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Revista Brasileira de Orientação Profissional

On-line version ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof vol.5 no.1 São Paulo June 2004

 

ARTIGOS

 

 

Compreendendo as estratégias de sobrevivência de jovens antes e depois da internação na FEBEM

 

Understanding the surviving strategies that adolescents use before and after admission to a social-educational institution

 

Comprendiendo las estrategias de supervivencia de jóvenes antes y después de la internación en la FEBEM

 

 

Marília Mastrocolla de AlmeidaI *; Rosalina Carvalho da SilvaII ** 1

I Projeto Atitude, Ribeirão Preto
II Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta trajetórias de jovens e suas estratégias de sobrevivência utilizadas para obtenção de bens de consumo. O estudo foi realizado com 104 jovens internos em uma instituição (FEBEM) responsável pela aplicação da medida sócio-educativa de internação para jovens envolvidos em atos infracionais. Os dados foram obtidos por meio de entrevistas estruturadas. A análise descritiva foi realizada de acordo com o tipo de estratégia utilizada, a idade do jovem ao iniciar a atividade, o tempo de realização da mesma e os possíveis motivos para sua interrupção, as quantias em dinheiro recebidas e os seus destinos. Após a internação, a maioria dos jovens afirma que pretendia realizar atividades legais. Quando questionados sobre a possibilidade de escolha, muitos relataram o desejo de realizar atividades diferentes daquelas vivenciadas anteriormente. No entanto, eles deparam-se com poucas possibilidades de escolha decorrentes da falta de programas profissionalizantes interessantes, eficientes e dignificantes. Os resultados deste estudo podem contribuir com futuras discussões sobre políticas públicas.

Palavras-chave: Estratégias de sobrevivência, Adolescente autor de ato infracional, FEBEM.


ABSTRACT

The present paper focuses the surviving strategies used by adolescents to get money and accessibility to consumer goods. The subjects were 104 adolescents authors of infraction acts from a state socialeducational institution. Data were collected from structured interviews as well as field recordings of the activities carried out during the study. The data were characterized according to types of strategies used, age at the beginning of activity, activity duration, the possible reasons to discontinue them, amount of money earned and allocation of money. When inquired about choice options, several adolescents voiced their wish to develop activities different from the ones they performed prior to admission. However, they faced scarce options of choice and change due to the lack of training programs which would be interesting, efficient and dignifying, in the institution. The results from this paper might contribute to future discussions about public policies related to those adolescents.

Keywords: Surviving strategies, Adolescent author of infraction acts, FEBEM.


RESUMEN

Este artículo presenta algunas consideraciones con respecto a las trayectorias de jóvenes internados y las estrategias de supervivencia utilizadas por ellos para lograr recursos y acceso a los bienes de consumo. El estudio fue realizado con 104 jóvenes internados en una institución responsable por la aplicación de la medida socio-educativa de internación para jóvenes involucrados en infracciones. Los datos fueron obtenidos por medio de entrevistas estructuradas. El análisis descriptivo fue realizado de acuerdo con el tipo de estrategia utilizado, la edad del joven al iniciar la actividad, el tiempo de realización de la misma y los posibles motivos para su interrupción, la cantidad de dinero recibido y su destino. Después de la internación la mayoria de los jóvenes afirma que pretendía realizar actividades legales. Cuando fueron cuestionados sobre la posibilidad de elección, muchos relataron el deseo de realizar actividades diferentes de aquéllas vividas anteriormente. Sin embargo, encuentran las pocas posibilidades de elección y cambios derivados de la falta, en las unidades de internación, de programas de enseñanza profesional interesantes para ellos, eficientes y que traigan dignidad. Los resultados de este estudio pueden contribuir con futuras discusiones sobre políticas públicas.

Palabras clave: Joven en conflicto con la ley, Estrategias de supervivencia, FEBEM.


 

 

Os questionamentos que nortearam o estudo apresentado neste artigo surgiram durante o trabalho realizado de 1999 a 2000 na Unidade Educacional (UE3) – Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (FEBEM) de Ribeirão Preto como parte das atividades realizadas pela equipe do Núcleo de Estudos em Prevenção das DST/AIDS (NEPDA) e uso indevido de drogas2. A equipe do NEPDA, cuja proposta de trabalho consistiu na realização de um conjunto de ações que visavam à promoção de saúde e cidadania junto aos jovens que se encontram em situação de privação de liberdade, atuou nessa instituição de 1998 a 2000 realizando oficinas grupais com os jovens internos da Unidade. Durante esse período foi possível observar que a medida de internação aplicada isoladamente não estava atingindo o objetivo de facilitar o processo de inclusão social desses jovens, de forma que os mesmos tivessem mais oportunidades para “sair da vida do crime”, e fizessem valer os seus direitos como “pessoa em situação peculiar de desenvolvimento”.

De acordo com os dados fornecidos pela própria Unidade em 2000, o número de internações, de outubro de 1997 a outubro de 1998, resultava em um total de 972. Destes, 489 (50,3%) jovens haviam sido internados mais de uma vez. No período de outubro de 1998 a outubro de 1999, o número de jovens que tinham passado por mais de uma internação aumentou para 514 (51,1%), do total de 969 jovens internados. Estes dados mostram as limitações da medida sócio-educativa de internação como ressocializadora.

Com o intuito de buscar respostas para minimizar essa situação de contínuas internações, foram realizadas algumas atividades com os jovens internos. A proposta consistiu em trabalhar com as alternativas apontadas pelos mesmos para que as suas condições de vida fossem diferentes. Isto, para que assim pudessem sair da vida do crime, não correr mais risco de morrer e etc.

As falas dos jovens fizeram emergir algumas questões como: 1) o jovem acredita que a sua inserção no mercado de trabalho pode impedir a prática do Ato infracional? 2) este jovem já trabalhou? 3) será que ele tem algum interesse específico? 4) quais foram as dificuldades encontradas pelos jovens que trabalharam? 5) por que o jovem torna-se autor de ato infracional se gostaria de estar trabalhando? 6) será que a internação interfere na realização de um plano de trabalho?

Uma vez que são quase inexistentes as produções sistemáticas de bases de dados sobre jovens em conflito com a lei, como apontado por estudos realizados pelo Núcleo de Violência – USP (NEV – USP) em parceria com a Fundação SEADE (São Paulo, 2000), buscou-se responder as questões que emergiram no trabalho, na tentativa de contribuir para um conhecimento maior sobre estes jovens e para o surgimento de novas formas de atender as necessidades dos mesmos.

Portanto, o estudo teve como objetivo conhecer diferentes aspectos referentes às estratégias de sobrevivência dos jovens para obter recursos e ter acesso aos bens de consumo ao longo de suas vidas, tendo com referência dois momentos: o anterior e o posterior ao período da internação na Unidade da FEBEM de Ribeirão Preto. Buscou-se identificar também quais eram os interesses destes jovens relativos à realização de atividades com as quais tiveram algum ganho financeiro após a internação anterior.

O levantamento bibliográfico foi uma das atividades realizadas no estudo com o objetivo foi conhecer diferentes aspectos sobre as estratégias de sobrevivência de crianças e jovens no Brasil. Através desse levantamento foi possível observar que historicamente no país existiram dois períodos marcados por grandes transformações com relação às estratégias utilizadas pelos jovens para conseguir recursos para o seu sustento e o de sua família. O início do regime republicano (décadas de 20 e 30) e meados do regime ditatorial (décadas de 70 e 80). Em ambos os períodos ocorreram transformações sociais, entre as quais o aumento da pobreza de grande parte da população, que resultaram no surgimento de um grande número de jovens e crianças a buscar nas ruas, nas atividades consideradas infracionais e no trabalho infantil, formas de conseguir dinheiro e acesso aos bens de consumo.

Nesses períodos, assim como hoje, as crianças e jovens tinham poucas alternativas para conseguir recursos financeiros para a sobrevivência pessoal e da família. Nestes dois períodos, crianças e jovens eram iniciados precocemente nas atividades produtivas como fábricas, oficinas (alfaiate, marceneiro, etc.) e construção civil, ou realizavam atividades de mendicância nas ruas e atividades infracionais (roubo, furto e prostituição) (Santos, 1999; Moura, 1999).

No decorrer dos anos, principalmente na década de 80, estudos referentes a essa problemática, chamaram a atenção da sociedade para a necessidade de análises sobre as diversas estratégias de sobrevivência adotadas por jovens e crianças das camadas populares em exclusão social (Cervini & Burger, 1996).

Especificamente com relação ao trabalho realizado por crianças, segundo Madeira (1993), há a manutenção da visão de trabalho como um instrumento de proteção à marginalidade e à violência em geral e como uma forma de conquistar a liberdade para adquirir bens de consumo.

A visão da sociedade sobre a questão das atividades realizadas por crianças e jovens em situação de rua, até o início do século XX, era de que este fenômeno ocorria apenas como conseqüência do abandono familiar e que isto resultava no crescimento da “vadiagem infantil” e ameaçava a estabilidade da ordem pública (Rosenberg, 1994; Rizzini & Rizzini, 1996). Atualmente, pode-se dizer que as crianças e jovens, que em sua grande maioria, não são abandonados por suas famílias, buscam na rua um espaço principal ou secundário onde possam garantir sua subsistência, lazer e uma fonte de recursos para garantir a suas necessidades e desejos (Mello, 1991; Vogel & Mello, 1996; Rizzini & Rizzini, 1996).

É recente a percepção do trabalho em situação de rua como estratégia de sobrevivência. É ainda mais recente o entendimento da prática de atos infracionais, por parte de jovens, também como estratégia de sobrevivência. Somente em estudos recentes, como de Assis (1999), essas atividades começaram a ser percebidas como estratégia de sobrevivência, uma vez que foram relatadas pelos jovens como mais um tipo de trabalho, exercido por eles, como uma forma de sobrevivência e como possibilidade de ascensão social.

A inserção em uma atividade de trabalho, tanto para o adulto como para a criança, historicamente significou a possível recuperação da “índole boa” e uma solução aos graves problemas gerados pelas crises sociais (Volpi, 1994). Essa visão com relação ao trabalho perdura ainda, reforçando a idéia de que os adultos e as crianças das classes trabalhadoras eram pobres porque não queriam trabalhar e por isso apresentavam uma “índole má”. Assim, “trabalho para quem precisa trabalhar” era a visão que norteou parte das políticas de atendimento direcionadas às crianças e jovens pobres ao longo da história do Brasil e de vários países (Filgueiras, 1996; Marcílio, 1998).

 

MATERIAL E MÉTODO

Foram convidados a participar do estudo os 169 jovens que estavam internados na FEBEM de Ribeirão Preto. Desses, 8 jovens participaram da fase de adequação do instrumento. Aceitaram participar do estudo 104 jovens, o que representou 61,5% do total de jovens internos

O instrumento utilizado para coleta dos dados foi um roteiro estruturado para realização de entrevistas individuais composto por questões fechadas e uma questão aberta, buscando os objetivos descritos a seguir.

Caracterização geral da população: idade do jovem, origem, procedência, bairro de moradia, grau de escolaridade, número de internações na FEBEM, motivos das internações e idade do jovem na primeira internação na FEBEM.

Caracterização das estratégias de sobrevivência do jovem antes e depois da internação na FEBEM: o tipo de atividade realizada, a idade quando iniciou a atividade, o tempo que realizou a atividade, o motivo da interrupção da atividade, a quantia recebida, o destino do dinheiro que ele ganhava em cada atividade e a forma que o jovem encontrou para conseguir iniciar a atividade.

Além dos dados de entrevistas, foram utilizados os registros de notas em diário de campo compostos por anotações de caráter descritivo e reflexivo sobre os fatos ocorridos durante a aplicação dos procedimentos metodológicos, estratégias sugeridas por Triviños (1987) e Bogdan e Biklen (1994).

Procedimentos de coleta dos dados

Para iniciar o estudo na Fundação foi necessária a autorização da Vara da Infância e Juventude de Ribeirão Preto e da equipe diretiva da FEBEM-RP, uma vez que estes jovens estavam sob responsabilidade e tutela do Estado.

As entrevistas foram realizadas entre junho a agosto de 2000.

Procedimento de análise dos dados

Para a realização do tratamento dos dados deste estudo foi realizada uma análise descritiva simples que, segundo Silva (1999) e Silva (1998) permite descrever os dados coletados na amostra a partir de comentários simples usando métodos numéricos e métodos gráficos. Esta forma de análise possibilita a descrição e análise de uma determinada população sem tirar conclusões genéricas.

Para a sistematização e tratamento dos dados referentes às experiências dos jovens em atividades para conseguir recursos e acesso aos bens de consumo foram elaboradas representações gráficas referentes às trajetórias de vida de cada entrevistado. Estas foram organizadas em uma linha cronológica (Figura 1), na qual foram registrados:

 

 

Figura 1. Linha Cronológica da Estratégia de Sobrevivência do Entrevistado nº 82 (17 anos – 7ª série incompleta)

(1) o número referente à ordem da internação na FEBEM e os motivos para as mesmas;

(2) as idades nos momentos das internações e nos inícios das atividades;

(3) a duração de cada uma das atividades;

(4) o tipo e algumas características das atividades (forma como conseguiu, quantia recebida, como gastava o dinheiro e motivo para a sua interrupção).

(5) os planos para realização de alguma atividade que lhes rendesse dinheiro ou interesses por aprendizagens caso tivessem a oportunidade de escolha após a saída da instituição.

A partir das informações fornecidas pelos jovens e colocadas nas Linhas Cronológicas das Estratégias de Sobrevivência foram definidas categorias de análise referentes aos tipos de atividades realizadas pelos mesmos para obtenção de recursos e acesso aos bens de consumo, conforme exemplo apresentado na Figura 1.

Neste estudo, entendeu-se Atividade como sendo toda a estratégia de ação realizada pelo jovem com o objetivo de conseguir recursos e acesso aos bens de consumo e Trabalho, como os tipos específicos de estratégias de ação. As atividades realizadas pelos jovens foram divididas em duas categorias: Atividade Legal e Atividade Ilegal.

Atividade Legal : estratégias utilizadas pelos jovens que, em parte, estão amparadas em princípios legais.3

Sendo elas:

a) Trabalho juvenil que são todas as atividades realizadas com idade mínima básica de 14 anos ou mais, sendo que o mesmo, através dela, recebe uma quantia de dinheiro em forma de salário mensal ou diário.

b) Trabalho em regime de aprendizagem são atividades realizadas com idade mínima inferior a 12 anos, inserido em programas de atendimento governamental ou não-governamental, cujo pagamento era feito em forma de bolsa aprendizagem prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Art. 64.4 (São Paulo, 1997).

Atividade Ilegal: as estratégias utilizadas pelos jovens que, em parte, não estão amparadas pelos princípios legais são descritas a seguir.

a) Ato infracional considerado pelo ECA como “...a conduta descrita como crime ou contravenção penal” (São Paulo, 1997, art.103) realizada para conseguir recursos e ter acesso aos bens de consumo.

b) Trabalho em situação de rua são as atividades realizadas nas ruas que revertem alguma quantia em dinheiro que não em forma de salário fixo diário, semanal ou mensal.

c) Trabalho infantil são as atividades realizadas com idade abaixo da idade mínima básica de 14 anos, através da qual o jovem recebe uma quantia de dinheiro em forma de salário fixo diário, semanal ou mensal.

De posse das Linhas Cronológicas das Estratégias de Sobrevivência e das categorias de análise foram elaborados três quadros nos quais os participantes foram distribuídos a partir das atividades por eles realizadas antes da primeira internação na FEBEM, segundo as categorias Atividade Legal e Ilegal.

Cada quadro foi composto pelos dados de caracterização geral e as estratégias de sobrevivência relatadas. Através destes quadros foram elaboradas tabelas de freqüência cujo objetivo foi identificar quantos jovens haviam realizado cada tipo de atividade e caracterizá-los, para assim verificar se havia algum tipo de semelhança ou diferença entre cada grupo e entre as características investigadas.

 

RESULTADOS

No presente artigo serão apresentados os resultados encontrados no estudo, referentes às estratégias de sobrevivência dos jovens para ganhar dinheiro e ter acesso aos bens de consumo, considerando dois momentos específicos: antes e depois da internação na FEBEM de Ribeirão Preto.

1. Tipo de Atividade realizada antes e depois da internação na FEBEM

De acordo com os resultados, há uma grande diferença entre a variedade e o número de estratégias de sobrevivência realizadas pelos jovens antes e depois da internação na FEBEM, como apresentado na Figura 2.

 

 

Figura 2. Distribuição das atividades realizadas pelos jovens antes e depois da internação na FEBEM

Percebe-se que antes da primeira internação, a grande maioria dos jovens, 46,1%, relatou ter realizado como estratégia de sobrevivência somente as Atividades Ilegais (Trabalho Infantil, Ato Infracional e Trabalho em Situação de Rua), ou então, as Atividades Ilegais associadas às Atividades Legais (Trabalho Juvenil e Trabalho em Regime de Aprendizagem). No entanto, após a primeira e as demais internações, há um predomínio da prática de Atividade Ilegal, principalmente do Ato infracional, mesmo que associada a uma Atividade Legal, representado por 90% dos relatos.

Quando analisadas separadamente, as diferentes estratégias de sobrevivência apresentaram algumas peculiaridades.

1.1. Jovens que relataram somente a prática de Atividades Legais

Com relação ao grupo de jovens que relatou somente a prática de Atividades Legais antes da primeira internação na FEBEM, foi possível perceber uma visível diferença entre a freqüência desses relatos quando comparado com os demais grupos pois, enquanto 6,7% do total de entrevistados foram enquadrados nesse grupo, 44,2% dos jovens relataram a realização de Atividades Legais associadas a Atividades Ilegais. Dessa forma, pode-se concluir que a realização de Atividades Legais, na maioria dos casos, é acompanhada por Atividades Ilegais, sejam realizadas simultaneamente, sejam realizadas uma seguida da outra.

De acordo com os relatos dos jovens foi possível identificar a existência de um mercado específico de Atividade Legal tanto antes como depois da internação na FEBEM. As atividades legais mais citadas, representando 45% das atividades relatadas, foram: a de profissional autônomo (servente de pedreiro e pintor), no comércio e serviços (empacotador de supermercado, lavador de carro e office boy) e na agricultura (colheita de café, fazer “chapa” na lavoura), que correspondem a atividades de subemprego, que exigem baixa qualificação profissional, proporciona baixa remuneração e pouca mobilidade social.

1.2. Jovens que relataram a prática de Atividades Ilegais

Para o grupo de jovens que relatou somente a prática de Atividades Ilegais o estudo apontou que o Ato Infracional (roubo e o tráfico de drogas) foi a estratégia de maior freqüência tanto antes como depois da internação na FEBEM, representando 83,3% e 90% respectivamente. As demais, como o Trabalho Infantil e o Trabalho em Situação de Rua apareceram praticamente somente antes da primeira internação (vendedores ambulantes, cuidados de carros estacionados em via pública, coleta de papelão e solicitação de dinheiro).

Considerando o relato de todos os jovens entrevistados a maioria (77,8%) realizou o Ato infracional concomitante ou seguido por outro tipo de atividade legal ou ilegal. Somente 20,8% dos jovens realizou o Ato infracional como única estratégia de sobrevivência. No entanto, quando se analisa somente o grupo de jovens que praticou Atividades Ilegais, há uma inversão, pois a maioria, 43,7%, relata a prática do Ato Infracional como única estratégia de sobrevivência, sendo os demais relatos divididos entre a prática do Ato Infracional associado a outra atividade ilegal, como o Trabalho Infantil ou o Trabalho em Situação de Rua.

O Trabalho em Situação de Rua foi a estratégia que apresentou menor freqüência (13,8%), sendo na maioria das vezes associada com a prática de outra Atividade Legal ou Ilegal. O Trabalho Infantil foi a segunda estratégia mais relatada pelos jovens, seguido da prática do Ato Infracional. No entanto, embora o Trabalho Infantil tenha sido relatado por 34,6% dos jovens entrevistados, somente 11,4% desses o realizaram como única estratégia. Os demais associaram o Trabalho Infantil a outras atividades, principalmente ao Ato Infracional, num total de 27%.

As atividades relatadas, em sua maioria, estavam relacionadas com trabalho agrícola, como colheita de algodão, café e cana. Muitos relataram a venda de alimentos nas ruas e a atuação como auxiliares em estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços, como oficinas de mecânica, quitandas, etc. O trabalho autônomo também foi citado, principalmente como ajudante de pedreiro e pintor.

1.3. Jovens que relataram a prática de Atividades Legais e Ilegais

Sobre o grupo de jovens que relatou a prática de Atividades Legais e Ilegais antes da primeira internação na FEBEM, observou-se que as estratégias que apresentaram maior frequência foram: o Trabalho Juvenil associado ao Ato Infracional, representado por 42% dos jovens e o Trabalho em Regime de Aprendizagem associado ao Ato Infracional e ao Trabalho Juvenil em 15,5% dos casos.

Praticamente todos os jovens relataram a realização do Trabalho em Regime de Aprendizagem e do Trabalho Juvenil associado à prática do Ato Infracional, nas porcentagens de 100% e 94,1% respectivamente. No entanto, foram identificadas duas situações: jovens que realizaram o Trabalho Juvenil ou o Trabalho em Regime de Aprendizagem como primeira estratégia e somente após o seu término deu-se início à prática do Ato infracional e aqueles jovens que realizaram as duas atividades concomitantes.

Os tipos de atividades reladas pelos jovens como Trabalho Juvenil foram principalmente como autônomos (ajudante de pedreiro, pintor etc), office boy, entregador de panfletos na rua, vendedor ambulante de alimentos, empacotador em supermercados e jardineiro. No Trabalho em Regime de Aprendizagem, os jovens atuavam na maioria das vezes como vendedor de bilhetes de área azul de estacionamento em vias públicas, operador de máquinas copiadoras, office boy, marceneiro e gráfico.

Após a primeira internação na FEBEM, a realização do Trabalho Juvenil foi relatada por 44% dos 60 jovens que haviam sido internados mais de uma vez na FEBEM. No entanto, desses, 77,3% realizaram o Trabalho Juvenil concomitante com a prática do Ato Infracional.

2. Quantias recebidas nas estratégias de sobrevivência e formas de gastar o dinheiro

A análise dos dados referente à quantia recebida pelos jovens conforme o tipo de estratégia realizada, mostra que a mesma variou muito. De acordo com os jovens, através do Ato Infracional pode-se ganhar até 30 vezes mais do que através do Trabalho Juvenil, Infantil, em Regime de Aprendizagem ou em Situação de Rua.

Os jovens relataram que através do Ato Infracional pode-se conseguir dinheiro ou algum bem material diariamente, semanalmente, mensalmente ou por final de semana. Segundo esses relatos, o ganho diário com o tráfico de drogas variava de 20 a 300 reais.

Já para o Trabalho Infantil a remuneração foi mencionada por dia de trabalho, por semana ou por mês. O valor dos pagamentos diários variou, segundo os relatos, de 10 a 15 reais. Os pagamentos semanais tinham valores dentro da faixa de 50 a 300 reais, sendo esse último valor relatado apenas por um jovem que trabalhava com o pai, dono de uma oficina mecânica. Os jovens que recebiam o pagamento mensal relataram valores entre 50 e 150 reais. Foi observado que as maiores quantias recebidas em decorrência da realização do Trabalho Infantil correspondiam às atividades realizadas junto a familiares, que na maioria dos casos eram donos de pequenos estabelecimentos comerciais.

A remuneração do Trabalho Juvenil era realizada por dia de trabalho, por semana, por final de semana e por mês. Os pagamentos diários são, segundo os relatos, praticamente os mesmos relatados pelos jovens no Trabalho Infantil, de 5 a 15 reais. O pagamento semanal variou de 60 a 70 reais e o pagamento por final de semana foi relatado por um jovem, no valor de 30 reais. As quantias recebidas nos pagamentos mensais variaram de meio a 2 salários mínimos.

No presente estudo foi possível observar que a maioria dos jovens utiliza o dinheiro com gastos pessoais ligados a bens de consumo (roupas, tênis etc). Alguns jovens relataram a divisão do dinheiro obtido entre os gastos com a família, namorada, filhos e com os gastos pessoais.

Houve alguns relatos sobre a divisão do dinheiro com gastos pessoais e a compra de drogas e armas. É importante ressaltar que o dinheiro, destinado para este fim, foi relatado apenas pelos jovens que realizaram como única estratégia de sobrevivência o Ato Infracional. Ainda, segundo alguns relatos, a compra de drogas foi realizada para reposição de mercadoria para a venda.

No caso dos outros jovens que relataram a realização de outras estratégias de sobrevivência, a compra de drogas e armas foi quase inexistente. Quando aparecia, estava sempre acompanhada de outras formas de gasto, como o gasto com a família.

3. Formas de implementação das estratégias de sobrevivência

Conforme os dados coletados, observou-se que há uma grande influência e presença de familiares e amigos durante o encaminhamento dos jovens ao mercado de trabalho. Somente dois jovens relataram a procura de trabalho sem a ajuda de terceiros.

No caso das Atividades Legais, observou-se que a grande maioria foi conseguida por intermédio de outras pessoas, como familiares e pessoas conhecidas que trabalhavam no local, ou indicavam ao jovem o local. Para a inserção no Trabalho em Situação de Rua e o Trabalho Infantil identificou-se que, na maioria dos relatos, essas estratégias foram realizadas com a companhia de familiares (irmãos, primos e tios) ou amigos. Somente o Ato Infracional foi realizado na maioria das vezes na companhia de amigos ou somente pelo jovem.

4. Duração e permanência do jovem em cada estratégia de sobrevivência

De acordo com os relatos dos jovens observou-se que as Atividades Ilegais foram aquelas que apresentaram maior duração. No caso do Ato Infracional foi possível identificar que mais de 60% dos jovens realizou-o durante um a três anos. Já o Trabalho Infantil teve maior duração (dois a sete anos), quando realizado na companhia de familiares e, com duração de até um ano quando não havia algum parente trabalhando com o jovem. O Trabalho em Situação de Rua também apresentou longa duração, sendo o mínimo de um ano, seguido pelo período de três anos e o máximo de nove anos.

As Atividades Legais foram as que apresentaram menor duração. Foi observado que quase 90% dos jovens que realizaram o Trabalho Juvenil o fizeram por no máximo seis meses. O Trabalho em Regime de Aprendizagem foi relatado com a duração máxima de dois anos, que é o período oferecido pelos programas profissionalizantes na cidade de Ribeirão Preto.

5. Idade do jovem ao iníciar cada estratégia de sobrevivência

Dos 104 jovens entrevistados, 36,5% apontaram o Ato Infracional como primeira estratégia de sobrevivência. Sendo que a maioria estava na faixa-etária de 13 a 15 anos. Em segundo lugar aparece o Trabalho Infantil representado por 19,2% com faixa-etária predominante de 10 a 13 anos. Poucos jovens utilizaram como primeira estratégia o Trabalho em Situação de Rua. Sendo essa iniciada na maioria das vezes entre os sete e os 12 anos.

É interessante observar nas Linhas Cronológicas das Estratégias de Sobrevivência, que a prática do Ato Infracional se deu, para a maioria dos jovens, quando estavam com idades entre sete e 12 anos. No entanto, quando essa estratégia vinha acompanhada do Trabalho Juvenil, a idade de início da prática do Ato Infracional foi entre 14 e 17 anos, ou seja, o Ato Infracional foi praticamente iniciado no mesmo período do Trabalho Juvenil, ou então um ano antes. Nesses casos, os jovens não relataram uma história da prática do Ato Infracional “infantil”, mas “juvenil”.

6. Motivo para interrupção das estratégias de sobrevivência

De acordo com os relatos dos jovens, o baixo salário e os desentendimentos com patrões e colegas de trabalho foram os motivos mais frequentes que levaram à interrupção das atividades realizadas. Pode-se perceber, também, que foram relatados motivos diretamente associados às questões relativas à condição do mercado de trabalho como o baixo salário, o tipo de atividade oferecida, a falta de pagamento e as más condições dos espaços de trabalho, como apresentado no Quadro 1 da página 96.

Quadro 1

Distribuição dos motivos relatados pelos jovens para interrupção das atividades segundo o tipo de atividade – 2000

 

 

Mesmo para aqueles que vivenciaram um Trabalho em Regime de Aprendizagem, observa-se a presença de algumas críticas ao tipo de atividade. Muitos jovens relataram a falta de interesse pelos tipos de atividades oferecidas pelos programas profissionalizantes, além de inadequação da remuneração às suas necessidades.

7. Análise das Linhas Cronológicas das Estratégias de Sobrevivência antes e depois da internação

A análise das Linhas Cronológicas das Estratégias de Sobrevivência dos 55 jovens com mais de uma internação na FEBEM e que realizaram atividades depois da internação, mostrou-nos que:

• dois jovens realizaram somente Atividade Legal antes do ato infracional que ocasionou a internação, um deles não realizou nenhuma atividade depois e o outro jovem realizou uma Atividade Legal;

• os 29 jovens que realizaram somente Atividade Ilegal antes da primeira internação na FEBEM tiveram suas trajetórias divididas entre aqueles que continuaram realizando somente Atividade Ilegal (18), aqueles que realizaram Atividade Legal e Ilegal (sete), aqueles que não realizaram atividades (dois) e dois jovens que realizaram Atividade Legal;

• os 22 jovens que realizaram Atividade Legal e Ilegal antes da primeira internação tiveram suas trajetórias, depois da internação, divididas em Atividade Ilegal (nove jovens) e Atividades Legal e Ilegal (nove jovens). Os três jovens restantes realizaram somente atividade legal e um jovem não realizou atividade;

• os dois jovens que não realizaram nenhuma atividade antes do ato infracional que ocasionou a internação na FEBEM, tiveram a mesma trajetória. Ambos realizaram somente Atividade Ilegal depois da primeira internação.

8. Estratégias de sobrevivência após a saída da internação: intenções

Através da análise da última questão do roteiro de entrevista, pode-se observar as pretensões futuras dos jovens quanto às estratégias de sobrevivência utilizadas após a internação na FEBEM em que se deu a entrevista.5

De acordo com as respostas fornecidas pelos 104 jovens entrevistados, observamos a existência de três grupos diferentes:

• Os jovens que relataram que pretendiam realizar alguma atividade;

• Os jovens que relataram que não pretendiam realizar atividade após a internação;

• Os jovens que responderam que não sabiam o que iriam fazer após a internação;

8.1. Jovens que pretendiam realizar alguma atividade (76%)

Nesse grupo, observamos que 83,5% (66) pretendiam realizar alguma Atividade Legal, enquanto que 14,5% (13) pretendiam continuar realizando somente o Ato infracional. A análise dos relatos dos 66 jovens que apontam o interesse em realizar alguma Atividade Legal para ganhar dinheiro após a última internação nos mostrou que:

• 57,6% (38) pretendiam realizar um tipo específico de atividade: trabalho já realizado em outro momento da vida, trabalho específico e algo que gostaria de aprender.

Alguns jovens que definiram um tipo específico de atividade já realizada anteriormente, apontaram os motivos para essa escolha:

o trabalho de office boy era melhor, ganhava menos mas era honesto (E14);

meu pai é dono da oficina mecânica que ficará para os filhos cuidarem (E36);

•O jovem gostaria de trabalhar com lapidação (copo e taça) porque possui um diploma do curso profissionalizante oferecido pela FEBEM de São Paulo (E12).

Um dos dados mais importantes desse grupo é que as Atividades Ilegais realizadas antes da primeira internação foram em muitos casos, o Trabalho Infantil que, na grande maioria dos casos, foi realizado na companhia de familiares. Os jovens que apontaram o interesse em realizar uma atividade específica, que não havia sido realizada antes da primeira internação, relataram interesses por atividades como patrulheiro mirim (Programa profissionalizante), trabalhador em lava jato, carregador de leite na transportadora em que o pai trabalhava, ajudante de mecânica de carro, entregador de caixa de cerveja, marceneiro, ajudante em supermercado, servente de pedreiro, trabalhar em rede de hotel, pintor e até montar seu próprio negócio tipo lava jato.

Alguns jovens apontaram as razões de ter tomado essa decisão, que foram assim registradas no roteiro de entrevista:

• quer ficar trancado dentro de casa ou ficar com parentes para depois começar uma vida nova. Vai trabalhar com o cunhado de marceneiro (E16);

• quer trabalhar porque vai fazer 18 anos e dando continuidade à prática do Ato Infracional poderá ser encaminhado para o sistema penitenciário (E111).

Dos 104 jovens, 7,6% mencionaram somente as atividades que gostariam de aprender caso houvesse a oportunidade de escolha, mas não pretendiam trabalhar logo de início. Todos os jovens relataram interesse em aprender a respeito de mecânica de carro e bicicleta.

Dos 104 jovens, 28 (42,4%) relataram o interesse em realizar qualquer tipo de atividade após a desinternação, ou seja, eles relatam querer trabalhar, mas não definem qual atividade gostariam de realizar. Referem-se, na maioria das vezes, como “qualquer serviço”, “qualquer coisa”, “o que aparecer”.

Através dos relatos dos jovens não foi possível obter as razões para eles não definirem a atividade. O único dado observado foi que a necessidade de conseguir dinheiro pareceu ser motivo de grande importância para esses jovens, como exemplificam os registros a seguir.

• Arrumar um serviço que ganhe bem (1 salário), não pretende mais vender drogas. ...chega uma hora que a polícia te prende. Conseguiria ganhar menos porque não correria risco (E20).

Trabalhar, tô de maior, dá cadeia (E57).

• Gostaria de um trabalho que tivesse um dinheiro bom (R$350,00) (E55).

• Arrumar um serviço bom que ganhe 250 reais para ajudar a mãe e um pouco ficar para ele, e que as pessoas gostem dele e não o mandem embora (E37).

A análise dos relatos dos jovens que pretendem continuar a prática do Ato Infracional (14,5%) permite observar que: seis querem continuar no Tráfico de Drogas, cinco no Roubo e dois no Tráfico de Drogas associado ao Roubo. Desse mesmo grupo, dois jovens mencionaram o interesse em realizar um trabalho juvenil associado à prática do Ato Infracional.

Alguns jovens apontaram razões para ter tomado essas decisões, que foram assim registradas no roteiro de entrevista:

• para quem já ficou preso é difícil fazer outro trabalho a não ser roubar (E65);

• continuar a roubar para conseguir dinheiro (E55);

não quero trabalhar porque as pessoas que tem dinheiro são folgadas (E10).

8.2. Jovens que não pretendiam realizar atividade após a internação (5,7%)

Os motivos relatados pelos jovens para essa decisão são registrados a seguir.

• Não quer realizar uma atividade legal porque corre o risco de morrer pelos “espinhos” (inimigos). Só se fosse em outra cidade (E73).

• Quer continuar estudando e freqüentando o Núcleo de Apoio Psicossocial para Farmacodependentes (NAPS-F) (E100).

• Quer “ficar de boa” andando morre (E67) (Ficar de boa significa, na linguagem corrente do grupo de participantes, ficar tranqüilo, sossegado, sem fazer nada).

• Está pensando em estudo, algo para ficar sossegado e não voltar para a FEBEM (E78).

• Queria ir para a Argentina ficar com a mãe, porque há três anos que ela mudou de país (E59).

A partir das respostas fornecidas pelos jovens foi possível identificar que a justificativa da necessidade de retomada dos estudos, a possibilidade iminente de morte, e não poder circular livremente por conta dos inimigos foram os motivos mais freqüentes que justificaram a opção dos jovens por não realizar alguma atividade para ganhar dinheiro após a desinternação.

8.3. Jovens que não sabiam o que iriam fazer após a internação (18,2%)

Dentre as justificativas para as suas respostas estão as descritas a seguir.

Não tenho nada para fazer... tenho que arrumar um emprego bom que dê para sustentar a família (E30).

Só vendo no mundão mesmo (E76).

• O jovem acha que vai trabalhar, mas não sabe o que vai dar na cabeça no mundão (E33).

Vontade todo mundo tem. O que impede é os povo querendo matar você (E94).

• O jovem diz que quer ficar um pouco de boa (sem fazer nada), mas depois não sabe (E45).

• O jovem gostaria de talvez voltar a estudar, não sabe (E47).

Só tando no mundão para saber ... depende de sí (E49).

Na rua nóis vê (E101).

• O jovem não sabe porque não vai clarear nada (E53).

Não sei... hoje é difícil depois que você tem passagem pela polícia e tatuagens... não sei mesmo... queria trabalhar pouco e ganhar muito, uns 400 a 1000 reais (E58).

• O jovem não sabe, pois acredita que irá saber o que vai fazer somente após a desinternação, não tem nada que lhe interesse na vida, vive pouco, mas vive bem... na periferia o ditado é vira jogador de futebol para não virar marginal. Ele não tem esperança de se encaixar nessa possibilidade devido a sua idade (18 anos) ( E83).

Só na hora que eu sair memo (E90).

• O jovem precisa ver como está o movimento na rua para depois saber o que vai fazer (E109).

Tentei suicídio duas vezes depois que perdi minha família estou sem objetivo. Tem pouco tempo que eu estou no mundo do crime, 6 meses. Estou sem objetivo de vida (E112).

Quando se está aqui pensa que quer dar um breque, mas quando sai na rua ta diferente, é difícil sair da vida (E82).

Quando analisamos os dados das Linhas Cronológicas das Estratégias de Sobrevivência percebemos que:

• 73,7% (14) haviam sido internados na FEBEM mais de uma vez, sendo a maioria deles com 3 ou mais internações;

• 73,7% (14) relataram ter realizado somente Atividades Ilegais antes da primeira internação, sendo que 50% relatou o Ato Infracional como única estratégia de sobrevivência.

 

DISCUSSÃO

A primeira observação a ser feita é que todos os 104 jovens entrevistados relataram ter realizado alguma atividade em algum momento de sua vida, sejam elas legais ou ilegais. Esta constatação está de acordo com o que é relatado na literatura: existe claramente a necessidade, por parte das crianças e jovens pobres, de buscar alternativas para o seu sustento e/ou de sua família.

A relação desses jovens com as estratégias de sobrevivência pode estar alicerçada por dois grandes paradigmas. O primeiro, que chamaremos de paradigma da inclusão pelo trabalho, que compreende este jovem como “delinqüente”, autor da violência e alguém que precisa trabalhar, pois o trabalho “reintegra”, “previne” e “dignifica o homem”. O segundo, nomeado de paradigma do direito, percebe este jovem como sujeito de direitos cuja inserção no trabalho deve ter a função educativa e complementar para a promoção do seu desenvolvimento integral.

Entre estes dois paradigmas encontramos um jovem inserido numa sociedade de consumo que valoriza o sujeito a partir daquilo que ele possui. Em busca de uma alternativa para suprir as suas várias necessidades esse jovem adere a estratégias como o Ato Infracional, o Trabalho Infantil e os Trabalhos em situação de rua, fazendo disso uma forma de inclusão seja no trabalho, no direito ou no consumo.

Foi possível observar nas falas desses jovens uma crítica real à sociedade do trabalho e suas condições de mercado e uma crítica velada à sociedade do direito pois, oriundos de camadas mais pobres da população, com baixo grau de escolaridade e qualificação profissional, mostraram que encontraram nas Atividades Ilegais (Ato Infracional, Trabalho Infantil e Trabalho em Situação de Rua) uma forma para conseguir certa autonomia financeira e, principalmente, o acesso aos bens de consumo que permitiram, de alguma forma, que eles vivenciassem sua juventude numa sociedade de consumo.

Os relatos desses jovens revelam que embora o trabalho ainda continue sendo uma fonte importante de normatividade e socialização, do ponto de vista da sociedade em geral, as mudanças ocorridas no mercado de trabalho na sociedade contemporânea geram para eles poucas expectativas. Problemas como os altos níveis de desemprego, e as suas baixas qualificações, que resultam em poucas perspectivas profissionais, acabaram interferindo na forma do jovem compreender o trabalho, ou seja, não mais a partir unicamente da sua forma mais tradicional, (necessidade vital, uma obrigação social e um dever moral), mas como um instrumento que possa garantir autonomia financeira para que o mesmo vivencie a sua juventude e seus sonhos de consumo (Bajoit & Franssen, 1997).

Diante desse modo de olhar para o trabalho, percebe-se também que as Atividades Ilegais exercem função semelhante e em alguns momentos constituem-se como a alternativa mais próxima da realidade desses jovens. Pode-se perceber que o acesso às Atividades Ilegais não requisitava grau de escolaridade, qualificação profissional e também não os expunha à percepção clara de exclusão social pois, de uma forma ou de outra, estas acabavam fornecendo o que não conseguiram com outras alternativas. Além disso, a percepção de pertencer a um grupo também pode ser considerada como facilitadora do engajamento nas atividades ilegais pois, essas atividades eram praticadas principalmente em conjunto com conhecidos, familiares ou amigos.

É interessante apontar que a possibilidade de adquirir bens de consumo parece ser um imperativo na vida desses jovens, uma vez que isto parece ser uma necessidade básica na sociedade contemporânea, no modo de produção capitalista. Assim, conseguir “artigos”, como eles se referem a bens de consumo, acaba funcionando como um mecanismo para promover simultaneamente a inclusão e a exclusão social. Isto porque as estratégias para alcançar tal “direito de consumir” podem significar para esses jovens quase que um direito fundamental, mas também a privação do direito à liberdade quando as estratégias utilizadas os levam à prática do ato infracional.

É importante ressaltar que o fato dos jovens relatarem um número maior de Atividades Ilegais do que as Atividades Legais nos leva a pensar que são poucas e precárias as possibilidades de acesso às Atividades Legais (Trabalho Juvenil e o Trabalho em Regime de Aprendizagem) nos dias atuais. Quando os jovens relataram a inserção nessas atividades em algum momento de suas vidas, estas ocorreram somente em atividades que podem ser consideradas como subemprego, com baixos salários e poucas perspectivas de crescimento profissional e pessoal.

A criação de programas de inserção no mercado de trabalho, geralmente em atividades de subemprego, com “bolsas trabalho” ou “baixos salários”, não corresponde aos interesses e experiências dos jovens. Os relatos dos jovens sobre suas passagens por programas profissionalizantes dão um exemplo disto. São relatados problemas tais como: o não pagamento regular do salário, o fato das atividades exercidas serem cansativas e desinteressantes, as dificuldades de relacionamento com colegas de trabalho ou patrões, e episódios relativos a humilhação no trabalho.

Segundo Bajoit & Franssen (1997) a defasagem entre a importância atribuída ao trabalho e o grau de satisfação advindo da experiência concreta com o mesmo promove a busca de

“... diferentes estratégias, atitudes e representações que permitem ao indivíduo existir como sujeitos, dissociando-se de sua situação, ou mesmo de sua condição profissional” (p.85).

Os dados referentes aos planos dos jovens para a realização de alguma atividade que lhes revertesse algum dinheiro após a internação reforçam a afirmação dos autores. Embora a grande maioria dos entrevistados tenha referido o interesse em trabalhar, identificamos relatos que colocavam em evidência a questão financeira em detrimento da profissional, ou então, relatos que estavam alicerçados por fantasias e sonhos.

São várias as reflexões a serem feitas sobre as atuais instituições educacionais brasileiras destinadas à internação de adolescentes autores de ato infracional. Porém, pensando na questão das estratégias de sobrevivência e principalmente da inclusão no mercado de trabalho, existe uma importante discussão a ser feita. Como enfrentar a questão da diminuição do poder de escolha desses jovens, uma vez internados na FEBEM devido à estigmatização advinda da própria internação?

Além disso, a falta de programas profissionalizantes, eficientes, nas unidades de internação resulta em poucas oportunidades de mudanças para esses jovens. Uma vez internado, esse jovem, agora interno e depois ex-interno da FEBEM, se depara com a falta de instrumentos que poderiam auxiliar nas suas escolhas e desejos diante da cobrança da sociedade, do Estado e da família.

Seja realizando Atividades Legais ou Ilegais o jovem se vê cercado por ações que o reprimem implícita e explicitamente e, de certa forma, determinam sua trajetória. Nas Atividades Legais a repressão é implícita, porque os sonhos e desejos dos jovens são subordinados aos interesses do mercado e a ideologia do trabalho, para crianças e jovens pobres, como mantenedor da ordem social. Já para Atividades Ilegais a repressão é explícita e o jovem perde a sua condição de “jovem” e passa a ser visto como “infrator”, deixando de ter, assim, muitos dos “direitos” que deveria ter como pessoa em situação peculiar de desenvolvimento.

Como aponta Minayo (1999), ao citar Weber, a “...Sociedade é fruto de uma inter-relação de atores-sociais, onde as ações de uns são reciprocamente orientadas em direção às ações dos outros” (p. 51), sendo a ação, o comportamento humano para o qual lhe é atribuído um significado subjetivo. A ação se torna social quando são considerados os significados subjetivos a ela atribuídos pelos indivíduos e a influência do comportamento dos outros na sua realização.

Assim, fazendo um paralelo com o jogo de xadrez, as estratégias são definidas a partir das escolhas do jogador diante dos desafios impostos pelo adversário, porém, o jogador tem a liberdade de criar estratégias a partir dos instrumentos que possui, ou seja, as peças. No jogo da vida desses jovens, são poucas as peças, portanto, poucas as opções e por isso suas estratégias, como suas escolhas, estão muito mais vulneráveis às interferências dos outros. Essas interferências deixam de ser desafios e tornam-se imposições, que acabam determinando o resultado do jogo para quem é jovem pobre no nosso país.

 

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Recebido: 11/05/04
1ª revisão: 16/10/04
Aceite final: 25/10/04

 

 

1 Endereço para correspondência: Departamento de Psicologia e Educação, FFCLRP-USP. Avenida Bandeirantes, 3900, 14040-901, Ribeirão Preto, SP. E-mail: rosalinacs@terra.com.br
2 Esse núcleo foi coordenado pela Profa. Dra. Rosalina Carvalho da Silva e sediado no Departamento de Psicologia e Educação da FFCLRP-USP até 2000.
3 Foram consideradas legais as atividades realizadas pelos jovens a partir da idade mínima básica de 14 anos, tendo por referência a Convenção n° 138 de 1973, proferida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). De acordo com essa Convenção, a idade mínima básica de ingresso do jovem no mercado de trabalho não pode ser inferior à idade em que cessa a obrigatoriedade escolar (15 anos). No entanto, a OIT torna facultativo aos países que não possuem economia e sistemas escolares desenvolvidos, estabelecer a idade mínima de 14 anos, como é o caso do Brasil (Abbud, 1997; OIT, 1994).
4 Para este estudo foi adotada a idade mínima de 12 anos para trabalho aprendiz, pois, na época que os jovens realizaram essas atividades, ainda estava em vigor a lei que determinava o trabalho aprendiz para jovens de 12 a 14 anos. Atualmente a faixa-etária adotada pela lei é de 14 a 16 anos.
5 Em algumas entrevistas foi possível manter a forma original do relato, apresentadas em itálico nos itens seguintes.

 

Sobre os autores
* Marília Mastrocolla de Almeida é mestre em Ciências na área de Psicologia pela Universidade de São Paulo - campus de Ribeirão Preto. Terapeuta Ocupacional formada pela Universidade Federal de São Carlos. Atualmente é coordenadora do Grupo de Capacitação continuada da equipe do Projeto Atitude que acompanha jovens egressos de medidas sócio-educativas na cidade de Ribeirão Preto – SP.
** Rosalina Carvalho da Silva é doutora em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP, docente do curso de graduação em Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Riveirão Preto-USP. Coordenadora do Grupo de Trabalho em Psicologia Comunitária da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP). Membro do Núcleo de Estudos e Prevenção à AIDS (NEPAIDS). Atua na área da Psicologia Social e Comunitária.

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