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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof v.9 n.2 São Paulo dez. 2008

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL

 

A Orientação Profissional como método terapêutico e reabilitador de pacientes portadores de doenças crônicas

 

Career counseling as a therapeutical method and rehabilitator of chronic patients

 

La Orientación Profesional como método terapéutico y rehabilitador de pacientes con enfermedades crónicas

 

 

Daniela Cristina Sampaio de Brito* 1; Delba Teixeira Rodrigues Barros**

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte - Minas Gerais, Brasil

 

 


RESUMO

A Orientação Profissional pode ser utilizada como um importante recurso reabilitador em pacientes com determinados diagnósticos, principalmente referentes à doença crônica, em função dos amplos impactos que esta condição pode acarretar na vida do indivíduo. Esses impactos podem ser acentuados de acordo com o tipo de tratamento proposto, como por exemplo, a hemodiálise que ao mesmo tempo em que promove a melhora de alguns sintomas clínicos, pode provocar alterações comportamentais, desadaptação e comprometimento na vida social, afetiva e ocupacional. O estudo de caso ilustrado refere-se a uma adolescente portadora de insuficiência renal crônica que obteve significativa melhora em sua qualidade de vida após um trabalho terapêutico e de orientação profissional.

Palavras-chave: Orientação profissional, Doença crônica, Reabilitação, Qualidade de vida.


ABSTRACT

Career counseling can be used as an important reabilitating resource for patients with certain conditions mainly chronic deseases, because of the ample impacts that those conditions can have on the life of the individual. Those impacts can be stronger depending on the type of treatment adopted, as for instance, hemodialysis, that, at the same time as it promotes the improvement of some clinical symptoms, it can cause behavior alterations, misadaptation and jeopardize the social, affective and occupational life. This is a case study of an adolescent patient with Chronic Renal Insufficiency that had a significant improvement in her quality of life after the clinical treatment and career counseling.

Keywords: Career counseling, Chronic deseases, Rehabilitation, Quality of life.


RESUMEN

La Orientación Profesional puede ser utilizada como un importante recurso rehabilitador en pacientes con determinados diagnósticos, principalmente referentes a la enfermedad crónica, en función de los amplios impactos que esta condición puede acarrear en la vida del individuo. Esos impactos pueden ser acentuados de acuerdo con el tipo de tratamiento propuesto como, por ejemplo, la hemodiálisis que al mismo tiempo que promueve la mejora de algunos síntomas clínicos puede provocar alteraciones comportamentales, inadaptación y comprometimiento en la vida social, afectiva y ocupacional. El estudio del caso ilustrado se refiere a una adolescente con insuficiencia renal crónica que obtuvo una significativa mejora en su calidad de vida después de un trabajo terapéutico y de orientación profesional.

Palabras clave: Orientación profesional, Enfermedad crónica, Rehabilitación, Calidad de vida.


 

 

Quando se pensa em Orientação Profissional (O.P.), é bem provável que no primeiro instante lembremos da problemática que aflige milhares de adolescentes e jovens frente à escolha de uma profissão. Realmente, decidir qual carreira seguir não é algo fácil e muitos menos tranqüilo, pois além de existirem inúmeras alternativas profissionais, coexistem os conflitos, mudanças e exigências do próprio período da adolescência: alterações no corpo, nas relações com os pais, na sexualidade, nos valores e nos conceitos. Questões essas que, de acordo com Moura (2001), estão seguramente presentes para quase todos os jovens.

O que talvez não pensemos é como esses conflitos são vivenciados por adolescentes que estão em condições diferentes da maioria, como aqueles que são portadores de doenças crônicas, citando a exemplo a Insuficiência Renal Crônica (IRC). Além de terem que enfrentar as demandas inerentes a esta faixa etária, esses adolescentes também são obrigados a lidar com as mudanças e desafios que vêm com a doença e seu tratamento que por sua vez influenciam significativamente no presente e no futuro de cada um deles. A prática clínica mostra que nesses casos, o futuro quase sempre é difícil de ser pensado, planejado ou até sonhado. Nessa perspectiva, inclui-se a conquista de uma profissão ou carreira que para muitos trata de uma realidade distante e por vezes nem mesmo considerada, isso de acordo com as especificidades da doença, tratamento, condições físicas, emocionais, história de vida, rede de apoio e cultura onde está inserido.

Saúde e doença são concepções construídas ao longo da história da humanidade e traduzem todo um modo de pensar e conceber o homem. De acordo com Jeammet, Reynaud e Consoli (1982), cada sociedade tem uma representação da saúde e doença e essas são transmitidas para os seus membros de forma a influenciá-los em sua compreensão e processo de adaptação. A sociedade ocidental, por exemplo, valoriza tudo que realça beleza, capacidade e normalidade. Desta forma, a doença, como ressaltam os mesmos autores (1982), passa a ser uma condição recriminada, por representar um estigma de incapacidade, dependência e fraqueza. Ser doente implica em exercer um papel que diz da perda da saúde e de toda a significação que envolve o estado de ser saudável.

Apreender o indivíduo doente além da sua doença, estimulando-o a desenvolver as suas capacidades reais e potenciais são fundamentos do trabalho de reabilitação. Novaes (1975), já mencionava a importância da ampliação do termo reabilitação, ao dizer que essa não está apenas na recuperação do órgão ou membro doente, mas sim no resgate pleno do indivíduo, restaurando a sua posição ativa e útil à sociedade. Faro (2006) parte do princípio de que a reabilitação é um processo de desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e atitudes com os quais o indivíduo doente possa viver com dependência mínima, possibilitando, além do seu resgate físico, a reconquista de sua cidadania. Para Pontes e Hübner (2008), a reabilitação proporciona uma consciência do paciente a respeito de suas capacidades remanescentes, levando-o a uma mudança em sua auto-observação e aceitação da nova realidade. É nesse ponto que a O.P. contribui positivamente tanto para a recuperação de um paciente crônico, quanto para a sua reinserção social, ao possibilitar- lhe não somente escolher uma profissão, mas resgatando a sua posição ativa, sua capacidade de escolher e agir, devolve-lhe o direito de ser mais que um doente.

Contextualizando o doente crônico

O diagnóstico de uma doença crônica traz impactos que interferem na vida do indivíduo como um todo. Essa nova condição imposta exige mudanças no seu estilo de vida e em suas relações, comportamentos e maneira de lidar consigo mesmo e com a sua saúde. A rotina, as ocupações e tarefas que eram executadas até então podem ser alteradas em função do tipo e gravidade da doença e do tratamento proposto, forçando o indivíduo a adaptar-se a novas exigências e superar dificuldades e obstáculos que até o momento não eram vivenciados.

O acompanhamento de pacientes na realidade hospitalar mostra que se adaptar a um novo estilo de vida não é algo fácil para quase todos os indivíduos que recebem um diagnóstico definitivo. Para alguns deles, a doença torna-se o seu único meio de expressão, desconsiderando qualquer aspecto do futuro e do que ainda possa vir a alcançar. Nesses casos, o indivíduo passa a se ver e a se comportar exclusivamente como um doente, reforçando situações de dependência, regressão ou depressão, posicionando-se passivamente frente à vida e à sua condição clínica e de tratamento. Tal postura vem a interferir de forma decisiva em sua recuperação ou adaptação. A doença e sua cronicidade também favorecem a aquisição de ganhos que em outras situações o indivíduo não teria. Os ganhos secundários vindos do processo de adoecimento dificultam a saída do indivíduo do papel de doente. É importante considerar que nem sempre o ser doente deseja liberar e gratificar essas novas forças envoltas à sua doença; ao contrário, deseja manter-se regressivo, dependente e passivo obtendo os lucros dessa relação (Chiattone, citado por Santos e Sebastiane (1996).

A doença ou disfunção pode sim acarretar algumas incapacidades, levando a um prejuízo no funcionamento e desempenho esperado em atividades comuns como dirigir, varrer uma casa ou realizar determinados trabalhos. Porém, como mostra Novaes (1975), nem toda incapacidade vivenciada pelo indivíduo é uma condição real da sua possibilidade de ação e desenvolvimento. O sentimento de incapacidade associado à aquisição da doença e o que essa representa, desencadeia uma reação de privação e evitação que por sua vez trazem um prejuízo real para esse indivíduo, interferindo negativamente em sua qualidade de vida. De acordo com Santos e Sebastiane (1996), a doença não limita totalmente a vida do indivíduo doente, sendo que muitas possibilidades ainda podem ser consideradas e outros interesses ou funções descobertos e ativados. O indivíduo deve estar consciente das suas limitações a fim de contorná-las e superá-las, não se reduzindo a elas.

Contextualizando a insuficiência renal crônica

De acordo com Souza, Miguel, Chamahun e Oliveira (1998), a IRC refere-se à perda parcial ou completa da função renal, tendo como efeito a retenção de líquidos e substâncias nocivas ao organismo. Isto acontece porque uma das funções do rim é filtrar o sangue que passa por ele, eliminando através da urina tudo aquilo que não tem mais utilidade para o corpo. Com o mau funcionamento dos rins, essas substâncias deixam de ser filtradas, sendo desta forma mantidas no sangue que, ao circular no corpo, resultam em uma condição conhecida como uremia. A uremia traz vários sintomas como inchaço nos pés, braços e rosto, enjôo, vômito, fadiga, debilidade e dispnéia. Além disso, quando o sistema de filtração falha, ocorre o acúmulo de líquidos no organismo podendo levar a um edema pulmonar e aumento da pressão sanguínea que por sua vez piora a disfunção renal. De acordo com Vieira, Silva, Miranda e Lena (1994), acúmulos de sais minerais tal como o potássio podem causar vários danos ao funcionamento do corpo humano, como por exemplo, uma parada cardíaca.

Os rins também são responsáveis pela regularização das concentrações de cálcio e fósforo e pela produção de algumas substâncias que agem em outras partes do organismo, atuando no crescimento dos ossos e na formação das células de sangue, evitando a anemia. Portanto a IRC afeta o organismo como o todo, sendo que a sobrevivência do indivíduo dependerá do funcionamento normal dos seus rins.

O tratamento para IRC irá depender do grau de comprometimento em que se encontra o rim, podendo ser medicamentoso, mudança alimentar, dialítico ou cirúrgico (transplante). De acordo com a Sociedade Brasileira de Nefrologia (www.sbn.org.br), a cada ano, cerca de vinte e um mil brasileiros precisam iniciar tratamento dialítico. Raros são aqueles que conseguem ter parte do funcionamento dos rins recuperada o bastante para deixarem de necessitar de diálise e poucos têm a sorte de receber um transplante renal.

Na hemodiálise, um dos tipos de diálise, o rim passa a ser substituído por um filtro chamado capilar (localizado em uma máquina) por onde o sangue passará e será filtrado, retornando limpo para o corpo. Para que o sangue saia do organismo e seja levado até ao capilar é necessário a construção da fístula, que nada mais é que uma veia grossa formada a partir da união de dois vasos sanguíneos. O tratamento de hemodiálise normalmente exige a ida do paciente ao hospital em média três vezes por semana, com uma permanência na máquina de diálise de três a quatro horas por sessão de diálise. O paciente também é submetido a outras orientações como restrições alimentares e líquidas, cuidados especiais com a fístula, evitar atividades que acarretem excesso de esforço físico, dentre outras.

O paciente renal crônico, de modo geral, passa por diversas situações de perda, medo e carência levando-o a um impacto psicossocial considerável. Mais precisamente na hemodiálise, como mostram Miranda, Krollman e Silva (1993), ao mesmo tempo em que o tratamento vem a promover a melhora de alguns sintomas clínicos, desencadeia por outro lado desordens emocionais importantes como a depressão e uma maior dificuldade em lidar com determinados aspectos da vida. Ansiedade, impotência, dependência e isolamento são freqüentemente observados nesse grupo de pacientes. A vida profissional também é particularmente prejudicada, seja pelo baixo estado motivacional quanto pelas exigências reais do próprio tratamento que dificultam o vínculo empregatício, uma vez que existe a necessidade de se ausentar do trabalho durante várias horas semanais, além de poder desencadear sintomas como mal estar, pressão arterial baixa e fraqueza.

 

DESCRIÇÃO DO CASO

Um caso clínico será exposto a seguir, com o objetivo de apresentar a possibilidade de utilização da O.P. e sua possível contribuição para o processo de reabilitação e promoção de saúde em indivíduos portadores de IRC. Considera-se aqui o conceito ampliado de saúde em que essa significa não apenas a ausência de doença, mas sim a presença de um completo bem estar físico, psíquico e social. Desta forma, a saúde é comparada à qualidade de vida e a tudo que a favorece, incluindo o trabalho ou ocupação.

O estudo de caso citado refere-se a um dos atendimentos realizado durante o estágio curricular da formação de psicólogo da Universidade Federal de Minas Gerais no período de 2003 a 2004 tendo sido efetuado em um hospital de grande porte do Estado de Minas Gerais2. Serão descritos, brevemente, o processo terapêutico e o atendimento em O.P., realizado após o primeiro.

No que tange ao processo terapêutico, o primeiro contato com Rosa3 foi precedido por encaminhamento da Equipe de Enfermagem do centro de hemodiálise para o Serviço de Psicologia do mesmo hospital. Rosa tinha dezessete anos de idade e há sete anos havia sido diagnosticada com IRC, sendo que nos dois últimos vinha sendo submetida à hemodiálise. As informações prévias a seu respeito, oriundas da equipe de enfermagem, resumiam-se a rotulá-la como uma paciente com quadro estável de saúde, porém, emocionalmente deprimida e com significativa dependência materna. A aproximação da equipe de Psicologia e o início do processo terapêutico foram favorecidos pelo fato de se tratar de uma paciente de fácil vínculo e baixa resistência ao contato.

Os dados biográficos considerados mais significativos serão apresentados a seguir. Rosa nasceu e cresceu em uma cidade do interior de Minas Gerais onde ainda residia. Era a terceira filha de uma família de quatro filhos, sendo que apenas um deles não morava com os pais. A família, apesar da simplicidade, não passava por dificuldades financeiras e vivia apenas da renda do pai que cuidava de animais em um haras da cidade. A mãe restringia-se aos cuidados da casa e dos filhos.

Após o diagnóstico, a rotina de Rosa sofreu mudanças significativas. Três vezes por semana, vinha à capital para se submeter à hemodiálise, sendo sempre acompanhada pela mãe. Apesar de a sessão durar quatro horas, todo o restante do dia ficava por conta do tratamento, pois além do tempo de deslocamento entre sua cidade e o hospital (média aproximada de seis horas), também eram recorrentes sintomas como mal estar e tonteira após a hemodiálise, impedindo-a de sair de casa e freqüentar as aulas regularmente. Nos anos de tratamento de hemodiálise, a paciente cursava o ensino médio à noite em sua cidade natal.

Rosa tinha muitos amigos, mas após a doença, pouco saía ou divertia-se, restringindo seu contato social aos membros da família. Mantinha relação muito dependente da mãe, ao ponto de delegar a ela todos os cuidados do seu tratamento. Sentia tristeza na maior parte do dia, sentimento de menos valia e desânimo em iniciar e executar qualquer atividade. Na época do atendimento, Rosa vinha reclamando de insônias, noites mal dormidas e pesadelos constantes envolvendo a morte. O medo de morrer e a incerteza de uma vida longa não lhe permitiam pensar ou planejar o futuro.

Diante deste quadro foi proposta uma intervenção terapêutica breve com os seguintes objetivos formulados juntamente com a paciente: (a) resgate de sua autonomia e responsabilidade diante da doença e outros aspectos da vida; (b) fortalecimento de sua auto-estima; (c) aquisição de novos repertórios comportamentais de enfrentamento da doença, priorizando melhor qualidade de vida; (d) reconhecimento das limitações e principalmente possibilidades em relação à vida e ao futuro.

Após dois meses de atendimento semanal, houve melhora significativa dos comportamentos apresentados por Rosa, sendo alcançados todos os objetivos delimitados. Com uma postura mais ativa, realista e otimista, Rosa passou a enxergar as inúmeras possibilidades que até então não eram consideradas por não acreditar que eram possíveis. Rosa reconheceu que sua condição clínica era sim um dificultador, mas jamais um limitador no sentido de impedi-la de planejar e concretizar muitos de seus projetos.

A partir desse ponto do processo terapêutico, surgiu uma demanda da própria paciente em conquistar uma profissão, apesar das dificuldades apresentadas na escolha de qual carreira seguir e que essa estivesse de acordo com sua realidade e tratamento.

No que diz respeito ao processo de Orientação Profissional, a partir do grande interesse apresentado por Rosa em ter uma profissão e o efeito positivo que essa conquista pudesse trazer para ela, foi proposto o trabalho de O.P. Esse, assim como o atendimento terapêutico, foi realizado durante as sessões de hemodiálise, sendo, portanto, adaptado às especificidades de um contexto hospitalar e aos possíveis efeitos do tratamento dialítico e estado físico de Rosa. Imprevistos como atrasos para a iniciação da hemodiálise, interrupções constantes da equipe de enfermagem, escuta e eventuais palpites do paciente dialisando na máquina ao lado foram considerados, dificultando a formulação de um cronograma indicando o número de sessões e atividades a serem seguidos. Porém, todas essas variáveis não impediram o andamento do processo que por sua vez foi organizado e executado em três fases distintas (Barros, 2004; Oliveira, 1997): autoconhecimento, conhecimento das profissões e o momento da escolha, sendo essa baseada na junção das duas primeiras fases.

A primeira fase foi iniciada com o Exercício Combinado de Auto Conhecimento, sendo seguido pelas seguintes técnicas: Cine Adolescente, Frases Incompletas de Bohoslavsky (1997/1991), Visão do Futuro, Linha da Vida e Auto Biografia (Levenfus & Soares, 2002; Lucchiari, 1993). Para essa etapa foram necessárias seis sessões.

Os dados e observações reunidos a partir das técnicas citadas juntamente com as prévias informações adquiridas ao longo da intervenção terapêutica demonstraram coerência quanto às características da pacientes, principalmente sua perseverança, dedicação e satisfação em ajudar o próximo.

Rosa obtinha o reconhecimento de todos (professores, colegas e familiares) por seu desempenho acadêmico, interesse pelo estudo e iniciativa na busca constante de novos conhecimentos. Fascinava-se por narrações com temas enigmáticos que atiçassem sua curiosidade, atentando-se aos mínimos detalhes, reunindo-os sob um raciocínio lógico e resolutivo. Descrevia-se como uma boa observadora, principalmente quanto à natureza dos fatos e a correlação entre os eventos. Ao mesmo tempo em que se submetia aos efeitos da imaginação através da literatura, valorizava a simplicidade da vida, como a rotina modesta e previsível da sua cidade. No futuro, imaginava-se exercendo os papéis de esposa e mãe, mas com tempo suficiente para ter uma profissão. Desejava um trabalho em que pudesse oferecer assistência e cuidado à população. Não almejava relações competitivas e nem rotinas altamente estressantes.

A segunda fase implicou no uso de técnicas que possibilitassem um maior conhecimento e acesso a um significativo número de profissões. Como procedimentos, foram utilizados o Genoprofissiograma (Barros, 2004; Levenfus & Soares, 2002), a Tempestade de Profissões (Lassance, 1999), a Realidade Ocupacional (Coelho, 2001) e a Entrevista Profissional (www.fafich.ufmg.br/pop). A essa etapa foram dedicadas cinco sessões.

Rosa demonstrou maior curiosidade por profissões de nível superior, apesar das gerações anteriores de sua família ocuparem trabalhos rurais que exigiam pouca formação acadêmica. Atribuiu-se tal interesse por profissões de nível universitário ao incentivo vindo de seus pais que estimulavam a educação e a busca de uma vida melhor aos seus filhos: a sua irmã mais velha cursava faculdade de Administração de Empresas e seus dois irmãos ainda freqüentavam a escola.

A identificação maior foi com aquelas profissões que permitiam a investigação e descobrimento de novos eventos e a utilização desses para oferecer uma melhor qualidade de vida para o homem, além de todas envolverem, de certo modo, a natureza ou algum aspecto dela. Profissões como Ecologia, Oceanografia, Biologia Marinha, Engenharia de Alimentos e Nutrição retinham mais a atenção de Rosa.

Na terceira e última fase, Rosa resgatou o que foi trabalhado até então ressaltando suas habilidades, preferências e valores, associando-os às profissões que lhe desapertaram maior interesse e que eram possíveis de serem escolhidas em função da sua condição de saúde. As opções Biologia Marinha e Oceanografia estavam distantes de sua realidade, pois, além da condição financeira que não permita sua manutenção em outro estado, seu tratamento era realizado na cidade em que estava perfeitamente adaptada. No entanto, Engenharia de Alimentos, Ecologia e Nutrição eram opções mais concretas, ao mesmo tempo em que ofereciam condições para que Rosa pudesse ingressar pelo caminho científico, além do prestador de serviço.

Ao final do trabalho de O.P. a paciente optou o curso de Nutrição e passou a se preparar para o vestibular que aconteceria dentro de poucos meses. A finalização do atendimento de Rosa coincidiu com a conclusão do curso de graduação em Psicologia da estagiária, que partiu para a vida profissional. Dois anos se passaram e em uma visita ao hospital em que Rosa era atendida, a psicóloga encontrou a mãe da paciente que lhe informou que essa se encontrava em um quarto recuperando-se da cirurgia de transplante. Havia surgido um doador compatível e Rosa pôde enfim realizar o tão sonhado transplante renal. Recuperava-se sem complicações e trazia também outras novidades: havia passado no vestibular, cursando atualmente a graduação em curso de Biomédicas; mudou-se de sua cidade natal para outra cidade onde morava com a irmã e administrava a própria vida sem depender da mãe. Apesar de todas essas mudanças, havia algo que ainda mantinha consigo: o desejo de sempre retornar para a simplicidade e aconchego da sua cidade.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando o processo de O.P. foi iniciado, Rosa relatou um sonho que tinha desde criança: o de um dia ser uma astronauta. No entanto, os acontecimentos ao longo da sua vida a fizeram desistir rapidamente desse sonho, assim como de muitos outros. O processo de O.P. permitiu-lhe enxergar novas capacidades que até então não eram percebidas, além de possibilitar a escolha de uma profissão, contribuindo significativamente para seu processo de enfrentamento e melhor adaptação e aceitação da doença e do tratamento. Mastropietro, Santos, Oliveira e Voltarelli (2003), em estudo com indivíduos submetidos ao transplante de medula óssea, também evidenciaram o impacto positivo sobre o processo de readaptação pós-transplante a partir da reinserção social e ocupacional desses indivíduos.

A O.P. pode levar à promoção de saúde e melhor qualidade de vida ao ampliar a consciência que o indivíduo tem sobre a realidade que o cerca, instrumentalizando-o para uma atuação mais transformadora de sua realidade social, incluindo nessa o processo de saúde e doença. Conforme já apontado, para Faro (2006), o processo de reabilitação dos portadores de doenças crônicas sustenta-se no desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e atitudes que lhes permitam, dentre outros aspectos, a reconquista de sua cidadania mediante a consciência de suas capacidades remanescentes (Pontes & Hübner, 2008). Ressalta-se que a consciência das limitações do portador de uma doença crônica deve servir à perspectiva de sua superação no intuito de viabilizar a elaboração de um projeto de vida (apesar da doença).

Considera-se que o caso apresentado nesse trabalho ilustra como um processo de O.P., compreendido em um referencial clínico, pode estar em sintonia com esse conceito de reabilitação. Tendo como um de seus pressupostos o autoconhecimento, o processo de O.P. dentro do âmbito de uma instituição hospitalar pode favorecer a consciência das limitações e potencialidades do paciente. A oportunidade de refletir sobre si mesmo, através das técnicas propostas pela O.P., cria a possibilidade de resgate da autonomia da própria existência, freqüentemente pouco experimentada pelo paciente submetido a tratamentos que lhe são impostos como condição de sobrevivência. Certamente muitos outros desdobramentos da potencialidade de interface da O.P. com a área da saúde podem ser apresentados, essencialmente pelo fato de que elaborar um projeto de vida, fim último da O.P., está completamente a serviço da promoção da saúde.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 22/02/2008
1ª Revisão: 09/06/2008
Aceite final: 23/09/2008

 

 

1 Endereço para correspondência: Rua Camapuã, 930/501, 30430-460, Belo Horizonte, MG. E-mail: danielacbrito@hotmail.com.
2 Sigilo da Instituição será preservado por recomendações éticas.
3 Nome fictício a fim de preservar a identidade da paciente

 

Sobre os autores
* Daniela Cristina Sampaio de Brito é psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais, especialista em Psicologia Hospitalar pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; psicóloga efetiva do Hospital Público Regional de Betim.
** Delba Teixeira Rodrigues Barros é doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, coordenadora do Programa de Orientação Profissional desta mesma universidade.

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