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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof v.8 n.2 São Paulo dez. 2007

 

SEÇÃO ESPECIAL

 

Profissão e sociedade no projeto de vida de adolescentes em orientação profissional1

 

Profession and society in the life project of adolescents receiving vocational guidance

 

Profesión y sociedad en el proyecto de vida de adolescentes en orientación profesional

 

 

Luciana Albanese Valore* 2; Renee Volpato Viaro**

Universidade Federal do Paraná, Curitiba

 

 


RESUMO

Este trabalho investiga as expectativas quanto ao projeto de vida e a relação profissão e sociedade no discurso de estudantes do Ensino Médio participantes de um projeto de orientação profissional. Considerando-se os cenários sociais contemporâneos, formulou-se a hipótese de que tal projeto seria de caráter predominantemente individualista. A partir da análise institucional dos discursos, observou-se que, embora o projeto individual pareça ser influenciado pela totalidade histórica, as imagens sociais da profissão sugerem uma certa resistência aos discursos orientados pela lógica do mercado, evidenciando valores tradicionais como o altruísmo e a solidariedade, em uma perspectiva humanitária da profissão. Tal resultado destaca a importância da orientação profissional como prática voltada, também, para a possibilidade de ruptura de discursos socialmente instituídos.

Palavras-chave: Contemporaneidade, Projeto de vida, Adolescência, Profissão, Sociedade.


ABSTRACT

This study examines the discourse of high school students receiving vocational guidance. It aims at investigating their expectations about their life project, as well as how they perceive the relation between profession and society. Considering their contemporaries’ social sceneries, the hypothesis formulated was that such a project would be, predominantly, individualistic. By the analysis of their discourse, it was observed that, however the individual project seemed to be influenced by the historical totality, the social images about the profession suggest a certain resistance to the mercantile logic. It was observed that traditional values, such as altruism and solidarity are present in their discourses as a humanitarian perspective to their professional life. Such a result points out the importance of vocational guidance as a practice also focusing the possibility of rupture of socially institutionalized discourses’.

Keywords: Contemporaneity, Life project, Adolescence, Profession, Society.


RESUMEN

Este trabajo investiga las expectativas referentes al proyecto de vida y a la relación profesión y sociedad en el discurso de estudiantes participantes de una orientación profesional. Considerando el escenario social contemporáneo, la hipótesis formulada era la de que ese proyecto sería predominantemente individualista. El análisis institucional de los discursos mostró que, no obstante el proyecto individual parezca ser influenciado por la totalidad histórica, las imágenes sociales de la profesión sugieren cierta resistencia a la lógica del mercado, evidenciando valores tradicionales como el altruismo y la solidaridad, en una perspectiva humanitaria de la profesión. Tal resultado señala la importancia de la orientación profesional como práctica también dirigida a la posibilidad de ruptura de los discursos socialmente instituidos.

Palabras clave: Contemporaneidad, Proyecto de vida, Adolescencia, Profesión, Sociedad.


 

 

Dentre outros objetivos, esta pesquisa visou a investigar as expectativas em relação ao projeto de vida de estudantes do Ensino Médio, de escolas públicas e particulares de Curitiba, participantes de um projeto de extensão universitária de orientação profissional. Buscou, igualmente, delinear a imagem social da profissão configurada nas visões de futuro desses estudantes.

O presente artigo tem como propósito, pois, circunscrever, no discurso dos sujeitos pesquisados, os elementos componentes de seus projetos de vida e as relações estabelecidas entre o exercício profissional e a comunidade mais ampla. Relações estas pensadas como contribuições da profissão à sociedade brasileira.

A literatura referente ao tema em questão, isto é, os textos que dizem das atuais condições do trabalho e da sociedade na qual o mesmo é exercido, delineia um cenário, na maior parte das vezes, não muito otimista de um ponto de vista altruísta e coletivo. Pode-se dizer que o individualismo tomou o estatuto de ideal a ser preservado e seguido nos projetos de vida da atualidade e que, cada vez menos, vê-se o outro ocupar um lugar no projeto individual, centrado, essencialmente, no eu, no sucesso e na visibilidade. Sendo que os adolescentes (classe extremamente exposta a mudanças de paradigmas) parecem cada vez mais apropriar-se desse ideal, incorporando-o em seus projetos de vida como a principal ferramenta de ascensão pessoal &– como não poderia deixar de ser, já que o propagado ideário da auto-gestão da carreira, onde cada um tem de salvar a si mesmo, constitui um dos nortes do discurso neoliberal.

Trabalho na contemporaneidade

É relativamente difuso, no meio acadêmico, o debate sobre a atual configuração social, denominada por alguns estudiosos como pós-modernidade: um momento histórico marcado pelo triunfo do capitalismo sobre cada esfera da civilização (Anderson, 1999; Jameson, 1996). Segundo pesquisadores do tema, um dos principais resultados da dominação da lógica mercantilista-consumista seriam novas formas de subjetivação (Birman, 2001). Subjetividades narcisistas, exibicionistas, individualistas, consumistas, flexíveis e fragmentadas seriam o novo padrão produzido pelas atuais práticas econômicas e lógicas globais. Na contrapartida, o espaço público destinado à experiência coletiva estaria sendo esvaziado e substituído pelo espaço privado: a exaltação do eu daí advinda (Lasch, 1983; Sennett, 1993; Caniato, 1999). Assim, com tamanha concentração no individual, estaria havendo um enfraquecimento da estrutura social em prol de uma flexibilização/dissolução geral (de identidades, poder, normas, instituições, etc.), condição necessária à continuidade e à ascensão do novo capitalismo e de suas fluidas relações de poder (Bauman, 2001).

Como é de se prever, a lógica pós-moderna afeta igualmente o trabalho e as concepções dele advindas. Se, como observa Sennett (2004), na modernidade, o trabalho era um dos maiores valores modeladores de caráter e um dos principais meios consolidadores de identidades, em sua etapa tardia o mesmo tornou-se também flexível, muitas vezes superficial, de curto prazo, incerto e performático. Se, antes, o trabalhador contava com uma relativa estabilidade e segurança que lhe permitiam planejar a longo prazo seu futuro profissional (e, conseqüentemente, sua identidade profissional), a realidade, hoje, é bem diferente. O antigo e previsível esquema de rotina profissional passa a ser combatido pelo slogan da flexibilidade: mudanças rápidas das condições do mercado, alta adaptabilidade por parte dos trabalhadores, constante inovação de técnicas e produtos, deslocamentos de tempo e lugar, exigência de se correr riscos constantemente, capacidade de atuar performaticamente em várias frentes, trabalho em equipes momentâneas, falta de instâncias normativas definidas, superficialidade da relação homem-trabalho... Tais seriam as características do atual palco mercadológico movido pelo trabalho. E diz-se que quem atua é o trabalho, ao invés do trabalhador, pois o primeiro já foi também descorporificado, resultando numa indiferença em relação a quem o realiza: o importante é que a performance não seja comprometida (Sennett, 2004).

E o elemento humano, como se situa diante de tal quadro? Da mesma forma, pode-se dizer. Ou, talvez, seja mais apropriado afirmar que o elemento humano situa-se de forma a acompanhar a característica do processo, a manter em funcionamento sua engrenagem: se o trabalho tornou-se um jogo incerto onde tudo ou nada pode acontecer, ao trabalhador restou a alternativa de aprender a jogar na aleatoriedade. Nem que o preço pago por isso seja o do desapego em relação ao seu trabalho, do desenraizamento histórico e da efemeridade de suas ações e de si mesmo. A lógica de longo prazo tendo sido substituída pela de curto prazo; a satisfação decorrente do projeto de toda uma vida sendo buscada na instantaneidade da contingência (já que, como pontua Sennett, aquilo que se é hoje deverá ser amanhã reinventado, para que se possa acompanhar o ritmo veloz e escorregadio do neoliberalismo).

O fim das utopias revolucionárias (Stein, 1996) e a fluidez do sistema capitalista (Bauman, 2001) contribuiriam para o declínio dos projetos sociais que condicionavam narrativas aos indivíduos neles engajados. Desprovidos de um sentido coletivo, os indivíduos hoje buscariam construir suas narrativas no isolamento da comunicação virtual. E o trabalho, elemento antes constituidor de identidade de classe, perderia grande parte de sua antiga força simbólica para ganhar um estatuto imaginário:

O trabalho não pode mais oferecer o eixo seguro em torno do qual envolver e fixar autodefinições, identidades e projetos de vida. Nem pode ser concebido com facilidade como fundamento ético da sociedade, ou como eixo ético da vida individual. Em vez disso, o trabalho adquiriu &– ao lado de outras atividades da vida &– uma significação principalmente estética. Espera-se que seja satisfatório por si mesmo e em si mesmo, e não mais medido pelos efeitos genuínos ou possíveis que traz a nossos semelhantes na humanidade ou ao poder da nação ou do país, e menos ainda à bem-aventurança das futuras gerações (Bauman, 2001, p. 160, grifo do autor).

Adolescência na contemporaneidade

A este pano de fundo de constituição das subjetividades, quando se trata da adolescência, poder-se-ia acrescentar um novo elemento. Lado a lado à condição de ser o próximo da fila a adentrar o mundo do trabalho acima descrito, ao focar o universo dos adultos trabalhadores que o cerca, o adolescente depara-se com uma outra condição: a da crescente idealização, nesse mesmo universo, em relação à adolescência (Calligaris, 2000).

Naquele mundo do qual foi poupado até que estivesse suficientemente maduro (por mais difícil que possa ser amadurecer quando não se está em contato com as adversidades da realidade), encontra uma multidão já cansada do peso que carrega e ávida pelo alívio que ele, adolescente, supostamente desfruta. Assim, o jovem sujeito, ansioso por ser tratado em pé de igualdade com seus pares sociais adultos e por desfrutar das prerrogativas de gente grande, depara-se com um movimento contrário ao seu (de retorno àquela fase da qual ele aspira subtrair-se). Depara-se, enfim, com a idealização do período de vida em que vive instituída na contemporaneidade pelo imperativo de manter-se eternamente jovem, continuamente disposto a correr riscos...

Como observa Calligaris (2000), desde o advento da modernidade viu-se tipicamente a infância ser contemplada como o período de vida mais feliz do ser humano, isto por se tratar de uma época livre de pressões e responsabilidades às quais os adultos estão expostos, ou ainda, por se tratar de um período no qual o sujeito adulto identifica toda a completude narcísica a qual ele teve de abdicar. A infância foi, e ainda o é em alguma medida, uma espécie de miragem, um oásis no qual supostamente ainda existe a felicidade a qual todos almejam, e que por isso tanto gostam de admirar. Contudo, principalmente nos últimos 50 anos, este foco tem se deslocado para a adolescência:

Aos poucos, os adultos verificam que essas crianças que estão se preparando já são um pouco crescidas, à força de esperar. Elas constituem uma nova mistura, inédita. Os adultos tentam mantê-las protegidas e felizes, assistidas, no mundo encantado da infância, sem obrigações e responsabilidades. Por outro lado, elas se parecem cada vez mais com os adultos, pelo tamanho, pela maturação de seus corpos e pelas exigências de sua felicidade e de seus prazeres, que não são mais brinquedos e historinhas, mas, por exemplo, sexo e dinheiro &– segundo eles vão aprendendo. (...) Cada vez mais, o olhar dos adultos se desloca das crianças para os adolescentes, pois o espetáculo de sua felicidade é de fato mais gratificante. Se conseguirmos realizá-la mantendo os adolescentes protegidos e irresponsáveis como as crianças, mas com exigências e voracidades de adultos, eles vão nos oferecer um show bem parecido com a felicidade que gostaríamos aqui e agora, para nós (Calligaris, 2000, p. 68).

Dessa forma, na perspectiva assinalada pelo autor, ao encarnar os ideais de supostas liberdade e felicidade tão caros à sociedade contemporânea, a adolescência encerra exigências inconciliáveis: a de continuar sendo, indefinidamente, adolescente &– o que contraria, totalmente, as expectativas que o jovem poderia ter de ser reconhecido como adulto &– e a de assumir as responsabilidades de adulto, num contexto em que os próprios adultos as rechaçam. No estilo american teen residiria a felicidade. E, basta olhar em volta, o que não faltam são adultos eternamente jovens para mostrar quão certeira é esta tese. Adultos que adquiriram um estilo leve, fluido, irônico e descolado ao consumir a gama de produtos, roupas e artigos adolescentes oferecidos no mercado das identidades.

Ao ser idealizada, a adolescência tornou-se um negócio dos mais lucrativos: Haug (1997) aponta um outro aspecto da juventude que tem contribuído para a sua elevação ao patamar de ideal; a saber, aquele que associa juventude à beleza. De acordo com o autor, a corrida pela eterna juventude vem sendo difundida, há algumas décadas, pelos meios publicitários, de maneira a explorar a adesão ao padrão jovial de ser. Sendo que, entre os mais velhos, tal fenômeno manifesta- se sob a forma de um “medo terrível em sair fora dos padrões remodelados e restabelecidos com base na jovialidade” (Haug, 1997, p. 11 2).

Pode-se pensar e cogitar algo das conseqüências dessa apologia à adolescência. Uma espécie de estancamento do sujeito no estilo desse período de sua vida, de uma cristalização da adolescência, na adolescência. O sujeito ver-se-ia identificado consigo mesmo de maneira idealizada, o que corroboraria com a exaltação do eu já tão acentuada e com o individualismo decorrente. Além disto, a imagem de sucesso, associada à juventude, produziria efeitos também no mundo do trabalho, uma vez que “Flexibilidade equivale à juventude; rigidez, à idade” (Sennett, 2004, p. 110). Deste modo, os jovens trabalhadores seriam mais bem quistos por comportarem maior maleabilidade em assumir riscos e capacidade de submissão imediata.

Diante de tais cenários vislumbrou-se a direção de uma hipótese para o estudo desenvolvido: a de que os sujeitos da pesquisa &– grupo supostamente exposto à (des)construção da ordem social &– possuiriam uma imagem profissional (e pessoal) acentuadamente individualista e, conseqüentemente, distante de uma função social efetiva. As prioridades integrantes de seus projetos de vida estariam assim voltadas principalmente para a auto-satisfação e auto-realização, não contemplando a idéia de um substrato social no qual estão inseridos e do qual são, em grande parte, dependentes: a profissão sendo vista em seu caráter auto-utilitário, desvinculada, portanto, da relação com o outro.

 

Método

Sujeitos

Participaram do estudo, 11 4 estudantes, 74 moças e 40 rapazes, sendo 71 deles provenientes de escolas públicas e 43, de escolas privadas de Curitiba-PR. Destes 114 estudantes, 75 cursavam o terceiro ano do Ensino Médio e 39, o segundo ano. Sua faixa etária variou entre 15 e 18 anos de idade.

Instrumento

Utilizou-se um questionário, com quatro perguntas abertas e uma fechada, na qual os estudantes deveriam assinalar a questão considerada como tendo sido a mais difícil de responder. Alguns dados pessoais foram também solicitados. Nas perguntas abertas buscou-se investigar as preocupações concernentes ao futuro, os aspectos componentes do projeto de vida, as chances vislumbradas para a concretização desse projeto e as relações entre a(s) profissão(ões) considerada(s) para uma escolha e a sociedade mais ampla.

Para os propósitos deste artigo, foram considerados os enunciados produzidos em resposta às seguintes questões: 1) Qual é o seu projeto de vida futura (o que faria parte desse projeto)?; 2) Considerando a(s) profissão(ões) que você escolheu, ou pensa em escolher, responda: que contribuições, como profissional, você poderia trazer para a sociedade brasileira? Dê um exemplo.

Procedimentos de análise

Os questionários foram aplicados no primeiro encontro da Orientação Profissional, desenvolvida em grupos de oito a dez participantes, num total de oito encontros semanais de duas horas cada; a identificação sendo feita de modo a não incluir o nome dos estudantes pesquisados. Anteriormente à aplicação foram entregues uma carta explicativa e um termo de consentimento livre e esclarecido sobre a pesquisa, que deviam ser validados tanto pelo participante como por seus pais, em caso de menores de idade.

O material coletado foi analisado por quatro pesquisadores, sendo um professor (coordenador da pesquisa) e três alunos de iniciação científica (do quinto ano do curso de Psicologia) integrantes do projeto de extensão de orientação profissional. As respostas foram consideradas quantitativa e qualitativamente, de modo a realizar o levantamento e a sistematização dos dados pessoais (perfil) dos estudantes e a evidenciar as categorias e as subcategorias discursivas norteadoras dos enunciados por eles produzidos.

Em relação à análise quantitativa, é importante observar alguns aspectos. Sua finalidade neste estudo consistiu, menos no desenvolvimento de um tratamento estatístico rigoroso dos dados e mais na realização de um mapeamento das recorrências discursivas, de modo a possibilitar ao leitor a visualização dos elementos mais freqüentes nos projetos de vida e nas imagens sociais da profissão dos estudantes pesquisados.

Um outro aspecto a ser considerado &– e isto será explicitado na apresentação dos resultados &– diz respeito ao fato de que, em algumas situações, os números obtidos puderam ser correlacionados ao número de respostas/número de sujeitos pesquisados. Em outras situações, todavia, os números levantados não correspondem, necessariamente, ao número de sujeitos pesquisados, mas referem-se à quantidade de vezes em que determinadas categorias ou subcategorias discursivas puderam ser evidenciadas nas respostas (as porcentagens sendo estabelecidas em relação ao total de enunciados produzidos para um mesmo tema ou categoria). Assim, os diferentes enunciados componentes de uma mesma resposta, de um mesmo sujeito, muitas vezes, puderam ser relacionados a diferentes categorias e/ou subcategorias discursivas. Como exemplo, pode-se citar a resposta, de uma estudante do terceiro ano do Ensino Médio público, referente ao projeto de vida imaginado: “Para mim, o mais importante no futuro é a satisfação e a realização. Para isso é importante ter um ideal, uma meta. No meu caso essa meta é a estabilidade financeira, uma família unida e gostar do que farei”.

Por fim, tem-se o fato de que, intencionalmente, o número de participantes não foi o mesmo em relação ao gênero, ao ano cursado ou ao tipo de escola freqüentada. Efetivamente, o equilíbrio, quanto a estes critérios diferenciadores, no perfil dos sujeitos pesquisados, não constituiu uma preocupação nesta pesquisa, uma vez que se optou por aplicar o questionário em todos os participantes da orientação profissional (sendo a maioria, como viu-se, constituída por moças, do terceiro ano de escolas públicas). Mesmo assim, quando significativas (em relação ao perfil dos participantes), as diferenças quantitativas foram assinaladas na exposição dos resultados.

Tais posicionamentos, em relação à análise quantitativa, remetem ao método utilizado para a análise; a saber, a análise institucional do discurso, formulada pela psicanalista Marlene Guirado (1995/2004, 1995/2006) e adotada por diversos pesquisadores (Guirado & Lerner, 2007).

Seguindo os procedimentos propostos por tal método e, tendo em vista os temas delineados nas questões propostas &– Futuro; Projeto de Vida; Eu, meu projeto e minhas chances; Profissão e Sociedade &– primeiramente, operou-se uma análise preliminar dos questionários (análise transversal) objetivando identificar as recorrências discursivas e o modo de dizê-las (o tipo de substantivos, verbos e adjetivos utilizados, por exemplo) nas respostas relacionadas a cada tema. Importante observar que tal análise não se limitou às respostas específicas para cada questão (análise horizontal), investigando-se o discurso como um todo (análise vertical); isto é, ao longo de todo o questionário (uma vez que um mesmo tema esteve presente em várias respostas). Desta etapa preliminar resultou o levantamento de diferentes categorias discursivas para cada um dos quatro temas, em torno das quais os adolescentes construíram suas respostas. Na seqüência, realizou-se a organização de todas as respostas (nova análise transversal dos discursos) relacionadas às categorias discursivas identificadas na análise anterior, buscando-se também atentar às recorrências e às singularidades nos modos de dizer em cada uma dessas categorias, o que, em alguns casos, permitiu nelas evidenciar algumas subcategorias discursivas.

 

Resultados

Considerando-se as diferenças existentes quanto ao perfil dos sujeitos pesquisados (o qual, conforme já dito, não seguiu critérios de equiparação entre os grupos), pode-se afirmar, a partir de uma análise em que a proporcionalidade entre o número de enunciados e o número/ tipo de sujeitos foi observada, que o mapeamento quantitativo dos dados não revelou discrepâncias significativas em relação à série cursada, ao gênero e ao tipo de escola freqüentada.

Em relação ao tema Projeto de Vida, dos 114 estudantes, dez não responderam à questão correlata, embora não a tenham considerado como sendo a questão mais difícil. A maior dificuldade em responder a questão foi assinalada por 14 estudantes, os quais, mesmo tendo-a respondido, associaram tal dificuldade ao fato de nunca terem pensado sobre seu projeto de vida. Nas 104 respostas obtidas, oito categorias discursivas puderam ser evidenciadas, como o demonstra a tabela a seguir.

Na Tabela 1, as porcentagens foram estabelecidas em relação ao total de diferentes enunciados produzidos para o tema Projeto de Vida, isto é, em relação ao total de ocorrências referentes a tal tema, o qual foi de 300.

Tabela 1

Categorias discursivas presentes no tema “projeto de vida” em relação ao número de recorrências/enunciados produzidos

 

categorias (8)

número de recorrências (300)

percentual

profissão

133 vezes

44,33%

constituição de família

59 vezes

19,66%

estudo e preparo profissional

39 vezes

13%

realização e felicidade pessoal (de modo amplo, para além da felicidade profissional ou familiar)

33 vezes

11%

viagens

12 vezes

4%

amizades

9 vezes

3%

aquisição de bens materiais

9 vezes

3%

melhoria e auxílio do/ao mundo

6 vezes

2%

 

Como se pode observar, o principal aspecto a compor o projeto de vida dos adolescentes pesquisados refere-se à profissão, a qual aparece 133 vezes ao longo das 104 respostas obtidas (em 44,33% dos enunciados produzidos, portanto), sendo 78 vezes em respostas de estudantes de escolas públicas e 55 vezes em respostas de estudantes de escolas particulares. A superioridade quantitativa do número de vezes sobre o número de respostas deve-se, nesse caso, ao fato de que, por vezes, uma mesma resposta continha diferentes enunciados associados a essa categoria. Disto resultou a necessidade de desmembrar tal categoria em subcategorias, as quais ficaram assim distribuídas:

Na Tabela 2, as porcentagens foram estabelecidas em relação ao total de diferentes enunciados produzidos para a categoria Profissão, isto é, em relação ao total de ocorrências referentes a tal categoria, o qual foi de 133.

Tabela 2

Subcategorias discursivas da categoria “profissão” em relação ao número de recorrências/enunciados produzidos

 

subcategorias (4)

número de recorrências (133)

percentual

retorno financeiro

73 vezes

54,88%

realização pessoal na profissão

42 vezes

31,57%

competência profissional

13 vezes

9,77%

escolha certa da profissão

5 vezes

3,75%

 

Em relação à profissão, tem-se que o principal aspecto a ser contemplado na vida futura desses adolescentes remete ao desejo de estabilidade e independência financeira, legitimado em 54,88% dos enunciados configurados para a categoria em questão. Mesmo assim, em 42 enunciados (31,57%), a aspiração quanto ao fazer o que se gosta também está presente, como por exemplo: “Um emprego que eu acorde pensando nele, mas com felicidade, saia dele pensando em voltar, que o dia passe logo para eu ir trabalhar de novo” (resposta de um rapaz, do terceiro ano do Ensino Médio público). A busca pela realização pessoal, por vezes, apareceu lado a lado à preocupação de sucesso financeiro, e tal como nesta sub-categoria, não revela discrepâncias significativas em relação ao gênero ou ao tipo de escola freqüentada.

Quanto às outras duas subcategorias evidenciadas na categoria Profissão, obteve-se 13 enunciados relativos à competência profissional, sendo nove de escolas públicas e quatro de particulares e cinco relativos à escolha certa da profissão, sendo três de escolas particulares e dois de escolas públicas.

Nas sete demais categorias evidenciadas para o tema Projeto de Vida, o número de vezes em que os enunciados aparecem, ainda que superior ao número total de sujeitos respondentes, pode ser equiparado ao número de adolescentes que produziram tais enunciados, uma vez que não houve necessidade de criar subcategorias discursivas, como no caso da categoria Profissão. Tal correlação ficará mais clara a seguir.

A constituição de uma família é legitimada como plano para o futuro em 59 enunciados (19,66%), sem qualquer diferença numérica significativa em relação ao perfil dos estudantes. Tal resultado quantitativo, neste caso, pode ser equiparado ao número de sujeitos respondentes, pois, mesmo que a constituição de família apareça concomitantemente a outras categorias numa mesma resposta, trata-se sempre de um sujeito que a enuncia. Assim, para 59 adolescentes (56,73% dos 104 que respondem essa questão), ainda que outros aspectos tenham sido considerados para o projeto de vida, a intenção de formar família ocupa um espaço significativo. Importante pontuar que esta intenção aparece condicionada à conquista da estabilidade profissional e do retorno financeiro (algumas vezes imaginados como conseqüência natural de uma boa formação profissional), como nas respostas: “Até os 30 anos de idade, gostaria de poder alcançar uma alta graduação. Penso que somente com uma boa parte educacional é que se pode alcançar o sucesso profissional. Quero constituir uma família, mas deixo isso como plano secundário, somente após ter uma boa situação, cômoda é que penso em casar” (estudante do sexo masculino, escola pública, segundo ano); “É importante, mais que tudo, ser uma pessoa feliz e realizada. Meu projeto de vida é ter uma família, isso depois de estudar, ter independência, uma profissão, viajar, entre outras coisas” (moça, terceiro ano, escola pública).

O preparo profissional através dos estudos (na maior parte das vezes pensados no âmbito da graduação e, em menor escala, da pós-graduação) constitui a terceira categoria geral com um total de 39 enunciados, o que, na mesma linha de raciocínio adotada acima, representa 37,5 % do total de 104 sujeitos que responderam essa questão. Aqui uma diferença foi observada em relação à série cursada: na ordem de surgimento das categorias, ela está em terceiro lugar para os estudantes do segundo ano e em quarto lugar para os de terceiro. Dentre estes, a categoria situada em terceiro lugar (e ausente nas respostas dos estudantes do segundo ano) refere-se à realização e felicidade pessoal, num plano mais amplo do que o profissional ou familiar.

Em 33 enunciados (portanto para 33 estudantes), realizar sonhos (que vão além de ter uma profissão e uma família), estar feliz ou de bem com o mundo e consigo mesmo, configura uma aspiração igualmente importante para o projeto de vida, como na resposta a seguir, em que outras categorias discursivas podem ser identificadas: “Para mim, o meu futuro deve ser um estado em que eu esteja de bem com o mundo, com as pessoas ao meu redor, comigo, com a natureza, esteja trabalhando na área que eu aprecie e goste, estar numa situação financeira propícia para o meu sustento, feliz e com saúde” (resposta de uma estudante de terceiro ano de escola pública).

A intenção de viajar aparece em 4% dos 300 enunciados produzidos, sendo um dos componentes do projeto de vida de 12 estudantes. O desejo de ter amigos e o de adquirir bens como casa e carro empatam no número de respostas em que foram encontrados: surgem nove vezes cada. É interessante notar que a aquisição de bens tem uma presença um pouco mais marcada (levandose em conta o perfil dos sujeitos pesquisados) no discurso dos estudantes provenientes de escolas públicas, somando um total de sete respostas. Todavia, há que se considerar que tal aspiração provavelmente está implícita nos discursos que afirmam o desejo de retorno financeiro, na categoria Profissão.

Por fim, a vontade de ajudar as pessoas, de colocar-se a serviço da sociedade e de contribuir para melhorar o mundo aparece em seis respostas (2%), sendo uma delas proveniente de um estudante do terceiro ano e cinco delas, de estudantes do segundo ano. Curiosamente, todas as respostas foram enunciadas por adolescentes provenientes de escolas públicas.

As contribuições do exercício profissional para a sociedade brasileira constitui um outro tema aqui considerado. Dos 11 4 sujeitos, 22 (19,2%) não responderam à questão proposta e 40 (35%) consideraram- na como sendo a mais difícil (das quatro perguntas feitas esta foi apontada como a mais difícil de ser respondida). Dentre as justificativas, a que mais se repetiu alegava que a dificuldade em pensar numa contribuição social como profissional, residia na relativa indecisão acerca da futura profissão, o que lhes impossibilitava saber como viriam a contribuir. Além disto, obteve-se uma resposta que, ao invés de mencionar uma contribuição, faz uma crítica à situação do país.

Assim, no levantamento dos resultados, puderam ser consideradas 91 respostas, as quais foram categorizadas em termos das ações a serem empreendidas, pois as mesmas expressam tanto o meio quanto o objeto-alvo das contribuições enunciadas. Quatro grandes categorias discursivas foram evidenciadas, conforme se pode ver na tabela a seguir:

Tabela 3

Categorias discursivas presentes no tema “profissão e sociedade” em relação ao número de recorrências/ enunciados produzidos

 

categorias (4)

número de recorrências
(138)

percentual

contribuições por meio de ações humanitárias

63 vezes

45,65%

contribuições por meio do saber

44 vezes

31,88%

contribuições por meio de si mesmo

17 vezes

12,31%

contribuições por meio de ações ambientais

14 vezes

10,14%

 

A análise quantitativa desses resultados deve considerar, tal como no levantamento referente à categoria Profissão, o fato de que os números obtidos referem-se às vezes em que aparecem enunciados associados a uma determinada categoria, e não ao número de respostas/número de sujeitos pesquisados.

A partir de tal análise pode ser observado que a categoria Contribuições Por Meio de Ações Humanitárias sobressaiu-se como a contribuição social mais referenciada no discurso dos indivíduos pesquisados quando confrontados com uma proposta de articulação entre seu futuro exercício profissional e sociedade. Sessenta e três enunciados fizeram referências a formas de se abordar diretamente o ser humano (aproximadamente 45% dos enunciados produzidos), tais como ajudar as pessoas, promover sua saúde, fazer o bem geral e ajudar a sociedade, ajudar a população com menores recursos, um país um pouco mais honesto e justo.

Estas estudantes do terceiro ano do Ensino Médio público evidenciam como o ser humano pode ser o principal foco de sua atuação profissional: “Com os dois cursos que eu escolhi (enfermagem e educação física) poderei estar ajudando o próximo &– as pessoas”. Ou também: “Se eu fosse pedagoga, ou médica pediatra, cuidaria das crianças com muito carinho, pra que quando crescerem fossem alguém na vida”.

A categoria Contribuições Por Meio do Saber comporta respostas que aludem ao saber/conhecimento (entendido de forma ampla) como maneira de se contribuir com a coletividade. Nela estão inclusas desde referências ao ensino e à pesquisa até ao desenvolvimento de tecnologias que possam beneficiar a sociedade de alguma forma. O que a define por excelência é o uso prioritário do conhecimento como contribuição à sociedade.

Dos 138 enunciados produzidos, 44 remetem algo de suas contribuições a esse tipo de ação. Isto significa que aproximadamente 32% dos enunciados referem-se, de alguma maneira, ao saber como forma de reforço à sociedade, seja inovando um campo: “Gostaria de ser um profissional que trouxesse algo de novo para a minha área” (rapaz do terceiro ano de escola particular), ou apoiando o desenvolvimento de outro, paralelamente à ajuda humanitária: “Melhoria de vida de alguns e possibilidade de que eles mostrem seu potencial, empregando pessoas e, se possível, incentivando pesquisas” (rapaz do segundo ano de escola particular).

Na categoria Contribuições Por Meio de Si Mesmo entraram enunciados que situavam o próprio sujeito, ou determinada característica sua, como contribuição à sociedade. Ou ainda, contribuições individuais cujos alvos são os próprios sujeitos que as elaboraram. Assim, em 12, 31% dos enunciados, o si mesmo é o meio de contribuição social, como é o caso desta estudante do terceiro ano de escola pública que aponta sua própria competência como fator contribuinte: “Ser boa e honesta na profissão, tentando o bem de um modo geral”. Ou consiste no alvo de suas contribuições: “Ser técnico de futebol: para a sociedade brasileira não sei, mais pra mim vai ser muito bom” (rapaz do terceiro ano de escola particular).

Por fim, em 14 respostas (10%) demonstraram- se intenções de atrelar a profissão a questões ambientais, como evidenciado na categoria “Contribuições por meio de ações ambientais” que engloba ações para preservação/restauração do meio ambiente, da natureza e/ou fauna e flora, como revela a resposta desta estudante do terceiro ano de escola particular: “Contribuição para o meio ambiente, fazendo pesquisas, por exemplo descobrir um meio mais econômico de dessalinizar os mares”.

Dentre os dados obtidos na análise da temática Profissão e Sociedade, ocorre uma única discrepância no perfil dos sujeitos entrevistados: dentre os estudantes que fazem menção a ajudar as pessoas carentes e/ou com menores recursos (parte da categoria Contribuições Por Meio de Ações Humanitárias) dos oito indivíduos que referem alguma preocupação com tal classe socioeconômica, sete são estudantes de escolas públicas, contra apenas um de escola particular. Com relação às demais características da amostra (ano escolar e sexo), não houve diferenças significativas diante das perguntas formuladas.

 

Discussão

A discussão dos resultados faz-se na interlocução com vários discursos. Desde o dos estudiosos da contemporaneidade, mencionados na introdução, até os pensadores que contribuíram para a formulação do método utilizado. Assim, ainda uma palavra &– ainda que breve &– sobre o mesmo faz-se necessária, a fim de situar o leitor quanto ao referencial de leitura dos dados obtidos. Elaborada na interface de distintos campos do Saber &– psicanálise, análise do discurso, arqueogenealogia de Michel Foucault &– a análise institucional do discurso parte de algumas concepções teóricas que fundamentam as análises aqui empreendidas. Dentre elas, a concepção foucaultiana de discurso como ato de produção, legitimação e/ou ruptura de práticas sociais e de lugares subjetivos instituídos (Valore, 2007). Entende-se, pois, que os discursos investigados, ao mesmo tempo em que se sustentam em outros discursos (como os que instituem determinadas imagens sobre futuro, profissão, sociedade, sucesso ou fracasso profissional, mundo do trabalho, etc.) dão-lhes suporte, contribuindo para a sua legitimação e, eventualmente, naturalização.

Uma outra tese refere-se à matriz institucional (práticas sociais discursivas) da subjetividade (Guirado, 1995/2006). Ou seja: a subjetividade produz-se no discurso. Disto deriva a proposição de que o ato de responder a um questionário, de dizer de seu futuro e de si nesse futuro, vai além da expressão de sentimentos/pensamentos: ao escreverem sobre suas expectativas, sobre as imagens sociais da profissão, os adolescentes pesquisados, também, constituíram-se e afirmaram-se como sujeitos do/no discurso.

Um último importante conceito diz respeito à tese foucaultiana de que a produção de subjetividade no discurso se dá através de um duplo movimento: de assujeitamento e de resistência na ordem dos discursos socialmente instituídos - daí a possibilidade de ruptura das práticas sociais (Foucault, 1995, 1999). Para Guirado (1995/2006), igualmente, ao mesmo tempo em que o sujeito é suporte do discurso institucional, constitui-se como sujeito psíquico singular que organiza &– a seu modo e de acordo com a sua história particular &– tais pautas instituídas. Assim, na análise dos resultados desta pesquisa, buscouse investigar tanto a apropriação de discursos instituídos (inclusive sobre o que caracterizaria os adolescentes de hoje), como a possibilidade de resistência a esses mesmos discursos. Isto posto, pode-se partir para a discussão. Inicialmente, há que se considerar que os adolescentes pesquisados faziam parte de um projeto de orientação profissional, o que pode ter contribuído para que a profissão tenha surgido como eixo organizador do projeto de vida em tantos enunciados.

Inicialmente, há que se considerar que os adolescentes pesquisados faziam parte de um projeto de orientação profissional, o que pode ter contribuído para que a profissão tenha surgido como eixo organizador do projeto de vida em tantos enunciados.

Em relação a esse tema &– Projeto de Vida &– a maior parte das respostas confirma as hipóteses colocadas em relação à presença de projetos individualistas e imediatistas, onde o sucesso pessoal (entendido como ganhar bem e fundamentado na idealização do emprego estável) prevalece sobre as preocupações sociais mais amplas (vide os resultados para a subcategoria Retorno Financeiro e para a categoria Melhoria e Auxílio do/ao Mundo). Por outro lado, o desejo de realização pessoal na profissão aparece em 31,57% dos enunciados, em respostas que, muitas vezes, também incluem a preocupação quanto ao retorno financeiro. Ao que parece, o conhecido dilema de unir o útil ao agradável ainda está presente no imaginário desses adolescentes.

A pouca referência ao ser um bom profissional, como elemento a compor o projeto de vida (na subcategoria Competência Profissional), não deixa de chamar a atenção, pois a relação entre a competência naquilo que se faz e o sucesso financeiro decorrente da profissão não parece ser estabelecida por esses adolescentes. Poder-se-ia perguntar: em que medida os modelos sociais atuais lhes permitem creditar tal correlação?

Em contrapartida, como terceira categoria, o preparar-se bem profissionalmente (categoria Estudo e Preparo Profissional), através dos estudos em nível superior, aparece 39 vezes. E isto, ainda que represente uma quantidade pouco expressiva percentualmente (13%), não deixa de evidenciar a legitimação dos discursos contemporâneos concernentes à importância da formação universitária. Tais resultados levam a indagar: o que, exatamente, representaria para esses adolescentes o acesso ao Ensino Superior? A oportunidade de desenvolver competências profissionais? A chance de obter um diploma (visto, por si só, como garantia de inserção no mercado)? Ambos? Certamente, um estudo aprofundado dessas questões em muito viria a contribuir.

A Constituição de Família (segunda categoria evidenciada), diferentemente do que poder-se-ia supor, corresponde tanto ao desejo de moças, quanto ao de rapazes. Entretanto, cabe observar que tal anseio é condicionado à aquisição de estabilidade financeira. Estes dados sugerem uma possível resistência aos discursos dos estudiosos da pós-modernidade, e mesmo do senso comum, que afirmam a derrocada da instituição familiar, e que instituem, para o adolescente de hoje, os atributos da irresponsabilidade e do descomprometimento e o lugar de alienado, de quem não quer nada com nada, além de divertir-se através do comportamento de ficar. Nessa mesma perspectiva, poder-se-ia pensar que o desejo de retorno financeiro não configura, necessariamente, uma expressão de subjetividades individualistas e consumistas, vindo a responder a uma condição concreta de sobrevivência. E esta, uma vez percebida, sugere uma efetiva consciência acerca das condições atuais de trabalho, e não o contrário.

Contrariando, em boa parte, a hipótese de estudo, os resultados obtidos para a questão das contribuições sociais do exercício profissional mostram que 91 adolescentes, dentre os 11 4 pesquisados (79,8%), quando convidados a refletir a respeito, conseguem vislumbrar alguma ação possível voltada ao coletivo. Vale considerar que, dentre os 22 sujeitos que não o fazem, 13 estão em acentuada situação de indecisão profissional e isto, possivelmente, tenha dificultado a articulação profissão-comunidade, como mostram as justificativas daqueles que consideraram esta como sendo a questão mais difícil.

A maioria das respostas trata de ações humanitárias, no sentido de buscarem uma melhora da condição do ser humano, o que as difere é o método a ser utilizado para tanto. O destaque conferido ao saber, como forma de contribuição, gera surpresa. Pode-se afirmar que, seja pelo viés da pesquisa, da transmissão ou da conscientização populacional, tais enunciados dizem de uma afinidade entre profissão e desenvolvimento intelectual, e de uma relação pragmática entre tais elementos e a sociedade. A imagem profissional surge aqui como forma de aprimoramento intelectual útil também à coletividade. Isso aponta o lugar que o saber, configurado pela formação profissional, parece estar ocupando no imaginário desses jovens: o de instrumento de transformação social.

É digno de nota o fato de que, dos oito sujeitos que apresentaram alguma contribuição através do exercício profissional voltada à população carente, sete são de escolas públicas. O que possivelmente remete a uma preocupação que diz do meio socioeconômico no qual esses sujeitos estão inseridos ou do qual, de algum modo, tomam parte. Se assim for, seria também plausível admitir o quão histórico materialmente calcada estará a futura atuação profissional desses estudantes. Este comprometimento, de estudantes de escolas públicas com a realidade social que os cerca, também pôde ser observado nos únicos seis enunciados, por eles produzidos, que, ao desenharem seus projetos de vida, configuraram a categoria Melhoria E Auxílio do/ao Mundo. Entende-se que a amostragem restrita impossibilita maiores generalizações e que interpretações conclusivas demandariam maiores estudos. Entretanto, poder-se-ia perguntar: estaria o contexto das escolas particulares contribuindo na produção de subjetividades mais individualistas?

Um outro dado obtido questiona, mais uma vez, o pré-conceito do adolescente alienado: 10,5% das respostas produzidas para a questão das contribuições sociais da profissão consistem em críticas à atual cena política brasileira, sendo que uma delas (categorizada em Respostas Indefinidas) um estudante do terceiro ano de uma escola particular diz: “O que o Brasil faz por mim? Os políticos são corruptos. Meus pais pagam impostos e a qualidade das escolas públicas não melhora”.

Por fim, cabe observar, que poucas foram as respostas que, efetivamente, corroboram a hipótese formulada com base na literatura explorada (4,3%). Além das evidentes e exclusivas preocupações com a realização pessoal e com o lugar de visibilidade ocupado por ser um exemplo, alguns estudantes dizem não saber como melhorar a comunidade por nunca terem pensado sobre o assunto. Ou, ainda, que aquela era apenas uma resposta fantasiosa, pois, na realidade, não se pensava numa contribuição social.

Os resultados concernentes às contribuições sociais da profissão apontam, então, para uma realidade mais otimista do que a esperada: talvez as configurações socioeconômicas regionais não estejam ainda tão impregnadas pelo espírito individualista pós-moderno. Ou, talvez, como postulam Foucault (1995, 1999) e Guirado (1995/2006), o assujeitamento aos modos de subjetivação contemporâneos não anula, de todo, a possibilidade de resistência.

Nessa perspectiva, pôde-se delinear, na análise dos discursos pesquisados, um interessante paradoxo: se, por um lado, o projeto individual do adolescente, e mesmo algumas das contribuições sociais imaginadas, parecem ser influenciados pela totalidade histórica (neoliberalismo, globalização, alienação na individualidade, etc.), assujeitando- se, assim, às práticas sociais discursivas instituídas, por outro lado, em relação às imagens sociais da profissão, uma certa resistência a esses discursos orientados pela lógica do mercado, parece se fazer valer, dando espaço a valores tradicionais da sociedade de longo prazo (Sennett, 2004), como o altruísmo e a solidariedade. E isto, cabe notar, constitui-se como recorrência nos discursos analisados, o que permite afirmar que os adolescentes pesquisados, independente de condição econômica ou gênero, parecem estar inseridos nas lógicas globais contemporâneas, compartilhando os mesmos sonhos e os mesmos receios em relação às suas vidas futuras.

A inserção nessas lógicas, porém, não necessariamente precisa ser compreendida como total captura de suas subjetividades, pois, se, por um lado, efetivamente os discursos dos adolescentes produzem-se em consonância aos discursos sociais (legitimando-os), onde prevalecem o imediatismo, os projetos a curto-prazo, o individualismo, o consumismo (priorização do sucesso financeiro) e um certo descomprometimento com projetos de vida que levem em conta a possibilidade de transformação social e a vida em comunidade, por outro lado, esses mesmos discursos evidenciam algumas rupturas em relação aos novos modos de viver. Como exemplo dessas rupturas, vale mencionar: a presença de sonhos e de valores tradicionais da sociedade de longo prazo (constituir família, obter um emprego estável, realizar-se como pessoa fazendo o que gosta, relacionar-se com a profissão como se fosse um casamento para toda a vida, agir humanitariamente no exercício profissional), a realização pessoal pensada como algo que transcende o projeto profissional ou familiar e que valoriza a qualidade de vida, e a afirmação de contribuições sociais do exercício profissional.

Entende-se que esse duplo movimento, mais do que constituir contradição no discurso, caracterizaria o paradoxo em que se fundam os modos de subjetivação: as subjetividades sendo produzidas na tensão, referida anteriormente, entre o assujeitamento e a resistência.

Assim, ao invés de rotular esses adolescentes como individualistas e socialmente descompromissados, talvez fosse mais produtivo pensá-los como sujeitos que, a seu modo, buscam soluções orientadas de acordo com a veracidade histórica que os cercam. Soluções estas que, longe de caracterizarem uma alienação, permitem-lhes, talvez, lidar com um outro paradoxo: o dos discursos sociais que lhes sinalizam onipotência ao mesmo tempo em que os colocam em situação de espera... que lhes exigem auto-gestão de carreira e lhes demandam responsabilidade social...

Nesse sentido, a discussão desses paradoxos, a explicitação e a valorização dos mecanismos de resistência às práticas instituídas nos cenários profissionais contemporâneos (no sentido de viabilizar novas posições subjetivas &– como a de protagonista social, por exemplo), lado a lado à instrumentalização para a escolha profissional e para a construção de um projeto de vida, poderiam constituir um dos objetivos da orientação profissional.

 

Referências

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Recebido: 10/8/07
1ª Revisão: 09/10/07
Aceite Final: 12/10/07

 

 

1 Agradecimentos aos parceiros de pesquisa, Rafaela Kamaroski e Rodrigo Auffinger, e a todos os colegas participantes do projeto de extensão “Cresça e Apareça: uma proposta de orientação profissional”, engrenagens deste processo. À UFPR/TN pelo apoio ao projeto.
2 Endereço para correspondência: Rua Francisco Torres, 270/54, 80060-130, Curitiba, PR. Fone: (41) 84431756. E-mails: reneevolpato@yahoo.com.br; luvalore@uol.com.br.

 

Sobre os autores
* Luciana Albanese Valore é professora do departamento de Psicologia da UFPR, doutora em Psicologia escolar e do desenvolvimento humano pela USP e coordenadora dos projetos de pesquisa e extensão referentes a este trabalho.
** Renee Volpato Viaro é graduado em Psicologia, pela UFPR. Foi bolsista de iniciação científica do projeto de pesquisa “Orientação Profissional e Projeto de Vida: contribuições possíveis, desafios necessários” e voluntário do projeto de extensão universitária “Cresça e Apareça: uma proposta de orientação profissional”.

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