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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof v.10 n.2 São Paulo dez. 2009

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Experiências ocupacionais no desenvolvimento de carreira de jovens trabalhadores1

 

Occupational experiences in the career development of young workers

 

Experiencias ocupacionales en el desarrollo de carrera de jóvenes trabajadores

 

 

Ângela Carina Paradiso* 2; Jorge Castellá Sarriera**

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, Brasil

 

 


RESUMO

Este estudo buscou compreender o papel do trabalho na transformação do autoconceito vocacional e na realização de tarefas de exploração segundo a teoria de Donald Super. A análise de conteúdo de entrevistas com 2 moças e 4 rapazes de camadas populares entre 17 e 20 anos contemplou questões sobre interesses, características e habilidades pessoais, valores e escolhas profissionais. As tarefas vocacionais foram categorizadas por dois juízes e o índice de concordância estatística de Kappa foi de 87% (p<0,001). As experiências de trabalho favoreceram mudanças no autoconceito e o aprendizado de habilidades e atitudes. Elas contribuíram, modestamente, para o desenvolvimento vocacional deles. O valor atribuído pelos jovens à obtenção de uma ocupação e sua manutenção nela permitem compreender estes resultados.

Palavras-chave: Jovens trabalhadores, Adolescentes, Experiências de trabalho, Camadas populares, Desenvolvimento de carreira.


ABSTRACT

This study aimed to investigate the role that work plays in the change of vocational self-concepts of low-class young workers and in performing exploratory tasks according to Donald Super’s theory. The content analysis of interviews conducted with 2 young women and 4 young men between 17 and 20 years old, involved issues like interests, personal characteristics and skills, values and career choices. Vocational tasks were categorized by two specialist and the Kappa index of statistical agreeableness was of 87% (p<0,001). Work experiences were seen to favor changes in self-concept as well as learning attitudes and skills. They contributed modestly, however, towards their vocational development. The importance the young workers attributed to getting and maintaining an occupation help to understand those results.

Keywords: Young workers, Adolescents, Work experience, Low-class, Career development.


RESUMEN

Este estudio buscó comprender el papel del trabajo en la transformación del autoconcepto vocacional y en la realización de tareas de exploración según la teoría de Donald Super. El análisis de contenido de entrevistas con 2 chicas y 4 muchachos de sectores populares de entre 17 y 20 años contempló cuestiones sobre intereses, características y habilidades personales, valores y elecciones profesionales. Las tareas vocacionales fueron categorizadas por dos jueces y el índice de concordancia estadística de Kappa fue de 87% (p<0,001). Las experiencias de trabajo favorecieron cambios en el autoconcepto y en el aprendizaje de habilidades y actitudes. Y contribuyeron, modestamente, para el desarrollo vocacional de ellos. El valor atribuido por los jóvenes a la obtención de una ocupación y su permanencia en ella permiten comprender estos resultados.

Palabras clave: Jóvenes trabajadores, Adolescentes, Experiencias de trabajo, Sectores populares, Desarrollo de carrera.


 

 

Ao expressar uma preferência vocacional3 uma pessoa coloca em termos ocupacionais o tipo de pessoa que é e tenta implementar o conceito que tem de si mesma (Super, 1963a, 1963b). Estas formulações, embora simples, são amplamente aceitas pela psicologia vocacional (Savickas, 2002; Super, Savickas, & Super, 1996) e sustentam a idéia de que as atividades ocupacionais representam a expressão e auto-realização do self (Betz, 1994; Blustein e cols., 2002; Brooks, Cornelius, Greenfield, & Joseph, 1995; Chaves e cols., 2004; Stone & Mortimer, 1998; Super e cols., 1996).

No contexto da teoria de desenvolvimento de carreira Life-Span, Life-Space (Super, 1963b; Super e cols., 1996), o autoconceito vocacional é definido enquanto a constelação de atributos do self considerados pelo indivíduo como vocacionalmente relevantes, sejam eles traduzidos ou não em uma preferência vocacional. Os atributos aos quais Super se refere são os interesses, capacidades, valores e escolhas de cada pessoa. O termo tradução, por sua vez, remete à idéia de equivalência (Starishevsky & Matlin, 1963) entre as características que uma pessoa atribui a si mesma e aquelas atribuídas a uma determinada ocupação.

Super descreveu o desenvolvimento do autoconceito a partir da compreensão do self como um objeto de exploração, passível de constantes transformações (Super, 1963b, 1963c; Super e cols., 1996). Além disso, considera que o indivíduo não tem um autoconceito único, mas sim uma constelação de autoconceitos, do qual o autoconceito vocacional faz parte. Esta constelação é chamada de sistema de autoconceitos e se caracteriza por ser geral e inclusivo (Super, 1963b; Super e cols., 1996).

Indivíduos entre 14 e 24 anos de idade estão, do ponto de vista da teoria Life-Span, Life-Space, envolvidos com tarefas vocacionais pertinentes à etapa do desenvolvimento de carreira conhecida como estágio de exploração. Ao longo deste período é esperado que a escolha profissional seja consolidada e que o jovem busque qualificação profissional e inserção no mundo do trabalho. A fim de corresponder às expectativas sociais relacionadas aos estágio de exploração, os jovens devem ser capazes de cumprir com algumas tarefas de desenvolvimento vocacional (Super e cols., 1996). São elas: (a) cristalização de uma preferência profissional, quando ocorre o processo de formulação de um objetivo profissional generalizado; (b) especificação de uma preferência profissional, que significa converter uma escolha generalizada em uma escolha específica e se comprometer com ela; (c) implementação de uma preferência profissional, momento em que uma escolha realizada é convertida em realidade; (d) estabilização profissional, que envolve o ingresso em um campo de trabalho apropriado; (e) consolidação do status e progresso profissional, quando se consolida a posição atingida e se amplia ou reforça os ganhos alcançados (Super, 1963a; Super e cols., 1996). Como se pode observar, a tradução do autoconceito em termos ocupacionais está associada ao engajamento nas tarefas vocacionais de cristalização, especificação e implementação de preferências profissionais.

Do ponto de vista vocacional, o ingresso no mercado de trabalho é considerado como uma oportunidade para que os jovens desenvolvam seu autoconceito (Super, 1963c). Brooks e cols. (1995), por exemplo, verificaram que os estudantes de nível superior que tiveram experiências de estágio e trabalho relacionadas à área de formação diferenciaram-se significativamente do grupo que apenas estudava quanto à clareza e certeza de características e atributos vocacionais considerados relevantes. No caso de pesquisas sobre a satisfação de universitários brasileiros com a escolha profissional (Bardagi, Lassance, & Paradiso, 2003; Bardagi, Lassance, Paradiso, & Menezes, 2006), observouse que o desempenho de uma atividade profissional pertinente à escolha permitiu aos alunos avaliarem de modo mais adequado suas características, habilidades ou identificações pessoais relacionadas à opção profissional.

O trabalho é visto como um contexto de desenvolvimento e socialização tão importante quanto a família, a escola e o grupo de pares (Blustein, 2001; Cohen-Scali, 2003; Mauro, Giglio, & Guimarães, 2003; Sarriera, Berlim, Verdin, & Câmara, 2000; Stone & Mortimer, 1998). Entretanto, adolescentes e jovens se deparam com inúmeras adversidades quando começam a trabalhar. No cenário brasileiro, a inserção ocupacional desta população se caracteriza pela falta de informações consistentes sobre a realidade ocupacional e as concretas possibilidades de inserção, além da inexistência de planejamento ou projeto profissional, baixa escolaridade, inexperiência e falta de preparo ou treinamento para a função a ser desempenhada, dentre outros aspectos (Gomes, 1991; Letelier, 1999; Mauro e cols., 2003; Ribeiro, 2003; Sarriera & Verdin, 1996).

Até mesmo após obter uma colocação no mercado de trabalho os problemas persistem, pois costumam ocupar postos de trabalho sem proteção social ou contrato que garanta estabilidade, além da remuneração ser mais baixa do que a dos adultos (Letelier, 1999). Esta situação coloca os jovens das camadas populares, que começam a trabalhar mais cedo e que estão menos preparados para ingressar ou se manter no ensino superior, frente a um processo de exclusão social (Silva & Santos, 2003) quando comparados àqueles de classes sociais mais abastadas.

Embora existam investigações brasileiras sobre adolescentes e jovens trabalhadores de classes populares, é necessário ampliar o conhecimento a respeito desta população sob a perspectiva do desenvolvimento de carreira. Mesmo que o ingresso no trabalho não envolva planejamento anterior, é possível que o contato com o trabalho estimule o autoconhecimento e, por sua vez, a reflexão sobre aspectos do autoconceito que favoreçam decisões vocacionais tanto no presente quanto projetadas para o futuro. Assim, esta investigação teve como objetivo geral compreender o papel da experiência de trabalho de adolescentes e jovens na transformação do autoconceito vocacional e na realização de tarefas do desenvolvimento de carreira do estágio de exploração. De modo específico, pretendeu conhecer os valores, escolhas, interesses, características e habilidades pessoais percebidas pelos adolescentes e jovens desde antes do seu ingresso no mercado de trabalho até o momento, bem como identificar quais as tarefas de desenvolvimento vocacional do estágio de exploração com as quais se defrontaram desde antes da inserção até o presente.

 

MÉTODO

De acordo com o interesse em investigar relações entre fenômenos e processos (Minayo, 1994), no caso a experiência de trabalho e as transformações do autoconceito vocacional dos jovens pesquisados, utilizou-se metodologia qualitativa. Esta abordagem é adequada à investigação do autoconceito vocacional, pois a percepção de interesses e preferências vocacionalmente relevantes são melhor exploradas através do sentido de continuidade e integração entre o passado, o presente e o futuro da vida de uma pessoa (Super e cols., 1996).

Participantes

Participaram deste estudo seis jovens entre 17 e 20 anos de idade (duas moças e quatro rapazes), cujos nomes são fictícios a fim de garantir sigilo quanto a sua identificação, conforme mostra a Tabela 1. Os participantes têm níveis de escolaridade diferenciados, estudam ou estudaram em escolas públicas e vivem em região urbana. Quase todos moram com a família. A renda mensal familiar informada, incluindo o salário dos participantes e, no caso de João Pedro, o salário de sua irmã mais velha, variou entre R$ 400,00 e R$ 5.000,00. Como Simone é a única dos participantes que não mora com a família, a renda informada é apenas a sua.

Tabela 1
Características sociodemográficas dos participantes

 

 

Os entrevistados constavam no cadastro de jovens encaminhados ao trabalho do Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego (PNPE) (Ministério do Trabalho e Emprego, 2007), executado pela Fundação Gaúcha do Trabalho e Assistência Social (FGTAS)/ Sistema Nacional de Emprego/Rio Grande do Sul (SINERS). A opção em realizar este estudo com jovens inscritos no PNPE visou a garantir que sua ocupação atual fosse a primeira registrada na Carteira de Trabalho e, provavelmente, a primeira significativa no campo profissional. Entretanto, todos já haviam desempenhado outras atividades remuneradas anteriormente, como indica a Tabela 2. O tempo de trabalho na ocupação atual é entre 7 meses e 1 ano e 5 meses.

Tabela 2
Ocupações anteriores e atual dos participantes

 

 

Instrumentos e materiais

A coleta de dados deste estudo foi realizada por meio de dois instrumentos. O primeiro constou de uma entrevista semi-estruturada que contemplou questões sobre: (a) motivação para trabalhar e estratégias para a busca de emprego; (b) expectativas pessoais e sociais em relação ao papel de trabalhador; (c) aspectos do desenvolvimento do autoconceito vocacional; (d) tarefas do desenvolvimento vocacional do estágio de exploração. De acordo com os objetivos deste artigo, serão apresentados e discutidos os resultados referentes aos itens (c) e (d) deste instrumento. O segundo instrumento foi um formulário de registro de informações biosociodemográficas especificamente formulado para esta pesquisa, que incluiu questões sobre características pessoais e familiares, trajetória escolar e laboral dos participantes.

Procedimentos

A escolha dos participantes foi feita de forma intencional e procurou contemplar pessoas de ambos os sexos, com idades entre 16 e 20 anos e tempo mínimo de 6 meses de encaminhamento ao emprego. A idade mínima foi definida de acordo com a legislação trabalhista brasileira, que determina que um adolescente pode iniciar uma atividade profissional formal a partir dos 16 anos (Brasil, 1943). A limitação da faixa etária em 20 anos teve como objetivo não ampliar a diversidade de papéis sociais desempenhados pelos participantes além daqueles de filho, estudante e trabalhador. A entrevista foi marcada através de contato telefônico da pesquisadora e cada participante definiu data, horário e local para sua realização, em geral a própria residência. As entrevistas tiveram duração aproximada de uma hora, foram gravadas em um aparelho Media Player 3 (MP3) e posteriormente os arquivos de voz foram copiados para um microcomputador e transcritos na íntegra.

Quanto aos cuidados éticos, cumpre destacar que esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CEP-UFRGS). Para preservar a identidade dos jovens cadastrados no PNPE não se teve acesso direto aos registros que contivessem informações pessoais dos inscritos. Um funcionário da FGTAS/SINE-RS foi informado dos critérios de seleção dos participantes e, conforme instruções da pesquisadora, procedeu à escolha destes. Através de contato telefônico este funcionário explicou os objetivos gerais da pesquisa e solicitou a participação de cada jovem. Aqueles que aceitaram colaborar tiveram o nome e o número de telefone repassados à pesquisadora. Os participantes e responsáveis, quando necessário, foram informados sobre os objetivos e procedimentos da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Análise de dados

As entrevistas foram analisadas através de análise de conteúdo, segundo os procedimentos de Olabuénaga e Ispizua (1989). As categorias referentes ao autoconceito foram definidas a priori, com base na teoria do desenvolvimento de carreira Life-Space, Life-Span (Super e cols., 1996), a saber: (a) escolha; (b) interesses; (c) características e habilidades pessoais percebidas; (d) valores. A análise das respostas vocacionais às tarefas do desenvolvimento vocacional do estágio de exploração foi realizada por dois juízes, profissionais e pesquisadores da área da orientação profissional. Os juízes foram orientados a assinalar e categorizar os trechos das entrevistas que considerassem corresponder às tarefas de cristalização, especificação e implementação de preferências vocacionais (Super e cols., 1996). O nível de concordância estatística de Kappa entre os juízes foi verificado através do software estatístico SPSS.

 

RESULTADOS

O conteúdo das verbalizações referentes às categorias de análise do autoconceito foram organizadas de acordo com três momentos distintos. O primeiro diz respeito à etapa de vida anterior ao início das atividades de trabalho (incluiu referências ao período da infância e ao início da adolescência). O segundo momento contempla a etapa de vida em que iniciou a primeira atividade de trabalho até o presente, enquanto o terceiro inclui os planos para o futuro. Finalmente, este conjunto de informações foi agrupado em três categorias: (a) interesses, características e habilidades pessoais percebidas; (b) valores; (c) escolhas e planos profissionais. A seguir, será apresentada uma síntese de cada categoria.

Interesses, características e habilidades pessoais percebidas

A Tabela 3 mostra uma variabilidade de interesses dos participantes antes e depois de começarem a trabalhar. Não foi comum o relato de que levaram em conta seus interesses no momento de buscar uma atividade ocupacional, conforme ilustra a verbalização de Fernando “Eu sempre fui daqueles de trabalhar no que tinha no momento (…) eu nunca tive em mente…uma profissão distinguida, sabe”. Algumas das atividades ocupacionais desempenhadas consolidaram interesses (por computadores, no caso de Diego) ou despertaram novos (por tornearia e tênis, no caso de Fernando).

Tabela 3
Interesses dos participantes desde antes de começar a trabalhar até o momento atual

 

 

Por outro lado, houve situações nas quais os interesses e a atividade ocupacional coincidiram, o que favoreceu, inclusive, a escolha profissional. No início da adolescência Simone já se interessava pelo ambiente de escritório e por contabilidade, conforme indicam suas afirmações “a verdade é que eu queria trabalhar num escritório” e “e eu tive o sonho de que ia conseguir dentro da área de contabilidade”, respectivamente. Tais interesses levaramna a realizar um curso técnico de Contabilidade. O fato de começar a trabalhar na mesma área da sua formação profissional colaborou para que consolidasse seu interesse pela contabilidade, como aponta na frase “eu consigo me identificar assim com o escritório (…) e eu gosto de contabilidade (…) cada vez mais eu tenho certeza disso”.

À medida que conseguiram se adaptar aos ambientes de trabalho, cumprir com as tarefas designadas e interagir com colegas, superiores e clientes, esses jovens passaram a perceber em si características e habilidades pessoais que antes não reconheciam, conforme disse Gabriela “Aos poucos eu fui me conhecendo mais (…)”. A percepção desses novos atributos foi evidente em todos os casos. Ao examinar o conteúdo da Tabela 4, alguns elementos merecem destaque.

Tabela 4
Características e habilidades percebidas pelos participantes desde antes de começar a trabalhar até o momento atual

 

 

Antes das primeiras experiências ocupacionais alguns dos participantes referiram que se percebiam como inseguros(as) e preguiçosos(as). Com o passar do tempo, e na medida em que acumularam maior experiência de trabalho, passaram a se perceber como pessoas responsáveis, como afirmou João Pedro “Tu lida com dinheiro (…) então tu tem aquela responsabilidade maior de que tu tá tomando conta (referindo-se ao caixa da loja onde trabalha)”, bem como competentes e capazes de aprender coisas novas, conforme relatou Simone “Eu não sabia (…) que eu era capaz de fazer muitas coisas (…)”. Os participantes também passaram a se perceber como organizados(as), ágeis e dinâmicos(as), capazes de seguir normas e regras, tomar a iniciativa e resolver problemas. Referências ao crescimento e amadurecimento pessoal após começar a trabalhar foram comuns. A frase de João Pedro “(…) falam agora que eu tô um guri sério” sintetiza essa idéia.

Outro aspecto relevante foi a percepção de desenvolvimento de habilidades relacionadas à comunicação e relacionamento interpessoal. Em geral, os participantes relataram que se tornaram mais flexíveis em suas relações, como ilustra a afirmação de Gabriela “Aprendi a aceitar mais o que as pessoas falam”; ou que aprenderam a controlar a expressão de suas emoções, conforme disse Cristiano “Aumentou o meu estresse, mas eu aprendi a me controlar mais (.…) aprendi a escutar mais as pessoas também”. As habilidades de relacionamento interpessoal dizem respeito a toda e qualquer pessoa no contexto de trabalho, como apontou Diego em sua afirmação “procuro me relacionar bem com todo o mundo”. Diante disso, se definiram agora como pessoas calmas, pacientes e tolerantes, solícitas, cordiais e cooperativas com os demais, tanto no ambiente de trabalho quanto fora dele.

Novas percepções a respeito de si mesmos fez com que os participantes mudassem a própria percepção sobre o trabalho. Um exemplo muito claro dessa situação é o de Cristiano. Ele afirmou que inicialmente “(sobre o trabalho) imaginava que eu ia trabalhar, ganhar meu dinheiro, farrear e… só (…)”. Em contraste com estas idéias, percebeu que “o trabalho me tornou gente (…) me tornou mais civilizado (.…) aprendi a respeitar, aprendi a obedecer. Aprendi a tudo praticamente”.

Valores

Muitos dos participantes ressaltaram a importância de demonstrar no dia a dia do trabalho que são pessoas honestas, o que significa não mexer em nenhum objeto da empresa ou dos clientes. A frase de Fernando “Tu não vai mexer em nada de ninguém (…) e eles (os sócios do clube onde trabalha) vão sempre confiar” ou de Diego “Ele botou confiança em mim… e larga dinheiro pra mim” ilustram essa idéia. A análise das entrevistas identificou ainda referências ao trabalho como um meio para expressar valores relativos à utilização de habilidades e conhecimentos adquiridos. Também houve menções ao trabalho como um meio de manter um estilo de vida considerado adequado.

Entretanto, a menção a estes valores mostra-se, em geral, secundária ao valor econômico que o trabalho representa para os participantes, conforme exemplifica a frase de Gabriela “Sempre vou procurar um trabalho que seje bom pra mim na parte financeira (…)”. Inclusive a idéia de realizar um curso superior está associado aos prováveis ganhos financeiros, como ilustrou Simone “Até porque eu procurava uma coisa (Ciências Contábeis) que me recompensasse financeiramente né, bem…futuramente”.

Escolhas e planos profissionais

De modo geral, os participantes referiram que planejam, através do trabalho, garantir um futuro melhor. Em termos imediatos, o principal objetivo é manter-se no emprego atual, como afirmou Fernando na frase “Bom, meu plano é continuar ali, continuar trabalhando ali de gandula como eu tô”. Por outro lado, não pretendem manterse na mesma ocupação indefinidamente, como sinalizou Cristiano “vou ficar a vida inteira fazendo isso (…)? Pra mim não serve, tá doido”.

Um plano bastante referido é estudar, pois como disse Cristiano “Porque sem estudo a pessoa não vai a lugar nenhum (…)”. Os participantes manifestaram a intenção tanto de concluir o ensino fundamental quanto de iniciar um curso técnico ou de nível superior. Por outro lado, parece que não têm clareza quanto à possibilidade de realização deste plano, como é o caso do próprio Cristiano quando afirmou “Tá muito confuso ainda”. Até mesmo prosseguir os estudos parece difícil, conforme comentou Fernando “eu acho que eu penso que porque eu tô trabalhando eu não preciso estudar…eu sei lá” ou João Pedro “dá uma preguiça de estudar (para prestar concurso vestibular)”. Eles referiram ainda contar com a ajuda divina para alcançar seus objetivos profissionais, como no caso de Diego, que afirmou “(…) tudo tem seu tempo, né, tem Deus pra dar, Deus sabe o que faz”.

As verbalizações que sugeriram uma reflexão mais sistemática sobre o futuro foram poucas, como no caso de Simone, que afirmou “sempre visando o que eu vou conseguir no dia de amanhã, não vivo só no dia de hoje”. Ela parece já ter previsto uma série de etapas e meios pelos quais pretende conquistar estabilidade financeira e conforto material para si e sua família, um dos seus objetivos de vida pois, conforme mencionou, “vou trabalhar um bom tempo, pretendo fazer faculdade (Ciências Contábeis) e pretendo abrir o meu próprio escritório (de contabilidade)”.

Análise das tarefas de desenvolvimento vocacional do estágio de exploração

Os dois juízes assinalaram em comum 12 fragmentos das entrevistas. Não houve situações em que um juiz marcou um trecho que não tenha sido assinalado pelo outro. Cada entrevista teve ao menos um fragmento categorizado pelos juízes, à exceção da entrevista de Diego. A Tabela 5 mostra que quatro fragmentos foram classificados como cristalização de preferências profissionais. Um exemplo é o trecho “administração, publicidade, informática que são as coisas mais, que estão trazendo as respostas mais rápidas” (Gabriela). Cinco fragmentos foram categorizados como especificação, como o trecho “quero fazer vestibular para Contábeis” (Simone) ou “Eu quero ser vestiarista” (Fernando). Outros dois fragmentos foram categorizados como implementação, entre eles o trecho “Bah! Assim, ó, (…) eu acho que eu poderia ser um bom administrador, sei lá (…).” (Cristiano, que está inscrito para o vestibular de Administração de Empresas). Apenas um fragmento recebeu classificações distintas por parte dos juízes. Conforme o teste de Kappa, a concordância entre ambos foi significativa em 87% do total das categorizações.

Tabela 5
Concordância entre juízes na categorização das Tarefas de Desenvolvimento Vocacional do Estágio de Exploração

 

 

Nota: Índice de concordância estatística de Kappa= 0,871; p<0,001

Análises complementares dos juízes apontaram alguns fragmentos das entrevistas que se referiam a comportamentos orientados ao trabalho, em geral relacionados às circunstâncias do meio e direcionados à obtenção e manutenção do emprego e dos ganhos econômicos. Tais comportamentos não possuíam qualquer correspondência com as tarefas vocacionais do estágio de exploração analisados acima. Um exemplo dessa situação é o caso de Diego, que referiu não pensar em escolher um trabalho pelo conteúdo das tarefas ou características das ocupações. Diego comentou “o primeiro que vier, carteirinha assinada ainda, eu vou agarrar com as duas mãos, né, tô precisando (…)”. As afirmações “eu quero trabalhar de repente com o meu chefe (…)” ou “É, eu penso em fazer esse curso (Técnico Contábil) (…) eu vou poder ganhar mais (…)”, sugerem que a intenção de Diego em realizar o curso técnico de Contabilidade diz respeito mais ao interesse de permanecer no escritório e aumentar seus rendimentos do que pela área de contabilidade propriamente dita.

Outro exemplo é o fato dos participantes procurarem instituições de intermediação de estágios quando eram estudantes do ensino médio, como o Centro de Integração Empresa Escola (CIEE) ou a Fundação de Desenvolvimento de Recursos Humanos (FDRH), ou ainda agências de emprego como o SINE-RS. Depois que tomam a decisão de buscar trabalho, eles se cadastraram e aguardaram o encaminhamento, como sugere Fernando “me indicaram (o PNPE) e eu fui ver o que é que dá… e deu que eu tô aí (trabalhando na vaga indicada pelo PNPE)”. Os juízes assinalaram que nestes casos a obtenção de trabalho ocorreu conforme a disponibilidade de vagas, o que indica que em geral eles trabalham ou trabalharam onde foram aceitos, sem qualquer reflexão se gostariam ou não de assumir a função que lhes foi designada.

 

DISCUSSÃO

A realização deste estudo teve por objetivo compreender o papel da experiência de trabalho na transformação do autoconceito vocacional e na realização de tarefas do desenvolvimento vocacional do estágio de exploração. Do ponto de vista metodológico, a abordagem qualitativa foi adequada para responder aos objetivos desta pesquisa. Além disso, a participação dos juízes, que analisaram o engajamento em tarefas do desenvolvimento vocacional do estágio de exploração, favoreceu a triangulação dos dados decorrentes da análise de conteúdo. Uma situação como essa é desejável e enriquecedora na produção dos resultados através de metodologia qualitativa (Olabuénaga & Ispizua, 1989). De modo específico, a entrevista semiestruturada foi um instrumento apropriado à expressão de elementos do autoconceito percebidos pelos participantes através do tempo (Super e cols., 1996).

A análise dos interesses mostrou que os participantes possuíam interesses anteriores ao ingresso no mercado de trabalho e que as atividades ocupacionais estimularam o desenvolvimento de novos interesses. Entretanto, tanto as referências ao trabalho atual quanto os planos profissionais não estiveram, em geral, relacionados aos interesses manifestados. A compreensão desse resultado passa pela análise das atividades ocupacionais desempenhadas pelos adolescentes e jovens pesquisados. Os jovens de classes sociais mais baixas ocupam as vagas de trabalho mais simples da base da pirâmide ocupacional, sendo esse um dos aspectos que contribui para a precariedade do trabalho juvenil (Gomes, 1991; Letelier, 1999; Silva & Santos, 2003; Stone & Mortirmer, 1998). Sendo assim, os jovens trabalhadores acabam por não encontrar nas atividades ocupacionais que desempenham estímulos ao seu desenvolvimento vocacional.

Apenas em algumas situações específicas a oportunidade de estudar e trabalhar na mesma área de formação permitiu que os participantes fossem capazes de confrontar e consolidar interesses profissionais. Esse processo é semelhante ao descrito em outros estudos que investigaram variáveis vocacionais e o desempenho em atividades de trabalho, como por exemplo a investigação de Brooks e cols. (1995), Bardagi e cols. (2003) e Bardagi e cols. (2006), embora eles tenham sido conduzidos junto à população universitária.

Em relação às características e habilidades pessoais percebidas, as experiências ocupacionais favoreceram a percepção de novos atributos pessoais. Os participantes relataram que o trabalho e o desempenho de tarefas proporcionaram mudanças na percepção de suas características, sendo que referiram que se tornaram mais maduros e responsáveis. Nestes casos, é possível que a percepção de mudanças em algumas de suas características estejam relacionadas ao novo papel que assumiram - de trabalhador(a) (Super, 1963c; Super e cols., 1996), e não à atividade ocupacional em si.

Os participantes referiram também que o contato com diferentes pessoas em variadas situações no contexto de trabalho estimulou o desenvolvimento de habilidades de relacionamento interpessoal. Essa informação reforça a idéia de que os jovens consideram a oportunidade de conviver e trabalhar com pessoas como positiva (Stone & Mortirmer, 1998), o que influencia seu comportamento e seu mundo psíquico (Mauro e cols., 2003). Visto sob este ângulo, as atividades ocupacionais dos participantes desse estudo, mesmo que simples e pouco qualificadas, confirmam os achados de outras pesquisas que apontam que o trabalho é percebido pelos jovens como tendo um papel ativo no seu desenvolvimento pessoal (Blustein & Noumair, 1996; Chaves e cols., 2004; Stone & Mortirmer, 1998).

A integração das informações relativas à análise dos interesses, características e habilidades percebidas pelos participantes deste estudo aponta que a experiência de trabalho favoreceu o desenvolvimento de atributos do sistema de autoconceitos (Super e cols., 1996). Entretanto, a contribuição das atividades ocupacionais exercidas para o desenvolvimento do autoconceito vocacional não ocorreu da mesma forma. Os interesses manifestados, embora reconhecidos por alguns como vocacionalmente relevantes, não foram traduzidos em termos vocacionais, ou seja, não foram cristalizados e especificados em torno de uma preferência profissional (Super e cols., 1996). No caso das características e habilidades pessoais percebidas pelos participantes, mudanças na forma de ser e de agir proporcionadas pelo trabalho não chegaram nem mesmo a assumir relevância em termos vocacionais.

As informações derivadas das análises dos juízes colaboraram na compreensão destes resultados. Em primeiro lugar, observaram que nem sempre a cristalização ou especificação de preferências profissionais ocorreu em torno de aspectos internos dos participantes, ou seja, dos atributos do seu autoconceito vocacional (Super e cols., 1996). Em diversas situações as escolhas profissionais estavam, segundo apontaram os juízes, cristalizadas ou especificadas em torno de aspectos externos ao trabalho. Diante disso, estabeleceram a existência de um paralelo entre o que a literatura define como comportamentos orientados à exploração de preferências vocacionais (Super e cols., 1996) e comportamentos de exploração de atividades de trabalho. Isto significa que os critérios que orientaram as escolhas profissionais dos participantes não foram, em geral, suas preferências profissionais, e sim a posição que a atividade ocupacional escolhida ocupa no mercado de trabalho em termos de ofertas de vaga e remuneração. A escolha por uma ocupação, embora possa representar a tradução do autoconceito em termos vocacionais (Super e cols., 1996), não assumiu essa função segundo a própria percepção dos jovens investigados nesse estudo.

Mesmo que tenham sido identificados comportamentos voltados à exploração de atividades de trabalho com o objetivo de fazer escolhas, os juízes apontaram também outros comportamentos que indicam que os participantes ingressaram no trabalho sem preocupação com escolhas profissionais. Estes comportamentos foram denominados pelos juízes como comportamentos orientados ao trabalho. A noção de comportamentos orientados adotada no contexto desta discussão está relacionada às idéias de Savickas (1999) sobre os comportamentos vocacionais necessários à realização da transição entre a escola e o trabalho. Segundo Savickas (1999), diante desta transição é necessário que o indivíduo desenvolva a consciência de que é necessário fazer escolhas e, para isso, precisa informação e planejamento. Os participantes dessa pesquisa parecem conscientes de que devem obter um trabalho e manter-se nele. Dessa forma, trabalhar em si configura-se como uma tarefa mais importante do que escolher, encontrar ou exercer uma atividade pela qual se interessem.

Embora este estudo tenha sido fundamentado teoricamente sob a perspectiva de que as experiências ocupacionais podem estimular a transformação do autoconceito vocacional e a realização de tarefas do desenvolvimento vocacional (Super e cols., 1996), os resultados encontrados mostraram que o trabalho não assumiu esse papel. Tais resultados são semelhantes aos de Matheus (2003), que verificou que adolescentes de escolas públicas de bairros populares da cidade de São Paulo não viam o trabalho como uma possibilidade de expressão de gostos e interesses. Bastos (2005), que investigou egressos de escolas públicas no estado de Minas Gerais, observou que tal situação tende a perdurar ainda na idade adulta. Segundo a autora, a satisfação com o trabalho devia-se ao fato de estarem empregados, independente da função desempenhada.

Sabe-se da necessidade de dar mais atenção teórica e empírica aos diferentes aspectos relacionados ao desenvolvimento de carreira e tomada de decisão, dentre eles classe social (Blustein e cols., 2002). Em populações com nível sócio-econômico mais baixo, entretanto, as relações entre o trabalho e o desenvolvimento vocacional apresentam limitações. Questionamentos a esse respeito vêm sendo sinalizados (Blustein, 2001; Blustein e cols., 2002; Chaves e cols., 2004) e, aos poucos, a compreensão sobre esse fenômeno tornara-se mais clara e consistente.

Uma recente contribuição a essa discussão foi feita por Blustein (2006). No livro intitulado The psychology of working ele defende que os aspectos psicológicos do trabalho (como a satisfação com o trabalho, por exemplo), que são objeto de estudo e intervenção da psicologia vocacional e do aconselhamento de carreira, não se aplicam à maioria da população que vive sob condições sociais e econômicas desfavoráveis, uma vez que não conseguem escolher nem aliar seus interesses com o trabalho (Blustein, 2006).

A vida de trabalho e as escolhas de muitas pessoas estão, na verdade, circunscritas a fatores relacionados à própria classe social, etnia e/ou oportunidades que a estrutura social oferece aos indivíduos que nela estão inseridos (Blustein, 2006). A respeito do papel da circunscrição no desenvolvimento de carreira, Gottfredson (2002) afirma desde cedo na vida as pessoas vão estreitando suas possibilidades de escolha profissional. No curso da infância até a adolescência os indivíduos eliminam as escolhas que o meio cultural e social onde vivem consideram inaceitáveis e mantêm aquelas que são vistas como aceitáveis. O processo de circunscrição ocorre através da integração de elementos externos, como a classe social, ao autoconceito. Desse processo resulta que as aspirações vocacionais estão intimamente relacionadas com a percepção que o indivíduo tem sobre si e sobre o acesso que ele acredita que seja possível ter a determinada ocupação.

Ao analisar os valores de trabalho manifestados pelos participantes, verificou-se que a dimensão econômica do trabalho é sem dúvida o principal valor associado ao trabalho nesta investigação. Em outras palavras, um dos principais interesses que os participantes buscam satisfazer através do trabalho está associado a um bom padrão de vida em termos materiais (Ferreira-Marques & Miranda, 1995). Os planos de estudar a fim de obter uma atividade profissional de melhor qualidade também estão relacionados à expectativa de elevar a remuneração, o que sugere que o valor econômico também está associado ao estudo. Além deste, um dos objetivos dos participantes é que sejam reconhecidos, por parte do empregador, como trabalhadores honestos e confiáveis. As referências à honestidade neste estudo estão claramente associadas a questões éticas e morais do trabalho (Gomes, 1991; Santos, 1999), embora não se possa deixar de considerar que a honestidade é um elemento que provavelmente esteja a serviço da sua manutenção no emprego.

Em relação às escolhas e planos profissionais, foi comum os participantes mencionarem planos de ingressar na universidade. Este tipo de resposta é comum em jovens estudantes do ensino médio de classes populares (Aguiar & Ozella, 2003; Bastos, 2005; Schiessl & Sarriera, 2004; Silva & Escalda, 2005) e corrobora uma tendência geral do comportamento estudantil em atribuir grande importância ao ingresso na educação superior (Sparta & Gomes, 2005). Entretanto, poucas foram as verbalizações sobre o envolvimento em ações dirigidas à realização destes planos. Neste sentido, é evidente a dificuldade dos participantes quanto à orientação de comportamentos para o futuro, o que implica no desenvolvimento de planos de curto prazo que se conectem diretamente com seus objetivos de vida (Diemer & Blustein, 2007; Schnorr & Wane, 2001).

A fim de compreender as dificuldades descritas acima, deve-se novamente considerar que a condição econômica e social dos participantes deste estudo restringe (ou circunscreve) suas ações e planos profissionais. Da mesma forma, Bastos (2005) observou que a baixa qualidade do ensino público e as limitações financeiras se configuraram num dos principais motivos para que os jovens investigados por ela se sentissem despreparados para enfrentar o vestibular em instituições públicas de ensino superior, tradicionalmente mais concorrido e exigente. Além disso, a necessidade de trabalhar levou-os a aceitar qualquer oferta, independente da ocupação ou tarefa, distanciando-os da possibilidade de concretizar planos voltados aos seus interesses pessoais.

Para compensar tais limitações, referências ao auxílio divino representam um apoio para concretizar aspirações pessoais ou profissionais, algo observado em outros estudos que investigaram os planos para o futuro de jovens de classes populares (Andriani, 2003; Garbulho, Lunardelli, & Schut, 2005; Wickert, 2006). É possível que a expectativa de realização de objetivos profissionais através do auxílio de Deus busque compensar a percepção das limitações impostas pela estrutura social às suas realizações.

De modo geral, os resultados deste estudo mostraram que as atividades ocupacionais desempenhadas contribuíram, na perspectiva dos próprios participantes, para o seu autoconhecimento e desenvolvimento social. Entretanto, as experiências de trabalho não favoreceram o desenvolvimento do autoconceito em termos vocacionais, bem como não representaram uma oportunidade de exploração de preferências profissionais (Super e cols., 1996). A fim de compreender estes achados, a análise dos juízes foi relevante, pois apontou a orientação para a obtenção de trabalho e sua manutenção nele como a principal preocupação dos jovens trabalhadores. Além disso, deve-se considerar que o contexto sócio-econômico no qual vivem os adolescentes e jovens pesquisados tem relação com seus objetivos e expectativas no que diz respeito ao trabalho. Os resultados desta investigação reforçam a visão de que a psicologia vocacional deve revisar e aprofundar as investigações sobre o papel do trabalho na vida e no desenvolvimento das pessoas (Blustein, 2001, 2006) e que a intervenção junto a essa população deve, antes de mais nada, conhecer, compreender e respeitar suas necessidades e valores ocupacionais.

 

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Recebido: 26/01/2009
1ª Revisão: 04/06/2009
2ª Revisão: 07/10/2009
Aceite final: 28/09/2009

 

 

1 Este artigo apresenta resultados parciais da dissertação de mestrado intitulada “Desenvolvimento de carreira de jovens trabalhadores: Dimensões psicossociais”, de autoria da primeira autora sob orientação do segundo autor, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
2 Endereço para correspondência: Av. Juca Batista, 1200/casa 24, 91.770-000, Porto Alegre-RS, Brasil. E-mail: angelaparadiso@hotmail.com.
3 O termo vocacional é traduzido do inglês vocational e originalmente engloba os significados de inclinação, profissão ou carreira (Melo-Silva & Jacquemin, 2001).

 

 

Sobre os autores
* Ângela Carina Paradiso é psicóloga e possui formação em Orientação Profissional pelo Instituto do Ser-São Paulo, Mestre e doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), docente de cursos de extensão e de especialização em Orientação Profissional do Instituto de Psicologia da UFRGS.
** Jorge Castellá Sarriera é Professor Adjunto do Instituto de Psicologia da UFRGS e pesquisador do CNPq, graduado em Psicologia pela Universidade Católica de Pelotas e Psicopedagogia pela Universidade Católica de Assunção, Paraguai, Especialista em Psicologia Organizacional e Mestre em Psicologia Escolar pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Doutor em Psicologia Social pela Universidade Autônoma de Madri, Espanha e Pós-Doutor em Métodos Multivariados de Análise pela Universidade de Barcelona, Espanha e Psicologia Comunitária pela Universidade de São Francisco, EUA.

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