SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 número3Revisitando as funções da imaturidade: uma reflexão sobre a relevância do conceito na Educação InfantilCrianças de dois anos de idade como coconstrutoras de cultura índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.20 n.3 São Paulo set. 2009

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Aprendendo sobre eventos físicos com parceiros de idade1 2 3

 

Learning with peers about physical events

 

Apprendre sur des événements physiques avec partenaires du même âge

 

Aprendiendo acerca de eventos físicos con compañeros de edad

 

 

Maria Isabel Patrício de Carvalho Pedrosa; Ana Maria Almeida Carvalho

Universidade Federal de Pernambuco

 

 


RESUMO

Estudando crianças de 19 a 31 meses, numa perspectiva sociointeracionista, exploram-se diferentes situações de brincadeira com o parceiro de idade que parecem instigar aquisições e aprendizagens. O brincar é concebido como um espaço privilegiado de observação pelo valor motivacional prevalente que tem para as crianças. Por meio da brincadeira, ou mesmo para brincar, a criança lança mão de diversas estratégias na tentativa de resolver seus problemas (introduzir-se em um arranjo social já configurado, dirimir um conflito; chamar a atenção do parceiro, tecer o enredo do episódio, conseguir um resultado semelhante com o mesmo objeto etc.). Com este trabalho pretendeu-se evidenciar a potencialidade de diversos caminhos de aprendizagem sobre eventos físicos quando as crianças lidam com objetos deixados à sua disposição. Nos episódios selecionados para análise foi possível identificar quatro dinâmicas interacionais que revelam estratégias utilizadas pelas crianças em ações cooperativas que podem conduzir a aprendizagens e evidenciam que, mesmo bem pequenas, elas refletem sobre suas próprias ações e as de seus parceiros. Discutem-se algumas implicações teóricas e educacionais dessas evidências.

Palavras-chave: Brincadeiras. Interação criança-criança. Aprendizagem com parceiro.


ABSTRACT

Different play situations that may favor learning and cognitive acquisitions are explored focusing peer interactions among 19-31 month-old children from a socio-interactionist perspective. Play is construed as a privileged space of observation due to its motivational priority for young children. Through play, and/or to play, children use several strategies while trying to solve problems such as introducing him/herself into an already structured social configuration, capturing the partner’s attention, sorting out conflicts, building up the script of a play episode, reaching a similar result while using a similar object and so on. The present paper aimed to investigate potential forms of learning about physical events when a small group of children deals with objects. Four interactional dynamics were identified to highlight strategies used by children in cooperative actions which carry apparent learning consequences and show that even very young children reflect about his/her and the partners’ actions. Some theoretical and educational implications of these findings are discussed.

Keywords: Play. Child-child interaction. Learning with peers.


RÉSUMÉ

On étudie des enfants de 19 à 31 mois dans une perspective socio-interactionniste et on exploite, avec le partenaire du même âge, situations diverses de jeu qui semblent stimuler des acquits et des apprentissages. Le jeu est conçu comme un espace privilégié d’observation pour la valeur motivationnelle prédominante qu’il a pour les enfants. Au moyen du jeu, l’enfant fait usage de différentes stratégies en vue de résoudre ses problèmes (s’introduire dans un dispositif social déjà configuré ; éviter un conflit ; attirer l’attention du partenaire ; tisser la trame de l’épisode ; obtenir un résultat semblable avec le même objet, etc.). Ce travail a prétendu mettre en évidence la potentialité de diverses voies d’apprentissage sur des événements physiques lorsque les enfants s’amusent avec des objets mis à leur disposition. Dans les épisodes choisis pour être analysés, il a été possible d’identifier quatre dynamiques interactionnelles qui révèlent des stratégies utilisées par les enfants dans des actions coopératives qui peuvent mener à des apprentissages et qui rendent évident que, même minimes, elles reflètent sur leurs propres actions et celles de leur partenaires. Quelques implications théoriques et éducationnelles de ces évidences sont mises en discussion.

Mots-clés: Jeu. Interaction enfant-enfant. Apprentissage avec partenaire.


RESUMEN

Estudiando niños de 19 hasta 31 meses, en una perspectiva sociointeracionista, se exploran diferentes situaciones de juegos con el compañero de edad que aparentan instigar adquisiciones y aprendizajes. El jugar es concebido como un espacio privilegiado de observación por el valor motivacional dominante que tiene para los niños. Por medio de los juegos, el niño usa distintas estrategias, intentando solucionar sus problemas (introducirse en un contracto social ya configurado; resolver un conflicto; llamar atención del compañero; tejer el enredo de la situación; conseguir un resultado semejante con un mismo objeto, etc.). Con este trabajo se ha pretendido evidenciar la potencialidad de diversos caminos de aprendizaje acerca de eventos físicos cuando los niños juegan con objetos dejados a su disposición. En los episodios seleccionados para análisis fue posible identificar cuatro situaciones que revelan estrategias utilizadas por niños en acciones cooperativas que pueden conducir a aprendizajes y evidencian que, aún muy pequeñas, reflejan acerca de sus propias acciones y de sus parceros. Son discutidas algunas implicaciones teóricas y educacionales de esas evidencias.

Palabras-clave: Juego. Interacción de niños. Aprendizaje con compañero.


 

 

Um grande desafio está sendo enfrentado pelos educadores que lidam com Educação Infantil (período que compreende de zero a seis anos de idade), principalmente aqueles envolvidos em creches ou escolas maternais que atendem crianças nos primeiros anos de vida. Esse desafio é a substituição efetiva, e não apenas burocrática, de um modelo assistencialista de atendimento à criança por um modelo concebido com propósitos educacionais. No primeiro caso, a criança é alimentada, higienizada e supervisionada para que nada de perigoso lhe aconteça. No segundo caso, além de assistida, a criança é concebida como um ser com necessidades e características próprias de sua faixa etária, mas, sobretudo, como participante ativo de seu desenvolvimento, construindo e reconstruindo significações sobre objetos e eventos que ocorrem em seu ambiente, tarefa que compartilha com um adulto ou com um parceiro de idade.

Nesse empreendimento, aliando-se aos educadores, os psicólogos da área de desenvolvimento infantil podem contribuir sobremaneira, investigando o desenrolar da ontogênese e as condições favoráveis para que esse processo possa fluir num curso normal, onde sejam maximizadas as situações consideradas interessantes e produtivas para a criança, isto é, um ambiente saudável, que lhe dê estabilidade e segurança, fortaleça as aquisições já alcançadas, mas que seja ao mesmo tempo desafiante para novas conquistas (cf., por ex., Lordelo & Carvalho, 2003; Oliveira, 1995; Oliveira, Mello & Rossetti-Ferreira, 1992; Oliveira & Rossetti-Ferreira, 1993; Pedrosa, 1996; Pedrosa & Carvalho, 1995; Pereira & Carvalho, 2003; Rossetti-Ferreira, Mello, Vitória, Gosuen, & Chaguri, 1998).

Nas últimas décadas presenciou-se um crescente número de investigações sobre interação de crianças pequenas com coetâneos, apoiadas numa perspectiva socioconstrutivista. Durante um longo período, em meados do século XX, talvez por uma forte influência das teorias piagetiana e freudiana, a Psicologia relegou a segundo plano investigações com crianças nos primeiros anos de vida que pudessem evidenciar suas habilidades e competências em aprender com e a partir de um parceiro de idade (Carvalho & Beraldo, 1989). Segundo Camaioni (1980), essas duas importantes teorias, ainda que de modo diferente, enfatizaram aspectos outros do processo de desenvolvimento e por isso, de certa forma, contribuíram para a falta de atenção dispensada à interação criança-criança numa fase inicial da vida. A teoria piagetiana priorizou o processo de equilibração, em que a criança, através da reflexão sobre suas ações, pode alcançar estágios mais evoluídos de conhecimentos. A teoria freudiana, por outro lado, privilegiou a relação mãe-criança como a matriz primordial a partir da qual se constroem todas as outras relações sociais do ser humano. As pesquisas recentes, entretanto, têm revelado que, desde os primeiros anos, as crianças são efetivamente parceiras de outras crianças em vários empreendimentos e exploram inúmeras oportunidades de aprendizagem que surgem em situações institucionais, como creches e pré-escolas, ou não institucionais, como em pequenos grupos em casa (cf., por ex., Carvalho, Império-Hamburger & Pedrosa, 1998; Corsaro & Molinari, 1990; Mueller, 1972; Mueller & Lucas, 1975; Mussati & Mueller, 1985; Pedrosa, Carvalho & Império-Hamburger, 1997; Schilling & Clifton, 1998; Stamback & Verba, 1986; Verba, 1994).

Em um ambiente especificamente preparado para observar crianças em intercâmbios de experiências físicas – grupos de quatro crianças sentadas em torno de uma mesa, com material específico para manipulação – Verba, Stambak e Sinclair (1982) comentam: “Em nossa situação observacional e nas idades que temos estudado (18 – 24 meses), as crianças agem em intercâmbios sociais constantes, formando uma espécie de equipe na qual as ideias dos membros constituem uma fonte contínua de inspiração recíproca” (p. 293).

Conjuntos estáveis de atividades que se repetem rotineiramente num grupo de crianças de creche podem ser reveladores de funções psicológicas que estão se constituindo e evidenciam que elas estão criando significados compartilhados. Pedrosa e Eckerman (2000) analisam registros de um grupo de crianças feitos ao longo de um período de cinco meses, realizados com uma periodicidade quase semanal. Dispondo de um conjunto de objetos, as crianças os manipulam de diversas maneiras. Essas ações são repetidas inúmeras vezes pela própria criança que as iniciou ou pelo(s) parceiro(s), às vezes concomitantemente e, outras vezes, consecutivamente. Nessas atividades elas usam o mesmo objeto ou um outro similar ou complementar e, dessa forma, vão multiplicando as possibilidades de acréscimos ou reduções de ações. Percebe-se, mesmo ao longo de períodos curtos de observação, como acontecem e como vão se estabilizando naquele grupo de crianças essas transformações sutis e casuais. Parece haver uma seleção das ações, talvez as mais interessantes para as crianças: as mais conspícuas, ou as mais fáceis de execução por várias crianças ou com vários objetos, ou ainda as mais excitantes (por exemplo, as que provocam barulho, movimentação, desafio).

O fato de ser repetida pelo parceiro parece ser o requisito básico para a ação ser selecionada. Em crianças pequenas, que ainda não dominam a linguagem verbal, as repetições da ação sinalizam que estão juntas, em torno do mesmo objeto, da mesma atividade, das mesmas questões etc. (Pedrosa et al., 1997; Nadel & Baudonnière, 1981). A existência de significados compartilhados pelas crianças pode ser evidenciada quando, por exemplo, ao iniciar uma atividade rotineira, a criança olha ou espera a outra criança se aproximar e pegar um objeto para começar a fazer também, ou quando ela faz antecipações: uma criança, de 14 meses, que brincou durante um longo tempo de empurrar uma mesa junto com outras crianças, começa a empurrá-la quando vê um dos parceiros se aproximar. Outro fato relevante é a incorporação de um novo aspecto, acrescido pela outra, à rotina da brincadeira: por exemplo, colocar um objeto sobre a mesa que estava sendo empurrada (Pedrosa & Eckerman, 2000).

Corsaro e Molinari (1990) chamam de cultura de pares “um conjunto estável de atividades e rotinas, artefatos, valores e interesses que as crianças produzem e compartilham com os pares” (p. 214). Esses autores salientam o fato de que as crianças se engajam numa rede social de significações e, a partir dela, fazem contínuas construções (cf., também, Rossetti-Ferreira, Amorim, Silva, & Carvalho, 2004). Verba et al. (1982) comentam que o tipo de troca social observada, o interesse de uma criança pela ideia da outra, indica importante capacidade de abstração, uma vez que elas são capazes de extrair os significados subjacentes às relações observáveis entre ações e objetos criados pelas outras crianças. Dunn (1988), observando crianças em suas relações familiares, aponta suas capacidades precoces de avaliar sentimentos e atribuir intenções a parceiros adultos ou de idade próxima.

Em uma situação de manipulação de objetos, deixados à disposição, várias ações são realizadas pelas crianças que incessantemente experimentam movimentá-los (puxá-los, sacudi-los, empurrá-los, levantá-los, equilibrá-los) ou transformá-los (modificando sua consistência, seu formato, ou usando-o como parte de outro objeto etc.). Kamil e Devries (1985) indicam dois tipos de atividades das crianças que as conduzem ao conhecimento físico e chamam a atenção sobre o papel da ação e da observação das crianças sobre os resultados alcançados por elas. O primeiro tipo envolve o local em que ela posicionou a bola e o lugar da rampa por onde a bola rolou – atividades de movimento dos objetos (ou mecânica): a criança deixa uma bola rolar por uma rampa e observa, por exemplo, que há uma correspondência direta e imediatamente visível entre uma e outra. O segundo tipo envolve atividades de mudanças nos objetos: por exemplo, preparar cristais, misturando ½ copo de sal, anil, água e uma colher de sopa de amoníaco; em 1 hora os cristais começam a se formar e em aproximadamente 4 horas são claramente visíveis. Em casos como esse, a reação dos objetos não é direta nem imediata; o resultado é devido principalmente às propriedades materiais dos objetos.

Em uma situação de manipulação de objetos, deixados à disposição, várias ações são realizadas pelas crianças que incessantemente experimentam movimentá-los (puxá-los, sacudi-los, empurrá-los, levantá-los, equilibrá-los) ou transformá-los (modificando sua consistência, seu formato, ou usando-o como parte de outro objeto etc.). Kamil e Devries (1985) indicam dois tipos de atividades das crianças que as conduzem ao conhecimento físico e chamam a atenção sobre o papel da ação e da observação das crianças sobre os resultados alcançados por elas. O primeiro tipo envolve o local em que ela posicionou a bola e o lugar da rampa por onde a bola rolou – atividades de movimento dos objetos (ou mecânica): a criança deixa uma bola rolar por uma rampa e observa, por exemplo, que há uma correspondência direta e imediatamente visível entre uma e outra. O segundo tipo envolve atividades de mudanças nos objetos: por exemplo, preparar cristais, misturando ½ copo de sal, anil, água e uma colher de sopa de amoníaco; em 1 hora os cristais começam a se formar e em aproximadamente 4 horas são claramente visíveis. Em casos como esse, a reação dos objetos não é direta nem imediata; o resultado é devido principalmente às propriedades materiais dos objetos.

Com base nessa literatura e no rico material videogravado disponível no LabInt4 sobre interações de crianças em grupo, este trabalho visou analisar episódios de interação social em crianças de 19 a 31 meses, quando estão em atividade livre, mas em uma situação planejada (brinquedos de certo tipo dispostos sobre uma mesa), identificando as transformações que decorrem de suas ações compartilhadas e que podem propiciar uma aprendizagem sobre eventos físicos construídos por elas.

 

Com quem e como trabalhamos

Participaram deste estudo 12 crianças entre 19 e 31 meses, as quais frequentavam a Sala 1 de uma creche municipal de Camaragibe, PE. As crianças foram divididas em quatro grupinhos de três, de modo que cada um deles se constituísse com as crianças de idades mais próximas. Os trios eram levados a uma sala ampla e tranquila, onde se encontravam uma mesinha e três cadeirinhas, com o material descrito na Figura 1 disposto sobre a mesa. As crianças recebiam a instrução de que estavam ali para brincar e poderiam utilizar livremente aqueles objetos. Um observador permaneceu na sala para operar a câmara de vídeo e ajudar as crianças diante de alguma situação imprevista (fazer xixi, assoar o nariz, apartar uma briga etc.). O observador também fazia algum comentário, não sugestivo de atividades, que tornasse a situação mais natural. Foram realizadas duas sessões de aproximadamente 20 minutos com cada um dos quatro grupinhos, com um intervalo médio de 10 dias entre a primeira e a segunda.

 

Figura 1. Materiais disponíveis sobre a mesa, (1) duas garrafinhas de iogurte; (2) dois frascos plásticos de amaciante de roupa, hermeticamente fechados, um contendo água e, outro, grãos de arroz; (3) sete argolinhas de madeira; (4) onze círculos de papel com um furinho no centro; (5) sete pedacinhos de massa de modelar (plastilina); (6) quatro palitos de picolé; (7) duas varetas (espetinhos de madeira para churrasco); (8) uma grade feita de 10 palitos de picolé, ordenados na mesma posição, e colados sobre outros dois palitos que servem de sustentação; (9) um pedaço de cartolina de 21cm x 11cm; (10) dois tubos de papelão de diâmetros diferentes, podendo um ser colocado dentro do outro; (11) oito caixas de fósforos vazias (três grandes e cinco pequenas); (12) um pedaço de barbante; (13) dois pedaços de elástico de espessuras diferentes.

 

Como crianças pequenas podem aprender umas com as outras?

Percorrendo o material videogravado, recortamos e analisamos qualitativamente (Pedrosa & Carvalho, 2005) episódios que poderiam indicar a ocorrência de aquisições/aprendizagem sobre eventos físicos. Identificamos quatro dinâmicas interacionais potencialmente mediadoras dessas aprendizagens, que comentamos a seguir a partir da descrição resumida e de ilustrações de episódios selecionados.

 

Tentando repetir um resultado obtido casualmente

Episódio “Enfiar vareta na grade”

O episódio consiste em experimentações das crianças (inicialmente uma delas, Vane, F/25, depois imitada por outra, Wally, M/25, ambas ocasionalmente observadas pela terceira criança presente, Ino, M/25)5 com a vareta de madeira e a grade de palitos de picolé, tentando reproduzir um efeito casualmente obtido pela primeira criança em uma de suas tentativas: prender a vareta nas frestas da grade de forma a poder movimentar os dois objetos juntos.

 

Figura 2. Episódio Enfiar varetas na grade: a. Vane brinca com uma vareta de madeira. Pega a grade de palitinhos de picolé e fica batendo a vareta na grade. Ino e Wally a observam. Vane passa a vareta pela grade. Nesse momento, Wally e Ino olham rapidamente para ela, que suspende seu braço segurando a vareta, com a grade enfiada nela, mas apoiada em sua mão. b. Vane brinca com a grade e a vareta, enfia a vareta nas frestas da grade até que, casualmente, a vareta fica presa numa das frestas. Vane abaixa o braço balançando a vareta e a grade ainda mantém-se presa a ela. Ino olha rapidamente para Vane e volta a brincar com seu objeto. c. Vane levanta-se e anda pela sala segurando a vareta com a grade presa, volta à mesa e tenta várias vezes, sem sucesso, fixar uma segunda vareta na grade: a vareta escorrega pelas frestas e cai. Wally, que ainda está sentado, olha para Vane, que ri, e vocaliza algo. d. Vane manipula, de diversas formas, a vareta presa na grade: puxa, balança, tenta soltá-la, passeia com ela pela sala etc. Casualmente a grade se desprende e cai. Vane a apanha e tenta prendê-la novamente mas não consegue. Vane coloca em-cima da mesa, próximo a Wally, a vareta e a grade separadas. Wally olha para ela e logo em seguida pega os dois objetos. Ele tenta, repetidamente, fixar a vareta na grade, sem conseguir. e. Wally passa a vareta pela grade e sustenta a vareta de modo a apoiar a grade em sua mão. Ele suspende o braço e passeia pela sala. Volta à mesa, bate com a vareta na grade, que agora está sobre a mesa, até que a ponta da vareta se prende à grade. Wally segura a grade com as duas mãos e a vareta continua presa. Levanta-se, movimenta a grade para um lado e para o outro, e sai em direção de Ino e Vane. A vareta cai no chão, Wally pega a vareta e tenta, sem sucesso, prendê-la mais uma vez.

 

Nesta sequência, Wally observa as ações de Vane em sua brincadeira com a vareta e a grade. Tais observações irão repercutir em suas ações quando tem a possibilidade de brincar com os mesmos objetos. Ele tenta várias vezes, sem sucesso, obter o mesmo resultado que a primeira criança, até que casualmente consegue prender a vareta na grade: com a grade apoiada na mesa, a vareta não pode ultrapassar a fresta, mas, mesmo assim, fica sustentada; Wally, segurando a grade com a vareta equilibrada sobre ela, dá uma voltinha pela sala como Vane tinha feito. Note-se que o efeito conseguido por Vane (fixar a vareta na grade de forma a poder transportar a grade segurando a vareta) também foi obtido casualmente. Tanto Vane como Wally desconhecem os meios de obter esse efeito, ou seja, a necessidade de ajustar, mesmo intuitivamente, o diâmetro da vareta ao tamanho da fresta, de modo a que a vareta consiga ser enfiada e permaneça presa na fresta, porque os palitos da grade cedem ao esforço da criança em enfiar a vareta e ao próprio material desta, que é mais resistente do que os dos palitos da grade. No entanto, as duas crianças reconhecem o efeito e suas partes componentes, e experimentam ativamente reproduzi-lo de várias formas. Ao obter o efeito e explorá-lo, Vane captura a atenção de Wally e o instiga a realizar a mesma experimentação.

 

Imitando fins, mas não meios

Episódio “Quebrar a grade”

Um efeito obtido por uma criança (Mauri – M/28) – quebrar ao meio a grade de palitos – é notado por outra (Jo – M/28), que não presenciou a ação de quebrar e procura obter o mesmo efeito por meio de outros procedimentos. Vika (F/25) está presente, mas não participa desse episódio.

 

Figura 3. Episódio Quebrar a grade: a. Mauri pega a grade de 10 palitos que estava sobre a mesa. Segura-a com as duas mãos e enverga os lados para baixo de tal maneira que os dois palitos atravessados, que dão sustentação à grade, se quebram ao meio e cada parte fica com 5 palitos. b. Jo se aproxima e observa Mauri colocar uma das partes da grade sobre a mesa. c. Jo pega essa parte e tenta quebrá-la, mas de outra maneira, ou seja, puxando alguns dos palitos. Mauri, segurando seu próprio pedaço com as duas mãos, também tenta quebrá-lo, mas agora, força para baixo as pontas dos cinco palitos e não dos dois que servem de sustentação. Mauri não consegue.

 

É possível dizer que houve uma aprendizagem com o parceiro sobre a realização de uma ação, mesmo que tal ação não tenha sido realizada exatamente da mesma forma: Mauri quebrou a grade pressionando-a contra seu ponto de menor resistência (onde os dois palitos que davam sustentação à grade foram forçados); Jo, utilizando uma das metades da grade, tenta quebrá-la, puxando cada palito de modo a destacá-lo dos outros. Mauri, utilizando a sua metade, novamente força-a contra o ponto de maior resistência (cinco palitos).

Inicialmente um resultado – quebrar a grade – foi notado e provocou interesse; ocorreram diversas tentativas mal-sucedidas, não sendo observada uma atividade restrita à imitação. O que foi imitado foi a busca do efeito, e não os meios de alcançá-lo. A criança que imita parece visar o resultado, ainda que sem atentar ou sem ter tido a oportunidade de observar o modo exato como foi feita a ação. E a criança que produziu a primeira ação, aparentemente intencional, não consegue reproduzi-la posteriormente com um material diferente (a grade já partida). O novo material parece propiciar menos condições de preensão e experimentação simultâneas de seu ponto de menor resistência.

 

Criando um procedimento mais ao alcance de suas possibilidades

Episódio “Transporte de argolas e massinha”

Brincando com varetas, massinha e argolas, Bia (F/28) e Manu (F/31) experimentam vários modos de relacionar os materiais: enfiar as argolas ou um pedaço de massinha na vareta de forma que permita transportar ou movimentar o conjunto construído, separar os objetos que foram juntados, construir coleção de argolas, etc. Laís (F/23) está presente, mas não participa dessa brincadeira; manipula outros objetos e eventualmente observa as outras crianças.

 

Figura 4. Episódio Transporte de argolas e massinha: a. Bia pega uma vareta da mão de Manu e a enfia em um dos pedacinhos de massa com os quais brincava. Manu apanha outra vareta e observa Bia. Manu alça duas argolas com a vareta: posiciona-a no centro das argolas, inclina-a e dá um rápido impulso, enfiando-a por baixo das argolas. Uma delas cai e Manu transporta, para outro lugar da mesa, a argola que ficou enfiada. Bia observa Manu, que volta a suspender mais uma argola. b. Com sua própria vareta, Bia faz o mesmo, mas ajuda a enfiar a argola na vareta com a outra mão. Ela transporta a argola para o mesmo lugar onde Manu deixou as suas. Manu apanha mais duas argolas e novamente as transporta. Bia transporta mais duas argolas. c. Bia observa Manu, que espeta a vareta numa massinha. As argolas de Bia escorregam da vareta e ela se volta para o cartão, onde há mais massinha. Bia também espeta a vareta em um pedacinho de massa. d. Manu esfrega, sobre o mesa, a massinha espetada na vareta, como que tentando desprendê-la, mas não consegue. Bia a imita. A massinha de Manu casualmente se desprende da vareta e cai no chão, quando ela levanta o braço. e. Manu tenta espetar outra massinha com a vareta; não consegue e, então, ajuda com a outra mão. Bia também espeta massinha ajudando com a mão. Manu leva a massinha espetada para o chão e Bia a observa. Manu bate a vareta no chão, várias vezes, como se tentasse desprendê-la, sem sucesso. Bia vai até o chão com a massinha espetada. Manu arrasta sua vareta sobre o cartão, inclinando-a ligeiramente, e consegue desprender a massinha. As duas crianças continuam compartilhando esta brincadeira por vários minutos, alternando os procedimentos (transportar para o chão ou para a mesa, separar a massinha da vareta batendo, arrastando ou balançando etc.)

 

No primeiro momento desse episódio, as crianças manipulam os objetos e exploram diferentes atividades com eles. Enquanto uma apanha uma vareta e tenta enfiá-la numa garrafa, a outra, que colava massinha num cartão, introduz um desses novos objetos, a vareta, na atividade anterior, recortando a ação de enfiar, mas agora não na garrafa e, sim, na massinha. Essa transformação parece desencadear outras transformações: imediatamente a primeira criança passa a enfiar a vareta em argolas, como que experimentando novos objetos disponíveis, mas preservando a ação de enfiar. Isso reafirma a idéia de que as crianças estão em constantes trocas. Há imitações, mas se introduzem pequenas variações na atividade e, além disso, a criança que imita em um turno é imitada no turno seguinte. Outro aspecto que se pode depreender das atividades das crianças é que a ação de inclinar a vareta para suspender argolas, posicionando-a de modo a não permitir que as argolas caiam, mostra a intuição da noção de gravidade já sendo experimentada. No segundo momento, após brincarem com a vareta e as argolas, as crianças voltam a experimentar a combinação vareta e massinha. Com essa mudança elas podem constatar diferenças entre a ação de enfiar uma vareta nas argolas e na massinha e se deparam com as propriedades que cada objeto tem, verificando semelhanças e diferenças. Por exemplo, as crianças descobrem que com a vareta é possível suspender argolas e massinhas, porém com as argolas é preciso deixar a vareta em determinada posição para que as argolas não escorreguem para a sua mão ou caiam sobre a mesa. Já com as massinhas, basta enfiar a vareta e se pode manuseá-la em qualquer posição. Ao contrário, para separar a massinha da vareta é necessário usar a mão ou alguma outra forma de atrito: Manu, mas não Bia, descobre um jeito de desprender a massinha da vareta sem precisar usar a mão, arrastando a vareta com a massa, sobre a mesa ou sobre o chão, e inclinando ligeiramente. Ela exercita essa ação mais algumas vezes. Bia e Manu puderam contrastar as propriedades de maleabilidade e fixação da massinha e sua diferença em relação às argolas, ou seja, a massinha é maleável e pode ser fixada em outros objetos; no caso das argolas, objetos podem ser enfiados nelas, mas só permanecem nesse estado se ficarem equilibrados e isso depende da posição em que se sustenta a vareta. Portanto, massinha e argolas, para serem suspensas e transportadas com a vareta, exigem ações diversas porque têm formatos e propriedades materiais diferentes. Bia e Manu investigam essas propriedades em ações cooperativas.

Bia não consegue realizar todas as ações exatamente como Manu. Embora atente para os meios pelos quais essas ações são realizadas, suas habilidades motoras e/ou reflexivas parecem não permitir que ela alcance o resultado pelos mesmos meios. Ela enfia a argola na vareta com a ajuda da outra mão. Mais adiante, tenta separar a massinha da vareta pelo mesmo procedimento usado pela parceira, arrastando a vareta, ligeiramente inclinada, sobre a mesa, como Manu, mas não obtém o resultado. Claramente, no entanto, mostra que percebe o resultado desejado e os meios para atingi-lo, ainda que não consiga utilizá-los; adota então procedimentos alternativos.

 

Ajudando o parceiro a atingir um resultado por meio de demonstração

Episódio “Derrubando cadeiras”

Uma criança (Jo, M/28) realiza uma ação com um objeto (deitar uma cadeira no chão). Uma outra (Vika, F/ 25) tenta realizar sem sucesso uma ação complementar (erguer a cadeira). A primeira criança demonstra o procedimento para erguer a cadeira e é imitada pela segunda. Uma terceira criança (Mauri, M/27) está presente, mas só observa o desenrolar das ações.

 

Figura 5. Episódio Derrubando cadeiras: a. Minutos depois de Jo ter derrubado uma cadeira sem querer, ele (no centro da figura) cuidadosamente derruba uma segunda cadeira, inclinando-a pelo espaldar e soltando-a quando bem próxima do chão. b. Jo vai até a cadeira que está perto de Vika e, do mesmo modo, a derruba. Vika o observa. c. Vika levanta-se e tenta erguer a cadeira pelas pernas da frente. A cadeira desliza, aproximando-se dela. Vika não consegue. Jo a observa. d. Jo aproxima-se de Vika e ergue parcialmente a cadeira, segurando-a com uma mão no espaldar e a outra na parte dianteira do assento; solta a cadeira, deixando-a cair; olha para Vika e se afasta. e. Vika tenta erguer a cadeira segurando-a, mais uma vez, pelas pernas da frente e, depois, pela parte dianteira do assento, mas a cadeira desliza.

 

Observa-se nesse episódio uma aprendizagem mediada pelo parceiro: Jo realiza uma ação que é observada por Vika, que tenta então realizar, sem sucesso, uma ação complementar. A primeira criança demonstra o procedimento para a realização dessa ação – no qual está implícita a intuição empírica do princípio da alavanca –, deixando para a segunda o espaço de realização (deita a cadeira no chão depois de demonstrar como erguê-la). A ideia de demonstração parece ter força na medida em que Jo levanta a cadeira, mas a deixa no chão, na posição anterior, como que estimulando Vika a realizar a ação necessária para que ela possa obter o resultado desejado. Há uma forte sugestão de que a primeira criança percebe a intenção da outra e age no sentido de ajudá-la a realizar essa intenção.

É possível, pelo contexto em que o episódio aconteceu, que a demonstração de como erguer a cadeira, segurando-a pelo espaldar, tenha uma forte motivação lúdica para envolver a outra criança no compartilhamento de uma brincadeira de derrubar cadeiras, provocando barulho na sala, e não a motivação de querer demonstrar à outra como conseguir levantar a cadeira. A primeira vez que uma cadeira caiu foi um evento acidental: o barulho forte despertou a atenção das três crianças e duas delas, Jo e Mauri, riram alto. Após alguns minutos, Jo derrubou uma segunda e terceira cadeiras, mas fez isso cuidadosamente, segurando-as pelo espaldar, inclinando-as para baixo e deixando-as cair apenas quando bem próximas do chão, mas uma queda suficiente para provocar um barulho no ambiente. Quando Vika tenta, sem sucesso, erguer uma das cadeiras, Jo a observa, aproxima-se e segura a cadeira de modo a erguê-la; levanta-a parcialmente e a deixa cair, quando já bem próxima do chão, mas provocando novamente aquele barulho na sala. Enquanto Vika faz nova tentativa de erguer a cadeira, até obter êxito, Jo dirige-se para uma outra cadeira, ergue-a, mas em seguida a derruba. Volta a derrubar a cadeira que Vika tinha erguido e levanta e derruba a primeira cadeira, a que caiu acidentalmente. Vika não mais se envolveu nessa atividade e Mauri, apesar de olhar para as cadeiras que caíam, em nenhum momento compartilhou dessa atividade.

Reconhecer uma motivação lúdica não invalida o argumento sugerido nessa análise: um forte indício de que Jo atribuiu uma intenção à ação de Vika, demonstrando o “como fazer” e criando um espaço para que ela própria a realizasse. A “intenção de envolver a outra criança na brincadeira”, ou a “intenção de ensinar”, não é o ponto que se examina quando Jo demonstra como Vika deve proceder. O que se quer realçar nesse episódio é que os parceiros de idade, mesmo num período inicial de vida, têm competência social, cognitiva e afetiva para participar ativamente de sua ontogênese e são coautores de inúmeras aprendizagens que estão ao seu alcance. Mesmo que o ponto em discussão não seja a intenção do comportamento da criança ao realizar várias ações, a criança compartilha com a outra muitas situações instigantes e demonstra ser capaz de atribuir sentido aos seus atos e aos atos dos parceiros.

 

A que reflexões nos conduzem essas observações?

As aprendizagens ou aquisições que as crianças realizam com os parceiros, brincando livremente com material que se deixa à disposição, parecem revelar modos distintos de constituição do saber, a depender dos recursos interpretativos e motores de que dispõem e do nível de complexidade dos fenômenos com os quais elas se deparam.

A exploração qualitativa dos episódios descritos aqui mostra que as crianças observam e refletem não somente sobre as suas ações, mas também sobre as ações dos parceiros e sobre os resultados alcançados por ambos. Há indícios fortes de percepção de efeitos obtidos a partir de certas ações sobre os objetos, de modos de reproduzir esses efeitos (ainda que nem sempre estejam ao alcance da criança) e de intenções ou objetivos dos parceiros (Dunn, 1988).

As aprendizagens ou aquisições que ocorrem nem sempre são fáceis de ser percebidas. Às vezes o resultado alcançado pela primeira criança foi fruto de uma ação casual e a outra criança tenta alcançar o mesmo resultado também por um comportamento casual. Ambas desconhecem os meios de alcançá-lo; mas recortar o resultado de uma ação já produz o reconhecimento de um fenômeno. É como se a criança o apresentasse a si próprio e gerasse a possibilidade de experimentá-lo de diversos modos. Outras vezes a criança recorta o resultado final da ação da outra criança sem atentar para o modo como se chegou àquele resultado: imitação de fins e não de meios, uma distinção potencialmente relevante para a compreensão do processo de aquisição da linguagem (cf., por ex., Carpenter, Tomasello & Savage-Rumbaugh, 1995; Eckerman & Didow, 1996; Eckerman & Peterman, 2004). Outras vezes, há repercussões recíprocas em quem imita e em quem é imitado, como no episódio da cadeira: a criança que levanta a cadeira pelo espaldar parece ter apreendido intuitivamente a noção de alavanca; observando o insucesso da parceira, procura demonstrar-lhe como levantar a cadeira pelo espaldar.

Aprendizagem aqui não se limita a um produto final alcançado, mas a aquisições – reconhecimentos, comparações, confrontações – que podem ou não chegar a um produto final. Tal como no conceito vygotskiano de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), o foco é no processo (Vygotsky, 1984). A aplicação da ideia de ZDP na presente análise, de certa forma, amplia o alcance desse conceito, já que se trata de interações de crianças e não adulto-criança. No episódio da cadeira, pode-se dizer que Jo desempenha o papel do adulto, no sentido estrito de que ele sabe algo e ajuda a parceira que não sabe. Em outros casos pode haver dois ou três parceiros que não sabem e que, juntos, instigados ou motivados para fazerem alguma coisa – brincando, explorarem e descobrirem algo –, podem estar construindo uma aquisição, ou um caminho para a aquisição de um conceito, de uma noção, ou simplesmente do domínio prático sobre a realização de um efeito. Essa observação relativiza a noção de parceiro competente e realça a noção de coconstrução ou construção conjunta: aprende-se ensinando e ensina-se aprendendo. Mesmo no caso de interações aparentemente assimétricas, como a de Jo e Vika, ao ensinar Jo também aprende – por exemplo, sobre como ensinar, sobre reações do parceiro à atribuição de intenção que ele está fazendo, sobre o próprio processo de atribuir intenções, e também sobre o princípio da alavanca, já que tem a oportunidade de contrastar seu procedimento bem-sucedido com o procedimento mal-sucedido da parceira.

Esse episódio é interessante ainda sob outros aspectos. A demonstração de como fazer para que a outra criança obtenha sucesso informa também sobre a motivação da criança em derrubar cadeiras. À primeira vista poder-se-ia pensar em uma ação agressiva: derrubar cadeiras na sala parece querer transgredir a ordem, a organização do ambiente. No entanto, observar o que a outra criança faz e ajudá-la a obter sucesso numa ação que é complementar à sua própria (derrubar/ recolocar a cadeira em sua posição usual) dá um tom de exploração do ambiente, ou seja, fazer e desfazer, experimentar e repetir, observar a repercussão de suas ações (resultado alcançado) e a repercussão dessas nos outros presentes no ambiente. É a vocação humana para a pesquisa revelando-se na brincadeira.

Por outro lado, embora se possa considerar que a imitação esteja presente nesse episódio – quando Vika adota o procedimento demonstrado por Jo –, o que desencadeia o episódio não é uma ação imitativa, e sim uma tentativa de ação complementar: erguer a cadeira. Esse fato realça a simultaneidade de ações imitativas e complementares nos processos interacionais de crianças já no terceiro ano de vida – e possivelmente mesmo em fases anteriores.

Observar o processo de construção conjunta de conhecimento na interação de crianças contribui para concretizar a concepção teórica já prevalente sobre a criança como agente ativo de seu desenvolvimento e em suas relações com o mundo e com o outro. Essa concretização pode ser mais difícil quando se focalizam relações entre adultos e crianças, devido à natureza essencialmente assimétrica dessas relações e à noção muito arraigada de aprendizagem como transmissão unidirecional, do parceiro mais competente para o menos competente: pode ser mais difícil enxergar, nessas situações, o papel ativo da criança – e, por outro lado, o permanente papel de aprendiz do adulto. Contribui também para realçar o significado do brincar como espaço de aprendizagem: crianças brincando juntas nos mostram que não é preciso tornar o brincar um espaço de aprendizagem – ele o é intrinsecamente; da mesma forma, não é preciso tornar a criança um aprendiz através de contingências ou motivações extrínsecas – como ser humano, ela é intrinsecamente aprendiz (Pereira & Carvalho, 2003).

A implicação mais relevante dessa perspectiva em termos do processo educacional refere-se ao papel propiciador do educador e das instituições educacionais na preparação e gerenciamento do ambiente escolar e das relações que nele se desenvolvem. Um ambiente físico seguro e acolhedor, com espaços, equipamentos6 e uma organização espacial que favoreça a interação das crianças (Campos de Carvalho, 1998); um ambiente emocional de apoio, afetividade e liberdade, de disponibilidade para a troca social e para a aprendizagem recíproca, de reconhecimento das necessidades, motivações e competências da criança e de respeito a elas – são condições altamente propiciadoras dos processos de construção conjunta que, segundo toda a pesquisa e reflexão contemporâneas sobre a aprendizagem, constituem o modo humano de assimilar e criar conhecimento (Vygotsky, 1984; Pedrosa, Santos, & Santos, 2002).

 

Referências

Camaioni, L. (1980). L´ interazione tra bambini. Roma: Armando Armando.        [ Links ]

Campos de Carvalho, M. I. (1998). Comportamento de crianças pequenas em creche e arranjo espacial. Temas em Psicologia, 6(2), 125-133.        [ Links ]

Carpenter, M., Tomasello, M., & Savage-Rumbaugh, S. (1995). Joint attention and imitative learning in children, chimpanzees and enculturated chimpanzees. Social Development, 4(3), 217-237.        [ Links ]

Carvalho, A. M. A., & Beraldo, K. E. A. (1989). Interação criança-criança: ressurgimento de uma área de pesquisa e suas perspectivas. Cadernos de Pesquisa, 71, 55-61.        [ Links ]

Carvalho, A. M. A., Império-Hamburger, A., & Pedrosa, M. I. (1998). Interaction, regulation and correlation in the context of human development: Conceptual discussion and empirical examples. In M.C. D. P. Lyra & Jaan Valsiner (Eds.), Construction of psychological processes in interpersonal communication (pp. 155-180). Stamford, CT: Ablex.        [ Links ]

Corsaro, W. A., & Molinari, L. (1990). From seggiolini to discussione: The generation and extension of peer culture among Italian preschool children. Qualitative Studies in Education, 3(3), 213-230.        [ Links ]

Dunn, J. (1988). The beginnings of social understanding. Oxford, UK: Basil Blackwell.        [ Links ]

Eckerman, C. O., & Didow, S. M. (1996). Nonverbal imitation and toddlers’ mastery of verbal means of achieving coordinated action. Developmental Psychology, 32(1), 141-152.        [ Links ]

Eckerman, C. O., & Peterman, K. (2004). Peers and infant social/communicative development. In G. Bremner & A. Fogel (Eds.), Blackwell handbook of infant development (pp. 326-350). Oxford, UK: Blackwell.        [ Links ]

Kamil, C., & Devries, R. (1985). O conhecimento físico na educação pré-escolar: implicações da teoria de Piaget. Porto Alegre: Artes Médicas.        [ Links ]

Lordelo, E., & Carvalho, A. M. A. (2003). Educação infantil e psicologia: para que brincar? Psicologia: Ciência e Profissão, 23(2), 14-21.        [ Links ]

Mueller, E. (1972). The maintenance of verbal exchanges between young children. Child Development, 43(3), 930-938.        [ Links ]

Mueller, E., & Lucas, T. (1975). A developmental analysis of peer interaction among toddlers. In M. Lewis & L. A. Rosenblum A. (Eds.), Friendship and peer relations (pp. 223-257). New York: Wiley.        [ Links ]

Mussatti, T., & Mueller, E. (1985). Expressions of representational growth in toddlers’ peer communication. Social Cognition, 3, 383-399.        [ Links ]

Nadel, J., & Baudonnière, P.-M. (1981). Imitação, modo preponderante de intercâmbio entre pares, durante o terceiro ano de vida. Cadernos de Pesquisa, 39, 26-31.        [ Links ]

Oliveira, Z. M. R. (1995). A criança e seu desenvolvimento: perspectivas para se discutir a educação infantil. São Paulo: Cortez.        [ Links ]

Oliveira, Z. M. R., Mello, A. M., & Rossetti-Ferreira, M. C. (1992). Creches: crianças, faz-de-conta & cia. Petrópolis, RJ: Vozes.        [ Links ]

Oliveira, Z. M. R., & Rossetti-Ferreira, M. C. (1993). O valor da interação criança-criança em creches no desenvolvimento infantil. Cadernos de Pesquisa, 87, 62-70.        [ Links ]

Olson, D. R., & Homer, B. D. (1998). How children create knowledge. Cognitive Development, 13, 249-255.        [ Links ]

Pedrosa, M. I. (1996). A emergência de significados entre crianças nos anos iniciais de vida. In M. I. Pedrosa (Org.), Investigação da criança em interação social (Vol. 1, n. 4, pp. 49-68). Recife: Editora Universitária da UFPE. (Coletâneas da ANPEPP - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia)        [ Links ]

Pedrosa, M. I., & Carvalho, A. M. A. (1995). A interação social e a construção da brincadeira. Cadernos de Pesquisa, 93, 60-65.        [ Links ]

Pedrosa, M. I., & Carvalho, A. M. A. (2005). Análise qualitativa de episódios de interação: uma reflexão sobre procedimentos e formas de uso. Psicologia: Reflexão e Crítica, 18(3), 431-453.        [ Links ]

Pedrosa, M. I., Carvalho, A. M. A., & Império-Hamburger, A. (1997). From disordered to ordered movement: Attractor configuration and development. In A. Fogel, M. C. D. P. Lyra & J. Valsiner (Eds.), Dynamics and indeterminism in developmental and social processes (pp. 135-151). Mahwah, NJ: LEA.        [ Links ]

Pedrosa, M. I., & Echerman, C. O. (2000). Sharing means: How infants construct joint action from movement, space, and objects. Abstracts of the XVIth Biennial Meetings of ISSBD (Beijing, China), p. 438.        [ Links ]

Pedrosa, M. I., Santos, M. F. S., & Santos, W. N. (2002). Princípios norteadores para a Educação Infantil. In F. Angelim, I. Oliveira & M. I. Vasconcelos (Orgs.), Proposta curricular: educação Infantil (pp. 27-42). Camaragibe, PE: Secretaria de Educação/Prefeitura Municipal.        [ Links ]

Pereira, M. A. P., & Carvalho, A. M. A. (2003). Brincar, é preciso. In A. M. A. Carvalho, C. M. C. Magalhães, F. A. R Pontes & I. D. Bichara (Orgs.), Brincadeira é cultura: viajando pelo Brasil que brinca (Vol. 2, pp. 115-123). São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Rossetti-Ferreira, M. C., Mello, A. M., Vitória, T., Gosuen, A., & Chaguri, A. C. (1998). Os fazeres na educação infantil. São Paulo: Cortez.        [ Links ]

Rossetti-Ferreira, M. C., Amorim, K. S., Silva, A. P. S., & Carvalho, A. M. A. (Orgs.). (2004). Rede de significações e o estudo do desenvolvimento humano. Porto Alegre: Artmed.        [ Links ]

Schilling, T. H., & Clifton, R. K. (1998). Nine-month-old infants learn about a physical event in a single session: Implications for infants’ understanding of physical phenomena. Cognitive Development, 13(2), 165-184.        [ Links ]

Stamback, M., & Verba, M. (1986). Organization of social play among toddlers: An ecological approach. In E. Mueller & C. R. Cooper (Eds.), Process and outcome in peer relationships (pp. 229-247). New York: Academic Press.        [ Links ]

Verba, M. (1994). The beginnings of collaboration in peer interaction. Human Development, 37(3), 125-139.        [ Links ]

Verba, M., Stamback, M., & Sinclair, H. (1982). Physical knowledge and social interaction in children from 18 to 24 months of age. In G. E. Forman (Ed.), Action and thought: From sensorimotor schemes to symbolic operations (pp. 267-296). New York: Academic Press.        [ Links ]

Vygotsky, L. (1984). A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes.        [ Links ]

 

 

Recebido em: 19/02/2009
Aceito em: 18/05/2009

 

 

1 Artigo elaborado a partir de uma das análises realizadas com os dados obtidos na pesquisa “Brincadeira infantil: divertindo-se, aprendendo e tecendo seu próprio desenvolvimento”.
2 Desenhos de David A. L. Carvalho (Endereço eletrônico: dvac00@uol.com.br) e produção gráfica da Edite.com. Endereço eletrônico: editora@edite.com.br
3 As autoras agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) por apoios recebidos no decorrer do trabalho
4 LabInt – Laboratório de Interação Social Humana, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco.
5 Convenções para identificar o gênero e idade das crianças: M (masculino) ou F (feminino) / idade indicada em meses.
6 Objetos, material, brinquedos que, como ilustra a situação descrita nesse estudo, não precisam ser caros ou sofisticados, mas sim permitir o exercício da exploração e da fantasia.

Maria Isabel Patrício de Carvalho Pedrosa, Professora Associada 1 do Departamento de Psicologia, da Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisadora bolsista do CNPq. Endereço para correspondência: Rua Casa Forte, 65/1101, CEP 52061-460. Recife, PE, Brasil. Endereço eletrônico: icpedrosa@uol.com.br
Ana Maria Almeida Carvalho, Professora Associada (aposentada) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, SP. Pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador, BA. Pesquisadora IA do CNPq. Endereço para correspondência: Rua da Invernada, 12, CEP 06355-340. Carapicuíba, SP, Brasil. Endereço eletrônico: amacarva@uol.com.br