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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof v.8 n.2 São Paulo dez. 2007

 

SEÇÃO ESPECIAL

 

Desenhos de profissionais com estórias: desenvolvimento e características psicodinâmicas1

 

Drawings featuring professionals at work and story telling: development and psychodynamic characteristics

 

Dibujos de profesionales con historias: desarrollo y características psicodinámicas

 

 

Caioá Geraiges de Lemos* 2

Universidade de São Paulo, São Paulo

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta uma nova versão do Procedimento de Desenhos-Estórias, denominado Procedimento de Desenhos de Profissionais com Estórias &– DP-E, assim como as principais características psicodinâmicas encontradas ao longo da seqüência dos pedidos. Este instrumento de avaliação psicológica foi desenvolvido com o objetivo de investigar os aspectos psicológicos das escolhas profissionais de adolescentes no atendimento em Orientação Profissional. Nesta variação temática do Procedimento, os adolescentes foram solicitados a desenhar e contar estórias de profissionais em quatro diferentes situações: (1) um profissional fazendo alguma coisa, (2) um profissional realizado, fazendo alguma coisa; (3) um profissional em crise, fazendo alguma coisa e (4) você, na sua profissão futura, fazendo alguma coisa. A amostra foi composta de 40 alunos de ambos os sexos da 3ª série do Ensino Médio provenientes de escolas públicas e particulares da cidade de São Paulo. Os resultados mostram que o DP-E suscita questões relacionadas ao desejo na vida profissional (primeiro pedido), ao ideal de ego (segundo pedido), ao temor da perda desse ideal (terceiro pedido) e finalmente, no quarto pedido à possibilidade de elaboração das questões anteriormente propostas e a projeção de si mesmo enquanto profissional no futuro.

Palavras-chave: Adolescente, Orientação profissional, Avaliação psicológica, Desenhos de profissionais com estórias.


ABSTRACT

This article presents a new version of the Stories and Drawing Procedure, the Drawing Professionals at work and story telling procedure, as well the main psychodynamic characteristics that emerge along the sequence of requests. This tool was developed to investigate psychological aspects of career choice by teenagers in vocational guidance. In this thematic variation of the Procedure, the teenagers were requested to draw and tell stories of professionals in four different situations: (1) doing something; (2) a successful professional doing something; (3) a professional going through a crisis, doing something and (4) you doing something in your future career. The sample consisted of forty male and female students, from the 12th grade, from public and private schools in São Paulo-Brazil. The results showed that the DP-S triggers career related issues: career ambition (first request), the ego ideal (second request), the fear losing of this ideal (third request), and, finally, in the fourth request, the possibility of elaboration of the questions previously proposed as well as the self-image projection as a future professional.

Keywords: Teenagers, Vocational guidance, Psychological assessment, Professional’s drawings with stories.


RESUMEN

Este artículo presenta una nueva versión del Procedimiento de Dibujos-Historias, denominado Procedimiento de Dibujos de Profesionales con Historias (DP-H), así como las principales características psicodinámicas encontradas a lo largo de la secuencia de los pedidos. Esta prueba fue desarrollada con el objetivo de investigar los aspectos psicológicos de las elecciones profesionales de adolescentes para la atención en Orientación Profesional. En esta variación temática del Procedimiento se solicitó a los adolescentes que diseñaran y contaran historias de profesionales en cuatro diferentes situaciones: (1) un profesional haciendo algo, (2) un profesional realizado, haciendo algo; (3) un profesional en crisis, haciendo algo y (4) ellos mismos, en su profesión futura, haciendo algo. La muestra estuvo compuesta de 40 alumnos de ambos sexos de 3er año de enseñanza media provenientes de escuelas públicas y privadas de la ciudad de São Paulo. Los resultados muestran que el DP-H propone cuestiones relacionadas con el deseo en la vida profesional (primer pedido), con el ideal del yo (segundo pedido), con el temor de la pérdida de ese ideal (tercer pedido) y finalmente, con la posibilidad de elaboración de las cuestiones anteriormente propuestas y la proyección de la auto-imagen como profesional en el futuro, en el cuarto pedido.

Palabras clave: Adolescencia, Orientación profesional, Evaluación psicológica, Dibujos de profesionales con historias.


 

 

As técnicas projetivas são importantes recursos de comunicação indireta com crianças e adolescentes, sendo especialmente facilitadoras no trabalho onde a comunicação verbal direta nem sempre se mostra suficiente para a coleta do material necessário para a realização de um bom diagnóstico (Trinca, 1987).

Segundo Van Kolck (1984), testes projetivos propiciam ótimas condições para o diagnóstico da personalidade, “( . . .) possibilitam a manifestação mais direta de aspectos que o sujeito não tem conhecimento, não quer ou não pode revelar, isto é, aspectos mais profundos e inconscientes, pois são um meio menos usual de comunicação do que a linguagem, e têm um conteúdo simbólico menos reconhecido”. (Van Kolck, 1984, p. 2). Para esta autora, quando um desenho é produzido, além da projeção, outros mecanismos como a identificação e a introjeção podem também se manifestar.

Conforme destaca Bohoslavsky (1977/1993), a elaboração do diagnóstico em Orientação Vocacional/Profissional requer um bom conhecimento da dinâmica interna do orientando. Não compreende apenas os conflitos e dificuldades referentes à escolha de uma carreira ou trabalho, mas envolve conhecimentos da dinâmica de personalidade como um todo, sem, entretanto, perder de vista o enfoque do trabalho do orientador: a problemática vocacional, ou seja, quais os principais conflitos envolvidos em relação ao processo de escolha profissional.

Ao lado disso, Uvaldo (1995) refere o trabalho de intervenção em Orientação Profissional (OP) como uma psicoterapia breve cujo foco é a escolha profissional. Nesse sentido, dado o limitado tempo existente para o trabalho (em torno de 8 a 10 encontros), faz-se necessário uma maior agilização do processo para a elaboração do diagnóstico em OP.

Trinca (1987) explica que as técnicas projetivas gráficas, além de serem utilizadas como recurso de avaliação diagnóstica clínica, são também utilizadas como instrumento de investigação de uma determinada população em relação a uma determinada área de ajustamento (familiar, profissional, psicossexual, auto-imagem, etc).

Ciente destas questões, a autora do presente artigo elaborou uma variação do Procedimento de Desenhos-Estórias (D-E) proposto por Trinca (1987), que aborda as questões profissionais vivenciadas pelos adolescentes em fase de escolha da carreira: O Procedimento de Desenhos de Profissionais com Estórias (DP-E), cujo desenvolvimento e características são apresentados a seguir.

Trinca (1987) apresenta uma abordagem de avaliação diagnóstica composta pela associação de técnicas projetivas gráficas e temáticas, sendo formada pela associação de processos expressivo-motores (desenhos) e processos aperceptivos-dinâmicos (verbalizações temáticas): O Procedimento de Desenhos-Estórias (D-E), composto por cinco unidades de produção, cada uma formada por desenho livre, estória, inquérito e título.

Trinca (1989) propõe, posteriormente, uma variação do Procedimento: o Desenho da Família com Estórias (DF-E). Nesta nova versão, o indivíduo é solicitado a desenhar quatro tipos diferentes de famílias em diferentes situações; após cada desenho precisará contar uma estória e dar um título à mesma. As situações são as seguintes: 1) Desenhe uma família qualquer, 2) Desenhe uma família que você gostaria de ter; 3) Desenhe uma família em que alguém não está bem e 4) Desenhe sua família.

Outros estudos realizados por Aiello-Tofolo e Machado (1991, 1993) exploraram as variações temáticas do Desenho Livre com Estórias. Foram introduzidos temas específicos a fim de realizar pesquisas, entre outras, sobre representações sociais de alcoolistas sobre a bebida e representações sociais de profissionais de saúde sobre deficiências.

Deste modo, baseada nas variações de tema dos Desenhos-Estórias (D-E) e nas proposições sugeridas por Trinca (1989) no Desenho da Família com Estória (DF-E), a autora elaborou o Procedimento de Desenhos de Profissionais com Estórias (DP-E), com o objetivo de compreender as relações intrapsíquicas e os conflitos profundos vividos por adolescentes em relação às questões vocacionais.

No DP-E o adolescente é solicitado a desenhar profissionais e a contar estórias nas diferentes situações a seguir: 1) Desenhe um profissional fazendo alguma coisa; 2) Desenhe um profissional realizado, fazendo alguma coisa; 3) Desenhe um profissional em crise, fazendo alguma coisa e 4) Desenhe você, na sua profissão futura, fazendo alguma coisa.

Esta variação do Procedimento se diferencia das versões que o originaram em dois aspectos:

1) Introduziu-se o pedido “fazendo alguma coisa”, para conferir um aspecto mais dinâmico às unidades de produção, já que as questões relativas ao trabalho envolvem algum tipo de atividade, portanto, pressupõem uma ação. Segundo Klepsch e Logie (1984), as ações nos desenhos que representam graficamente um movimento assumem significância, são mais ricos do ponto de vista projetivo e são um aspecto a mais a ser analisado dentro do contexto específico em que foi feito o desenho. De acordo com Buck (2003) a interpretação do movimento em um desenho envolve a compreensão de sua intensidade, força e até mesmo violência. Considera-se também o prazer ou desprazer envolvidos no movimento e o grau em que o movimento é voluntário ou alheio à figura humana. Van Kolck (1984) sugere que a presença de movimento voluntário é indicador de grande mobilidade psíquica, capacidade mental, ação, contato social e adaptação à realidade.

2) Os pedidos solicitam ao sujeito que realize projeções relacionadas ao futuro profissional, os três primeiros pedidos indiretamente e o quarto pedido de forma mais direta.

Ao lado disso, ao longo da seqüência dos pedidos do DP-E são propostas diferentes questões relacionadas ao desempenho de papéis profissionais adultos. Nesse sentido, o DP-E requer do adolescente que este se aproxime destas questões e as confronte com a imagem que possui de seu futuro profissional.

Silva (1989) afirma que a análise da seqüência permite identificar o movimento do indivíduo ao longo do teste. Como ele se adapta à situação, como a ansiedade interfere em sua produção, quando e como ele se permite entrar em contato com a fantasia, com o desejo, quando se retrai, quando se perturba, como reage aos conflitos e como faz para lidar com eles. Esta análise requer uma visão mais global do protocolo, supõe uma certa familiaridade com o instrumento e um raciocínio clínico mais desenvolvido.

O objetivo deste trabalho é apresentar uma nova técnica para a área de Orientação Profissional (OP). Buscou-se também apresentar as principais características psicodinâmicas dos pedidos do DP-E ao longo de sua seqüência.

 

Método

Sujeitos

Participaram da presente pesquisa 40 adolescentes, de ambos os sexos, estudantes da 3ª série do Ensino Médio de escolas públicas e particulares da zona oeste da cidade de São Paulo. As idades variaram entre 16 e 19 anos.

Material

Para a coleta de dados foram utilizados os seguintes instrumentos:

Um questionário elaborado pela autora, para o levantamento de dados pessoais dos sujeitos, contendo perguntas acerca das dúvidas e interesses dos adolescentes em relação às suas escolhas profissionais, ocupação dos pais e irmãos, composição e renda mensal familiar.

O roteiro de aplicação do Procedimento de Desenhos de Profissionais com Estórias que se encontra como Anexo A do presente manuscrito. Foram utilizadas folhas de papel sulfite para os desenhos e anotações das estórias, lápis preto no. 2, borracha e apontador. Esta nova versão difere da original por não utilizar lápis de cor e introduzir o uso da borracha. A autora verificou nas aplicações piloto da técnica que o lápis de cor é pouco utilizado por essa população, sendo este um aspecto pouco relevante a ser considerado na análise do material. A borracha foi introduzida devido ao fato do DP-E solicitar desenhos de figuras humanas, e na literatura disponível que avalia o desenho da figura humana (Buck, 2003; Hammer, 1981; Van Kolck, 1984) a borracha é incluída, sendo seu uso um aspecto a mais a ser analisado.

Procedimento de Coleta dos dados

A pesquisadora fez contato com as diretorias das escolas, tendo utilizado como critério para a seleção destas a proximidade da universidade onde a autora realizava sua pesquisa de mestrado. Foram sorteados dois a quatro alunos por classe dependendo do número de classes existentes na série. Os sorteios foram feitos pelo número de chamada.

Aos adolescentes sorteados era explicado que participariam de uma pesquisa sobre adolescência e escolha profissional, e que teriam que realizar desenhos para tanto. Caso não concordassem em participar era sorteado o número de chamada subseqüente e efetuado o mesmo procedimento. As aplicações do DP-E foram realizadas individualmente, agendadas conforme disponibilidade do adolescente e da sala disponibilizada pela escola para tanto.

Após ter sido estabelecido o rapport, foi entregue o Consentimento Livre e Esclarecido de Pesquisa; posteriormente foi aplicado o questionário de dados pessoais. Após o questionário, iniciou-se a aplicação do DP-E.

O tempo de aplicação foi, em média, de uma hora e meia. Caso a aplicação se alongasse além desse tempo, era agendado um novo dia para a conclusão da coleta dos dados. A interrupção da aplicação sempre ocorria ao término de uma unidade de produção, para não prejudicar o processo elaborativo do sujeito. Na segunda sessão de aplicação, os desenhos realizados eram mostrados e as estórias eram lidas novamente para que o sujeito relembrasse o que produziu até então.

Ao término da aplicação era oferecida ao sujeito uma breve devolutiva a respeito das informações mais relevantes observadas durante a aplicação. A coleta dos dados foi realizada pela autora do presente trabalho.

Procedimento para Análise dos Dados

Todo o material coletado foi analisado juntamente com uma psicóloga supervisora familiarizada com o trabalho de avaliação de técnicas projetivas em geral. O referencial de análise adotado foi o proposto por Van Kolck (1984), em termos dos aspectos adaptativos, expressivos e projetivos. Para avaliação dos aspectos adaptativos buscou-se verificar se o produto apresentado estava de acordo com o solicitado ou proposto, com a evolução geral do grafismo em relação à idade do sujeito, sexo, nível sócio econômico e cultural. Para avaliação dos aspectos expressivos analisou-se o significado dos aspectos gerais do desenho partindo-se do princípio básico de que o desenho representa o indivíduo e a folha de papel, o ambiente: posição da folha, localização do desenho na página, tamanho do desenho em relação à folha, tipo de linha, consistência do traçado, atitudes em relação ao desenho, indicadores de conflito (omissões, borraduras, sombreamentos, etc). Para a análise dos aspectos projetivos buscou-se identificar os fenômenos inconscientes que incluem a dinâmica encoberta de conflitos, a estrutura e a organização latentes da personalidade. Para tanto foram levantadas as características atribuídas aos profissionais que os sujeitos escolheram desenhar em cada pedido: os temas retratados, o maior ou menor realismo das estórias, os desenlaces de suas tramas, o desempenho das figuras identificatórias, o manejo do tempo, as características do Ideal de Ego e do Superego, motivações dominantes, reações ao ambiente, natureza dos conflitos, mecanismos de defesa, entre outros. Para a análise do significado dos aspectos de conteúdo utilizou-se também o referencial teórico clínico para a área de Orientação Profissional proposto por Bohoslavsky (1977/1993).

Preliminarmente cada unidade de produção (Desenho + Estória + Inquérito + Título) foi examinada segundo a estratégia holística de livre inspeção proposta por Trinca (1987), tendo sido realizadas sínteses por unidade de produção a partir dos aspectos descritos anteriormente e uma síntese global das quatro unidades.

Posteriormente, as sínteses parciais e totais de cada avaliação individual foram relacionadas às informações contidas no questionário de dados pessoais e observações de aplicação.

Uma vez concluídas as análises individuais, a autora procurou estudar as características específicas da técnica em si, comparando cada uma das quatro unidades de produção de todos sujeitos da amostra. Foram identificados os temas mais comuns retratados em cada pedido e os tipos de conteúdo mobilizados, conforme explicado anteriormente. Foram observadas as regularidades nos dinamismos de cada pedido, buscando-se encontrar um “denominador comum” a cada um deles e como cada pedido poderia influenciar os demais. Foram utilizados os critérios propostos por Silva (1989), para a análise da seqüência do DP-E. No presente estudo são apresentadas algumas unidades de produção consideradas ilustrativas dos denominadores comuns presentes em cada pedido, conforme identificados nas análises dos 40 protocolos.

Finalmente, a autora procurou fundamentar teoricamente as características encontradas, buscando, para tanto, o referencial psicanalítico para esta articulação.

 

Resultados e Discussão

A seguir são apresentadas as análises das principais características de cada pedido do DP-E e os tipos de respostas que desencadeiam. Para exemplificá-las são apresentadas algumas unidades de produção (desenhos mais estórias) de alguns sujeitos. Os nomes citados são fictícios para preservar suas identidades.

Primeiro Pedido: Desenhe um profissional, fazendo alguma coisa.

Neste pedido parece haver uma associação mais imediata com profissionais emprestados do cotidiano dos sujeitos. Eles desenham profissionais com quem convivem direta ou indiretamente (professores, médicos, veterinários, policiais, profissões dos pais ou parentes, etc) ou que fazem parte do cotidiano através da influência da mídia: (artistas de novelas, apresentadores de jornal televisivo, corredores de Fórmula 1, jogadores de futebol, etc).

Por se tratar de “um profissional qualquer”, a questão do prazer na profissão é colocada mais livremente neste pedido: as estórias possuem conteúdos mais idealizados e fantasiosos que nos pedidos posteriores, as respostas parecem estar mais relacionadas à expressão do desejo em termos mais utópicos, as exigências com relação ao desempenho da profissão são menos consideradas. Ainda assim, o sujeito pode perceber neste pedido a impossibilidade da concretização do desejo que está sendo manifestado e expressar todo o conflito decorrente desta situação percebida.

Este pedido parece conter mais aspectos de Ego ideal (ego do narcisismo), definido por Laplanche e Pontalis (1992) como um ideal narcísico de onipotência forjado a partir do modelo de narcisismo infantil. Nesse sentido, as estórias apresentam desenlaces bastante idealizados, alguns até mesmo onipotentes, já que é o pedido que está mais relacionado ao sonho, onde tudo é possível.

A seguir é apresentado um exemplo de desenho- estória do primeiro pedido:

Estória: “Um jogador de futebol né... um jovem sempre sonhou em jogar bola, sempre se dedicou, estudou, não terminou os estudos, sempre sonhou e largou a escola para tentar a vida jogando bola. Saía cedo de casa pra ir pra essas “peneiras’, falava pro pai que ia pra escola e ia pra essas peneiras, daí até que um dia entrou num time, aí ele contou pro pai que ia parar de estudar e tentar a vida como jogador. ... (e o que mais?) Ele tá jogando num time, não dos melhores, mas já conseguiu pelo menos um time pra jogar, um salário razoável, tá jogando em campeonato e pretende melhorar, procura outros times melhores. (Como termina?) Termina? Ah, ele consegue fechar contrato com um time lá no exterior, ele viaja pros EUA. (...)” Título: O gol da felicidade.

Nesta estória, o desejo parece estar relacionado a romper com os padrões familiares, afastando- se do caminho traçado de profissionalização por meio dos estudos e da educação formal. O adolescente tenta arriscar uma profissão não convencional e cheia de riscos, entretanto, muito prazerosa. O desejo do sujeito seria conseguir construir um caminho próprio, diferente do caminho traçado pelos ideais familiares; ser capaz de correr o risco para realizar o sonho de conseguir seguir a profissão de jogador de futebol.

A figura humana foi colocada em um plano que sugere que o observador se encontra acima do desenho, que pode ser compreendido como um certo distanciamento da situação proposta, embora exista um forte desejo em relação à mesma. De fato, a estória refere-se a um desejo utópico, está mais relacionada a um sonho que às demandas da realidade. A seguir é apresentado outro exemplo:

Estória: “É um professorzão, ele tá dando uma aulinha pra molecada, ah, que mais, sei lá, a galera tá gostando de assistir, não sei (risos), não sou muito bom pra isso. (...) (Idade) 28 anos. (Qualidades do profissional?) É engraçado, faz humor com os alunos, sabe ouvir, não se prende só ao profissional, não é chato, se preocupa com os alunos, mesmo fora da sala, dá uma aula boa, o pessoal acaba gostando dele mesmo assim. (Defeitos do profissional?) Ele chega atrasado, como profissional ele chega atrasado, demora pra devolver as provas e, às vezes, esquece de explicar alguma coisa importante. (Coisas que mais gosta na profissão?) De dar aula, poder passar para as pessoas, ajudando o futuro da molecada. Quando ele chega ele tem prazer em dar aula. (Coisas que menos gosta na profissão?) Não gosta de ter que lidar com diretor, ele dá de um jeito não tradicional e o diretor se mete (...)”. Título: Um dia do cotidiano.

Nesta estória o sujeito se identifica com a figura de um professor, porém em suas características de companheirismo, amizade, afetividade, “um professorzão”. Entretanto, o professor é um bom profissional por ser extremamente afetivo com seus alunos, mas não é competente em relação às funções exigidas pelo cargo. O desejo deste adolescente parece estar relacionado a encontrar uma atividade profissional onde ele possa expressar sua afetividade e não precise ficar preso às atividades burocráticas e rotineiras; identifica-se com um profissional que tem uma maneira não convencional de exercer sua função.

No desenho, o profissional conserva características adolescentes, o que denota que a identidade está mais calcada nestes aspectos. A ausência de traços faciais revela a dificuldade em ver-se realizando uma atividade profissional.

Segundo Pedido: Desenhe um Profissional Realizado, fazendo alguma coisa.

O pedido “profissional realizado” aparece fortemente associado a como fazer para conciliar o desejo, colocado no primeiro desenho, com as demandas da realidade. Parece haver uma identificação maior com o discurso familiar, com o que se espera socialmente do sujeito em termos de gênero, nível sócio-econômico e com as suas próprias expectativas. Por isso verifica-se que este pedido está fortemente associado ao conjunto Superego- Ideal de Ego (Nijamkin & Braude, 2000).

Freud (1923/1976) define o ideal de ego como uma instância de personalidade que responde por tudo o que é esperado da mais alta natureza do homem: a religião, a moralidade e o senso social. O ideal de ego constitui-se em um modelo ao qual o ego procura conformar-se, sendo resultante da convergência do narcisismo (idealização do ego) e das identificações com os pais, com seus substitutos e com os ideais coletivos.

Laplanche e Pontalis (1992) observam que os conceitos de Ideal de Ego e Superego encontrados na obra “O Ego e o Id” de Freud (1923/1976) aparecem como sinônimos e como uma só instância psíquica, entretanto, surgem diferenciações posteriores ao longo de sua obra. Para os autores estas diferenciações não ficam claras.

Bergeret (1991) realiza uma distinção entre estes dois conceitos situando a formação de ambos em diferentes momentos do desenvolvimento do indivíduo. Para este autor, a função do ideal de ego já se acha fortemente investida durante o período pré-edipiano, sendo bem mais arcaico que o superego, que é herdeiro e sucessor do complexo de Édipo.

Nijamkin e Braude (2000) utilizam o termo “Conjunto Superego-Ideal de Ego” e o definem como critério de desenvolvimento emocional e cognitivo do sujeito. As autoras consideram um conjunto Superego-Ideal de Ego maduro quando há uma adequada distância entre as metas traçadas pelo indivíduo e as possibilidades de concretização, ou seja, as exigências estão de acordo com as possibilidades do sujeito. Para tanto, é necessário que haja autoconhecimento e uma avaliação adequada das próprias habilidades e da realidade em que se encontra inserido.

Um conjunto Superego-Ideal de Ego primitivo e imaturo ocorre quando há acentuada distância entre metas propostas e possibilidades de concretizá-las. Neste caso há uma avaliação distorcida das próprias habilidades (auto-imagem) e das possibilidades oferecidas pela realidade.

Quando o ideal de ego do sujeito é muito elevado e distante em relação às possibilidades percebidas pelo ego, o superego tende a ser muito punitivo e pode paralisar o sujeito (impotência) ou deixá-lo onipotente, ao invés de mobilizá-lo para alcançar seus objetivos.

Quando o ideal de ego está mais próximo, o superego torna-se mais condescendente, o sujeito mobiliza-se para alcançar seus objetivos, há, portanto, maior possibilidade de construção de um percurso profissional.

Portanto, este conjunto tende a se tornar progressivamente mais realista à medida que haja uma integração de aspectos bons e maus, ou seja, à medida que o indivíduo possa tolerar os fracassos, as punições esperadas sejam moderadas e as exigências estejam mais de acordo com as possibilidades do sujeito e daquelas que a realidade oferece.

Soares-Lucchiari (1997) destaca que o ideal de ego está vinculado à noção de projeto. “Um projeto não pode existir sem modelos identificatórios que organizem o futuro do indivíduo, deve, portanto, apoiar-se nas identificações aos pais e aos ideais coletivos. Entretanto, todo projeto verdadeiro não pode ser elaborado somente pela influência do ambiente (família, grupos de pares, escola) e da realidade com suas possibilidades concretas; ele deve permitir também a manifestação do desejo, do princípio do prazer.“O projeto contém representações de si, imagens, desejos e objetos de identificação. Isto supõe uma construção e uma elaboração”. (Soares-Lucchiari, 1997, p. 80). Para a autora, um projeto que não permite a emergência do desejo torna-se uma hiperadaptação à realidade, com todas as conseqüências negativas decorrentes. Do grau de desenvolvimento alcançado pelo Ego e pelo conjunto Superego- Ideal de Ego depende a possibilidade, ou não, de realização de um projeto de vida adequado em termos profissionais. A vivência de um processo de OP pode auxiliar o jovem na construção desse projeto na medida em que possibilita uma maior aproximação de uma imagem de si mesmo como adulto. Cabe ao orientador corrigir possíveis distorções, tanto relativas à auto-imagem, quanto à realidade ocupacional, auxiliando-o a desenvolver um Conjunto Superego-Ideal de Ego mobilizador para a construção de um projeto profissional amadurecido.

Nesta segunda unidade de produção do DPE, a questão que se coloca é: como fazer para se obter a realização profissional neste mundo do trabalho tal qual existe? Aparece neste pedido a questão da possibilidade, ou não, de realização do desejo na profissão, se é possível obter satisfação e retorno financeiro com a mesma (questão esta que já pode ter sido levantada pelo sujeito no primeiro pedido). É necessário, portanto, que o desejo (colocado mais livremente no pedido anterior) seja confrontado com a realidade, que se pense em possibilidades de como fazer para conseguir isso. A vinculação com a realidade implica em uma certa renúncia ao prazer. A figura 3 é apresentada como exemplo e refere-se ao mesmo sujeito que desenhou o jogador de futebol descrito na figura 1.

 

 

Figura 1. João, 19 anos, escola pública

 

 

Figura 2. Paulo, 18 anos, escola particular

 

 

Figura 3. João, 19 anos, escola pública

Estória: “Ele é um empresário ... um empresário que montou uma empresa, né?, uma empresa de fraldas, ... se deu bem na vida, tá com a família, tem filho, sua casa própria, seu carro ... ele tá só continuando sua carreira, administrando suas coisas, fazendo mais investimento e ganhando mais dinheiro. (...) (Idade) Tá com 30 anos. (Como chegou a ser o que é?) Estudou, estudou muito, fez faculdade, fez os estágios, daí nesses estágios ele foi juntando dinheiro e foi investindo na empresa quando terminou a faculdade. (Como assim?) No estágio ficou bastante tempo, foi efetivado, mas na cabeça ele já tinha um objetivo que era ter seu próprio negócio, aí ele começou aos poucos, viu uma oportunidade quando ele pensou em fazer fralda, sempre tem alguém que vai precisar, numa família sempre é uma necessidade. Começou na garagem de casa, tipo fundo de quintal, comprando máquinas simples, material simples, aí ele foi juntando dinheiro e viu que tava dando certo, foi pra um galpão, contratou funcionário, comprou máquinas melhores, material melhor. Ele, e a mulher dava uma ajudinha (...)”. Título: Um empresário de sucesso.

Neste pedido o sujeito tende a abandonar o aspecto idealizado do primeiro pedido (jogador de futebol), observa-se que a estória é mais realista que no pedido anterior. Evidencia-se o desejo de crescer profissionalmente e tornar-se bem sucedido. Para tanto escolhe um modelo de trabalho autônomo: um microempresário que produz fraldas. O desenho procura mostrar as aquisições materiais que o profissional conquistou: carro, casa, uma valise cheia de dinheiro, o profissional aparece vestido como um importante executivo. Esta unidade de produção revela a necessidade do sujeito de corresponder às expectativas sociais em termos do que é considerado sucesso profissional para um homem.

Para que o sujeito consiga responder a este pedido é necessário que possa integrar seus interesses, capacidades, aspirações, ideais, num esforço de adequação dos mesmos às exigências do ambiente e às possibilidades oferecidas pela realidade ocupacional.

Neste pedido ocorre um questionamento a respeito do que é necessário fazer para conseguir ser realizado; observa-se que há uma tentativa de integrar os aspectos positivos e negativos, inerentes a qualquer escolha.

A partir da questão que se propõe: “um profissional realizado” e da percepção que o sujeito tem da realidade, podem aparecer diversos posicionamentos.

Alguns sujeitos não conseguem conciliar desejo e realidade e há uma renúncia ao prazer do primeiro pedido: prazer e trabalho aparecem dissociados. Esses sujeitos realizam profissionais muito idealizados no primeiro pedido e referem um prazer em termos mais utópicos: desenham corredores de Fórmula 1, jogadores de futebol. Já no segundo pedido fazem profissionais que trabalham muito, há uma superexigência de desempenho e qualificação, no entanto, o prazer não aparece na profissão, apenas nos ganhos materiais obtidos através da mesma. É comum também encontrar sujeitos que desenham profissionais realizados desfrutando do lazer; estes profissionais trabalharam arduamente para chegar aonde chegaram no primeiro pedido e agora desfrutam do lazer e dos benefícios conquistados com o trabalho árduo. Nestes sujeitos ocorre o movimento invertido, o primeiro desenho assume características superegóicas enquanto no segundo o lazer aparece como forma de gratificação.

Outros sujeitos conseguem integrar melhor o desejo às demandas da realidade; nestes, embora haja uma certa renúncia do aspecto idealizado do primeiro pedido, tende a aparecer a construção de um caminho, de um percurso profissional. A figura 4 exemplifica este grupo de sujeitos.

 

 

Figura 4: Cíntia, 18 anos, escola particular

Estória: “Esse aqui é um arquiteto que tá fazendo um projeto, fez faculdade, fez um monte de curso e hoje ele é super renomado, praticamente o que eu quero ser. Ele trabalhou bastante pra chegar onde ele tá hoje, para ter o que ele tem hoje. (...) (como termina a estória?) O cara tendo dinheiro, gostando sempre do que faz, tendo uma vida pessoal boa, porque não adianta só ter uma vida profissional.(...)”. Título: Projeto de vida.

Nesta unidade de produção, embora a adolescente relate a exigência percebida para se chegar à qualificação profissional, aparece o prazer na profissão. A vida pessoal também é considerada; nesse sentido é uma produção mais integrada que a anterior.

Terceiro Pedido: Desenhe um Profissional em Crise, fazendo alguma coisa.

O pedido para desenhar um profissional em crise é capaz de provocar grande ansiedade nos sujeitos. Eles precisam entrar em contato com o medo de não conseguir concretizar seus ideais, seus projetos de vida, colocados nos dois primeiros pedidos, lidar com a possibilidade de não dar certo e o que fazer diante disso. Este pedido representa a morte do ideal e como lidar com essa morte, ou seja, quais as formas de reação frente a essa perda.

Pode-se avaliar o modo de funcionamento do indivíduo diante da crise e das situações de conflito, quais os tipos de reações dominantes e modalidades defensivas que desencadeia.

Este terceiro pedido também está relacionado à capacidade de elaboração do conflito, à disponibilidade do indivíduo para entrar em contato (ou não) com seus conteúdos internos, sua capacidade de manter-se íntegro e suas possibilidades de mobilizar seus recursos para enfrentar e superar a crise, sem negá-la.

A questão da crise pode ser percebida de distintas maneiras: pode estar relacionada a crises do cotidiano do profissional, ou seja, a problemas ou dificuldades na rotina do mesmo. Exemplos: um profissional que precisa trabalhar muito, fazer hora extra até tarde, ou um profissional da área de criação que não consegue ter boas idéias, ou um agricultor que quebrou o seu instrumento de trabalho e precisou trabalhar dobrado com outras ferramentas para cumprir as atividades do dia, etc.

A crise pode representar a perda do ideal, a renúncia do sonho: o profissional não conseguiu ter o diploma universitário, ou estudou e conseguiu se formar em uma faculdade, mas não conseguiu emprego, etc.

Este pedido abre também um espaço para o questionamento dos modelos profissionais que o adolescente possui: questiona-se o modelo universitário como única via de inserção no mercado de trabalho, o questionamento quanto à educação formal recebida, a questão da exclusão social pela idade, sexo, categoria sócio-econômica, etc.

Exemplo: “Esse aqui estudou muito, mas não foi pra frente (...). Sei lá, estudou bastante, fez mestrado, pós-graduação, todas as coisas que poderiam qualificar o currículo e não conseguiu um emprego (...)”. Título: Desemprego.

Exemplo: “É uma pessoa que estudou bastante, fez um monte de curso, fez faculdade e não conseguiu se dar bem em nada e acabou virando um manobrista de carro, num estacionamento (...) Aí ele é uma pessoa que não é feliz, né, estudou tanto que se sente injustiçado, tem inveja dos outros (Por que ele tem inveja?) porque ele pensa: ‘pô, eu estudei tanto e não consegui arrumar emprego’ e as pessoas que estão como ele conseguiram um bom emprego e ele só conseguiu esse emprego só pra sobreviver mesmo, ganhava pouco, não era registrado (...)”. Título: À espera de um milagre.

A crise pode aparecer também relacionada ao próprio eu: uma crise vocacional por ter escolhido a profissão errada e sentir grande insatisfação no trabalho, uma crise por questionar a própria capacidade para conseguir realizar o trabalho, por adotar um estilo de vida de excessivo trabalho e se consumir de tanto trabalhar, entre outros exemplos.

Exemplo: “Um profissional que levado pela monotonia ou rotina, acabou entrando em conflito com ele mesmo e pirou, não soube conciliar uma vida pessoal com a vida profissional. (...) O cara ficou louco”. Título: Monotonia, o stress e a loucura.

Exemplo: “Acho que ela teve que optar por uma profissão que não era o que ela queria fazer, aí ... quando ... estudou... estudou, teve que trabalhar porque podia até fazer bem o serviço dela. (...) Era uma profissional frustrada. (...)”. Título: Infelicidade.

Cabe verificar a resolução que o sujeito faz da crise, se esta é considerada ou negada, se a mesma soluciona-se magicamente, se há um esforço ativo do sujeito para solucioná-la de alguma maneira, se encontra possibilidades de recuperação mesmo perdendo, ou se é uma crise que imobiliza o sujeito, na qual ele não vê possibilidades. A autora considera que a forma como o sujeito lida com a crise está relacionada a sua força de ego. A seguir são apresentados dois exemplos; o primeiro refere-se a um sujeito que consegue se recuperar da crise, mesmo perdendo; o segundo, a um sujeito que ficou imobilizado diante da mesma, para efeitos comparativos:

Estória: “Essa mulher era dona de uma empresa e essa empresa foi à falência por má administração, alguma coisa do tipo e ela ficou um tempão sem trabalho, quase passando fome, aí ela foi percebendo que ela tinha que fazer alguma coisa pra sustentar a família dela e aí ela procurou emprego e não conseguiu, aí no final ela resolveu virar empregada doméstica, que apesar de não ser o trabalho que ela merecia era melhor do que nada e ela ficou contente porque conseguiu sustentar a família dela”. Título: A virada.

 

 

Figura 5. Cíntia, 18 anos, escola particular

Estória: “Ele era dono de uma rede de papelarias que começou a não ir muito bem, devido às grandes papelarias americanas que chegaram no Brasil. Das dez que ele tinha, ele foi fechando uma por uma, e acabou sobrando apenas uma delas. A situação já tava muito ruim, quando ele chegou um dia de manhã pra abrir a loja e a loja estava inteira saqueada. Desesperado, pois não havia feito seguro, não viu outra solução se não parar na primeira esquina e tomar um porre”. Título: Sem solução.

 

 

Figura 6. Maurício, 17 anos, escola particular.

A partir da percepção de crise que os sujeitos possuem pode-se traçar um prognóstico de como este adolescente lidará com as dificuldades relativas ao exercício da profissão e da construção da carreira.

Quarto Pedido: Desenhe você, na sua profissão futura, fazendo alguma coisa.

Este pedido solicita uma projeção de si mesmo no futuro; exige, portanto, o comprometimento com este futuro. Exige também um exercício de elaboração e estruturação egóicas intensos: o indivíduo precisa vivenciar os conflitos propostos nos desenhos anteriores e conseguir integrar os vários aspectos envolvidos para conseguir responder a esta instrução.

Nos pedidos anteriores foi solicitado ao sujeito que expressasse seu desejo, que pensasse nas possibilidades para concretizá-lo considerando as demandas da realidade, que lidasse com a possibilidade de perda do ideal. O presente pedido supõe a capacidade de elaboração das questões propostas pelos pedidos anteriores, bem como uma síntese das mesmas.

Este pedido expõe também o conflito entre abandonar a situação presente (a identidade adolescente) para imaginar-se enquanto adulto, exercendo uma profissão. Está, portanto, relacionado ao crescimento, à mudança e à angústia de renunciar ao passado para arriscar o próprio desejo, às próprias expectativas, as próprias fantasias, de construir e seguir um caminho próprio no mundo adulto.

Observam-se adolescentes que não percebem ganhos no crescimento, na vida adulta, a não ser o ganho financeiro/material, que para eles não é muito palpável. Estes sujeitos tendem a apresentar nos desenhos fortes indicadores de ansiedade, bem como as estórias tendem a ser evasivas e indefinidas. Tais características podem ocorrer desde o primeiro pedido.

Pode-se verificar a capacidade de elaboração do sujeito a partir do percurso que teve ao longo dos quatro pedidos, através do aumento ou diminuição progressiva da ansiedade e dos mecanismos de defesa, bem como da capacidade do adolescente de aprofundar-se ou negar as questões que vão sendo colocadas pelo teste.

Há sujeitos nos quais se verifica pouca ou nenhuma elaboração juntamente com o incremento da ansiedade e das defesas ao longo do teste. Há outros sujeitos que entram em contato com as questões propostas pelo teste, utilizando-o como espaço de reflexão. Observa-se nestes sujeitos um movimento de elaboração do primeiro para o quarto pedidos. As últimas estórias tendem a ser progressivamente menos idealizadas, menos onipotentes, mais realistas, mais definidas e mais integradas que as primeiras. O quarto pedido relaciona-se às fantasias de resolução, termo utilizado por Bohoslavsky (1977/1993) em analogia às fantasias de cura do processo terapêutico, ou seja, como o orientando acredita que chegará à escolha da profissão ao final do processo de OP. A seguir apresentam-se dois exemplos, no primeiro houve elaboração ao longo do teste, no segundo, muito pouca.

Estória: “É uma favela... uma família bem... são alguns dos filhos dessa mulher e essa (aponta para a figura central) sou eu. Estou indo atrás de uma matéria, sou jornalista. Nessa favela é mais um trabalho de pesquisa, estou fazendo uma espécie de pesquisa sobre as condições das famílias vivendo na favela, a média dos filhos, como vive cada criança, etc. Vou entrar na casa dessa mulher, ela me recebe muito mal porque eu começo a fazer perguntas sobre a vida dela e das crianças e ela não gosta muito porque eu acabo descobrindo que as crianças trabalham. Ela fica o dia todo em casa e as crianças vendem na rua. Essas crianças do desenho que são as menores ainda não vão, mas ela tem outros quatro filhos... colhi os dados dessa casa e fui para outras. Acabei pesquisando várias casas dentro dessa favela e no final do dia voltei para a redação do jornal. Nesse dia escrevi uma reportagem para uma revista e essa revista é semanal. Isso foi só um dia de pesquisa... só vou fechar a matéria no final de semana. Eu só vou conseguir terminar depois de ir nas escolas públicas pesquisar quantas das crianças... De onde vem e visitar outras favelas, aí fecho a matéria que vai ser publicada”. Título: O começo de uma luta.

 

 

Figura 7. Priscila, 17 anos, escola particular

Estória: “Não sei ... ela era de classe média, o pai dava tudo mas ela estudou, fez uma faculdade boa de administração, começou a trabalhar com ele, aí o meu pai acabou abrindo outra firma pra ela administrar, aí eu acabei a faculdade, casei, tive dois filhos, só. (P: Do que é a firma do seu pai?) É de consertar TV, vende eletrônicos, essas coisas, aí meu pai acabou abrindo, deixou eu administrar, a firma era disso também, só que maior. (P: Como termina a estória?) Eu fico bem sucedida, independente”. Título:Vida feliz.

 

 

Figura 8. Fabiana, 18 anos, escola particular

No primeiro exemplo evidencia-se um maior envolvimento da adolescente com sua escolha profissional futura, percebe-se um maior engajamento à atividade de jornalismo, a profissional vai a campo para levantar informações para escrever sua matéria. Já no segundo exemplo, o relato é vago, pouco comprometido, não se verifica o empenho da adolescente na construção da própria carreira. As coisas são dadas pelo pai que “acaba abrindo” uma firma para ela administrar; contudo, administrar é algo indefinido, genérico, não aparecem no relato as ações da profissional em seu trabalho como administradora. A adolescente finaliza a estória com o casamento e os filhos, como uma maneira de fugir do que está sendo solicitado no pedido.

Os exemplos aqui citados buscaram ser representativos das características descritas em cada pedido. Ao lado disso, a autora procurou fundamentar teoricamente suas observações empíricas, articulando as características encontradas nos pedidos do DP-E às instâncias psíquicas de fundamentação psicanalítica.

O estudo da técnica é o ponto de partida para que sejam estabelecidos critérios de análise para o adequado uso do DP-E na área de Orientação Profissional.

Uma vez que o DP-E mobiliza conteúdos específicos em cada pedido, é possível estabelecer critérios para que se possa verificar se o adolescente apresenta maior integração ou dissociação entre o desejo e o ideal de ego, se a crise mobiliza ou paralisa o sujeito, se há flexibilidade ou rigidez do indivíduo quanto ao seu conjunto Superego- Ideal de Ego, se há capacidade de comprometimento e de elaboração das questões propostas no teste, entre outros.

 

Considerações finais

No presente trabalho foi privilegiado o estudo qualitativo da técnica de Desenhos-Estórias de Profissionais, apresentando seu desenvolvimento e a seqüência com relação à ativação dos dinamismos da personalidade.

A análise dos aspectos psicodinâmicos de cada uma das quatro unidades de produção propostas pelo DP-E permitiu verificar suas especificidades e as diferentes tarefas que solicitam do adolescente. Ao longo do teste o examinando pode projetar seus desejos, expectativas, medos e ansiedades em relação à vida profissional, além de se colocar exercendo uma atividade profissional futura.

Isto posto, o DP-E pode ser um bom recurso auxiliar, juntamente com a entrevista clínica, para a realização do diagnóstico em Orientação Profissional entre a população de adolescentes em fase de escolha da profissão. A técnica permite a coleta de um vasto e rico material em um encontro ou dois, podendo ser integrada nos encontros posteriores para esclarecer ao orientando os principais conflitos e dificuldades relativos às suas questões vocacionais. Ressalta-se que, para que haja um adequado uso do instrumento, devem ser estabelecidos critérios de análise que ofereçam parâmetros seguros para seus futuros usuários. Estudos de validade e precisão da técnica foram realizados pela pesquisadora em seu doutorado e se encontram em fase de análise no Conselho Federal de Psicologia.

 

Referências

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Recebido: 9/3/07
2ª Revisão: 8/2/08
Aceite Final: 19/3/08

 

 

1 Este artigo é parte modificada da Tese de Doutorado da autora, intitulada: “Desenhos de Profissionais com Estórias na Orientação Profissional: Estudos preliminares de Validade e Precisão”, defendida em outubro de 2006 no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Os estudos realizados encontram-se atualmente submetidos à avaliação do CFP para análise e autorização para publicação em forma de manual.
2 Endereço para correspondência: Rua Raul Pompéia, 930/142, 05025-011, São Paulo, SP. Fone: (11) 38714388. E-mail: caioalemos@uol.com.br.

 

Sobre os autores
* Caioá Geraiges de Lemos é psicóloga doutora em Psicologia do Desenvolvimento pelo Instituto de Psicologia da USP, autora do livro: Adolescência e Escolha da Profissão no mundo do trabalho atual e co-autora do livro: Orientação Vocacional: Alguns aspectos teóricos, técnicos e práticos, ambos publicados pela Editora Vetor. Coordenou os Serviços de Orientação Profissional da Faculdade de Psicologia da UNISA de 2000 a 2004 e da Faculdade de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie de 2002 a 2006. Também lecionou as disciplinas teórico-práticas de Orientação Profissional nas respectivas faculdades. Realiza consultorias na área de Orientação Profissional para escolas e atendimento individual e grupal em Orientação Profissional para adolescentes e adultos em consultório particular.

 

ANEXO A

 

Roteiro de Aplicação dos Desenhos de Profissionais com Estórias - DP-E

Material necessário: 4 folhas de papel A4 para cada um dos desenhos solicitados e várias folhas de papel A4 para as anotações das estórias e dos inquéritos. Lápis preto, apontador, borracha, relógio ou cronômetro.

Entregar as folhas na posição vertical. As anotações serão feitas pelo aplicador.

 

1º. Pedido: Desenhe um profissional, fazendo alguma coisa.

Anotar tempo de latência, comentários realizados pelo sujeito e observações que chamem a atenção do aplicador durante a execução do desenho.

Estória: Ao terminar o desenho, solicitar ao examinando que conte uma estória sobre o profissional que desenhou, sempre incentivando o prosseguimento da estória com as perguntas: E o que mais? E o que vai acontecer? E como termina a estória? Etc.

Inquérito Livre: Visa a esclarecer eventuais dúvidas em relação à estória que não ficaram claras para o aplicador ou aspectos que merecem ser mais bem desenvolvidos.

Título: Ao término da estória, solicitar que seja dado um título à mesma.

Inquérito Semi-dirigido: Realizar as perguntas do inquérito descritas no final do roteiro, algumas perguntas podem ser omitidas quando já apareceram previamente na estória.

2º. Pedido: Desenhe um profissional realizado, fazendo alguma coisa. + Estória + Inquérito livre + Título + Inquérito semi-dirigido. (Repetem-se os mesmos procedimentos do 1o. Pedido).

3º. Pedido: Desenhe um profissional em crise, fazendo alguma coisa. + Estória + Inquérito livre + Título + Inquérito semi-dirigido. (Repetem-se os mesmos procedimentos do 1º. Pedido).

4º. Pedido: Desenhe você, na sua profissão futura, fazendo alguma coisa. + Estória + Inquérito livre + Título + Inquérito semi-dirigido. (Repetem-se os mesmos procedimentos do 1º. Pedido).

 

Inquérito Semidirigido:
1) Qual o sexo do profissional?
2) Qual a idade do profissional?
3) Que tipo de atividade esse profissional exerce?
4) Quais as principais qualidades desse profissional?
5) Quais os principais defeitos desse profissional?
6) Como chegou a ser o que é?
7) Quais os principais desejos e aspirações desse profissional?
8) Como era antes?
9) Quais as coisas que mais gosta na profissão?
10) Quais as coisas que menos gosta na profissão?

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