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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof v.9 n.2 São Paulo dez. 2008

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL

 

Tornar-se psicólogo: experiência de estágio de Psico-oncologia em equipe multiprofissional de saúde1

 

Becoming a psychologist: a Psycho-oncology training experience with a multiprofessional health staff

 

Tornarse psicólogo: experiencia de Psico-oncología práctica en equipo multiprofesional de salud

 

 

Fabio Scorsolini-CominI * 2; Laura Vilela e Souza**; Manoel Antônio dos Santos***

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto - São Paulo, Brasil

 

 


RESUMO

O objetivo do trabalho é discutir a construção da identidade profissional do estagiário de Psicologia a partir da atuação de estudantes quintoanistas em um serviço público de atenção multiprofissional em saúde, com pacientes mastectomizadas (REMA/EERP-USP). Os dados foram obtidos por meio dos registros de observações dos atendimentos realizados pela equipe e das supervisões recebidas durante um ano de intervenção. Os dados foram analisados com base no referencial psicoeducativo. Os resultados revelam que, além da aprendizagem sobre a temática do câncer, os estudantes puderam desenvolver o conhecimento sobre novas possibilidades da intervenção psicológica, ao realizarem atividades de caráter não-clínico junto às pacientes e também ao participarem de supervisões e reuniões da equipe multiprofissional. Discute-se que essas atividades contribuíram para caracterizar o papel profissional, possibilitando a ressignificação do fazer psicológico e a assunção de uma identidade profissional comprometida com a realidade, oferecendo ao estudante a possibilidade de se formar de maneira menos estereotipada, desenvolvendo um espírito questionador, empreendedor e criativo.

Palavras-chave: Identidade profissional, Formação profissional, Formação do psicólogo, Psico-oncologia.


ABSTRACT

This study aims at reflecting on the Psychology students’ professional identity construction. The subjects were fifth grade students doing their practice training process in a public multiprofessional health care service, attending mastectomized patients (REMA/EERP-USP). The data were obtained from recordings of observations of attendance done by the multiprofessional staff and supervision received by the students, during one year of intervention. The data were analyzed qualitatively according to the psycho-educational approach. The results showed that, besides learning about cancer, the students were able to develop their knowledge about new possibilities of psychological interventions by participating in non-clinical activities with patients and also from the supervision events and meetings with the multidisciplinary staff. Those activities were shown to contribute to characterize the professional role, making it possible to attribute new meanings to psychological interventions, as well as assuming a professional identity compromised with reality. Those activities also gave students the opportunity to get training in a less stereotyped way, helping them to develop a questioning, entrepreneur and creative spirit.

Keywords: Professional identity, Professional education, Psychologist education, Psycho-oncology.


RESUMEN

El objeto del trabajo es discutir la construcción de la identidad profesional del practicante de Psicología a partir de la actuación de estudiantes de quinto año en un servicio público de atención multiprofesional en salud, con pacientes con mastectomía (REMA/EERP-USP). Los datos se obtuvieron de los registros de observaciones de las atenciones realizadas por el equipo y de las supervisiones recibidas durante un año de intervención. Los datos se analizaron con base en el referencial psicoeducativo. Los resultados revelan que, además del aprendizaje sobre la temática del cáncer, los estudiantes pudieron desarrollar el conocimiento sobre nuevas posibilidades de la intervención psicológica, al realizar actividades de carácter no clínico con las pacientes y también al participar de supervisiones y reuniones del equipo multiprofesional. Se discute que esas actividades contribuyeron para caracterizar el papel profesional, posibilitando la resignificación del hacer psicológico y la asunción de una identidad profesional comprometida con la realidad, ofreciendo al estudiante la posibilidad de formarse de manera menos estereotipada, desarrollando un espíritu cuestionador, emprendedor y creativo.

Palabras clave: Identidad profesional, Educación profesional, Formación del psicólogo, Psicoeducación.


 

 

De acordo com Laurenti e Barros (2000), para se discutir a concepção de identidade enquanto uma categoria de análise, a mesma deve ser compreendida como uma construção social, marcada por polissemias que devem ser entendidas como circunscritas ao contexto que lhe confere sentido. Para este trabalho, corroboramos a visão dessas autoras e abordamos a identidade associada à multiplicidade de sentidos e vozes que atravessam a configuração do termo ao longo da história e dentro de um mesmo período histórico (Bakhtin, 1999; Spink, 2003), considerando as contribuições de diferentes áreas do conhecimento e destacando especificamente como a mesma é compreendida no campo da Psicologia, a partir de uma determinada visão de homem.

Segundo Jacques (2002), a palavra identidade evoca tanto a qualidade do que é idêntico, igual, como a noção de um conjunto de caracteres que fazem reconhecer um indivíduo como diferente dos demais. Assim, a identidade implica tanto no reconhecimento de que um indivíduo é o próprio de quem se trata, como também pertence a um todo, confundindo-se com outros, seus iguais (Laurenti & Barros, 2000). Segundo Paiva (2007), ao se pensar na questão da identidade atualmente, trabalhada por este autor em termos de identidade psicossocial, deve-se destacar o rompimento da unidade dialética associada ao conceito, a saber, o da permanência na mudança. Assim, corrobora o pensamento de Ciampa (1987), segundo o qual as pessoas vão se transformando à medida que interagem com outras pessoas e outros grupos, em um processo denominado “metamorfose”. Gadotti (1983) aborda essa transformação na identidade em termos de dialética, destacando que o movimento é uma característica inerente a todas as coisas e estas necessitam ser consideradas em seu devir. A natureza e a sociedade (e também as pessoas) não são vistas como algo pronto e acabado, mas como elementos que estão em constante transformação. E a causa dessa transformação é a luta interna, a luta entre os elementos contraditórios que coexistem em uma totalidade estruturada.

Acerca das atuais discussões sobre identidade profissional, Duarte (1988) destaca a influência do individualismo, definido como um fluxo localizado de idéias e valores presentes nos segmentos letrados e intelectualizados das classes médias das sociedades modernas, cujo acento recai sobre a categoria “indivíduo”, não no sentido do agente empírico, mas enquanto valor moral, e configuração abstrata calcada em valores como liberdade e igualdade. A partir disso, há a concepção de um indivíduo autônomo, destacado de vínculos e dos determinismos universalmente definidos pela cultura, que marca a ideologia ocidental moderna.

Historicamente, segundo Laurenti e Barros (2000), no campo da Psicologia, os estudos sobre identidade são tratados geralmente pela Psicologia Analítica do Eu e pela Psicologia Cognitiva, que compartilham a noção de desenvolvimento marcado por estágios crescentes de autonomia, entendendo a identidade como produto da socialização e garantida pela individualização. Segundo Jacques (2002), a Psicologia sustenta uma diversidade significativa sob seu manto, o que nos remete à discussão sobre a identidade desta ciência e também do psicólogo. A identidade do psicólogo e a delimitação de seu campo de estudo tem aparecido ultimamente no embate com outros profissionais em atividades ou formas de atuação tradicionalmente do campo da Psicologia, não levando a um diálogo que conduza à multidisciplinaridade, mas justamente levantando questionamentos relativos ao mercado profissional. Exclui-se desse debate justamente quais os ganhos que esta multidisciplinaridade pode promover e de que modo pode afetar a construção de uma identidade de cada um dos profissionais envolvidos, no caso, dos psicólogos.

Observa-se, segundo Dimenstein (2000), que é o sujeito psicológico que permeia os saberes e as práticas dos profissionais da Psicologia, concepção que surgiu a partir destes saberes e que é compatível com os ideais da modernização da sociedade brasileira e disseminação dos ideais individualizantes. Para esta autora, a identidade do psicólogo brasileiro tem relação direta com este processo de hegemonização do ideário individualista, de intensa difusão das teorias e práticas psi &– mediatizada pelos especialistas da área &– e de um modelo específico de subjetividade. No âmbito da saúde, especificamente, a atuação do psicólogo se iniciou sem que houvesse uma revisão de concepções teóricas e modelos práticos, o que provocou um enfoque centrado em uma noção de indivíduo abstrato e a-histórico (Spink, 2003).

De acordo com Yamamoto (1987), a Psicologia cresceu comprometida com o capital e o consumo, servindo principalmente de suporte científico das ideologias dominantes e de auxílio na perpetuação do status quo ao longo de seu percurso de legitimação social. Em função disso, Dimenstein (2000) considera que a Psicologia muito pouco exerceu, ou vem exercendo, um papel questionador e transformador das instituições e das relações pessoais. Pelo contrário, vem contribuindo mais para a reprodução das estruturas sociais e das relações de poder.

Segundo Botomé (1996), Gil (1985) e Martín-Baró (1997), muitas vezes o psicólogo não tem claro como o conhecimento que utiliza (técnicas e conceitos) é produzido e a quem beneficia, de maneira que termina contribuindo para o controle social da população. Esse processo se inicia no mundo acadêmico, conforme aponta Botomé (1996), pela adesão cega a teorias, técnicas, modelos e rituais profissionais que condicionam determinadas classes de respostas, consideradas suficientes e adequadas para explicar os problemas independentemente de quem os apresenta e de suas características. Assim, o poder é exercido, encoberto por uma formação que em muito contribui para isentar o profissional de sua responsabilidade social e pessoal.

Segundo as reflexões de Dimenstein (2000), os cursos de Psicologia têm se caracterizado ao longo dos anos por não possibilitarem ao aluno o conhecimento dos aspectos sociais, históricos, políticos e ideológicos que determinam sua prática e a realidade em que atua. Os currículos desses cursos, ainda segundo a autora, espelham e produzem um modelo hegemônico de atuação profissional que determina a representação social que o público tem da Psicologia e do psicólogo. Há, neste sentido, uma valorização do psicólogo enquanto profissional liberal e autônomo durante a sua formação, de forma a definir a profissão para o público externo e se constituir em forte pólo de atração para os que buscam a profissão, fato que tem como conseqüência a hegemonia desse modelo nos cursos de Psicologia e sua impregnação em outros campos de atuação diferentes da clínica.

Bock (1999) expõe que as discussões acerca da identidade profissional buscam uma “cara” para a Psicologia, supondo em poder mantê-la depois de encontrada. Atualizando a recente história da Psicologia enquanto ciência, Bock afirma que a mesma foi concebida a partir de uma visão dicotômica, tentando explicar o movimento do mundo psicológico como um movimento interno, gerado por si mesmo. Esta tradição naturalizante do fenômeno psicológico oferece uma perspectiva de profissão que sempre compreendeu a intervenção psicológica como curativa, remediativa, terapêutica. Esta constatação vem se modificando, uma vez que a realidade objetiva, o mundo social e cultural vem invadindo nosso conhecimento e já não podemos mais falar de mundo psicológico sem considerar o mundo social e cultural. Para Bock (1999), ainda está se construindo um modelo de relação entre estes mundos, entendendo que estes se influenciam e não que constituem um ao outro. Isto não significa ainda uma superação da dicotomia, mas um exercício no sentido de compreender o humano em suas diferentes constituições e determinações. Para Bazon (1995), a identidade do profissional de Psicologia, assim como a identidade pessoal, deve ser abordada em uma perspectiva desenvolvimental, enquanto um processo a partir das transformações e continuidades detectadas ao longo do tempo.

Transpondo essas considerações de identidade para o contexto da formação profissional, pode-se considerar a carreira como a combinação e seqüência de papéis desempenhados por uma pessoa durante o curso de sua vida, incluindo os papéis de estudante e trabalhador, sendo várias as possibilidades de intervenção ao longo da vida (Melo-Silva, Lassance & Soares, 2004). Assim, pode-se entender que a identidade profissional nunca estará pronta, mas estará sempre acompanhando o movimento da realidade (Moscheta e cols., 2005).

Pensando na questão da formação profissional e na experiência de estágio como um espaço de contato entre teoria, prática e construção de uma identidade, Gondim (2002) coloca que, comumente, as habilidades cognitivas obtidas no processo de educação formal e as técnicas especializadas são privilegiadas nas experiências de estágio, em detrimento das habilidades comportamentais e atitudinais (cooperação, iniciativa, responsabilidade, participação, disciplina, ética e a atitude permanente de aprender a aprender). Neste sentido, apresenta-se como ponto para reflexão a experiência do estágio profissionalizante como propiciadora tanto do desenvolvimento dessas habilidades como da assunção de uma identidade profissional, a partir de uma rotina de atividades, desafios e reflexões do graduando em relação à realidade profissional futura (Scorsolini-Comin, Inocente & Matias, 2008). Além disso, pensando no desenvolvimento profissional, o estágio surge como um primeiro movimento, o de antecipação do que será a profissão (Corwin, 1961), ou seja, as ações do indivíduo sobre as estruturas sócio-profissionais e suas reações à cultura e ao meio (Botomé & Kubo, 2002; Dubar, 1991; Moscheta e cols., 2005).

Temática estudada: o câncer de mama

De acordo com Bergamasco e Ângelo (2001), o Brasil classifica-se entre os países com maior incidência de câncer de mama em todo o mundo. Os dados epidemiológicos que estão disponíveis atualmente permitem considerar o câncer como um problema de saúde pública no Brasil. Segundo Gomes, Skaba e Vieira (2002), com o avanço do diagnóstico precoce do câncer de mama graças à tecnologia avançada de imagem, houve a possibilidade do diagnóstico inicial e ainda restrito do tumor sem ter se propagado pelo corpo, deixando de ser uma doença sistêmica para ser uma doença localizada. Sendo assim, a necessidade da mastectomia deixou de ser um imperativo para o tratamento do câncer de mama, podendo ser retirada apenas a área afetada, proporcionando à mulher a preservação de um órgão de grande importância para a sua feminilidade (Clapis, 1996; Gomes e cols., 2002; Mamede, 1991). Ao câncer é atribuído um significado de algo que cresce e que destrói, o que é associado, em algumas culturas, à punição e ao castigo. Essas crenças podem trazer conseqüências desastrosas, tanto do ponto de vista emocional, como da ação prática e concreta para o enfrentamento da possibilidade de adoecer. Segundo Silva e Mamede (1998) e Sontag (1984), o medo está algo presente em todas as fases do processo de adoecimento, do diagnóstico ao tratamento, o que pode gerar sentimentos de ameaça e reações emocionais que provocarão mudanças nas dimensões biológica, mental e social.

Assim, Gomes e cols. (2002) destacam que a abordagem do câncer envolve sentimentos que são difíceis de ser administrados, tanto por parte dos profissionais, como por parte das pessoas em geral. Entre eles estão o medo da dor, resignação diante da percepção de que sua doença terá um desfecho fatal e a negação da própria doença. Esses autores ainda afirmam que para que os profissionais de saúde possam lidar com essa problemática, é preciso que haja, além do entendimento da dimensão psicológica, uma compreensão sócio-antropológica do contexto e da situação social em que se encontra o sujeito da doença (Vasconcelos, 1997).

 

OBJETIVO

Discutir a construção da identidade profissional do estagiário de Psicologia a partir da experiência de atuação em um serviço de atenção multiprofissional em saúde, com mulheres diagnosticadas com câncer de mama.

 

MÉTODO

Os participantes são seis estudantes quintoanistas do curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), no ano de 2006. Estes estudantes possuíam, à ocasião do estágio, idade média de 22 anos, eram provenientes de classe média-alta e residentes na própria cidade. O estágio realizado não foi a primeira experiência de nenhum dos participantes, nem mesmo de caráter clínico, ou seja, todos já haviam concluído outros estágios, além de estágios de atendimento clínico grupal e individual. A experiência relatada é de um estágio profissionalizante na área de Psico-oncologia, intitulado “Atuação em Psico-oncologia: atenção interdisciplinar a mulheres mastectomizadas”, oferecido pela FFCLRP-USP.

O local de realização do estágio é um serviço público de atenção multiprofissional a mulheres mastectomizadas do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Assistência na Reabilitação de Mastectomizadas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (REMA/EERP-USP). O REMA é um serviço que foi criado em 1989 por profissionais da área de Enfermagem, pautado na articulação entre ensino, pesquisa e extensão universitária. É composto por uma equipe multiprofissional que conta com enfermeiros, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e psicólogos. O objetivo central do REMA é prestar assistência multidisciplinar gratuita a mulheres mastectomizadas e seus familiares, bem como em capacitar e treinar profissionais, alunos de graduação e pós-graduação em Enfermagem e em outras áreas da saúde para a reabilitação psicossocial de pacientes com câncer de mama. Neste serviço, há a evidência de que a atenção em saúde não se restringe apenas aos cuidados anátomo-patológicos, mas também abrange cuidados biopsicossociais (Santos, Moscheta, Peres & Rocha, 2005). De modo geral, as participantes têm idade média de 50 anos de idade, são de classe econômica baixa e provenientes de Ribeirão Preto-SP e de outras cidades da região. O perfil clínico das pacientes é diversificado, pois parte da clientela assistida foi recém-submetida à mastectomia, ao passo que outra parte finalizou o tratamento médico da doença há vários anos e freqüenta o serviço com o intuito de evitar a ocorrência de complicações tardias.

Entre as modalidades de atuação colocadas em prática pela equipe de Psicologia do REMA encontra-se o grupo de apoio, implementado desde os anos iniciais do serviço, em que possuía um enfoque essencialmente educativo e informativo. Com a inserção da equipe de Psicologia nesse serviço, no ano de 2000, procurou-se ampliar esse objetivo, valorizando os aspectos emocionais das pacientes. O grupo de apoio tem o objetivo de favorecer, a partir da interação e da troca de informações entre as participantes, a aquisição de insights capazes de contribuir para o desenvolvimento de recursos adaptativos latentes e para a adoção de estratégias de enfrentamento mais eficazes frente à doença e seu tratamento (Santos e cols., 2005). Outra atividade do estagiário de Psicologia é se dedicar a atendimentos clínicos individuais e semanais. Assim, cada estagiário é convidado a atender uma paciente durante todo o período de realização do estágio. Além dessas atividades, ele ainda integra a equipe multiprofissional do serviço e participa ativamente de atividades como reuniões clínicas, estudos de caso, organização de eventos, entre outros.

Os resultados aqui apresentados foram coletados durante um ano de supervisão dos estagiários. Os dados foram coletados de três formas distintas: (a) Observações da atuação dos estudantes durante as supervisões semanais; (b) Relatos verbais dos estagiários durante as supervisões (que foram devidamente anotados pelos supervisores, para posterior análise), acerca de suas dificuldades e possibilidades durante o período de estágio; (c) Relatórios de estágio mensais e finais, redigidos pelos estagiários e entregues para os supervisores e coordenadores. A análise desses materiais foi feita de modo qualitativo, a partir da leitura exaustiva e do destaque das unidades de significado que emergiram das transcrições dos relatos verbais e observações das supervisões e da atuação dos estagiários, bem como de seus relatórios.

Trata-se de um estudo exploratório, dentro de um enfoque de pesquisa qualitativa apoiada no referencial teórico da Psicoeducação, que será trabalhado na discussão (Bazon, 2002; Bazon, Azevedo & Pestana, 2005). Optou-se pela adoção dessa estratégia metodológica por possibilitar uma compreensão particular do objeto de estudo a partir das potencialidades da intervenção segundo este modelo. O enfoque qualitativo de pesquisa se propõe a investigar em profundidade um determinado fenômeno, na perspectiva de quem o vivencia, isto é, de seus protagonistas (Martins & Bicudo, 1989). A pesquisa qualitativa se preocupa com o nível de realidade que não pode ser quantificado, ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes (Minayo, 1994). Na pesquisa qualitativa, o pesquisador está preocupado com as marcas discursivas contidas no relato com o qual o indivíduo busca se apropriar de suas experiências. Não parte de uma teoria pré-estabelecida, mas, movido pela sua inquietação original, busca compreender o fenômeno como algo que pode ser narrado de maneiras distintas por aqueles que o vivenciam. Desse modo, busca-se abarcar a perspectiva dos próprios estudantes por meio de todo o conteúdo de seus relatos e observações.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir das contribuições de diferentes autores a respeito da identidade profissional, podemos refletir acerca de uma experiência de estágio como possibilitadora de contato com a realidade no campo da saúde e de ressignificação de alguns paradigmas do atendimento psicológico, tais como o enfoque exclusivamente individual e a manutenção de uma postura do psicólogo que o afasta da realidade com a qual tem que lidar. Esta reflexão se dará por meio de eixos temáticos construídos a partir dos dados levantados.

O outro que não está em mim: o estagiário de Psicologia frente à realidade das pacientes

Quando o psicólogo passa a trabalhar no campo da saúde, especificamente nas instituições públicas, ele se depara com uma clientela e com um tipo de demanda que diferem substancialmente das que ele atende na clínica privada (ou, no caso do estagiário, com a qual ele espera se defrontar). A clientela geralmente é ser constituída pela população de baixa renda, sendo geralmente encaminhada por outra instituição ou profissional de saúde, de maneira que chega com expectativas bastante distintas daquelas próprias à clientela que busca atendimento no consultório privado.

Uma de suas primeiras dificuldades se refere ao comportamento de seu público-alvo e, nesse sentido, o estágio aqui analisado constitui um treino em relação a este impacto, de forma a preparar o aluno para a atuação em um serviço cuja clientela busca, na maioria das vezes, a simples remissão de sintomas. O estagiário de Psicologia também se vê diante de problemas que extrapolam o domínio clínico, referentes às condições de vida da população, as quais têm implicação nos problemas trazidos até a instituição de saúde (Santos e cols., 2005). Não é raro o psicólogo receber uma justificativa de falta ao atendimento por questões como acesso a transporte, à alimentação, entre outros. Na experiência do REMA, tais aspectos são constantemente evocados pela equipe multiprofissional e corporificados nas falas das pacientes, notadamente nos atendimentos em grupo. Este aspecto foi um dos primeiros a impactar os estudantes, que tiveram que não apenas lidar com a realidade nova, como também refletir sobre as causas desses posicionamentos, os repercussões no tratamento, as estratégias a serem desenvolvidas e também o impacto nas suas próprias concepções de tratamento, adoecimento e enfrentamento.

O que é discutido por Dimenstein (2000) é que tais desafios não seriam problemáticos se o profissional não esbarrasse em limitações teóricas e técnicas específicas de sua formação, aportes que fundamentam seus modelos de atuação, sua identidade e cultura profissional. Neste sentido, é preciso que o psicólogo veja o outro que o procura como uma pessoa que está inserida em um determinado contexto social, que é diferente dos demais e possui necessidades específicas.

A atuação em Psicoeducação, segundo Bazon, e cols. (2005), prevê o investimento concomitante em três dimensões inerentes à tarefa de intervir no experiencial: o saber, o saber-ser e o saber-fazer. O saber está relacionado ao conhecimento científico que o profissional (no caso, o estagiário) precisa ter a respeito de grupos, desenvolvimento humano, atendimentos individuais, câncer de mama, repercussões físicas da doença, contexto social, dentre outros, o que era obtido durante as supervisões.

O saber-ser refere-se à postura do profissional frente à clientela, às suas atitudes que permitem estabelecer um contato acolhedor, eficaz e ético, estimulando a reflexão da paciente (individualmente ou em grupo, nos atendimentos psicoterápicos, além das atividades ditas não clínicas, como passeios e festas, por exemplo), a fim de que possa compreender a si e ao mundo de forma consciente.

O saber-fazer se relaciona à própria atuação do profissional, a sua prática cotidiana na instituição e animação de atividades e na utilização de eventos de vida compartilhados (Bazon, 2002). Durante a realização do estágio, ofereciam-se espaços nos quais os estagiários, a equipe e as pacientes podiam compartilhar não apenas uma atividade, mas sentimentos e expectativas, levando a uma relação pautada no desenvolvimento de todos. Ou seja, pelo referencial adotado, o estagiário era convidado a “ser” juntamente com as pacientes. Mais do que dois elementos de uma díade, paciente e estudante “são” em um mesmo contexto de intervenção, o que possibilita uma prática pautada na reflexão constante, abrindo-se muitas possibilidades, em um movimento bidirecional “eu-outro” e “outro-eu”.

A voz do estagiário de Psicologia na reunião de equipe

As reuniões de equipe multiprofissional, dentro do serviço de atenção a mulheres mastectomizadas, vêm se revelando uma alternativa importante na busca pela compreensão do humano em todas as suas facetas. Aqui cabe um questionamento também: como ficam os valores e a realidade dos profissionais que trabalham com esta clientela? A reunião quinzenal de equipe, neste sentido, desconstrói a idéia dos encontros centrados em casos de pacientes, focados na atenção a um determinado problema. Os estagiários relataram, por vezes, que as reuniões eram produtivas não apenas por mostrar aspectos importantes dos casos atendidos pelos estudantes, mas por servir como um espaço no qual a equipe podia refletir, trocar experiências e pensar em possibilidades de intervenção naquele contexto.

Uma das observações registradas neste sentido refere que, por ocasião de uma das reuniões de equipe, os profissionais estavam abalados com três perdas de pacientes em menos de um mês. Os profissionais relatavam que as outras pacientes estavam melancólicas e em processo de luto, que também era sentido em relação à história de adoecimento de cada uma. Este evento mobilizou a equipe a se reunir e pensar em estratégias para trabalhar com as pacientes. Em um segundo momento, na reunião, os profissionais começaram a destacar as suas próprias dificuldades em lidar com esta situação específica e com um processo de luto que passava não apenas pelo aperfeiçoamento profissional, mas pelo desenvolvimento pessoal. Assim, este mesmo espaço utilizado para fins clínicos passou a ser útil, naquele momento, como espaço para que os profissionais discutissem o modo como atuam e como são impactados pela realidade experienciada a cada dia. Neste processo, os estagiários puderam trazer suas contribuições. Uma delas se refere a uma dinâmica elaborada por eles e aplicada aos demais profissionais, na qual todos eram convidados a pensar nos diversos lutos que já tinham sofrido e de que modo isso repercutia na maneira como eles encaram o luto pela perda das pacientes. Este episódio foi descrito como marcante pelos estagiários em seus relatos de campo pela possibilidade de intervenção em equipe e na equipe e também pela assunção de uma posição diferenciada naquele momento e aquisição de autonomia: eles estavam coordenando uma técnica para a equipe multiprofissional. Essas dinâmicas coordenadas pelos estagiários se deram em mais outras reuniões, sempre finalizando os encontros e sendo encaradas como um processo terapêutico e de ganho para todos os profissionais envolvidos.

O conceito de equipe trazido no presente estágio extrapola a concepção tradicional e encara o profissional de saúde como possuidor de desejos, necessidades, conflitos, e portanto, também precisa de um espaço para trocar experiências, percepções, dúvidas, medos (Vasconcelos, 1997). Assim, esses encontros quinzenais passaram a ser destinados não só à discussão de casos clínicos e de aspectos do funcionamento do serviço, mas também à expressão de necessidades dos profissionais que atuam na área. Como se pode compreender o outro, a realidade do outro, se não se compreende nem mesmo a realidade daquele que se coloca ao nosso lado? A partir desta constatação, cada vez mais os profissionais têm se esforçado para cultivar a reunião de equipe como um espaço aberto para a constante construção das suas identidades, primando pela multidisciplinaridade, pelo encontro de diferentes saberes e diferentes pontos de vista acerca de um tema.

Ainda de acordo com Dimenstein (2000), voltando à questão da clientela atendida, o modelo de subjetividade próprio aos pacientes que compõem os serviços públicos de saúde, em muito se diferencia do modelo psicológico dos terapeutas e da classe média em geral, pois se trata de uma subjetividade relacional e situacional. Estes diferentes modelos de subjetividade implicam em concepções diversas de causalidade e cura das doenças &– pois ancoradas em diferentes culturas somáticas &– e em diferentes expectativas quanto ao tratamento psicoterápico oferecido pelos psicólogos, no que diz respeito à sua necessidade e eficácia (Spink, 2003).

A relação estagiário-paciente como constituinte da identidade profissional

Dimenstein (2000) salienta que é preciso que terapeutas e pacientes compartilhem de um mesmo “projeto psicoterápico”, ou seja, que pacientes e terapeutas devem partilhar das mesmas idéias de causalidade e cura, acreditar que estão nas experiências passadas as raízes do seu sofrimento atual e se auto-representar como um indivíduo autônomo, dotado de uma interioridade, capaz de mudar o curso da sua história. Como partem de diferentes contextos culturais, com diferentes visões de mundo, terapeutas e pacientes geralmente não compartilham de um mesmo projeto terapêutico. Daí ser muito freqüente os casos de abandono de tratamento pela população, que não vê sentido nas técnicas e procedimentos típicos das psicoterapias, que se configuram como um arsenal que não funciona terapeuticamente para elas.

Neste sentido, a partir dos relatos de estágio, pode-se identificar que os estudantes tinham certa dificuldade de partilhar de um mesmo projeto psicoterápico com as pacientes, haja vista que, muitas vezes, pacientes e terapeutas apresentavam posturas diferentes e representações diversas do que seria o sofrimento, o processo de adoecer e o enfrentamento desta realidade. Os estagiários destacaram a dificuldade de compreender as limitações de certas pacientes diante do enfrentamento de uma realidade que muitas vezes se mostrava cruel e opressiva. Com a experiência ao longo dos atendimentos, os estagiários começaram a perceber que este projeto passava a ser desenhado entre a díade, passando a haver uma interação e uma sintonia, o que se refletiu em aceitação, empatia e possibilidade de ressignificação do tratamento, como corroborado por outras experiências a partir do referencial psicoeducativo (Moscheta e cols., 2005).

Outro aspecto que deve ser enfatizado é a vivência compartilhada, ou seja, a relação que se estabeleceu no cotidiano por meio das relações vividas entre estagiários, equipe e pacientes. Em outras palavras, entre os estagiários e o(s) outro(s). Todo o tempo que o estagiário passava com as pacientes, seja em de uma atividade estruturada de grupo ou atendimento individual, de intervalo para café ou de passeio em grupo, constituía-se como fundamental para o desenvolvimento desse laço entre eles. Enfatizou-se junto aos estagiários que essa vivência deveria se tornar significativa tanto para eles quanto para as pacientes com as quais estavam interagindo ou entrando em contato.

A quebra desse paradigma, a nosso ver, é um dos pontos de destaque do estágio aqui discutido, uma vez que se prima pelo contato entre o psicólogo (estagiário de Psicologia) e a população atendida (mulheres acometidas pelo câncer de mama), em uma aproximação de valores, crenças e compartilhamento de experiências. Este contato permite que diferentes selves se misturem, se conheçam, se reconheçam e construam juntos uma nova realidade, que é aquela que se apresenta naquele dado momento histórico (Moscheta e cols., 2005; Santos e cols., 2005).

A quebra desse paradigma, a nosso ver, é um dos pontos de destaque do estágio aqui discutido, uma vez que se prima pelo contato entre o psicólogo (estagiário de Psicologia) e a população atendida (mulheres acometidas pelo câncer de mama), em uma aproximação de valores, crenças e compartilhamento de experiências. Este contato permite que diferentes selves se misturem, se conheçam, se reconheçam e construam juntos uma nova realidade, que é aquela que se apresenta naquele dado momento histórico (Moscheta e cols., 2005; Santos e cols., 2005).

O psicólogo situado

A possibilidade de participação do psicólogo em atividades ditas não-psicológicas ou não-clínicas, como organização de festas, confraternizações, promoção de bazares, jogos e brincadeiras com as pacientes em datas específicas, participação em passeios e conversas informais durante os intervalos dos atendimentos, entre outros, contribui para que o estagiário vá construindo uma nova forma de estar junto com seus pacientes, de apreendê-los em seus questionamentos habituais, em sua realidade (Bazon e cols., 2005).

Em um primeiro momento, o envolvimento do estagiário em tais atividades pode soar como um afastamento do psicólogo de seu campo de atuação, confundindo a sua prática com outras ditas não-psicológicas. A supervisão nesse sentido, do estágio e a oportunidade de ressignificar o fazer psicológico dentro de um serviço de atendimento multiprofissional acaba, no entanto, promovendo um repensar dessa postura, fazendo com que o estagiário busque formas de atuar como psicólogo mesmo em atividades que, tradicionalmente, não estejam ligadas ou sejam semelhantes ao que ele concebe como sendo um atendimento, por exemplo.

Por vezes, este não vem se mostrando um exercício simples, na medida em que se trabalha, ainda, dentro de um modelo biomédico individualizante, algo também manifesto na própria formação dos profissionais de Psicologia no país. Sendo assim, a ruptura deve ser encarada como um movimento necessário de transformação. Um movimento que não apenas se adequa à realidade social e cultural que se mostra, mas também ao outro que nos procura e ao qual precisamos ter acesso para compreendermos suas nuanças e desejos.

E como é possível ser psicólogo dentro desse novo enfoque? Como não perder o limite entre o psicológico e o não-psicológico? Aqui balizamos alguns apontamentos. A experiência do “estar com” é importante e pode ser uma forma de ter acesso ao paciente, conhecer seus motivos, suas demandas, seu modo de agir e conduzir sua própria vida. Isso, porém, nos diz pouco.

O desafio, justamente, é desenvolver o que chamamos de “ser com”, que é a possibilidade de o psicólogo partilhar valores, crenças, pontos de vista, visões de mundo e desejos (Bazon e cols., 2005). “Ser com” o paciente pode não apenas ressignificar o modo de se estar junto e de compreender o outro, mas também ser um novo modo de compreender a atuação psicológica comprometida com a realidade na qual se insere e com as múltiplas facetas que compõem o fenômeno psicológico &– o outro! “Ser com” o paciente é se permitir experimentar uma nova visão de mundo, um novo modo de se estar junto e de construir um saber, uma possibilidade, uma intervenção.

Por fim, um ponto cada vez mais considerado é a oportunidade de acessar o paciente em diferentes settings, em diferentes atividades que extrapolam o atendimento clínico tradicional, o que pode ser muito rico para o tratamento, uma vez que compreendendo a realidade pode-se compreender o sujeito psicológico que se apresenta e em relação ao qual nos colocamos enquanto psicólogos.

Concluímos esta discussão com um comentário de um dos estagiários, em seu relatório final de estágio, que sintetiza a importância dessa experiência para a sua formação profissional. Nele, o estudante narra a importância do estágio e o modo como esta experiência o influenciou na construção do que é ser psicólogo, uma experiência que é individual e que ilustra muitas das considerações tecidas neste estudo:

O estágio do REMA foi a minha primeira oportunidade de estágio na qual tive que me dedicar de corpo e alma. Compreender histórias de vida tão particulares não foi nada fácil. Cada perda de paciente, cada ausência, tudo ali adquiria um significado maior. Inclusive as coisas boas! A experiência clínica foi algo que me acrescentou muito como psicólogo, período em que tive que reavaliar as minhas dificuldades, meus limites e pensar nos diferentes modos de se compreender as nuanças de cada paciente. Com certeza, um grande aprendizado de grupo! Silêncios, defesas, esperanças reveladas, guardas abaixadas, recomeços a cada encontro. Recordo-me de todos os passeios e de todas as oportunidades em que todos estavam juntos, a troca era sempre enriquecedora. Ver aquelas mulheres tão cheias de garra, de fé, de fibra e, ao mesmo tempo tão frágeis, tão carentes de um olhar mais terno, mais aconchegante... Posso dizer que aprendi muito com cada uma delas. Quando saio na rua e encontro com alguma delas, penso sempre na admiração que sinto. Elas sobreviveram, se superaram. E o desafio é algo constante na vida delas. Não é só o drama do câncer... são todos os outros dramas que acabam existindo na vida de cada um. Os problemas conjugais, familiares, as dúvidas, os dissabores, as conquistas. E elas sabem muito bem disso e sabem ressignificar o que é ser mulher, o que é ser humano, o que é vestir a camisa da sua dor e romper com as amarras, sonhar mais alto, quiçá. Fica muito carinho por elas, fica muito respeito, fica muita gratidão pela minha aceitação no grupo, pela oportunidade de estagiar, de mostrar meu trabalho. E fica a saudade. Saudade daquela crença, por vezes infantil, de que tudo poderia se resolver como que por mágica. Saudade daquela crença no novo, no inesperado e no sonho de permanecer. Assim, cada uma delas permanece aqui. E acho que isso é ser eterno. (F., 22 anos, estagiário).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Corroborando as percepções de Bazon (1995) e Bock (1999) , o psicólogo não pode mais manter uma visão estreita de sua intervenção, pensando-a como um trabalho voltado para um indivíduo, como se este vivesse isolado, não tivesse a ver com a realidade social. É preciso ver qualquer intervenção, seja no nível individual, grupal ou institucional, como uma intervenção social, para que sua visão seja ampliada, na medida em que seus agentes não vivem isolados, mas estão imersos em uma realidade social, construindo-a e sendo construídos por ela. Dessa maneira, qualquer intervenção, mesmo que no nível individual, deve ser vista como uma intervenção social e, neste sentido, posicionada (Bock, 1999). Não apenas os cursos de graduação, mas também os estágios ofertados (tradicionais ou não) devem preparar pessoas com capacidade para transformar o conhecimento científico em condutas profissionais e pessoais na sociedade, relativas aos problemas e necessidades dessa sociedade (Botomé & Kubo, 2002).

Nesse processo, operam-se algumas desconstruções (Laurenti & Barros, 2000), como a de que o mundo psicológico não se liga ao mundo social, que sofrimento psíquico não tem nada a ver com condições objetivas de vida, por exemplo. Os psicólogos precisam ter clareza de que, ao fazer ou saber Psicologia, estão com sua prática e seu conhecimento interferindo na sociedade &– se interferem no indivíduo, interferem, conseqüentemente, no nível social. A atuação do psicólogo no referencial psicoeducativo coloca o estagiário em contato com as pacientes de tal maneira que seus modos de pensar, agir e sentir estão constantemente em questionamento. Esta vivência, permeada por inúmeros elementos de transformação, certamente colocam o estudante em uma disposição particularmente vulnerável, em que o enquadramento por meio de supervisões e discussões em grupo faz-se imprescindível (Moscheta e cols., 2005). A supervisão surge como espaço de reflexão e desenvolvimento técnico e também como espaço continente às angústias dos estagiários, em um processo constante de (re)construção de sua identidade profissional. Assim, destaca-se que esta experiência dinâmica oferece aos estudantes a possibilidade de se formar de maneira menos estereotipada, desenvolvendo um espírito questionador, empreendedor e criativo.

Como colocado pelo lingüista Bakhtin (1999), só é possível entender “o outro” (no caso, o paciente) a partir da constatação de que ele não é alguém que está fora de mim, que é estranho a mim, mas como alguém que me constitui, que contribui para o processo de construção de um eu que não me pertence integralmente e que somente existe a partir do olhar do outro. O compromisso permanente é e deve ser com a mudança, haja vista que as diferentes realidades se encontram em constante transformação. Na experiência aqui relatada, não podemos nos comprometer com simples respostas, uma vez que concebemos que as mesmas são co-construídas entre psicólogo e paciente, em suas diversas formas de interação e contato, cada um sendo um “outro” que se constrói e que se aperfeiçoa a partir da possibilidade de contato e encontro humano.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 11/04/2008
1ª Revisão: 18/06/2008
Aceite final: 23/09/2008

 

 

1 Os autores agradecem a toda a equipe profissional e pacientes do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Assistência na Reabilitação de Mastectomizadas (REMA), da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP). Agradecem, também, a todos os estagiários de Psicologia que realizaram o estágio aqui apresentado, principalmente Ana Cláudia Matsuda, Elaine Cristina Silva Gazignato, Daniela Cristina Mucinhato Ambrósio e Nichollas Martins Areco, bem como ao psicólogo Murilo dos Santos Moscheta.
2 Endereço para correspondência: Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto. Departamento de Psicologia e Educação. Av. Bandeirantes, 3900, 14040-901, Ribeirão Preto, SP. E-mail: scorsolini_usp@yahoo.com.br.

 

Sobre os autores
* Fabio Scorsolini-Comin é psicólogo, graduando em Pedagogia e mestrando em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Especialista em Gestão da Educação e pesquisador nas áreas de família e relações conjugais. Bolsista de Mestrado da FAPESP.
** Laura Vilela e Souza é psicóloga, Mestre e doutoranda em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, professora universitária e especialista em terapias de grupo, pesquisadora na área de terapias analíticas de grupo e transtornos alimentares.
*** Manoel Antônio dos Santos é psicólogo, Professor Doutor do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, especialista em terapia de grupo e em terapia familiar sistêmica, pesquisador bolsista de Produtividade Científica do CNPq, com diversos trabalhos nas áreas de câncer, reabilitação psicossocial e grupo.

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