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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof v.5 n.1 São Paulo jun. 2004

 

ARTIGOS

 

 

Orientação profissional com crianças: uma contribuição à educação infantil

 

Working with kids: early professional guidance as a contribution to child education

 

Orientación profesional con los niños: una contribución para la educación infantil

 

 

Juliana Campregher Pasqualini* 1; Norma de Fátima Garbulho**; Tannie Schut***

Universidade Estadual Paulista, Bauru

 

 


RESUMO

Na perspectiva da Psicologia Sócio-histórica, a idade pré-escolar é a fase em que a criança passa a reproduzir em seus jogos as funções sociais e a atividade do adulto, desvendando a realidade social em que está inserida, na qual o trabalho do adulto assume papel central. Compreendendo a relação homemtrabalho como objeto de estudo da Orientação Profissional, apresenta-se uma proposta de intervenção junto a crianças pré-escolares, discutindo as possíveis finalidades da Orientação Profissional infantil. Relata-se um projeto de intervenção desenvolvido com um grupo de crianças em uma creche pública, em que foram também realizados encontros com pais. Conclui-se que a Orientação Profissional desponta como importante contribuição para a Educação Infantil, favorecendo uma formação integral dos indivíduos, e que esta pode ser uma possível área de atuação do orientador profissional.

Palavras-chave: Orientação profissional com crianças, Educação infantil, Perspectiva sócio-histórica.


ABSTRACT

According to Social-historical Psychology, the kindergarten age is the period of life when kids start to reproduce adults’ social functions and activities in their games, making up the social reality in which they are inserted, where adult work plays an essential role. Having the relation between people and work as the subject of Professional Guidance, this paper presents a proposal of Professional Guidance programs for kids, and discusses the possibilities and purposes of this kind of job with children. This work describes an intervention project developed with a group of children from a public kindergarten, including meetings with the children’s parents. Professional Guidance with kids was seen to be an important contribution to child schooling, as well as a new possibility for the professional consultant.

Keywords: Professional guidance with kids, Child education, Social-historical approach.


RESUMEN

En la perspectiva socio-histórica, la edad preescolar es la etapa en que el niño pasa a reproducir en sus juegos las funciones sociales y la actividad del adulto, descubriendo la realidad social en que está inserta, en la cual el trabajo del adulto asume un papel central. Comprendiendo la relación hombre-trabajo como objeto de estudio de la orientación profesional, se presenta una propuesta de intervención para niños preescolares, discutiendo las posibles finalidades de la orientación profesional infantil. Se relata un proyecto de intervención desarrollado con un grupo de niños en una guardería pública, en el que se realizaron también encuentros con los padres. Se concluye que la orientación profesional surge como importante contribución para la educación infantil, favoreciendo una formación integral de los individuos, y que ésta puede ser una posible área de actuación del orientador profesional.

Palabras clave: Orientación profesional con niños, Educación infantil, Perspectiva socio-histórica.


 

 

O trabalho em Orientação Profissional, segundo Bock e Aguiar (1995), deve ter como finalidade a promoção de saúde, buscando, entre outras coisas, ampliar a consciência que o indivíduo possui sobre a realidade que o cerca, promover uma compreensão menos preconceituosa, estereotipada e ideológica do mundo e instrumentalizar os indivíduos para uma atuação transformadora diante da realidade social. Tal concepção de promoção de saúde e da própria Orientação Profissional está calcada em uma compreensão do homem enquanto ser histórico e social, fundamentada na Psicologia Sócio-histórica, referencial teórico-metodológico que sustenta o presente trabalho.

Em relação ao campo de estudo e atuação do orientador profissional, corroboramos a proposta de Uvaldo (1995) de que a relação homem-trabalho deva ser seu grande foco e objetivo. Para esta autora, no entanto, a Orientação Profissional ainda permanece bastante restrita ao atendimento a adolescentes da classe média e alta que concluem o Ensino Médio e encontram-se diante da escolha de um curso superior. Partilhamos com a autora a ponderação de que esta importante modalidade de trabalho constitui apenas uma das possibilidades de intervenção do orientador profissional.

Neste sentido, nas atividades de estágio e extensão universitária em Orientação Profissional do Centro de Psicologia Aplicada da Universidade Estadual Paulista (UNESP - Bauru), temos primado pela consolidação de práticas emergentes e de relevância social na área, diversificando as modalidades de intervenção junto à comunidade e ressaltando a dimensão educativa presente no trabalho do orientador profissional.

É nesse contexto que nasce a proposta do desenvolvimento de programas de Orientação Profissional com crianças pré-escolares. Tal proposta sustenta-se na compreensão de que os processos de internalização da realidade social iniciam-se já na primeira infância, mediados pelas relações sociais que a criança estabelece com os adultos (e demais crianças), nos diversos contextos em que está inserida, como a escola, a família, a comunidade. Neste sentido, embora este seja um processo em constante movimento ao longo da vida dos indivíduos, as concepções de mundo, valores e opiniões principiam sua formação nesta fase do desenvolvimento.

Alguns pesquisadores do desenvolvimento infantil, como Mukhina (1996), chamam a atenção para o fato de que os processos educativos na infância exercem uma influência mais poderosa no desenvolvimento das qualidades psíquicas do que o ensino na idade adulta. Acreditamos que esta é uma constatação que destaca a relevância de ações educativas junto a esta faixa etária, articuladas ao pressuposto de que o processo educativo deva ter como finalidade a formação de indivíduos capazes de uma atuação como sujeitos transformadores da prática social global, no sentido da superação das condições de alienação inerentes ao modo de produção capitalista vigente. Nas palavras de Nosella (s/d): “Ora, como educar o homem novo sem priorizar a infância? Ela é, potencialmente, um novo homem que ainda não proferiu palavra, mas pode ensaiar um novo discurso, uma nova ordem social, justa e humana”.

A literatura sobre o desenvolvimento infantil na perspectiva da Psicologia Sócio-histórica, em nosso ponto de vista, traz elementos que sustentam uma proposta de trabalho em Orientação Profissional junto à idade pré-escolar, período em que, como veremos adiante, a criança começa a desvendar o mundo do trabalho.

A criança e o mundo do trabalho

Segundo Nosella (s/d), o fato de a sociedade capitalista afastar as crianças do mundo do trabalho dos adultos nos dá a ilusão de que o mundo das crianças seja algo totalmente desligado, avulso, separado das relações de produção e de reprodução social.

Torna-se importante, neste sentido, resgatar a história social da infância. Estudos indicam que nas culturas primitivas a criança trabalha junto ao adulto desde o momento em que começa a andar. Foi apenas a partir do momento em que o trabalho dos adultos passou a requerer um grande processo de formação prévia (tornando-se inexeqüível para a criança), que se configurou a infância tal qual nós a conhecemos: um período no qual a criança irá adquirir conhecimentos, hábitos, qualidades psíquicas e habilidades necessárias à sua inserção produtiva na sociedade, ou seja, um período de preparação para a vida e para a atividade adulta (Mukhina, 1996).

Criaram-se, portanto, as condições para que, em nosso momento histórico, a produtividade concreta das ações da criança se tornasse secundária, ou mesmo irrelevante, visto que a satisfação de suas necessidades é garantida pelo adulto. Assim, na brincadeira a criança guia um carro, embora seja na verdade impossível andar nesse carro, pois nesse momento do desenvolvimento isso é irrelevante para ela (Leontiev, 2001a).

O jogo, que se caracteriza, portanto, por ser uma atividade psicologicamente independente dos resultados concretos obtidos, é a atividade principal da criança na idade pré-escolar, isto é, a atividade cujo desenvolvimento governa as mudanças mais importantes nos processos psíquicos e nos traços psicológicos da personalidade da criança.

A idade pré-escolar, segundo nos aponta Leontiev (2001a), é o período da vida em que se abre pouco a pouco para a criança o mundo da atividade humana que a rodeia:

“em toda sua atividade e, sobretudo em seus jogos, que ultrapassaram agora os estreitos limites da manipulação dos objetos que a cercam, a criança penetra num mundo mais amplo, assimilando-o de forma eficaz” (p.59).

Nas brincadeiras do período pré-escolar, as operações e ações da criança são sempre reais e sociais, e nelas a criança assimila a realidade humana. Nos pré-escolares menores, o jogo recria relações de um mundo bastante restrito – em geral, esses jogos têm por argumento a prática ou vivência diária; posteriormente, o eixo principal do jogo passa a ser a reprodução das relações humanas (Mukhina, 1996). Nessa fase do desenvolvimento, portanto, as brincadeiras nas quais a criança reproduz aquilo que vê ao seu redor na vida e na atividade dos adultos desempenham importante papel – ela realiza as funções dos adultos, cria situações que reproduzem as condições de suas atividades e atua de maneira semelhante a eles (Leontiev, 2001b).

Tal tendência de reprodução da atividade humana não se limita à imitação de operações produtivas e técnicas – em verdade, o jogo reproduz essencialmente o caráter social do trabalho, sua propriedade de influência sobre o mundo.

“No papel que desempenha no brinquedo, a criança assume certa função social generalizada do adulto, muitas vezes uma função profissional: o zelador – um homem com uma vassoura; um médico – que ausculta ou vacina; um oficial do exército – que dá ordens na guerra, e assim por diante” (Leontiev, 2001b, p.132).

Para Smirnov (1960), essa atividade tem importante significado educativo e permite à criança assimilar o conteúdo do trabalho dos adultos e as funções sociais das pessoas e perceber as relações que se criam na vida real.

Mukhina (1996) chama a atenção para o fato de que o desenvolvimento dos temas das brincadeiras infantis mantém relação direta com a ampliação do círculo de conhecimentos da criança e de sua experiência de vida: “Quanto mais ampla for a realidade que as crianças conhecem, tanto mais amplos e variados serão os argumentos de seus jogos” (p.157). Na direção contrária, portanto, mais pobres e monótonas serão as tramas de suas brincadeiras quanto mais restrito o círculo de contatos com a realidade proporcionado à criança.

É importante também ressaltar que a atividade da criança configura importante ferramenta de preparação para a vida adulta – o jogo constitui uma antecipação mais generalizada do tornar-se adulto, apresentando ampla variedade de possibilidades futuras para a criança.

Andrade (1995), ao discutir o papel do jogo com base nos pressupostos de Piaget expressos na obra “A Formação do Símbolo na Criança”, afirma que

“enquanto brinca com bonecas e animais, caminhões e aviões, jogos de construção, kits de médico, as crianças fantasiam sobre estas atividades, explorando, com prazer, como é ser um bombeiro ou caminhoneiro, um piloto ou astronauta, experimentando imaginativamente possíveis papéis adultos” (p.4).

Do ponto de vista da autora, é possível afirmar, inclusive, que tendo experimentado mentalmente tais possibilidades, a criança estará numa posição melhor para escolher satisfatoriamente no futuro.

Nesse complexo processo de decodificação da realidade pela criança está implicada a atuação do adulto. É por meio da mediação do adulto – que já se apropriou da cultura – que a criança assimila um amplo círculo de conhecimentos adquiridos pelas gerações precedentes, apropria-se de habilidades e formas de conduta elaboradas socialmente. Segundo Smirnov (1960), o adulto auxilia a criança a descobrir e atentar para determinadas facetas da realidade que se refletirão posteriormente no jogo: as particularidades da atividade dos adultos, as funções sociais das pessoas, as relações sociais entre elas, o sentimento social da atividade humana. Ainda para o autor, é preciso observar com cuidado as brincadeiras das crianças, enfatizando aquelas facetas da realidade cuja reprodução nos jogos possa exercer uma influência educativa positiva e distraindo-as da representação daquilo que pode desenvolver o que denomina de qualidades negativas.

Dessa forma, torna-se clara a importância de ações educativas no segmento da Educação Infantil que promovam uma maior compreensão da criança acerca da realidade social na qual está inserida, particularmente no que concerne ao mundo do trabalho. Garantir que a criança conheça os modos de ser, viver e trabalhar de alguns grupos sociais do presente e do passado e identifique alguns papéis sociais existentes em seus grupos de convívio, dentro e fora da instituição, são objetivos da educação de crianças de 4 a 6 anos22. Nesta direção, observa-se uma aproximação com o objeto de estudo e intervenção da Orientação Profissional: a relação homem-trabalho.

Entendemos que a Orientação Profissional pode trazer reflexões que contribuam para que tais ações educativas possam minimizar ou evitar uma apropriação estereotipada da realidade social pela criança que experiencia papéis adultos, em especial determinadas profissões, favorecendo, dessa forma, a desconstrução de preconceitos e estereótipos relacionados às diferentes atividades profissionais.

Lemos (1999), psicossocióloga militante do movimento negro, ilustra o fato de que o preconceito e a intolerância têm suas bases na primeira infância, relatando uma experiência acontecida com sua filha que, aos quatro anos, desenhava a mãe negra com cabelos louros “porque achava mais bonito”. Embora a pesquisa a respeito da compreensão do mundo do trabalho pela criança seja ainda incipiente, é possível hipotetizar que este mesmo mecanismo esteja presente, por exemplo, na (des)valorização de determinadas funções sociais e no sexismo relativo às atividades profissionais. Felipe (2003), ao investigar a percepção do mundo do trabalho por crianças de classe média e média-alta, detectou, entre outras coisas, “o quanto o curso superior e o status de determinada profissão são introjetados nas representações profissionais dessas crianças” (p.24).

Processos de Orientação Profissional poderão contribuir, ainda, para promover, desde o momento em que a criança principia a compreender o mundo da atividade humana, uma visão ampla do trabalho, que não seja associada naturalmente ao sofrimento e à obrigação, como ocorre principalmente para a população de baixa renda, expropriada das possibilidades emancipatórias do trabalho. Poderão contribuir, portanto, para uma compreensão do trabalho enquanto atividade vital humana e meio de transformação da realidade pelos homens, que se apresenta desvirtuada em nossa forma de organização social.

Escolha e Autoconhecimento

Nos programas de intervenção em Orientação Profissional, desenvolvidos no Centro de Psicologia Aplicada da UNESP - Bauru, as atividades são estruturadas a partir de quatro eixos. As possibilidades acima descritas corresponderiam aos eixos Trabalho e Informação Profissional. Também em relação aos demais eixos integrantes do processo – Escolha/Projeto Profissional e Autoconhecimento – procuraram-se identificar possíveis contribuições da área para o desenvolvimento infantil.

Pensar na escolha profissional significa, de acordo com a abordagem Sócio-histórica em Orientação Profissional, acreditar que o indivíduo escolhe e não escolhe ao mesmo tempo, considerando-se a liberdade/autonomia. Para Bock (2002), de acordo com sua classe social de origem, a pessoa tem maior ou menor liberdade para decidir, porém a escolha será sempre multideterminada: mesmo para o indivíduo de classe mais privilegiada, haverá a determinação social (portanto, não haverá liberdade absoluta) e para o indivíduo de classes populares, apesar das restrições de ordem concreta, por menor que seja esta possibilidade, é possível intervir em sua trajetória, por meio de ações pessoais e/ou coletivas. Isto não significa resgatar a concepção liberal de homem, nem assumir que os obstáculos postos pela realidade social serão superados por mera vontade individual – significa que as pessoas podem lutar individual e coletivamente para mudar as condições em que vivem.

Escolher (com maior ou menor autonomia) supõe a oportunidade de viver situações no cotidiano que favoreçam a aprendizagem da escolha. Ela não acontece de repente, descolada da história do indivíduo, como um fato isolado. Segundo Soares (1991), a escolha profissional não foge a essa afirmação – ela constitui um processo contínuo que vai desde a infância até a idade adulta. A autora afirma que é preciso que o indivíduo tenha passado por situações de escolha em momentos anteriores e aponta para a importância de proporcionar, desde cedo, oportunidades às crianças de efetuarem escolhas.

Em relação ao processo de escolha na idade pré-escolar, Mukhina (1996) apresenta as seguintes afirmações:

“Geralmente, a criança [na primeira infância] não se propõe uma escolha consciente: ela se deixa levar pelo incentivo mais forte. A escolha é ainda uma situação muito difícil para a criança na primeira infância, pois ela não está capacitada para tomar uma decisão [...] As possibilidades de tomar uma decisão racional crescem consideravelmente quando se aproxima a idade pré-escolar maior. Estas possibilidades apóiam-se na hierarquização das motivações [...] Isso desenvolve seu autodomínio e sua capacidade de conter os desejos circunstanciais, e fortalece sua vontade” (p. 226-227).

Neste processo, a atuação do adulto, oportunizando situações de escolha para a criança e fazendo avançar seu desenvolvimento nesta direção, é determinante na consolidação destas habilidades. Dessa forma, o trabalho de Orientação Profissional pode buscar favorecer este desenvolvimento desde a infância, estabelecendo atividades específicas que contribuam para a aprendizagem e vivência de situações de escolha, sensibilizando o próprio segmento da Educação Infantil para a importância deste aspecto para o desenvolvimento humano.

Em relação ao eixo Autoconhecimento, observa-se que na criança pré-escolar “está se desenvolvendo a autoconsciência, ou seja, a criança adquire consciência de si, compreende o que ela representa, que qualidades tem, como se comportam para com ela os que a rodeiam e a que se deve este comportamento” (Mukhina, 1996, p.207). Também esta parece ser uma dimensão possível de ser abordada em programas de Orientação Profissional com crianças, estimulando o desenvolvimento do autoconhecimento tanto em termos de autopercepção quanto de inserção no contexto social.

A proposta de intervenção

O presente relato refere-se à implementação de um projeto-piloto de intervenção com crianças pré-escolares, realizado como atividade do estágio curricular supervisionado “Orientação Vocacional e para o Trabalho”, oferecido aos alunos do Curso de Psicologia da universidade, com duração semestral.

Buscou-se, neste trabalho, contribuir para a formação integral das crianças, através da decodificação da realidade no que tange à sua inserção social e ao mundo do trabalho. Estabeleceu-se como objetivos específicos: 1) identificar o nível de conhecimento e compreensão das crianças em relação às diferentes atividades profissionais e ao mundo do trabalho em geral; 2) promover uma concepção ampliada do trabalho, 3) expandir conhecimentos sobre as profissões, relacionandoas a instrumentos e locais de trabalho e funções sociais e 4) estimular o trabalho coletivo, tendo em vista sensibilizar para o caráter social do trabalho e a importância da coletividade nas atividades escolares e laborais. Acreditava-se também importante refletir, de acordo com o grau de compreensão do grupo, sobre as oportunidades e possibilidades de escolha de uma profissão em nossa sociedade.

Favorecer a aprendizagem e a vivência de situações de escolhas e contribuir para desenvolvimento do autoconhecimento foram também finalidades deste projeto.

Ainda, estabeleceu-se como objetivo do trabalho discutir com os pais seu papel no processo de construção da identidade e formação de seus filhos, considerando o papel da família enquanto mediadora entre o indivíduo e a sociedade. Conforme Reis (1984), a família é o locus onde aprendemos “a perceber o mundo e a nos situarmos nele. É a formadora da nossa primeira identidade social. Ela é o primeiro ‘nós’ a quem aprendemos a nos referir” (p.99). Entendendo que no convívio com a família, a criança “internaliza padrões de comportamento, normas e valores de sua realidade social decorrente de sua condição de classe” (Miranda, 1984, p.133), este espaço de discussão com a família poderia contribuir para a desnaturalização da realidade social excludente e alienada e para a promoção do desenvolvimento das crianças nas máximas possibilidades de humanização.

A partir da realização deste projeto, por fim, pretendia-se discutir as possibilidades de atuação do orientador profissional junto à infância, verificando a viabilidade e a validade desta modalidade de intervenção.

 

MÉTODO

O projeto foi implementado junto a um grupo de crianças da turma do pré de uma escola municipal de educação infantil, localizada na periferia de um município de porte médio do interior do Estado de São Paulo. Foram realizados 15 encontros semanais de aproximadamente uma hora e trinta minutos de duração, no período de março a junho de 2003.

O grupo era composto por 28 crianças na faixa etária de seis anos, que permaneciam em período integral na instituição, a qual tinha como proposta integrar as funções da creche e da escola. Dessa forma, durante meio-período as crianças realizavam atividades com a professora responsável pela turma e no tempo restante, incluindo horários de refeição e descanso, ficavam sob tutela de uma recreacionista, profissional sem formação específica para o trabalho com crianças.

A escola fica localizada em um bairro carente em termos de equipamentos de lazer e cultura, caracterizado por uma população de baixa ou baixíssima renda. A instituição havia sido inaugurada há aproximadamente um ano, de forma que muitas crianças começaram a freqüentar a escola na turma do jardim ou pré, visto que antes a comunidade não dispunha de escola infantil ou creche que atendesse à demanda do bairro e suas imediações.

A população infantil atendida pela escola girava em torno de 130 crianças, subdivididas em turmas de mini-maternal, maternal, jardim I, jardim II e pré, e a equipe de profissionais da instituição era composta por cinco professoras e sete funcionárias, além da diretora.

Procurou-se garantir que a recreacionista estivesse presente durante o desenvolvimento dos trabalhos, tendo havido a preocupação de socializar o planejamento das atividades antes do início das mesmas a cada encontro. Desta forma, buscava-se contribuir para a formação da mesma enquanto educadora, explicitando a importância do planejamento nas ações educativas.

Em função dos objetivos específicos de cada encontro, algumas atividades foram desenvolvidas com o grupo todo e outras dividindo as crianças em dois grupos, que eram trabalhados separadamente.

Os temas abordados foram cooperação e trabalho coletivo, escolha, trabalho/profissões e autoconhecimento. Não houve um planejamento prévio de procedimentos para todo o processo, pois cada encontro era planejado a cada semana em função das demandas identificadas durante as atividades dos encontros anteriores. Como procedimentos foram utilizados, de uma maneira geral, jogos e brincadeiras diversas, gincanas, dramatização, mímica, atividades de desenho e colagem, entre outros.

Especificamente para o desenvolvimento de atitudes cooperativas e noção de grupo, foram realizados:

  • apresentação de peça de teatro desenvolvida pelas coordenadoras, retratando situações típicas da interação entre as crianças daquele grupo (que, como veremos, caracterizava-se principalmente pela alta incidência de comportamentos agressivos), ilustrando as conseqüências de tais comportamentos e propondo formas cooperativas de interação;
  • gincana, composta de brincadeiras que exigiam a cooperação entre os componentes de cada subgrupo;
  • “dança das bexigas”, na qual as crianças formavam duplas e deveriam se esforçar conjuntamente para não deixar a bexiga cair;
  • teatro de fantoches, com objetivo similar à apresentação da peça de teatro;
  • mural coletivo (formando um conjunto com desenhos das mãos de cada criança).

Contribuindo para o processo de Autoconhecimento, foram propostos: uma atividade de desenho e colagem em que as crianças deveriam representar as pessoas com que moravam e o bairro onde viviam, auxiliando-as na identificação de si no contexto de vida mais próximo; e o desenho do contorno do corpo, em que uma criança deitava-se sobre papel pardo e a outra registrava o formato de seu corpo, enfatizando a autopercepção. Além disso, foi utilizada a técnica do escultor e escultura, promovendo a vivência de uma situação de autonomia total para a escolha – exigindo o exercício de atividades volitivas pela criança – e em contrapartida a total impossibilidade da mesma – exigindo o exercício do autodomínio e da capacidade de conter os desejos circunstanciais.

No eixo trabalho e profissões, os procedimentos utilizados foram:

  • atividade com mímica de pessoas trabalhando, tendo em vista identificar profissões conhecidas pelas crianças e o nível de compreensão das mesmas acerca da função social e local/ instrumentos de trabalho, criando condição para ampliar quantitativa e qualitativamente tais informações;
  • exibição do filme “Formiguinhaz”, que retrata as diferentes funções das formigas em um formigueiro e a divisão social do trabalho, seguida de produção de desenho atribuindo profissões à ilustração de uma formiga;
  • identificação de profissões relacionadas a locais de trabalho no bairro/comunidade utilizando desenhos que representassem a escola, o posto de saúde, o mercado, o caminhão de lixo, o posto de gasolina, entre outros espaços.

Era também parte da proposta inicial utilizar “rodas da conversa” ao final de cada encontro, tendo em vista verificar e aprofundar a compreensão das crianças acerca das atividades desenvolvidas. Após algumas tentativas de implementação desta técnica, no entanto, optou-se por não mais utilizá-la, tendo em vista que não havia ainda uma prontidão do grupo para este tipo de atividade, que exige habilidades de atenção concentrada. A partir de então, e compreendendo que através do jogo a criança já está exercitando seus processos mentais, procurou-se dar ênfase a atividades que privilegiassem o movimento, por favorecerem o engajamento das crianças, partindo das características e habilidades já presentes naquele momento em direção ao desenvolvimento do grupo.

Considerando-se que não era possível o registro durante as atividades por tratar-se de um processo de intervenção (visto que as estagiárias permaneciam todo o tempo engajadas na proposição e coordenação das atividades), os encontros foram documentados em relatórios confeccionados logo após a realização dos mesmos. Esses relatórios continham o planejamento (objetivos geral e específicos e estratégias), a descrição pormenorizada das atividades desenvolvidas e em seguida a avaliação do encontro.

Em relação ao trabalho com os pais, foram realizados dois encontros nos quais foram abordados os temas “Regras” e “Agressividade Infantil”, este último mediante solicitação dos próprios participantes. Como se pode observar, buscou-se conduzir a discussão sobre a importância do contexto e das relações sociais na formação da criança através de temas de interesse do grupo. Além disso, este espaço de interlocução com os pais foi concebido como uma possibilidade de discutir com os mesmos as características identificadas no grupo de crianças, instrumentalizando-os para contribuir para o processo de desenvolvimento de seus filhos.

 

RESULTADOS

Os dados de observação referentes aos comportamentos das crianças durante cada atividade e o conteúdo de suas produções (desenho, pintura, etc.) obtidos nos três primeiros encontros compuseram o processo diagnóstico do grupo.

De uma maneira geral, constatou-se que habilidades que nesta faixa etária já deveriam estar sendo desenvolvidas e garantidas por meio do processo educativo não eram ainda observadas no grupo. As crianças apresentavam extrema dificuldade de concentração nas atividades e havia uma alta freqüência de emissão de comportamentos agressivos (tapas, socos, chutes, empurrões, etc.) nos mais diversos contextos; além disso, detectou-se no grupo dificuldades de submeter-se a regras sociais e uma baixa freqüência de atitudes cooperativas. Também em relação a habilidades acadêmicas, observaram-se dificuldades em verbalizar a idade e compreender instruções para execução de atividades.

No que concerne à avaliação do repertório prévio do grupo sobre o mundo do trabalho (conceito, profissões, atividades exercidas pelos profissionais, instrumentos e locais de trabalho), as coordenadoras sinalizaram, nas conversas iniciais, que os encontros e brincadeiras iriam tratar de temas como trabalho e profissões, entre outras coisas. Perguntou-se às crianças se elas sabiam o que era trabalhar e quais as profissões que elas já conheciam. Apenas uma criança soube exemplificar o que era trabalho: “trabalhar de limpar a casa, né?”. Nenhuma soube dizer o que é uma profissão e nem exemplificar.

A partir desse diagnóstico inicial, verificouse a necessidade de um replanejamento dos objetivos. Tal medida foi adotada pois avaliou-se que as dificuldades identificadas no repertório das crianças poderiam inviabilizar o cumprimento da proposta de Orientação Profissional, cujos conteúdos e atividades exigiriam uma série de aprendizagens prévias.

Dessa forma, o desenvolvimento de habilidades básicas, tais como o engajamento em regras sociais e atitudes cooperativas, foram incorporados como objetivos paralelos do projeto, criando condições para que os demais objetivos pudessem ser atingidos, partindo da condição atual de desenvolvimento do grupo. Com tal procedimento, em nosso ponto de vista, estaríamos considerando as demandas e a realidade do grupo, sem, no entanto, recair em uma substituição de objetivos, o que significaria uma confusão de papéis entre professor e orientador profissional.

Assim, um processo de construção coletiva de regras permeou todo o projeto. Conjuntamente com o grupo, foram estabelecidas regras simples de conduta (participar das brincadeiras, levantar a mão para falar e não brigar), as quais foram associadas a símbolos (regra da bola, regra da mão e regra do coração, respectivamente) e relembradas no início de cada encontro.

Observou-se no decorrer do trabalho que as crianças memorizaram as regras combinadas, referindo-se verbalmente a elas com freqüência durante os encontros; relatos das mães de três crianças indicam que essas falavam sobre as regras também em casa. Constatou-se que o comportamento do grupo tornou-se sensível às regras, no sentido de que, mediante uma referência verbal às mesmas por parte das coordenadoras, as crianças passaram a interromper determinadas ações ou engajar-se em outras. Vale destacar, ainda, que numa atividade de avaliação em que se perguntou ao grupo se as regras estavam ajudando nas brincadeiras e se deveriam continuar sendo utilizadas, todas as crianças responderam positivamente e uma delas justificou dizendo: “a gente brigava, mas agora a gente é amigo”.

Com a adoção do processo de construção coletiva de regras e a realização das atividades para o desenvolvimento de atitudes cooperativas, embora não tenha sido possível quantificar, podese afirmar que a freqüência de emissão de comportamentos agressivos diminuiu consideravelmente, ainda que alguns episódios isolados pudessem ser observados nos últimos encontros. Paralelamente a isso, observou-se um aumento nas interações cooperativas entre as crianças, quais sejam: desenvolver atividades em parceria; ajudar o colega a executar uma tarefa; compartilhar materiais (lápis de cor, caneta hidrocor, etc). No entanto, episódios de dispersão no grupo (caracterizados por desatenção na tarefa proposta e engajamento em atividades paralelas), embora com freqüência muito menor, continuaram ocorrendo até os últimos encontros.

Em relação aos conteúdos específicos da Orientação Profissional, os quais puderam ser efetivamente trabalhados a partir do nono encontro, confirmou-se um conhecimento restrito por parte do grupo como um todo em relação ao eixo trabalho e profissões, o que já havia sido identificado no diagnóstico do grupo. Esta constatação pode ser ilustrada, por exemplo, com a descrição da atividade de mímica de pessoas trabalhando, da qual participaram 18 crianças: elas engajaramse na brincadeira, porém apresentaram grande latência para recordar profissões a serem imitadas e, dentre as quatro crianças sorteadas para realizar a mímica, três representaram pessoas executando trabalhos domésticos e uma imitou um pedreiro.

Após a exibição do filme “FormiguinhaZ” (no décimo encontro, com a participação de 19 crianças), seu conteúdo foi retomado no encontro seguinte, no qual estavam presentes 11 crianças. Ao serem questionadas sobre as profissões retratadas no filme, as crianças apontaram as quatro principais: operário; soldado; “homem que trabalhava no bar” e rainha, o que parece indicar que a atividade foi significativa e houve apropriação dos conteúdos, considerando-se que apenas sete das 11 crianças presentes nesse encontro haviam assistido ao filme na semana anterior.

Ainda nesse encontro propôs-se ao grupo ilustrar o desenho de uma formiga atribuindolhe profissões. As crianças representaram: três professoras; duas pessoas lavando louça; um motorista; um desenhista; uma pintora; uma pessoa fazendo compras; uma babá; um operário (cujo instrumento de trabalho era semelhante ao utilizado pelas formigas operárias no filme). Nesta atividade, detectou-se pouca diversidade na representação dos instrumentos de trabalho (livros para as professoras; caderno/livro para a desenhista e para a pintora), dificultando às coordenadoras identificar quais as profissões representadas, o que só foi possível com instigação verbal. Ainda durante a realização dessa atividade, as coordenadoras realizaram intervenções verbais e questionamentos para que as crianças descrevessem as atividades pertinentes à profissão representada; também nesse momento observou-se pouca diversidade no repertório das crianças.

No 12º encontro, do qual participaram 15 crianças, realizou-se uma atividade coletiva em que se buscou relacionar as profissões aos locais de trabalho no bairro; em relação ao posto de saúde, por exemplo, as crianças identificaram apenas o médico. As coordenadoras intervieram no sentido de auxiliar as crianças a se lembrarem de outros profissionais, através de perguntas sobre a rotina da instituição. Uma das crianças citou a enfermeira; questionadas sobre quem realiza a limpeza do posto de saúde, uma criança respondeu que era o próprio médico e três outras crianças se referiram a “aquela moça que limpa”. As coordenadoras então explicaram ao grupo que esta profissional é a faxineira e que existem faxineiros e faxineiras trabalhando em diversos outros locais. Não foi possível dar continuidade à atividade, explorando tanto outros profissionais deste local de trabalho quanto outros locais do bairro (escola, mercado, posto de gasolina), como estava previsto, em função de uma situação de intensa dispersão do grupo.

O 13º e o 14º encontros foram dedicados ao eixo do autoconhecimento, enfatizando respectivamente a inserção no contexto social e a autopercepção. No 13º encontro, as crianças demonstraram bastante interesse e engajamento na tarefa de desenhar as pessoas com quem moram. Na medida em que concluíam a atividade, as crianças passaram a observar os desenhos dos colegas e puderam identificar, com auxílio das intervenções das coordenadoras, a existência de diversas configurações familiares. Em seguida, foi distribuída uma cartolina para cada subgrupo de crianças, na qual elas deveriam colar as casas de cada uma e retratar os locais que existem no bairro, utilizando diversos materiais (lápis de cor, caneta hidrocor, giz de cera, cola, tesoura, papéis coloridos). As crianças representaram: rua, igreja, escola, supermercado, sorveteria, prédios, fazenda e floresta. Vale destacar que os dois últimos itens, que não se referem à realidade do bairro, foram representados por um subgrupo de crianças que demonstrou maior interesse pelos materiais disponíveis do que pela tarefa em si, utilizando basicamente colagens de papéis coloridos na atividade.

No penúltimo encontro (14º) foi desenvolvida a atividade de desenho do contorno do corpo. Observou-se que algumas crianças compenetraram-se de fato na consecução da tarefa, enquanto outras realizaram-na de forma rápida e desatenta. Entretanto, as ações envolvidas na tarefa (permanecer deitado e imóvel na primeira etapa e seguir os contornos do corpo do colega na segunda), por si só exigiram que as crianças atentassem, ainda que minimamente, para seu próprio corpo e para o corpo do outro. A maioria das crianças demonstrou surpresa ao observar o registro do formato de seu corpo no papel, o que pôde ser detectado a partir de suas verbalizações.

O último encontro foi dedicado à retomada das atividades realizadas, o que foi feito através de uma brincadeira em que as próprias crianças deveriam mencionar as atividades da quais se lembravam. Elas citaram: dança das bexigas, teatro, teatro de fantoches, regras, mímica de pessoas trabalhando, filme, desenho de quem mora comigo, além de atividades de aquecimento/descontração. O restante do encontro foi dedicado à confraternização com o grupo e à despedida, sendo que duas crianças choraram. O fato de recordarem grande parte das atividades desenvolvidas e o pesar pelo encerramento do projeto parece demonstrar que o trabalho foi significativo para o grupo.

Um último aspecto a ser apontado, que constituiu um fator complicador no transcorrer do trabalho, foi a quantidade de faltas das crianças (Tabela 01). O número médio de crianças por encontro foi de aproximadamente 19 e o número médio de encontros que cada criança freqüentou foi de aproximadamente nove (em um total de 15). Nesse sentido, verificou-se que 46% das crianças tiveram pelo menos cinco faltas, visto que, conforme Tabela 02, apenas 54% delas participaram de 11 ou mais encontros. Destaca-se ainda que 25% das crianças (um quarto do total) participaram de cinco ou menos encontros (Tabela 02). Assim, muitas vezes as crianças não compreendiam a continuidade das atividades dos encontros, os quais estavam sempre relacionados aos anteriores (não se engajavam em regras das quais não haviam participado da construção, por exemplo), o que acabava em alguma medida prejudicando o próprio desenrolar das atividades propostas.

Tabela 1

Número de crianças presentes e ausentes em cada encontro

 

 

Tabela 2

Porcentagem de crianças por faixa de participação em encontros

 

 

Diante dos resultados obtidos, constatou-se a necessidade de continuidade do trabalho no semestre seguinte por uma nova dupla de estagiários, o que aconteceu durante o segundo semestre de 2003.

Quanto ao trabalho desenvolvido com os pais ou responsáveis das crianças, contou-se com a participação de 10 pessoas no primeiro encontro e oito no segundo – que embora seja número pequeno em relação ao total de crianças, é próximo da média de freqüência nas reuniões de pais da escola. Vale ressaltar que o convite para a segunda reunião que a escola enviou para os pais não especificou que a atividade seria coordenada pelas estagiárias de Psicologia, o que, de acordo com uma das mães, foi o motivo pelo qual algumas das participantes do primeiro encontro não compareceram ao segundo.

A primeira reunião, que teve duração de 50 minutos, teve por objetivo apresentar o trabalho realizado com as crianças (duração, temas pertinentes, formato dos encontros), enfatizando o caminho percorrido pelas coordenadoras na construção coletiva de regras com as crianças. As participantes sentiram-se à vontade para relatar exemplos, fazer perguntas e reflexões; ao final, avaliaram positivamente o encontro e afirmaram que o mesmo permitiu “parar para pensar sobre uma coisa importante que acaba passando batida”.

O segundo encontro, com duração de uma hora e trinta minutos, discutiu, mediante solicitação das mães, a questão da agressividade infantil. Embora não houvesse à primeira vista uma relação direta entre este tema e os conteúdos da Orientação Profissional, optou-se por atender a demanda do grupo – favorecendo assim seu engajamento – por ser condizente com a experiência tida com as crianças e considerando as possibilidades de se promover uma reflexão sobre o papel do contexto social como determinante tanto do comportamento agressivo, especificamente, quando da formação da identidade da criança de uma maneira geral (inclusive da identidade profissional dos indivíduos). Também nesse encontro houve bastante participação dos pais através de perguntas e exemplos.

 

DISCUSSÃO

Retomando os objetivos propostos para essa intervenção, que envolviam a apropriação pelo grupo dos conceitos de trabalho, trabalho coletivo e profissões (e os conteúdos inerentes a essas temáticas), bem como a aprendizagem e a vivência de situações de escolhas e o desenvolvimento do autoconhecimento, constata-se que os mesmos foram parcialmente atingidos.

Um aspecto dificultador do trabalho foi a ausência de determinadas habilidades nas crianças, o que prejudicou a consecução da totalidade dos objetivos. Essa dificuldade se deu de variadas formas: a) necessidade de dispender tempo no desenvolvimento de habilidades básicas no repertório de comportamentos das crianças para o trabalho em grupo; b) conseqüente redução da quantidade de atividades a serem desenvolvidas para cada objetivo específico; c) limitação na seleção das estratégias. Isto demonstra a necessidade de um repertório prévio das crianças para que um trabalho de Orientação Profissional seja desenvolvido com pré-escolares.

Torna-se importante nesse contexto discutir e explicitar a compreensão referente ao nível de desenvolvimento do grupo diagnosticado pelas coordenadoras. Como vimos, habilidades que na faixa etária em questão já deveriam estar sendo observadas não estavam presentes no repertório do grupo. Para analisar tal situação, nos reportamos aos conhecimentos da Psicologia Sócio-histórica, que concebe o processo educativo como condição para o desenvolvimento das funções psíquicas do homem. A criança se desenvolve sob a influência de suas condições de vida, em um processo de interação ativa com o ambiente, através da mediação de adultos ou de outras crianças em estágios mais avançados de desenvolvimento. Logo, é de fundamental importância uma organização pedagógica que possibilite os melhores resultados e que tenha maior influência na formação integral da criança.

Neste sentido, no grupo de crianças em questão, um dos fatores a ser considerado é que grande parte havia começado a freqüentar a escola apenas naquele ano ou no ano anterior. Além disso, as crianças permaneciam a maior parte do tempo com um profissional sem formação apropriada para a prática pedagógica, cujo trabalho ficava restrito a cuidar do grupo (evitando brigas e acidentes), sem preocupações com objetivos pedagógicos a serem atingidos e sem planejamento prévio de atividades de acordo com tais objetivos. Outros aspectos institucionais e da vivência das crianças nos demais espaços de socialização deveriam ser considerados, porém não foi objetivo deste trabalho proceder a esta investigação.

Conclui-se que as dificuldades identificadas não podem ser atribuídas às crianças em si, nem tomadas como naturais, mas que o processo educativo ao qual estavam submetidas de uma maneira geral se mostra precário, não cumprindo os objetivos pedagógicos correspondentes à faixa etária e promovendo um desenvolvimento aquém das possibilidades.

No decorrer do trabalho, os temas Escolha e Autoconhecimento não foram explorados integralmente, da forma como foram propostos nos objetivos específicos. Isso se deveu não somente às habilidades prévias que necessitaram ser desenvolvidas principalmente nos primeiros encontros (restringindo os conteúdos da Orientação Profissional possíveis de serem trabalhados), como também porque optou-se pela utilização dos encontros restantes para o aprofundamento dos conteúdos relativos a Trabalho e Profissões, devido à sua importância para a Orientação Profissional e ao diagnóstico do conhecimento restrito do grupo em relação a estas temáticas.

Um dado que nos pareceu relevante nesse contexto, é que nas produções e verbalizações de algumas das crianças, mesmo em atividades em que eram diretamente solicitadas a representar profissões, as mesmas referiam-se a ações ou atividades de trabalho isoladas, tais como varrer o chão, fazer compras, lavar a louça entre outras, não relacionadas a uma profissão em específico. Esse dado permite aventar a hipótese de que parte das crianças não tinha a compreensão da idéia de profissão. Através das atividades desenvolvidas junto ao grupo, buscou-se ampliar esse universo de conhecimentos. Avaliamos, no entanto, que em função das dificuldades já relatadas e curta duração do projeto, os resultados neste quesito tenham ficado aquém das possibilidades do trabalho de Orientação Profissional infantil.

Com relação a crianças de classe média e média-alta, esta realidade parece ser bastante diferente. Na pesquisa realizada por Felipe (2003) a respeito da percepção do mundo do trabalho pela criança, tendo como sujeitos crianças da 1ª série do Ensino Fundamental em um colégio particular na cidade de Florianópolis, a autora relata:

“em relação às representações que elas têm a respeito do trabalho também surgiram associações [...] com o lazer, o estudo, o sustento próprio e familiar, o uso do computador, a prestação de serviços em geral e o esforço físico. [...] Também se destacou o fato das profissões dos pais não terem predominado nos desenhos, o que demonstra a quantidade e variedade de estímulos visuais e auditivos expostos diretamente às crianças em um mundo de tantas transformações” (p. 24). A mesma constatação é feita por Mastine, Garbulho, Zampieri & Parpinelli (2003), a partir de um trabalho desenvolvido com crianças do Jardim II de um colégio particular da cidade de Bauru: “como resultados, verificamos que o eixo de informações profissionais foi o que as crianças demonstraram possuir maior conhecimento prévio, com uma rápida aquisição dos novos conceitos” (p. 26).

A condição do grupo de crianças participantes dessa intervenção retrata uma situação bastante desigual e parece denunciar, resgatando as proposições de Mukhina (1996), o quanto a organização social vigente restringe o círculo de contatos com a realidade proporcionado às crianças provenientes das classes populares.

Observa-se, portanto, conforme Miranda (1984) que “falar da condição de criança remete à consideração de uma criança concreta, socialmente determinada em um contexto de classes sociais antagônicas” (p. 129). A autora esclarece ainda que o desenvolvimento da criança depende da mediação do adulto, mas que na sociedade capitalista, esta mediação se dará de diferentes formas (opostas, às vezes), dependendo da condição social da criança:

“O processo de desenvolvimento do individuo se inscreve num processo histórico-social que o determina e, por sua vez, é por ele determinado. Assim, o processo de socialização da criança é concretamente determinado pela sua condição histórico-social. Além disso, enquanto sujeito da história, a criança tem a possibilidade de recriar seu processo de socialização e através dele interferir na realidade social” (Miranda, 1984, p. 131).

Dessa forma, é preciso resgatar o papel da escola (e do processo educativo) em geral, compreendendo que esta deve se constituir numa das mediações possíveis e fundamentais para a socialização da criança das classes populares, sendo um espaço vivo e dinâmico, ao invés de atribuir a ela ou ao seu meio social a experiência do fracasso, do baixo padrão de respostas socialmente aceitáveis e da marginalidade.

Em nossa avaliação do projeto, acreditamos que o trabalho com os pais poderia ter sido realizado de uma forma mais sistemática, incluindo um número maior de encontros, favorecendo dessa forma o seu engajamento, através da utilização dos conteúdos desenvolvidos no projeto para as diversas situações do cotidiano familiar. Os pais mostraram-se receptivos, porém, face às dificuldades da direção da escola em agendar as reuniões e ao pouco tempo disponível para a realização das mesmas, essa periodicidade tornou-se inviável.

Além disso, identificou-se como uma lacuna a ausência de um trabalho específico junto às educadoras responsáveis pelo grupo – que foi em grande parte impossibilitado pela inexistência de espaços de reunião ou planejamento na instituição – o qual favoreceria a consolidação dos ganhos obtidos com o projeto e configuraria uma maior contribuição para a instituição escolar e formação continuada de seus profissionais.

Estas constatações apontam para a importância de um trabalho articulado ao projeto políticopedagógico da escola de educação infantil. Sendo uma ação integrada ao projeto pedagógico da escola, o planejamento e a execução de programas de Orientação Profissional estariam relacionados aos demais objetivos pedagógicos da instituição e contariam com o envolvimento de toda a equipe da instituição, bem como da família e comunidade, obtendo, assim, maior efetividade.

A realização desse trabalho nos chama especialmente a atenção para o compromisso social do orientador profissional em exercer o papel de denúncia e luta pela transformação da realidade de exclusão do conhecimento ao qual estão submetidos os indivíduos da classe proletária desde a infância. Cabe à Orientação Profissional discutir e evidenciar o quanto esta condição acaba por restringir as possibilidades de atuação desses indivíduos enquanto sujeitos do contexto social, de modo geral e, mais especificamente, de sua própria inserção profissional na sociedade.

Por fim, considerando também ter sido objetivo deste projeto discutir as possibilidades de atuação do orientador profissional junto à infância e a viabilidade e validade desta modalidade de intervenção, podemos concluir, embora não tenha sido possível explorar todas as suas possibilidades nesta experiência de intervenção, que este desponta como um espaço emergente de atuação em Orientação Profissional. Programas de Orientação Profissional com crianças podem contribuir para uma formação integral dos indivíduos e para o planejamento de ações pedagógicas na Educação Infantil.

Enfatizamos, assim, a importância do desenvolvimento de pesquisas e intervenções nesta área, fornecendo subsídios para o aprimoramento do trabalho do orientador profissional junto à infância e, conseqüentemente, ampliando suas possibilidades de contribuir efetivamente para o processo de formação dos indivíduos e para a transformação da realidade social.

 

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Recebido: 17/05/04
1ª Revisão: 15/07/04
Aceite final: 21/09/04

 

1 Endereço para correspondência: Departamento de Psicologia. Rua Amadeu Sangiovani, 4/52, 703, 17017-140. Bauru, SP. Fone: (14) 3227 0087, Fax: (14) 3103 6071. E-mail: jupasqualini@uol.com.br
2 Retirado do fascículo “A educação da criança de 4 a 6 anos”, integrante da Coleção Trocando em Miúdos as Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil, com texto básico de Morgana Silva Rezende. O material foi produzido pela Organização Não-Governamental Comunicação e Educação para o Desenvolvimento Humano (CECIP), com sede no Rio de Janeiro, em parceria com o Unicef (www.cecip.com.br).

 

Sobre os autores
* Juliana Campregher Pasqualini é psicóloga formada pela UNESP, campus de Bauru. Integra o Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação Infantil, vinculado ao Departamento de Psicologia deste campus. Atualmente desenvolve projetos de formação continuada de educadores.
** Norma de Fátima Garbulho é doutora em Educação, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Bauru na área de Orientação Profissional.
*** Tannie Schut é psicóloga formada pela UNESP, campus de Bauru. Atualmente integra a equipe de Psicologia do Hospital de Base da cidade de São José do Rio Preto na qualidade de aprimoranda em Psicologia da Saúde.

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