador de necessidades, desejos, afetos, emoções, busca de aceitação de reconhecimento de sua singularidade como cada um de nós. E deixará de ser o desconhecido que nos ameaça e que rotulamos preventiva, defensiva e ofensivamente, quando reconhecermos os nossos medos, fantasias, ambições, nosso narcisismo e consequente falta de amor pelo outro, tudo o que nos limita e impede de aceitá-lo.

Temos que exercitar nossa humanidade no sentido de desejar conhecer esse outro a partir do encontro com ele mesmo e não a partir de “ideias” sobre ele. A pré-condição é termos recuperado essa quase extinta humanidade, que ela não sucumba ao atual estado de “barbárie civilizatória”.

Assim não colaremos rótulos, “o temperamento, tipo Lampião e a dificuldade para aprender não serão herdados”, os migrantes e imigrantes não serão inferiores por serem diferentes. E o estereótipo não será transmitido, nem com força e nem com autoridade, não poderá parecer um fato biológico, voltando a Ecléa Bosi (2003).

Entretanto, a dura realidade dos migrantes em geral e dos nordestinos, nosso caso particular, não deixa dúvidas quanto ao pesadelo em que se transforma o sonho de uma vida melhor quando desembarcam na grande metrópole paulista, por exemplo. Trazem em sua bagagem uma muda de roupa e a esperança de que tudo seja melhor, longe da seca do sertão.

Recebidos com indiferença ou hostilizados, discriminados, engrossam o contingente dos excluídos do sistema, da sociedade, do reconhecimento de sua humanidade, da vida.

Os referenciais identificatórios dos migrantes, presentes nos locais, brincadeiras, quintais e festas típicas, na família distante, na vizinhança, no espaço tantas vezes percorrido, no tempo experienciado, nas palavras que significam pessoas, coisas, nomes, lugares e afetos, permanecem vivos na lembrança. E aqui, muitas vezes, significam nada mais que caçoadas e zombarias, fonte de angústia e sofrimento.

A desorientação no espaço de concreto da cidade grande está presente no desabafo da alagoana Conceição: “A gente tem as raízes da gente. É tudo muito diferente daqui. Lá, mesmo passando fome tem com quem conversar. Eu estava junto com eles”. Ela chora ao lembrar da família. “A gente ainda se perde por aí... Será que estou morta e não estou nem sabendo?” (Erundina, 2000).

Conceição, como a maior parte dos migrantes, “perde” seus referenciais e tem medo de se perder, perdendo a si mesma.

 

Referências

Allport, G. (1954). The nature of prejudice. Reading, MA: Addison-Wesley.        [ Links ]

Bosi, E. (2003). O tempo vivo da memória. Ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial.        [ Links ]

Damergian, S. (1981). A fala regional e o contexto social: um estudo sobre como são recebidos os falantes que se utilizam do português não-padrão nordestino em um contexto em que só o português-padrão é admitido. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.        [ Links ]

Damergian, S. (2001). A construção da subjetividade na metrópole paulistana. In E. T. O. Tassara (Org.), Panoramas interdisciplinares para uma psicologia ambiental do urbano (pp. 87-120). São Paulo: Educ.        [ Links ]

Freud, S. (1976). Psicologia de grupo e análise do ego. In S. Freud, Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 91-179). Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

Harrison, G. (1974). A bias in the social psychology of prejudice. In N. Armisted (Ed.), Reconstructing social psychology (pp. 189-203). Great Britain: Penguin Education.        [ Links ]

Jones, J. M. (1973). Racismo e preconceito. São Paulo: Edgard Blücher.        [ Links ]

Labov, W. (1973). The study of language in its social context. In P. P. Giglioli, Language and social context (pp. 283-308). Great Britain: Penguin Books.        [ Links ]

Luiza Erundina. (1998, 21 de junho). Será que estou morta e não estou sabendo? Folha de S. Paulo, Caderno 1, p. 24.        [ Links ]

Mattéi, J. F. (2001). A barbárie interior. Ensaio sobre o i-mundo moderno. São Paulo: Fundação Editora da Unesp.        [ Links ]

Palmonari, A. (1986). Social identity, personal identity and the social psychological subject: A coment. British Journal of Social Psychology, 25(3), 15-23.        [ Links ]

Tassara, E. T. O., & Damergian, S. (1996). Para um novo humanismo: contribuições da Psicologia Social. Estudos Avançados, 10(28), 291-316.        [ Links ]

 

 

Recebido em: 30/03/2008
Aceito em: 26/05/2008

 

 

Sueli Damergian, Professora Doutora do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP. Endereço para correspondência: Avenida Professor Mello Moraes, 1721 – Bloco A - CEP 05508-030. Endereço eletrônico: suelidamergian@uol.com.br