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Revista Brasileira de Orientação Profissional

On-line version ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof vol.5 no.2 São Paulo Dec. 2004

 

ARTIGOS

 

 

Saúde mental e trabalho: intervenções nas relações entre adolescentes trabalhadores e empresa

 

Mental health and work: interventions in the relationship between working adolescents and the company

 

Salud mental y trabajo: intervención en las relaciones entre adolescentes trabajadores y empresa

 

 

Elaine Luiza Bressan1 *; Ana Maura Azevedo de Godoy**; Maria Cristina Frollini Lunardelli***

Universidade Estadual Paulista, Bauru

 

 


RESUMO

A intervenção com adolescentes trabalhadores configura-se como prática emergente do psicólogo organizacional. Este projeto, iniciado em 2002, em uma indústria do ramo gráfico e de papelaria do interior do Estado de São Paulo, tem como objetivo contribuir para a promoção da saúde mental de adolescentes trabalhadores (entre 16 e 18 anos), por meio de intervenções nas relações de trabalho. Foram realizadas reuniões mensais na empresa, abordando os temas: Adolescência, Trabalho, Amizade, Relacionamento Interpessoal, Papel Educativo das Chefias e Políticas da Empresa. O espaço de discussão, reflexão e troca de experiências, propiciado aos adolescentes no trabalho, indica que este tem contribuído para que os mesmos expressem sentimentos; partilhem problemas da rotina de trabalho; compreendam os determinantes da natureza do trabalho que realizam; discutam interesses profissionais e planos para o futuro; vislumbrem a possibilidade, por meio de uma atuação coletiva, de propor intervenções nas relações de trabalho, envolvendo inclusive suas chefias.

Palavras-chave: Adolescentes, Saúde mental, Relações de trabalho na administração.


ABSTRACT

Interventions with working adolescents arise as an emerging practice of the organizational psychologist. This project started in 2002 at one industry of the graphic arts and stationery business up country the State of São Paulo. It sought to contribute towards the promotion of mental health with working adolescents (between 16 and 18 years old), by means of interventions in work relationships. Monthly, meetings were carried out at the company, on the themes: Adolescence, Work, Friendship, Interpersonal Relationships, Educational Role of Managing Staff, and The Company’s Policies. Conditions for discussion, reflection and exchange of experiences provided to adolescents at work seemed to have helped them express feelings, share work routine problems, understand the nature of their work, discuss working interests, plan for the future and consider the possibility of proposing interventions in their work relationships by means of a collective action, also involving the management of the company.

Keywords: Adolescents, Mental health, Labor management relationships.


RESUMEN

La intervención con adolescentes trabajadores se representa como práctica emergente del psicólogo organizacional. Ese proyecto que se inició en 2002 en una industria gráfica y de papelería en el interior del Estado de São Paulo, tiene como objetivo contribuir para la promoción de la salud mental de adolescentes trabajadores (entre 16 y 18 años) por medio de intervenciones en las relaciones de trabajo. Fueran hechas reuniones mensuales en la empresa planteando los siguientes temas: Adolescencia, Trabajo, Amistad, Relación Interpersonal y Políticas de la Empresa. Ese espacio de discusión, reflexión y cambio de experiencias, que se les propició a los adolescentes en el trabajo, muestra la contribución para que esos jóvenes expresen sus sentimientos; repartan problemas de la rutina de trabajo; comprendan los determinantes de la naturaleza del trabajo que realizan; debatan intereses profesionales y planes futuros; vislumbren la posibilidad, por medio de una actuación colectiva, de proponer intervenciones en las relaciones de trabajo, involucrando incluso a sus jefaturas.

Palabras clave: Adolescente, Salud mental, Relaciones de trabajo.


 

 

Apesar da existência de uma legislação específica que regulamenta o trabalho de adolescentes e proíbe o trabalho infantil, existe no Brasil um significativo contingente de crianças ou adolescentes em situação de trabalho. Os jornais, revistas e canais de televisão apontam injustiças e denunciam péssimas condições de trabalho aos indivíduos nessas faixas etárias. Nota-se também a falta de fiscalização e a escassez de atividades de apoio nestes ambientes de trabalho.

Assim, que perspectivas se colocam para o jovem trabalhador que depende do fruto do seu trabalho para sobreviver? Como a psicologia pode contribuir com a elaboração de estratégias de defesa e de elaboração psíquica que permitam oferecer serviços de atenção à saúde do trabalhador?

Nesse contexto, o trabalho a seguir tem como finalidade discutir a orientação ocupacional e o acompanhamento de trabalhadores adolescentes como um campo de atuação de psicólogos alocados em organizações. Para isso, inicialmente serão expostos e discutidos alguns conceitos teóricos (adolescência, saúde mental e trabalho) e, em seguida, será relatada uma intervenção com adolescentes trabalhadores de uma empresa de produtos de papelaria do interior do Estado de São Paulo.

 

ADOLESCÊNCIA: EXPLICAÇÕES POSSÍVEIS

A adolescência pode ser conceituada diferentemente, dependendo da abordagem que a descreve: cronológica, de desenvolvimento físico, sociológica, psicológica e psicanalítica, antropológica, culturalista, filosófica e histórica (Mauro, Giglio & Guimarães, 2000).

Mesmo com essas várias conceituações de adolescência, a idéia que a maioria das pessoas fazem dela foi descrita por Loyola (1990):

“É comum entendermos o adolescente a partir do referencial mais comum: idade (12 aos 19 anos); emoção instável (ora sonhadora, ora medrosa); forte e saudável; renovador; não produtivo economicamente ou mão-de-obra barata até se tornar adulto” (p. 319).

Segundo Loyola (1990), o adolescente passa por um período de transformações anatômicas, fisiológicas (que o preparam para a reprodução) e de resposta sexual que desencadeiam modificações de conduta e de comportamentos. Essas modificações físicas provocam mudanças psicológicas, juntamente com outros fatores culturais e sociais. Aguiar, Bock e Ozella (2001) afirmam que outros autores, partindo de uma abordagem psicanalítica, enfatizam que a adolescência é uma fase conturbada devido às mudanças sexuais envolvidas. Além disso, a adolescência é uma etapa decisiva para o indivíduo e de grandes dificuldades para o adolescente. Ele entra em uma crise, apresentando-se vulnerável e rebelde. Compartilhando da mesma idéia de adolescência enquanto uma etapa de conflitos, Mauro, Giglio e Guimarães (2000, p.115) afirmam que “... por si só, a adolescência é desestabilizadora da saúde psíquica do indivíduo”.

Opondo-se a essas visões descritas anteriormente, Aguiar, Bock e Ozella (2001) explicitam outro conceito de adolescência. Ela seria analisada como uma etapa do desenvolvimento que ocorre na sociedade e, por isso, suas características próprias não são fixas ou imutáveis, mas construídas por um momento histórico. Tais características não seriam naturais ou trazidas com a chegada de uma certa idade.Dessa forma, não seria uma fase natural do desenvolvimento humano, mas seria criada historicamente. Até mesmo as mudanças sexuais do corpo não poderiam ser tomadas como características da adolescência, já que são significadas e valorizadas socialmente (Aguiar, Bock & Ozella, 2001).

Segundo Bock, Furtado e Teixeira (1989), a fase da adolescência surgiu com a sofisticação tecnológica da sociedade e com a necessidade de o jovem adquirir conhecimentos suficientes para dela participar. Criaram-se, com essa extensão do período escolar, as condições para distanciamento familiar, aproximação de um grupo de iguais e, principalmente, modificação de valores pessoais. A rebeldia, característica da adolescência, poderia ser explicada pela contradição entre ter todas as condições necessárias para trabalhar (afetivas, cognitivas, sexuais, físicas) e estar impedido de fazê-lo em decorrência de uma necessidade de estudar e distanciar-se do trabalho (Aguiar, Bock & Ozella, 2001).

Esta visão sócio-histórica de adolescência não ignora as características observadas em adolescentes, as transformações ocorridas nessa fase e a existência de um período de conturbação. No entanto, as explicações dadas a esse fenômeno são históricas e sociais, opondo-se a qualquer visão naturalista, cronológica ou física.

 

SAÚDE MENTAL RELACIONADA AO TRABALHO DE ADOLESCENTES

O conceito de saúde mental, assim como o de saúde, é de difícil delimitação teórica. Por isso, comumente, relata-se que a saúde mental seria a ausência de doença mental.

Yoshida e Giglio (2000), no entanto, definem saúde mental enquanto um estado interno de bemestar sentido na interação do indivíduo com o meio social. A saúde mental estaria relacionada à satisfação criativa e construtiva das necessidades do indivíduo, ao desenvolvimento pessoal e às contribuições que ele oferece ao bem-estar de outros.

Já em 1972, Macedo (citado por Yoshida & Giglio, 2000) enfatizava a importância de trabalhos, principalmente preventivos, referentes à saúde mental, focando a necessidade urgente de cuidados referentes a essa temática dentro do ambiente em que vivem os sujeitos: área de recursos humanos, hospitais, comunidades de bairros, escolas, etc.

O trabalho influencia o comportamento, a expectativa, o projeto de vida, a afetividade e a vida psíquica do indivíduo. A atividade profissional pode ser positiva para o desenvolvimento dos adolescentes, quando significar uma possibilidade de expressar habilidades, criatividade e desenvolvimento; ou negativa, quando essas possibilidades não existirem (Mauro, Giglio & Guimarães, 2000). Detalhando essa influência negativa do trabalho na vida dos adolescentes, os mesmos autores afirmam que:

“...o adolescente trabalhador (...) enfrenta algumas situações desencadeantes de sofrimento emocional, tais como: condições de trabalho inadequadas; pouco convívio familiar; pouco tempo para dedicar-se a lazer e esportes; dificuldades escolares decorrentes do tempo restrito de dedicação aos estudos e do cansaço físico implicado na conciliação de duas jornadas, a de trabalho e a escolar; pouca oportunidade de qualificação profissional” (p. 109, 110).

Além disso, como o aprendizado do trabalho ocorre por imitação e como as necessidades e efeitos do trabalho do adolescente não são esclarecidos, os novos conhecimentos proporcionados pela atividade laboral pouco colaboram para o desenvolvimento profissional do mesmo. O trabalho afeta, também, a aprendizagem escolar e gera repetências, desistências e faltas. Isso ocorre quando a atividade profissional é simplificada, automatizada, sem novidade, desinteressante, parcial, repetitiva e sem compreensão do todo (Mauro, Giglio & Guimarães, 2000). Por outro lado, o trabalho pode significar proteção à saúde mental quando proporciona ao adolescente uma identidade, aprendizagens sobre cidadania, auto-reconhecimento, autopercepção, socialização, desenvolvimento de potencialidades e criação de novas expectativas (Mauro, Giglio & Guimarães, 2000).

Se o trabalho pode influenciar a saúde mental de um adolescente de maneira positiva ou negativa, protegendo- a e trazendo-lhe aprendizagens ou privando- o de experiências de vida importantes (escolares, familiares, etc.), então há uma possibilidade de intervenção aos profissionais ligados à saúde mental. O papel desses profissionais, incluindo o psicólogo, é o de proporcionar qualidade de vida no trabalho e promover condições positivas para a saúde mental.

Numa discussão mais ampliada sobre trabalho e qualidade de vida do trabalhador, Hackman e Oldhan (1975) descrevem conjuntos de variáveis que interferem em resultados organizacionais e na qualidade de vida daqueles que os produzem. As variáveis de conteúdo, ou seja, estados psicológicos relacionados ao trabalho em si são: (1) grau de percepção de importância, valor e significado atribuído pelo indivíduo ao trabalho que realiza; (2) nível de sentimento de responsabilidade presente no indivíduo acerca dos resultados do trabalho executado; (3) conhecimentos do indivíduo relativos aos reais resultados de seu trabalho. Quanto mais intensa a presença desses estados em um indivíduo, maior será sua motivação para o trabalho e sua qualidade de vida.

  • Algumas dimensões básicas do trabalho criam os estados psicológicos citados por Hackman e Oldhan (1975):
  • Variedade de habilidades: envolvimento de várias atividades, habilidades e talentos em uma mesma tarefa.
  • Identidade da tarefa: nível de conclusão de um trabalho, ou seja, o trabalho é executado do início ao fim e obtêm-se resultados consideráveis.
  • Significado da tarefa: impacto da tarefa na vida ou no trabalho de outros.
  • Autonomia: independência e liberdade de planejamento e execução de uma tarefa.
  • Feedback intrínseco: informações obtidas na execução de um trabalho sobre a efetividade de um desempenho.
  • Feedback extrínseco: informações claras de supervisores ou colegas sobre um desempenho.
  • Inter-relacionamento: exigência do trabalho para que o indivíduo lide diretamente com outras pessoas, inclusive clientes.
  • Outras variáveis denominadas de contexto também se relacionam ao bem-estar do indivíduo e não estão interligadas ao trabalho em si, mas às condições em que ele se dá. São elas (Hackman & Oldhan, 1975):

  • Possibilidades de crescimento: chance de desenvolvimento dentro da organização a partir da apresentação de um bom desempenho.
  • Segurança no trabalho: estabilidade no emprego, ausência de risco de demissão.
  • Compensação: salários e benefícios recebidos.
  • Ambiente social: relações cordiais no ambiente de trabalho.
  • Supervisão: qualidade da supervisão recebida.
  • Como pode ser observado nessa proposta teórica, entende-se o comportamento humano no trabalho sob uma visão sistêmica, ou seja, ele é determinado por características individuais (biológicas, psicológicas, atitudes, crenças e valores) em interação com aspectos do meio ambiente imediato (família, grupo de pares, escola) e distante (influências ambientais, meios de comunicação, valores, normas sociais) (Silveira, 2000).

    Para a teoria de sistemas, a realidade pode ser explicada a partir de inter-relações, interdependências e integrações de sistemas. Isso implica em admitir que uma organização é uma totalidade (e não a soma de partes), ou seja, “(...) uma mudança em qualquer uma das partes afeta todas as outras (...)” (Fender, 2000, p. 82).

    Nesse sentido, uma organização de trabalho seria um sistema que integra outros subsistemas (departamentos, equipes de trabalho, categorias profissionais, entre outros). Esses subsistemas são compostos por outros ainda menores – as pessoas. Portanto, um grupo não pode ser visto como se estivesse isolado de uma organização mais ampla, assim como as pessoas que o compõem também estão interligadas a outros subsistemas (familiar, escolar, etc.).

     

    PESQUISAS E INTERVENÇÕES RELACIONADAS AO TEMA DA SÁUDE MENTAL DE ADOLESCENTES TRABALHADORES

    Mauro, Giglio e Guimarães (2000) relatam uma pesquisa feita com adolescentes trabalhadores entre 12 e 18 anos. Esta revela que, em 58,7% da população pesquisada, havia suspeitas de transtornos mentais, provavelmente, influenciados pela falta de bom sono. Irritabilidade, excitabilidade e cansaço crônico foram outros sintomas encontrados. A população estudada passava poucas horas na escola e apresentava pouco convívio familiar.

    Ao discutir os dados obtidos, os autores afirmam que a atitude de aceitar normas, horários rígidos e responsabilidades pode levar à alienação do mundo do trabalho e riscos à saúde psíquica.

    Em contrapartida, Yoshida e Giglio (2000) relatam uma pesquisa relacionada à avaliação de um programa de prevenção primária em saúde mental com adolescentes trabalhadores da Universidade de Campinas (SP), a qual enfatiza a necessidade de os psicólogos desenvolverem projetos de promoção da saúde mental de adolescentes trabalhadores nos locais de trabalho.

    Yoshida e Giglio (2000) planejaram alguns temas que foram tratados por meio de assembléias, conferências, pesquisas de interesse, visitas aos locais de trabalho, orientações às chefias, atividades esportivas e artísticas e técnicas de psicoterapia dinâmica breve com grupos. Os temas trabalhados foram: sexualidade, tóxicos, estudo e profissões e relacionamentos familiares. Após a descrição de uma extensa avaliação desse programa, foram apontadas algumas necessidades verificadas para o trabalho com essa população, entre eles: proporcionar convivência com grupos, reflexões, expressão de idéias, expressão de necessidades e de conflitos.

    Os trabalhos acima citados, ou seja, pesquisa em saúde mental de adolescentes trabalhadores e intervenções nessa área, indicam a necessidade de o psicólogo realizar novas experiências com essa população, inclusive abrindo campos de atuação nos locais em que estes jovens trabalham.

    Essas atuações da psicologia podem, ainda, ser implementadas com o objetivo mais específico de promover a saúde mental, e não prevenir. Promover a saúde mental implica proporcionar ao indivíduo condições adequadas de vida e relações sociais saudáveis. Prevenir significa agir considerando que a doença é uma possibilidade e o termo deve ser usado para situações inespecíficas (Bock & Aguiar, 1995). Bock e Aguiar (1995) afirmam que o trabalho do psicólogo deve prever a promoção da saúde mental como objetivo primeiro de sua atuação em quaisquer áreas. Esse conceito é descrito pelas autoras da seguinte forma:

    “Promover saúde significa compreender e trabalhar com o indivíduo a partir de suas relações sociais; significa trabalhar estas relações construindo uma compreensão sobre elas e sua transformação necessária. Promover saúde significa trabalhar para ampliar a consciência que o indivíduo possui sobre a realidade que o cerca, instrumentando-o para agir, no sentido de transformar e resolver todas as dificuldades que esta realidade lhe apresenta” (p. 109, 110).

    Essa conceituação teórica serve para que as autoras embasem uma proposta de trabalho em Orientação Vocacional subdividida em três módulos: discussão sobre o significado da escolha profissional na vida do indivíduo, conceito de trabalho e autoconhecimento e informação profissional.

    Na psicologia organizacional, a promoção da saúde mental também tem subsidiado o trabalho dos profissionais. Inovações deste tipo foram denominadas por Zanelli (1994) como movimentos emergentes no Brasil.

    “Por movimentos emergentes entendam-se as atividades e concepções que têm surgido na prática do psicólogo organizacional brasileiro, indicadas pelas publicações no período aproximado dos últimos cinco anos, apesar da escassez relativa da literatura da área no País” (p. 85).

    As preocupações com a qualidade de vida no trabalho e também com a saúde mental são relacionadas por Zanelli (1994) como crescentes na atuação do psicólogo organizacional, mas ainda necessitam de maiores investigações, experiências e estudos. Em 2002, Zanelli confirma esta afirmação e complementa:

    “...movimentos emergentes comparados às atividades tradicionais [do psicólogo], é o que marca com clareza a ampliação de uma função reconhecida como técnica para uma função estratégica onde atividades são vistas inseridas no contexto e endereçadas na busca da saúde mental e da qualidade de vida no ambiente extensivo do trabalho” (p. 152).

    A partir de tais colocações, pode-se notar que a atuação do psicólogo não se limita somente à preocupação com a qualidade de vida no trabalho, mas pressupõe uma atitude política frente a estas e outras questões. Neste sentido, a intervenção descrita a seguir vem ao encontro desta necessidade, assinalando o trabalho do psicólogo com adolescentes como uma prática emergente e necessária, tanto para a população atendida quanto para as publicações científicas sobre o tema, principalmente porque atua na promoção da saúde mental.

     

    PROGRAMA DE PROMOÇÃO DA SAÚDE MENTAL DE ADOLESCENTES TRABALHADORES

    Em 2002, iniciou-se um programa de intervenção com adolescentes trabalhadores em uma empresa do ramo gráfico e de produtos de papelaria do interior do Estado de São Paulo. Essa companhia emprega adolescentes em uma porcentagem de 0,6% a 1% de seu quadro de funcionários para o cargo de iniciante de serviços administrativos. As funções básicas desempenhadas por esses adolescentes são: buscar e entregar correspondências dentro na empresa, buscar e entregar garrafas de café, pesquisar dados informatizados, calcular boletos, arquivar documentos, etc.

    Todas as contratações de adolescentes são feitas de maneira legal, considerando os itens da legislação brasileira vigente que regulamentam o trabalho de adolescentes e proíbem o trabalho infantil (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988). Dessa forma, todos os adolescentes que ingressam na empresa possuem 16 anos completos, trabalham oito horas por dia nos períodos da manhã e da tarde, exercem as atividades de trabalho em condições salubres, cursam o Ensino Médio em período noturno e têm seus direitos previdenciários e trabalhistas garantidos.

    O cumprimento de leis é uma das características marcantes dessa empresa, assim como o fato de ser administrada por membros de uma mesma família há cerca de 75 anos. Por se tratar de uma empresa familiar, possui algumas características típicas dessa forma de administração: lealdade dos funcionários, rapidez no processo de decisão, conflitos de interesses familiares e profissionais, falta de planejamento financeiro, familiaridade para empregar, valorização de relações afetivas e paternalismo.

    Nesse contexto empresarial, em 2002, diante do número de encaminhamentos feitos pelos supervisores dos adolescentes trabalhadores ao Departamento de Recursos Humanos, foi aberto um espaço para que a estagiária de psicologia Organizacional e do Trabalho realizasse um acompanhamento funcional dos mesmos. Em geral, os encaminhamentos feitos pelos supervisores relacionavam-se a problemas com a rotina de trabalho dos iniciantes, assuntos familiares, questões escolares ou outros conteúdos particulares.

    A intervenção realizada por Godoy (2003) teve como objetivo promover, com os adolescentes trabalhadores, informações, vivências (dinâmicas, jogos, simulações) e discussões sobre temas como: adolescência, amizade, trabalho desempenhado na organização e relacionamento interpessoal no trabalho. Os resultados obtidos foram avaliados como positivos, considerando a participação ativa dos adolescentes e a busca de soluções para os problemas trazidos pelos participantes. Como sugestão para a continuidade do programa, propõe-se um maior envolvimento dos supervisores, de forma a proporcionar conhecimentos referentes à saúde mental, à adolescência e ao papel educativo da chefia e encaminhar mudanças no trabalho.

    A partir das sugestões propostas pela estagiária em 2002, foi dada continuidade ao programa de intervenção em 2003, com a finalidade de promover a saúde mental dos adolescentes trabalhadores por meio de intervenções no contexto de trabalho (Hackman & Oldhan, 1975).

     

    METODOLOGIA

    Participantes

    No ano de 2003, participaram do programa de intervenção seis adolescentes do sexo masculino com 16 ou 17 anos. Esses adolescentes cursavam o Ensino Médio regular e apresentavam nível socioeconômico médio-baixo. Todos haviam buscado o emprego para contribuir com a renda familiar e metade deles já estava na empresa há cerca de um ano. Antes de trabalhar na empresa, muitos já haviam desempenhado outras atividades de trabalho informais, como entregar panfletos, promover festas, atender clientes em comércios, entre outras. Dentre estes participantes, dois eram portadores de deficiência: um deles possuía deficiência física congênita, que acarretou malformação no braço direito, e o outro apresentava deficiência auditiva moderada congênita, comunicando-se oralmente com facilidade.

    Instrumentos

    Todos os temas foram abordados utilizando a proposta de aprendizagem vivencial descrita por Moscovici (1985), que compreende quatro etapas: atividade, análise, conceituação e conexão. Tais etapas implicam estruturar reuniões com grupos, partindo de uma atividade a ser realizada por todos os participantes ou conhecida previamente por eles (por exemplo: uma dinâmica de grupo ou um fato cotidiano de conhecimento coletivo). Em seguida, o grupo deve analisar a atividade realizada e descrever sentimentos, compreensões, pontos de vista, causas, efeitos. Finalizadas as discussões, o coordenador do grupo deve fazer uma conceituação teórica do tema abordado, explicando o assunto por meio de conhecimentos científicos. Por último, é necessário que seja feita uma conexão entre a atividade, a análise, a conceituação e o cotidiano dos participantes.

    Para a realização das técnicas grupais e discussões foram utilizados os seguintes materiais: papel sulfite, canetas, lápis de cor, canetas coloridas, fita, música, giz de cera e cartolinas.

    Procedimento

    Foram realizados oito encontros mensais, com duração de 90 minutos, em média.

    Com o objetivo de estimular a manutenção do vínculo entre os participantes, a estagiária relembrava aos participantes sobre a data da próxima reunião pessoalmente ou por telefone, dias antes da data acertada.

    Além disso, foi realizada uma reunião com cada supervisor dos participantes do grupo com a finalidade de explicitar o objetivo do programa, convidá-los a participar de uma reunião do grupo de adolescentes e solicitar sugestões de temas para o trabalho com os iniciantes.

    Ao analisar os dados obtidos a partir das entrevistas com os supervisores, observou-se uma preocupação com a eficiência do serviço produzido pelos iniciantes. Essa preocupação pode ser demonstrada pela seguinte fala: “O único problema é quando eles (os adolescentes) ficam batendo papo no malote e você não acha o iniciante para buscar um documento ou fazer alguma coisa urgente.” Além disso, todos os supervisores relataram que o trabalho de acompanhamento aos iniciantes era importante, já que “eles estão passando por uma fase difícil e precisam ter alguém para orientar”. Entretanto, somente um dos supervisores reconheceu que o chefe tem um papel educativo nas relações de trabalho. Os demais delegaram essa função à estagiária que conduziu o programa. Uma das falas ilustra essa delegação: “Eu não tenho jeito com adolescentes, a gente não pode ser tão objetiva e direta com eles. Você que estuda psicologia tem mais jeito para isso.”

    Intervenção

    Segue abaixo a descrição dos encontros com o grupo de adolescentes:

    1.º Encontro

    Nessa reunião, o objetivo foi apresentar a proposta do trabalho, bem como pedir sugestões de temas relacionados ao trabalho realizado pelos adolescentes na empresa que pudessem ser incluídos nos demais encontros previstos. Todos os iniciantes relataram que o programa de intervenção seria importante para eles e isso pôde ser verificado em falas como: “as reuniões servem para desabafar”, “nas reuniões a gente encontra respostas para nossas dificuldades e apoio”, “vai ser bom para discutirmos” e “vamos aprender mais”. Os seguintes temas foram apontados pelos adolescentes como sugestão para as reuniões: companheirismo no trabalho (entre os próprios iniciantes), expectativas da chefia e de outros funcionários acerca do desempenho de iniciantes no trabalho, relacionamento interpessoal no trabalho, atividades realizadas em cada setor da empresa, amizade, dificuldades familiares e de trabalho e postura profissional. Em seguida, foi realizado o contrato psicológico do grupo, elencando regras necessárias para a realização do trabalho grupal, como “pontualidade”, “respeito”, “comprometimento”, “confiança”, entre outras.

    2.º Encontro

    O objetivo do encontro foi proporcionar o autoconhecimento aos participantes, criando condições para a expressão de sentimentos, conflitos, preferências e opiniões pessoais. Foram utilizadas técnicas para autoconhecimento que permitiram o relato de preferências e características pessoais marcantes, além da troca de opiniões e feedbacks entre os participantes (Militão & Militão, 2000; Yozo, 1996).

    3.º Encontro

    A terceira reunião teve como objetivo abordar o tema relacionamento interpessoal, visando à convivência em grupos (incluindo o de trabalho). Discutiu- se também sobre os problemas de relacionamento causados por atitudes preconceituosas entre pessoas, com a dinâmica dos rótulos (Antunes, 1987). Partindo de problemas de relacionamento interpessoal no trabalho, trazidos pelos próprios participantes, foram feitas discussões grupais, análises de comportamentos e sugestões de atitudes em futuras situações semelhantes, mostrando que as relações sociais podem ser alteradas e orientando para uma comunicação clara e direta na resolução dos problemas desse tipo.

    4.º Encontro

    Esse encontro teve como objetivo discutir o significado do trabalho, das atividades realizadas e do cargo de iniciante de serviços administrativos. Para isso, utilizou-se do relato de atividades feito pelos participantes, discussões em pequenos grupos e confecção de cartazes. Em seguida, funções semelhantes desempenhadas por outros adolescentes da cidade em empresas diversas foram trazidas, permitindo a ampliação das discussões e a comparação ou diferenciação entre significado do trabalho, da atividade e do cargo.

    5.º e 6.º Encontros

    Os encontros tiveram como objetivo principal esclarecer o significado do trabalho e do cargo de iniciante a partir da concepção dos supervisores. Além disso, proporcionar um espaço para comunicação aberta entre supervisores e adolescentes, gerando maior aproximação entre eles e a possibilidade de troca de feedbacks. Esses objetivos foram atingidos por meio entrevistas com os supervisores dos adolescentes. O roteiro de questões foi planejado pelos iniciantes e realizado por eles. As principais questões abordadas foram: descrição da carreira do supervisor na empresa, vida pessoal do supervisor, opinião sobre os iniciantes e características negativas apresentadas, importância do trabalho desempenhado por adolescentes na empresa e possibilidades de colaborar para que os adolescentes consigam outro emprego quando completarem 18 anos. Apenas uma supervisora recusou o convite para participar da reunião.

    7.º Encontro

    A reunião teve como finalidade apresentar os diversos setores da empresa, bem como proporcionar conhecimentos sobre a integração dos trabalhos realizados por área e a importância de cada um deles no resultado final da empresa. Para isso, cada participante explicou resumidamente as atividades realizadas pelos profissionais dos setores em que trabalham e mostrou a importância desses trabalhos para o produto final. Após os relatos e a discussão grupal, explicou-se que a empresa é um subsistema composto por outros menores. As inter-relações entre os diferentes subsistemas foram esclarecidas, assim como a importância do trabalho realizado pelas pessoas de cada setor.

    8.º Encontro

    Os objetivos deste último encontro foram: retomar os conteúdos das reuniões anteriores, avaliar o processo grupal e a intervenção realizada, partindo das necessidades indicadas pelos próprios participantes. Os próprios participantes retomaram os conteúdos abordados durante a intervenção, demonstrando a apreensão dos conteúdos trabalhados. Utilizou-se também de várias técnicas de avaliação grupal que permitiram verificar a reação dos participantes ao trabalho realizado e as mudanças efetivas de comportamento (Boog, 2001).

    Análise dos Dados

    Logo após o encerramento de cada reunião, a estagiária transcrevia os relatos dos encontros em forma de relatórios, contemplando objetivos gerais e específicos, a descrição das atividades realizadas e das intervenções. Além disso, análises, observações gerais e sugestões também eram registradas, facilitando o planejamento dos encontros previstos.

    Concluída a intervenção com os iniciantes, os relatos foram relidos a fim de sistematizar a análise dos dados. Com base nessas leituras e a partir dos temas e objetivos propostos em cada encontro, foram definidas as seguintes categorias:

  • autoconhecimento;
  • significado do trabalho;
  • relacionamento interpessoal ou inter-relacionamento;
  • papel educativo do supervisor;
  • interdependência dos setores da empresa.
  •  

    RESULTADOS E DISCUSSÃO

    Os resultados serão apresentados a partir das categorias mencionadas anteriormente.

    Autoconhecimento

    Houve espaço e atividades grupais que permitiram reflexões sobre características pessoais marcantes e a troca de opiniões entre os participantes do grupo. Algumas falas foram: “eu me considero uma pessoa alegre, sempre de bem com a vida”, “todos falam que eu sou comunicativo”, “para me compreender basta um pouco de paciência”, “sou muito enrolado para tomar decisões ou falar alguma coisa, esquisito no meu jeito de ser e viver”, “tenho facilidade para aprender e gosto de me divertir” ou “tenho facilidade em me comunicar com pessoas diferentes em qualquer lugar”. Essas falas permitiram aos participantes uma maior percepção sobre suas características pessoais e foram condição necessária para abordar o tema seguinte (relacionamento interpessoal), já que para compreendê-lo é importante entender que as pessoas são diferentes e têm maneiras próprias de pensar e agir. Além disso, o autoconhecimento foi citado por Bock e Aguiar (1995) como um tema fundamental ao trabalho de orientação profissional que vise a promoção da saúde mental. Da mesma forma, observou-se que conhecer as características pessoais marcantes, entender como essas características foram construídas e compreender que elas estão em constante processo de mudança se mostraram como discussões importantes para a manutenção de relações interpessoais de trabalho mais saudáveis aos adolescentes em questão.

    Significado do trabalho

    Todos os participantes descreveram suas atividades de maneira detalhada, demonstrando envolvimento com o trabalho que realizam. Uma característica apontada por todos como importante foi o fato de serem aprendizes, estarem recebendo instruções e supervisões para as tarefas que realizam. Um exemplo disso é: “Aprendi na empresa a usar o computador, passar fax, fazer boletos e usar máquina de xerox.” (sic). Outros itens foram apontados pelos participantes como características comuns aos iniciantes: “eficiência”, “agilidade”, “competência”, “responsabilidade”, o fato de que “nenhum documento pode ser perdido, esquecido ou entregue com atraso” e “bom relacionamento com as pessoas” (sic).

    Os conteúdos expressos pelos supervisores durante as reuniões em que estiveram presentes podem ter aumentado o grau de percepção de importância, valor e significado atribuído pelos adolescentes aos trabalhos que realizam como iniciantes de serviços administrativos. Todos os supervisores que participaram admitiram a importância dos serviços dos adolescentes para os resultados obtidos pela empresa, principalmente no que se refere à tarefa essencial de integrar os departamentos da empresa. Um dos supervisores relatou: “Os iniciantes têm se tornado funcionários com funções específicas e de extrema importância, ao contrário do que se pensava em anos anteriores. A atividade do V. (nome do adolescente) é essencial para o controle das correspondências e o iniciante é responsável e autônomo nesta atividade. Já o F. (nome do adolescente) é muito requisitado por todos os funcionários do Departamento de Vendas e também desempenha tarefas importantes.” Outro supervisor disse: “Quando as pessoas procuram e não encontram (os iniciantes) , ficam desesperadas e algumas coisas param.”

    Essas afirmações indicaram aos adolescentes a responsabilidade pelo trabalho que executam. Dessa forma, a intervenção feita pode ter gerado alterações no conteúdo do trabalho para os adolescentes (principalmente nos itens autonomia, identidade da tarefa e significado da tarefa), de acordo com a teoria proposta por Hackman e Oldhan (1975).

    Na última reunião do grupo, algumas avaliações dos adolescentes sobre o programa apontam mudanças no que se refere ao significado do trabalho para os participantes do grupo: “o grupo mudou minha maneira de pensar no que o trabalho significa para mim”, “passei a me sentir mais importante na função de iniciante” “através do trabalho estou aprendendo coisas novas e importantes”, “o trabalho é a melhor maneira de fazer, cara, é tipo assim ‘se tem luta tem conquista’”, “o trabalho significa para mim: amizade, alegria, passatempo, dinheiro, crescer na vida”, “nesse momento, que o trabalho não é a coisa mais importante para mim, porque o mais importante é a escola”, “significa não pensarmos só em nós e nos nossos problemas e sim nos problemas da sociedade”, “significa trabalho em grupo, pensar juntos para trabalhar melhor”, “esse trabalho é muito importante para minha formação tanto pessoal quanto profissional e estou satisfeito por estar trabalhando aqui”.

    Observa-se nas falas acima que há uma diversidade nos significados atribuídos pelos participantes ao trabalho que realizam, alguns passaram a considerá- lo como algo importante e significativo, outro como uma possibilidade de ação social e outro como uma atividade menos importante, comparando com a atividade escolar.

    Relacionamento Interpessoal ou Inter-relacionamento

    Esse tema foi abordado a partir do relato de problemas de relacionamento com os quais os próprios adolescentes conviviam, além de outras dinâmicas de grupo. Alguns exemplos de falas queixosas dos participantes foram: “Quando tem alguém olhando, ela (funcionária) dá bronca e fala comigo gritando. Agora, se não tiver ninguém, ela me trata normalmente” ou “Qualquer probleminha com a gente no trabalho, todo mundo fica sabendo. Eu preferia que o meu chefe falasse direto comigo”.

    Nessas situações, o próprio grupo colaborou para a busca de soluções possíveis para resolver as situações de queixa, baseando-se geralmente em situações semelhantes já vividas por eles. A estagiária tentou proporcionar autonomia e independência aos participantes ao sugerir a procura por diálogo e comunicação como forma para resolução dos problemas trazidos. Esse tipo de intervenção procurou atuar em algumas dimensões citadas por Hackman e Oldhan (1975) como influenciadoras da qualidade de vida no trabalho. A busca do iniciante por um diálogo com a pessoa envolvida na queixa cria oportunidades para obtenção de um feedback extrínseco de outro funcionário ou de seu supervisor sobre a situação ocorrida e seu desempenho. Além disso, outras variáveis de contexto são modificadas, como: o ambiente social em que o adolescente está inserido pode se tornar mais cordial e a supervisão recebida adquire qualidade superior.

    A abordagem de assuntos referentes a relacionamento interpessoal no trabalho e fora dele (comunicação, feedback, preconceito, discriminação, percepção) proporcionou aos participantes o desenvolvimento de competências interpessoais. A importância no desenvolvimento dessas habilidades é enfatizada por Moscovici (1985). Mauro, Giglio e Guimarães (2000) também defendem a idéia de que o espaço do trabalho deve servir para aprendizagem de novas habilidades e talentos e, principalmente, de que estas aprendizagens favorecem a saúde mental dos adolescentes trabalhadores.

    Durante a reunião em que esse assunto foi abordado, os adolescentes demonstraram compreensão dos conteúdos. Exemplos disto são: “quando a gente rotula as pessoas, é como se as pessoas fossem sempre iguais e não pudessem mudar. Não é bom fazer isto” (sic) e “a gente aprendeu que tem que respeitar o jeito de cada pessoa, porque todo mundo é diferente”.

    As avaliações realizadas na última reunião do grupo apontam que as discussões no tema relacionamento interpessoal colaboraram para alteração das relações sociais dos adolescentes no trabalho, principalmente, tornando as relações mais afetuosas e percebidas como dinâmicas e passíveis de modificação. Algumas falas exemplificam isso: “passei a sentir coisas que não sentia, companheirismo”, “o grupo ajudou a sentir uma amizade maior, uma liberdade para fazer brincadeiras entre si e uma liberdade maior”, “nós passamos a sentir que somos mais importantes que antes e a pensar nos outros”, “eu me entrosei mais”, “o grupo ajuda no relacionamento com outras pessoas” e “eu aprendi a conhecer melhor as pessoas antes de agir”.

    Papel educativo do supervisor

    Nas reuniões em que houve a participação dos supervisores, o papel educativo destes foi esclarecido perante os adolescentes e discutido. Algumas falas dos supervisores exemplificam: “procuro sempre estar indicando ao H. (nome do adolescente) o que ele pode melhorar” ou “minha formação e atuação como professora de português no período noturno facilita minha relação com o N. (nome do adolescente), principalmente por manter um espaço aberto para conversar sobre dificuldades”.

    Os supervisores utilizaram o espaço das reuniões para esclarecer expectativas e sugestões no que se refere ao trabalho desempenhado pelos iniciantes: “Os iniciantes não devem seguir exemplos de funcionários impontuais e devem sempre estar procurando aprender atividades novas quando não têm trabalho”, “me incomodo com a aglomeração de iniciantes no malote, eles se encontram e ficam conversando”, “é preciso que os adolescentes mostrem um bom trabalho para que possam continuar na empresa, mas, esta não é a única condição, é necessário também que haja vagas”.

    Conhecer as expectativas dos superiores para com o trabalho realizado é algo importante para o desempenho de uma função. Esclarecer essas expectativas pode possibilitar uma mudança de comportamento por parte dos adolescentes ou uma argumentação contrária. Ainda, o indicativo de que fazer um bom trabalho pode colaborar para a manutenção do contrato de trabalho após os 18 anos completos é uma informação importante, já que está diretamente ligada às variáveis de contexto denominadas por Hackman e Oldhan (1975) como possibilidade de crescimento e segurança no trabalho.

    Outro resultado obtido nas reuniões com alguns dos supervisores refere-se ao fato de admitirem, perante a estagiária e os adolescentes, que proporcionar aos iniciantes uma rotatividade de funções, tarefas e alocação seria uma medida interessante para a saúde mental dos mesmos e a aprendizagem de novas habilidades. Isso pode ser notado na seguinte colocação de um supervisor: “A rotatividade de funções, no cargo de iniciante, seria muito interessante, você (estagiária) deveria tentar implementar essa idéia.” Foi possível, com isso, agir politicamente, tendo em vista o desenvolvimento de uma maior variedade de habilidades e talentos aos adolescentes.

    Esse espaço de discussão entre adolescentes e supervisores proporcionou condições para recebimento de feedbacks extrínsecos aos participantes e de esclarecimentos sobre as possibilidades de crescimento profissional dentro da organização, fatores citados por Hackman e Oldhan (1975) como importantes para a qualidade de vida dos indivíduos.

    Os incentivos à comunicação aberta entre iniciantes e chefia, seja encaminhando-os para buscar um diálogo efetivo, seja proporcionando espaço de diálogo nas reuniões, podem contribuir para o desenvolvimento futuro de uma postura mais crítica e autônoma do iniciante perante as normas, horários e responsabilidades impostas pela empresa e também frente a outras situações. Uma postura semelhante a esta é indicada como necessária e saudável por Mauro, Giglio e Guimarães (2000).

    Os adolescentes mencionaram os seguintes conteúdos ao avaliar o que haviam aprendido durante as reuniões em que os supervisores estavam presentes: “na reunião passada os chefes vieram aqui e contaram como foi a carreira deles, a gente perguntou um monte de coisa pra eles”, “a gente aprendeu como é o chefe e o que eles esperam da gente”.

    Interdependência dos setores da empresa

    Em algumas reuniões foram apresentados os processos produtivos da empresa, departamentos, funções desempenhadas por trabalhadores e a importância do trabalho de iniciantes. Acredita-se que essas intervenções possam ter colaborado para o desenvolvimento dos adolescentes ao ensinar, de forma global e menos fragmentada, a relação de seu trabalho com o produto final obtido. Além disso, a organização foi compreendida como um sistema composto por partes inter-relacionadas e interdependentes.

    Observou-se que os iniciantes passaram a perceber a importância do trabalho que realizam em determinado setor empresarial. Algumas falas exemplificam isso: “em cada reunião um iniciante conta sobre o seu setor”, “é o mesmo que trabalho em grupo, pensar juntos para trabalhar melhor” e “o encontro de hoje foi bom para entender que todos nós somos importantes para o funcionamento da empresa”.

    As discussões realizadas ao abordar esse tema contribuíram para ampliar a visão sistêmica dos adolescentes, mostrando as inter-relações entre os setores da empresa e entre os diversos trabalhos realizados. Além disso, podem vir a modificar o grau de importância, valor e significado atribuído pelo adolescente ao trabalho que realiza, assim como o nível de responsabilidade percebido nas tarefas que realiza e a ampliação do conhecimento dos reais resultados de seu trabalho (Hackman & Oldhan, 1975).

     

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    A orientação ocupacional e o acompanhamento a adolescentes trabalhadores são ações possíveis a profissionais de psicologia alocados em organizações e, por se tratarem de práticas inovadoras neste contexto, se caracterizam como práticas emergentes. Entretanto, é importante ressaltar que intervenções dessa natureza requerem vontade política de profissionais ligados a áreas de desenvolvimento de pessoas.

    Nesse contexto, cabe ao psicólogo ser um agente de mudanças. Isso implica relacionar-se, comunicar- se e influenciar politicamente, tendo em vista as mudanças necessárias nos espaços organizacionais (Zanelli, 1994). Especificamente na área de saúde mental, o psicólogo necessita perceber-se enquanto um profissional da saúde comprometido com a qualidade de vida da população que atende (Zanelli, 1994). É importante enfatizar, neste sentido, a dificuldade encontrada em um trabalho como esse, já que poucas iniciativas nesse tema têm sido publicadas. Há necessidade de trabalhos semelhantes a este ou relacionados à pesquisa em saúde mental de adolescentes trabalhadores.

     

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    Recebido: 17/05/04
    1ª revisão: 03/11/04
    Aceite final: 22/11/04

     

     

    1 Endereço para correspondência: A/C Departamento de Psicologia. Avenida Engenheiro Luiz Edmundo Carrijo Coube, s/n, 17033-360. Bauru, SP. Fone(s) (14) 3103 6087 / 6097, Fax: (14) 3103 6071. E-mail: elainebressan@yahoo.com.br

     

    Sobre os autores
    * Elaine Luiza Bressan é psicóloga formada em 2003 pela Universidade Estadual Paulista - Unesp/Bauru. Atualmente trabalha como Analista Trainee na área de Desenvolvimento de Recursos Humanos de empresa de grande porte no segmento de produtos eletroeletrônicos, na cidade de São Paulo.
    ** Ana Maura Azevedo de Godoy é psicóloga formada em 2002 pela Universidade Estadual Paulista - Unesp/Bauru. Atualmente, trabalha como psicóloga no Centro de Estudos e Atendimento Terapêutico Interdisciplinar na cidade de Bauru - São Paulo.
    *** Maria Cristina Frollini Lunardelli é doutora em Educação, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual Paulista - Unesp/Bauru, na área de Psicologia Organizacional e do Trabalho.

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