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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof v.10 n.2 São Paulo dez. 2009

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A persistência do fracasso escolar: desigualdade e ideologia

 

Persistence of school failure: inequality and ideology

 

La persistencia del fracaso escolar: desigualdad e ideología

 

 

Fernando Silva Paula* 1; Leda Verdiani Tfouni**

Universidade de São Paulo, São Paulo-SP, Brasil

 

 


RESUMO

Conhecer as questões sociais relacionadas ao fracasso escolar é fundamental para os profissionais de Educação, incluindo-se aí aqueles que trabalham com Orientação Profissional. O fracasso é objeto de inúmeras discussões e investigações científicas que buscam compreender e apontar uma solução (definitiva) para a questão. Partindo do referencial teórico da Análise do Discurso pêcheutiana, examinamos trabalhos de revisão sobre o tema, procurando identificar algumas condições históricas e sociais que possibilitaram o surgimento das diversas interpretações sobre o fracasso e a vinculação dessa produção científica a determinados interesses de classe. Concluímos que toda tentativa de encontrar uma verdade final sobre as causas do fracasso escolar falha, pois não há teoria que justifique a dominação e a exploração humana (a luta de classes).

Palavras-chave: Fracasso escolar, Luta de classes, Exclusão social, Análise de discurso, Ideologia.


ABSTRACT

It is essential for those working with Education, including Professional Guiders, to be aware of the issues related to school failure. It has been the object of many discussions and scientific investigations, aiming at finding an explanation, and a (definitive) solution to the problem. Taking the Pêcheutian Discourse Analysis as a point of departure, this article examined works about the topic, trying to identify some historical and social conditions which gave rise to the several interpretations about school failure, as well as the connection between those scientific works and class interests. It is concluded that all attempts to find a definitive truth about school failure fail, because there is no such theory that justifies human domination and exploitation (classes struggle).

Keywords: School failure, Class strugle, Social exclusion, Discourse analysis, Ideology.


RESUMEN

Conocer las cuestiones sociales relacionadas con el fracaso escolar es fundamental para los profesionales de Educación, incluyendo a los que trabajan en Orientación Profesional. El fracaso es objeto de innumerables discusiones e investigaciones científicas que buscan comprender y proponer una solución (definitiva) para la cuestión. Partiendo del referencial teórico del Análisis del Discurso pêcheuxtiano, examinamos trabajos de revisión sobre el tema, tratando de identificar algunas condiciones históricas y sociales que posibilitaron el surgimiento de las diversas interpretaciones sobre el fracaso y la vinculación de esa producción científica a determinados intereses de clase. Concluimos que toda tentativa de encontrar una verdad final sobre las causas del fracaso escolar falla, porque no hay teoría que justifique la dominación y la explotación humana (la lucha de clases).

Palabras clave: Fracaso escolar, Lucha de clases, Exclusión social, Análisis de discurso, Ideología.


 

 

O conhecimento da questão social envolvida no fenômeno do fracasso escolar é de importância fundamental para os profissionais de Educação, incluindo-se aí aqueles que trabalham com orientação profissional, já que o grau de escolaridade é o principal critério que sustenta a forma de divisão social do trabalho que vigora em nossa sociedade de mercado (Tfouni & Paula, 2008). Assim, uma visão mais ampla da realidade educacional brasileira torna-se indispensável para a compreensão do processo no qual as pessoas escolhem suas profissões.

Alguns trabalhos na área da Orientação Profissional já começam a levar em consideração alguns aspectos dessa realidade educacional e social desigual. É o que podemos ver em Melo-Silva e Lassance (2008). Para estas autoras é a partir do enfoque sobre o trabalhador, e não sobre o trabalho, que a orientação profissional organiza-se na modernidade. Segundo as autoras:

A demanda por serviços de orientação aumenta não só em quantidade de clientes, mas em especificidades de demanda, estendendo-se a populações minoritárias e com desvantagens sociais e físicas, gerando a necessidade de maior qualificação dos profissionais de orientação. (Melo-Silva & Lassance, 2008, p. 1).

Também em outro trabalho da área (Lassance, Melo-Silva, Bardagi, & Paradiso, 2007), uma realidade social mais ampla e mais diversificada é levada em conta. As autoras destacam a necessidade de uma reformulação do modelo tradicional de Orientação Profissional, voltado basicamente para o atendimento de adolescentes de ensino médio de escolas particulares que buscam por uma profissão de nível superior. Em contrapartida, elas propõem um modelo contínuo e dinâmico de orientação profissional que não se limita à adolescência ou a um contexto de transição específico, tal como a transição ensino médio-universidade.

Assim, considerada a necessidade de ampliação dos conhecimentos envolvidos na intersecção entre os campos da Educação e do Trabalho, a proposta deste artigo é apresentar, através de uma revisão crítica de literatura, a ligação estreita que existe entre os fenômenos da divisão social e do fracasso escolar. Para tanto, foram selecionados e analisados textos teóricos e textos de revisão de literatura sobre a problemática do fracasso escolar, os quais forneceram os elementos empíricos para esta análise.

Sempre presente na educação brasileira - não como um fenômeno isolado, uma exceção, mas como uma realidade (incômoda) muito conhecida - o fracasso não pode escapar aos interesses dos pesquisadores. Nesse sentido, foi possível introduzir neste artigo as seguintes questões: Como o fracasso escolar é interpretado pelos cientistas da área da educação? Que relações estabelecem-se entre esses saberes científicos e as práticas escolares cotidianas?

É importante adiantar neste ponto que o referencial teórico-metodológico adotado para realizar esta investigação é aquele proposto pela Análise do Discurso francesa (Pêcheux, 1997), disciplina científica que investiga como se articulam os elementos históricos e subjetivos que afetam a linguagem, tendo como mola propulsora a ideologia, na medida em que, considerando essa leitura, toda e qualquer descrição é também uma interpretação, pois é mediada pelos valores do pesquisador, sua forma de olhar para a realidade, ou seja, é mediada pela ideologia (Paula, 2008).

Desta forma, com base nesse modelo de investigação científica, empreendeu-se uma análise discursiva das teorias e idéias que tratam da questão do fracasso escolar, procurando caracterizá-lo como um discurso organizado e orquestrado por formações ideológicas específicas, cujo efeito é dissimular as verdadeiras causas desse fracasso, dando a entender que ele é um fenômeno inevitável e impossível de ser descrito.

Partindo de trabalhos de revisão sobre o tema, como o de Patto (1992), procurou-se identificar algumas condições históricas e sociais que possibilitaram o surgimento das diversas interpretações sobre o fracasso e a vinculação dessa produção científica com determinadas ideologias ou interesses de classe. Assim, este trabalho oferece outra leitura sobre a questão do sucesso e do fracasso sócio-profissional, pois aponta a forma como a ideologia participa desse processo, não se tratando meramente de uma escolha de vida que o sujeito faz.

O fracasso escolar na Educação brasileira

A história da Educação brasileira é marcada pela recorrência de evasões, repetências e uma série de outros fatores negativos que são geralmente classificados como fracasso escolar, como nos atestam alguns trabalhos críticos nessa área (Silva, Barros, Halpern, & Silva, 2003). O fracasso escolar apresenta-se, desta forma, como uma realidade indissociável da história da Educação e do processo de escolarização das classes populares no Brasil. Só para se ter uma idéia, dados fornecidos pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) (2000) apontam que até o início da década de 1950 menos da metade da população brasileira era alfabetizada. Em outro trabalho (Ribeiro, Vovio, & Moura, 2002), encontramos estatísticas recentes nas quais 29% da população brasileira acima de 15 anos é classificada como analfabetos funcionais - pessoas com menos de quatro anos de estudo.

Dessa forma, apesar de todo o progresso urbano e tecnológico pelo qual passou a sociedade brasileira nas últimas décadas, e de todos os projetos e iniciativas dos governos no sentido de erradicar o analfabetismo, aumentar a escolarização da população e diminuir a repetência e a evasão escolar, a realidade de fracasso persiste. Isto é atestado não só pelas estatísticas oficiais que reconhecem a permanência de altos índices de evasão e repetência no ensino fundamental e médio como também por jornais e revistas, que cotidianamente retratam a precariedade das escolas públicas e a insatisfação da população pobre com o ensino (Dimenstein, 2007; Azevedo, 2007).

Inicialmente, chamamos a atenção para o fato de que a noção-conceito de fracasso escolar é empregada quase que de forma natural por aqueles que tratam do tema. É o que nos diz Charlot (2000), autor que afirma não existir (estritamente falando) o objeto de pesquisa fracasso escolar. O que há, segundo ele, são alguns fenômenos sob essa denominação. Na leitura empreendida por esse autor, o fracasso escolar é entendido como uma categoria genérica, ou seja, uma forma de interpretação que comporta vários fatores, tais como repetência e evasão escolar, dificuldade de aprendizagem ou mesmo um desempenho insatisfatório em uma única disciplina escolar.

Partilhando da abordagem apresentada por Charlot (2000), destacamos ainda que os fatores que estariam situados dentro da categoria genérica fracasso escolar - repetência, evasão, distúrbios de aprendizagem, analfabetismo, etc. - também se constituem em interpretações daquilo que ocorre no espaço da Escola. Para que um aluno seja reprovado em uma disciplina escolar qualquer, por exemplo, ele precisa ser avaliado segundo critérios criados pelo Estado, por uma escola em particular, e às vezes até por um professor específico. Assim, a classificação “fracasso escolar” não pode ser tomada como um evento natural da mesma forma como uma síndrome que compromete, invariavelmente, uma parcela de 5% da população, mas como uma atividade interpretativa, sustentada por diferentes teorias e ideologias apropriadas pelo sujeito (Pêcheux, 1997).

A produção científica sobre o fracasso escolar

Por ser um problema tão antigo de nossa Educação, o fracasso escolar é também objeto de inúmeras discussões e debates científicos e políticos que buscam aumentar a compreensão e apontar uma solução (que sempre se deseja definitiva) para a questão. Neste sentido, várias idéias e teorias ofereceram explicações sobre as causas do fracasso escolar, tornando o tema um dos mais estudados na área da Educação e da Psicologia da Educação.

Assim, em busca de um fio condutor para nossa revisão crítica de literatura, procuramos trabalhos que fornecessem um levantamento das principais idéias ou teorias sobre o fracasso escolar, para, a partir daí, buscar outros textos que subsidiassem a nossa investigação. Dos trabalhos encontrados nas bases de artigos e textos pesquisadas (SciELO Brasil, PePSIC) e na Biblioteca Central do Campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo somente dois (Angelucci, Kalmus, Paparelli, & Patto, 2004; Patto, 1992) forneceram uma revisão sistematizada das teorias e idéias sobre o fracasso escolar que vigoraram no espaço da Educação brasileira ao longo de sua história. Esses dois textos apontaram para trabalhos de renomados autores dentro da temática abordada, o que influenciou de maneira decisiva o caminho que percorremos no desenvolvimento de nossa investigação.

Iniciamos nossa discussão apresentando o levantamento teórico empreendido por Patto (1992), autora que trabalha na vertente do materialismo histórico, cujo trabalho retoma e examina de uma forma crítica as principais idéias e teorias sobre o fracasso escolar que vigoraram na história da educação brasileira. A obra de Patto sobre o fracasso escolar é decisiva por marcar o momento histórico no Brasil em que as teorias do déficit cognitivo e da diferença cultural começam a ser seriamente questionadas em seus alicerces ideológicos. Deste modo, demos destaque à obra da autora por ter inaugurado uma formação discursiva para falar do fracasso. Vejamos, resumidamente, o histórico proposto pela autora.

As primeiras formulações sobre o fracasso, datadas do final do século XIX, foram de cunho racista e médico. Estas explicações, fortemente influenciadas pelo darwinismo social, baseavam-se em procedimentos antropométricos que buscavam produzir provas empíricas sobre a inferioridade de pobres e não-brancos, procurando justificar as diferenças sociais entre estes e a classe dominante. Nessa perspectiva, procuravase mostrar que dentro de uma sociedade que oferece oportunidades iguais para todos, vencem os mais aptos, os mais competitivos ou os mais adaptados à estrutura social-econômica.

Da década de trinta até meados da década de sessenta do século XX, destacou-se a influência da Psicologia Diferencial que, baseada na análise das diferenças de desempenho existente entre os indivíduos na sociedade, explicava o fracasso escolar a partir das diferenças individuais entre as crianças. Tais diferenças, no caso, podiam ser problemas físicos e sensoriais, intelectuais e neurológicos, emocionais e de ajustamento.

A partir do início da década de setenta, as explicações que até então se centravam sobre as características individuais dos alunos deslocaram-se para a família e para o ambiente. Dentro dessa perspectiva, encontramos as teorias da carência cultural e da diferença cultural. A teoria da carência cultural postula que o fracasso escolar ocorre devido à deficiência ou privação cultural do aluno em decorrência das suas precárias condições de vida. Essa teoria incentivou o desenvolvimento de projetos de educação compensatória no Brasil, contribuindo para o “aprofundamento da má qualidade da escola que se oferece ao povo, na medida em que justifica um barateamento do ensino que acaba realizando a profecia segundo a qual os pobres não têm capacidade suficiente para o sucesso escolar” (Patto, 1997, p. 47).

Já para a teoria da diferença cultural, as razões do fracasso escolar estariam nas disparidades; nas diferenças entre os padrões culturais da classe média (nos quais se baseiam os programas educacionais e escolares) e aqueles apresentados por crianças de famílias pobres. No trecho a seguir, extraído de um trabalho situado dentro dessa posição teórica, o peso colocado na cultura escolar aparece de forma bem evidente.

O fracasso escolar aparece como um fracasso da escola, fracasso este localizado: (a) na impossibilidade de aferir a real capacidade da criança; (b) no desconhecimento dos processos naturais que levam a criança a adquirir o conhecimento; e (c) na incapacidade de estabelecer uma ponte entre o conhecimento prático - do qual a criança, pelo menos em parte, já dispõe - e os conhecimentos formalizados do currículo escolar. (Carraher, Carraher, & Schliemann, 1982, p. 86).

É importante ressaltar que o peso atribuído à cultura escolar por autores que adotam a teoria da diferença cultural não implica uma revisão do modelo de Educação vigente em nossa sociedade. O que ocorre é um deslocamento da responsabilidade para cada escola, de uma forma independente, colocando sobre a capacidade do professor, de saber lidar com as diferenças trazidas de casa por cada aluno, a determinação do sucesso ou fracasso do aluno.

Somando-se às correntes teóricas descritas acima, podemos incluir ainda uma outra: trata-se dos trabalhos críticos orientados por uma leitura marxista da sociedade (Arroyo, 2003; Patto, 1981, 1984, 1992; Sawaya, 2002). Esses trabalhos destacam-se principalmente pela crítica que fazem às teorias que apontam as características do indivíduo ou de sua família como causadoras do fracasso escolar. Eles denunciam a presença de uma ideologia de classe (dominante) por trás dessas explicações centradas no individual e responsabilizam o Estado e suas instituições democráticas pelo fracasso escolar, visto que ele atinge principalmente as classes populares, também chamadas de classes dominadas. De acordo com essa visão, o Estado é regido pelos interesses da classe dominante burguesa que impõe seus valores através da Educação, além de utilizar-se da instituição escolar para excluir as camadas populares e garantir a reprodução das condições de produção.

As atualizações do discurso sobre o fracasso escolar

É preciso enfatizar que, apesar de apresentarmos uma cronologia das teorias sobre o fracasso, isso não quer dizer que haja uma linha demarcatória fixa que separe os diferentes discursos que tratam da questão. Também não quer dizer que haja uma evolução das teorias mais recentes sobre as mais antigas. Neste trabalho, pelo viés teóricometodológico da Análise de Discurso francesa, todas elas são tomadas como parte de um universo discursivo complexo e contraditório; como “interdiscurso”, a partir do qual outros discursos se constituem em um jogo dialético entre a história e a língua (Pêcheux, 1997). Para esse autor, a contradição e a heterogeneidade são características intrínsecas do funcionamento da ideologia. Este aspecto faz com que os mesmos discursos que se pretende criticar/ reformular sejam retomados, sem que o sujeito se dê conta disso (devido a um esquecimento constitutivo que o leva a colocar-se na origem do dizer).

Assim, nos discursos teóricos, esse caráter contraditório muitas vezes se manifesta pela mudança ou substituição da metalinguagem, sem que a perspectiva sobre o objeto seja alterada. Esses discursos circulam por diferentes espaços institucionais produzindo vários efeitos. É o que nos mostra o trabalho de Medeiros (2003). De acordo com esta autora, as idéias que atribuem as causas do fracasso escolar a desajustamentos neurológicos ou psicológicos do indivíduo norteiam, ainda hoje, a prática pedagógica de profissionais da área da educação, mesmo que isso não seja reconhecido explicitamente.

Para além do fato de que algumas práticas pedagógicas se disponham a repensar permanentemente seu próprio fazer, nos arriscamos a afirmar que é na criança, numa indagação esmiuçada do seu grau de maturidade psicológica, que se espera encontrar a resposta tanto para os problemas de aprendizagem, quanto para os de indisciplina escolar que, não raro, são apontados como causa e conseqüência um do outro. “A criança não aprende porque é indisciplinada, é indisciplinada porque não é suficientemente madura”. (Medeiros, 2003, p. 93).

Estudos como esse indicam que a psicologia científica não abandonou suas tradicionais orientações. Muito pelo contrário, o que pode ser observado ultimamente é uma tal sofisticação das categorias de análise que elas conseguem integrar em uma mesma variável o indivíduo, o ambiente e a família. Isto pode ser visto no estudo realizado por Bandeira, Rocha, Pires, Del Prette, & Del Prette (2006) que correlacionam o sucesso obtido por estudantes - que nomeiam de competência acadêmica - com o repertório de habilidades sociais que estes exibem. As habilidades sociais, como o próprio nome indica, são um conjunto de habilidades que o indivíduo deve possuir para poder adaptar-se aos diferentes ambientes sociais tais como a escola. De acordo com essa teoria “as habilidades sociais são adquiridas por meio do processo de aprendizagem”. (Bandeira e cols., 2006, p. 55). Ou seja, envolvem a educação fornecida pela família e o ambiente no qual a criança realiza suas experiências.

A grande questão com relação à teoria das habilidades sociais é que essas habilidades são medidas nos alunos, havendo aí a suposição de que estes já devem possuí-las. Dessa forma, fica subentendida a idéia de que a escola deve receber crianças que já estejam preparadas (competitivas), crianças que possuam habilidades sociais necessárias à aprendizagem e à adaptação, garantindo assim o bom funcionamento da instituição. Na ausência dessas habilidades, pode-se fornecer um treinamento.

Assim, sem colocar em questionamento o funcionamento da escola e os valores que perpassam essas supostas capacidades que os alunos devem possuir, a teoria das habilidades sociais, por um lado, aproxima novamente a psicologia do assistencialismo e dos projetos de educação compensatória - já que se as crianças chegam até a escola sem as habilidades necessárias é porque não as obtiveram em seu ambiente familiar ou físico -, e por outro, justifica o fracasso e a exclusão pela lógica da adaptação - os alunos mais habilidosos, mais inteligentes e mais espertos - , o que nos faz pensar outra vez na psicologia diferencial e no darwinismo social (Patto, 1992). Nota-se aqui a naturalização levada a efeito pela ideologia, que se manifesta pela manutenção da mesma formação discursiva com a substituição de explicações; não há acontecimento, no sentido dado por Pêcheux (2002); há somente tentativas de tamponar o real da luta de classes.

Desta forma, uma apreciação dos trabalhos mais recentes produzidos por pesquisadores da área da psicologia escolar, da pedagogia e da educação pode revelar uma aparente articulação de diferentes e até antagônicos discursos sobre o fracasso escolar. Vejamos, então, como se configura atualmente este campo específico de investigação, a saber, a produção de diferentes efeitos de sentido dentro da mesma formação discursiva.

Angelucci e cols. (2004) investigaram quais as são as concepções de escola e de fracasso escolar que fundamentaram as teses e dissertações defendidas entre 1991 e 2002 na Faculdade de Educação e no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. O estudo dessas autoras concentrou-se em apresentar as teorias, métodos e concepções de fracasso escolar predominantes nesses trabalhos, buscando, desse modo, apreender a forma como a temática vem sendo abordada. Resumindo, de acordo com os resultados encontrados por essa pesquisa, o fracasso escolar vem sendo abordado atualmente das seguintes formas:

(1) O fracasso escolar como problema psíquico, o que leva à culpabilização das crianças e de seus pais. O fracasso escolar é visto como o resultado de prejuízos da capacidade intelectual dos alunos, decorrentes de problemas emocionais gerados em ambientes familiares supostamente patológicos. Para essa categoria de explicação a escola é vista como um lugar harmônico, no qual cada criança encontra as condições necessárias ao seu desenvolvimento, desde que elas consigam desenvolver suas capacidades egóicas para lidar com a realidade.

(2) O fracasso escolar como um problema técnico (culpabilização do professor): Para esta posição, o fracasso é fruto do efeito de técnicas de ensino inadequadas ou de sua má utilização pelos professores. As causas do fracasso escolar são desvinculadas das questões que afetam a sociedade como um todo e focalizadas somente em um determinado professor, método ou estabelecimento de ensino. Reproduz-se, também, nessa visão, uma ideologia que apresenta o professor como o salvador; como aquele que compreende e resolve as dificuldades pessoais e/ou emocionais dos alunos.

(3) O fracasso escolar como questão institucional, ou a lógica excludente da educação escolar. Essas pesquisas tomam a escola como instituição social que, contraditoriamente, reproduz e transforma a estrutura social. Para essas leituras, a escola está inserida em uma sociedade de classes que é regida pelos interesses do capital. Deste modo, a escola também está a serviço da produção de desigualdades e da exclusão social.

(4) O fracasso escolar como questão política: cultura escolar, cultura popular e relações de poder. Essas pesquisas também compreendem a escola como uma instituição social que se insere em uma sociedade de classes; entretanto, focalizam as relações de poder que são estabelecidas no interior da instituição escolar. Um exemplo é a violência simbólica praticada pela escola ao desvalorizar ou não reconhecer os valores da cultura popular.

As diversas abordagens introduzidas acima indiciam um processo constante de rearticulação e atualização dos sentidos na mesma formação discursiva que comentamos acima. A nossa leitura é a de que se trata de um trabalho ininterrupto de interpretação no qual as posições ideológicas se confrontam e se combinam na tentativa de explicar-tamponar aquilo mesmo que impulsiona todo esse movimento de interpretação: a luta de classes enquanto manifestação do Real na História2 .

O fracasso escolar tem relação com esse Real - com essa contradição fundamental que organiza nossa sociedade em diferentes e até antagônicas classes sociais - na medida em que a educação (ou grau de escolaridade) é utilizada como um critério de classificação social, pois é justamente ela que garante e autentica a divisão social do trabalho da forma como encontramos em nossa sociedade contemporânea. É neste sentido, então, que todas essas tentativas de eleger uma variável única e genérica como causa do fracasso escolar falham, pois elas buscam fornecer uma justificativa para a existência da exploração e da dominação entre os homens, ou seja, para uma contradição fundamental.

Por outro lado, é por estar ligado a questões tão contraditórias que o fracasso escolar não deixa de ser pesquisado. Explicá-lo seria uma forma de tentar justificar-dissimular a exploração; de tentar justificar a existência da riqueza e da pobreza. No entanto, não há explicação que dê conta dessa contradição fundamental e traumática que move a sociedade. É por isso que esse trabalho constante de interpretação é necessário - os homens têm que acreditar que existe uma lógica em sua pobreza; um pai precisa entender que existem motivos que explicam o fato de seu filho ter abandonado a escola; é preciso que haja um perfil delinquente; da mesma forma, um empresário precisa acreditar que merece desfrutar dos lucros que obtém explorando seus funcionários; um europeu precisa justificar sua intolerância e discriminação para com os imigrantes africanos... As pessoas necessitam de explicações, de justificativas. Assim, podemos dizer que os discursos sobre o fracasso ajudam a equilibrar o sistema, porém mantendo as desigualdades. Eles compõem a ideologia que fornece a cada sujeito as evidências necessárias para que ele ocupe o lugar que lhe é determinado dentro da sociedade (Althusser, 1996); eles garantem o esquecimento das contradições absurdas que acabamos de citar (Pêcheux, 1997).

Do ponto de vista discursivo, um efeito de sentido que detectamos indica que a grande maioria dos autores procura atribuir ao fracasso escolar uma característica de fenômeno genérico, o que provoca a impressão de que existe o fracasso escolar em si, quando na verdade trata-se de algo heterogêneo, que se origina em múltiplas causas. Cria-se a impressão de que todos os autores estão falando da mesma coisa, como se fracasso escolar fosse uma coisa só, o que seria negar a existência da ideologia como instância mediadora entre homem e mundo. Este fato acaba por simular, sob a aparente discussão da realidade cotidiana do fracasso (como uma categoria universal), uma disputa teórica para demonstrar quais são as verdadeiras causas do mesmo.

Nessa regularidade discursiva em que diferentes abordagens dão um tratamento genérico ao fracasso escolar, reconhecemos a intenção (implícita ou explícita) de oferecer-se uma explicação geral para a questão, ou seja, uma explicação que possa ser generalizada para todos os casos de fracasso. Isto reforça nossa hipótese sobre a necessidade de os sujeitos, em função da contradição constitutiva da luta de classes, produzirem explicações cada vez mais sofisticadas sobre o fracasso escolar.

Em um estudo no qual analisou diferentes configurações familiares e fatores que poderiam estar relacionadas à questão, Lahire (1997) apresentou evidências contrárias à possibilidade de generalização das causas do fracasso escolar. O autor descreveu casos de sucesso de crianças que conviviam em ambientes pobres e considerados inadequados para o desenvolvimento de suas capacidades intelectuais, assim como casos de fracasso de crianças que aparentemente viviam em ambientes considerados favoráveis. Com base nos diferentes (e inesperados) resultados encontrados em sua pesquisa, o autor articula uma argumentação contrária às posições que atribuem uma causa única ao fracasso escolar:

De um certo modo, essas diferentes hipóteses procuram centrar a interpretação das situações improváveis de “êxito” sobre um fator explicativo dominante, sobre um primum móbile, enquanto as configurações familiares efetivas deixam claras combinações sempre específicas de certos traços pertinentes. (...) Estes diferentes modelos implícitos ou explícitos de “sucesso” (que cada pesquisador, segundo sua própria trajetória social, tem tendência a universalizar) tendem a fazer esquecer que as combinações entre as dimensões moral, econômica, política, religiosa podem ser múltiplas e que os graus de “êxito” comparáveis sob o ângulo dos desempenhos, dos resultados, podem esconder às vezes estilos de sucesso diferentes (Lahire, 1997, p. 30).

Uma autora que vai aprofundar a discussão sobre a generalização das causas do fracasso escolar é Cohen (2004, 2006). A argumentação desta autora é a de que cada caso de fracasso escolar só pode ser compreendido se consideradas as contingências do processo educativo no qual ele se deu. Fazendo uso da lógica do não-todo ou lógica indecidível proposta por Lacan (1985), Cohen discute que a Educação é sempre um processo singular no qual o sujeito encontra-se com o Outro da Educação, encarnado na figura da família, da Escola ou do Estado. Nesse sentido, o fracasso, como um dos resultados possíveis da educação, só pode ser compreendido analisando-se esse encontro entre o sujeito e o Outro da cultura.

Cohen (2004) destaca presença do ineducável em todo processo educativo. O ineducável, segundo o que propõe a autora, seria aquilo que resiste em todo processo educativo, aquilo do real do sujeito que não se presta à disciplina ou normas sociais. Em termos psicanalíticos, ele pode ser entendido como a manifestação do Real (Dor, 1995) no campo da educação. De acordo com essa interpretação, temos que, assim como não existe uma verdade toda, ou uma verdade completa, também não existe uma educação toda ou uma educação sem falhas. Isso quer dizer que por mais sofisticados que sejam os métodos de ensino e por mais empenhado e competente que seja o mestre, é impossível deslocar toda a energia pulsional do sujeito para a educação, pois, como já havia afirmado Freud (1915/1987), o inconsciente segue a lógica do princípio do prazer. A autora ainda afirma “indicamos na educação a impossibilidade de cumprir sua missão de forma completa, de se fazer toda, pois não há como alcançar uma perfeita harmonia entre o pulsional e as exigências do convívio na sociedade humana” (Cohen, 2006, p. 101). Acrescentamos que há entre o sujeito e o significante um “saber que não se sabe, um saber que se baseia no significante como tal” (Lacan, 1985, p. 129). Ou seja: antes de ser nomeado como fracasso, não há como emergir um sujeito designado pelo significante fracasso/ fracassado. Mas para haver designação, o sujeito fica à mercê de quem nomeará, no caso, teorias científicas com sua suposta metalinguagem e posições-sujeito professores (e outros agentes da instituição escolar), que vulgarizam tais teorias.

Cohen (2006) analisa o fracasso escolar na sociedade contemporânea a partir do lugar que é dado a esse real na educação (o ineducável). Como vivemos em uma sociedade que não oferece espaço para a falha ou para a falta e que exige que os alunos, colocados no lugar de objetos de consumo, aprendam tudo sobre tudo (a perfeição) para atenderem à lógica de mercado da competição, a autora interpreta o fracasso escolar como um sintoma das demandas irrespondíveis da sociedade capitalista.

O crescente fracasso escolar, na condição de sintoma contemporâneo, denuncia a existência de uma educação que tem como base a suposta igualdade entre homens e mulheres, e entre adultos e crianças regidos pela ética do consumismo. Como consequência dessa suposta igualdade, difunde-se na cultura uma promessa de gozo segundo a qual quase tudo é permitido. (Cohen, 2006, p. 60).

Apoiando-nos nessa leitura sintomática do fracasso escolar, no ponto em que ela revela as contradições produzidas pelas demandas de uma sociedade de consumo, apontamos neste trabalho para a possibilidade de abordar a problemática pelo viés do acontecimento histórico-discursivo (Pêcheux, 2002). O fracasso escolar pode ser interpretado como um acontecimento - no sentido deste termo dado por Pêcheux (2002) - que materializa-atualiza a luta de classes e a divisão social do trabalho no espaço institucional da Educação. Por isto, por estar ligado a essa contradição constitutiva, ele não deixa de produzir seus efeitos sobre a escola e a sociedade como um todo e de requerer, desta forma, um trabalho constante de interpretação. Na tentativa de explicar, justificar ou dissimular a contradição incontornável que se atualiza no acontecimento fracasso escolar os cientistas da educação produzem teorias cada vez mais sofisticadas e mais genéricas sobre o assunto. É assim que o fracasso escolar se constitui em objeto de discursos; é por este motivo que se escreve tanto sobre o tema, sem, no entanto, nunca conseguir esgotá-lo.

A construção de um discurso científico sobre o fracasso e escolar

Segundo Tfouni, Assolini e Silva (no prelo) as inúmeras pesquisas e estudos sobre o fracasso escolar realizados na última década por psicólogos, pedagogos, cientistas sociais e educadores resultaram na construção de um discurso científico sobre o fracasso escolar.

Construiu-se um discurso científico estruturado ao redor do tema, cujas condições de produção se localizam em uma análise da realidade educacional brasileira enquanto produto de uma ideologia que busca manter a desigualdade, ao mesmo tempo em que acena com a possibilidade de mudança e ascensão social através da escolarização (Tfouni e cols., no prelo, p. 3).

Com base no referencial teórico-metodológico da Análise do Discurso pêuchetiana (Pêcheux, 1997) e na teoria do Letramento de Tfouni (2005), estas autoras discutem a relação entre o discurso pedagógico escolar (DPE) e o fracasso escolar em um corpus (conjunto de enunciados reunidos para a análise) formado por depoimentos de professores de primeiras e quartas-séries e observações em salas de aula de escolas públicas. De acordo com a análise discursiva realizada por estas autoras o discurso pedagógico escolar (DPE), no lugar privilegiado do saber estabelecido, retroage sobre o que ele se propõe explicar (a educação, a aprendizagem, a escola, etc.) posicionando os sujeitos (alunos e professores, funcionários) no lugar de meros receptores/ transmissores de conhecimentos institucionalizados, em uma lógica que favorece o fracasso escolar.

Assim, embora vise à transmissão de conhecimentos, o DPE tradicional busca inculcar nos enunciatáriosalunos os conhecimentos e sentidos que são institucionalmente aceitos e valorizados. A escola, portanto, pretende ensinar o know-how, mas sob formas que assegurem a submissão à ideologia dominante. (Tfouni e cols., no prelo, p. 7).

De acordo com o que afirmam as autoras, o discurso pedagógico escolar funciona como um instrumento ideológico de dominação social. Ele veicula os valores e interesses da classe social que controla a instituição escolar como se eles fossem apenas conhecimentos instrucionais, sem nenhum comprometimento com ideologias de classe. Para compreendermos melhor esse processo, recorremos ao que escreve Orlandi (1983) sobre o funcionamento do discurso pedagógico (DP). Em seu trabalho, esta autora situa o discurso pedagógico entre os discursos de tipo autoritário.

Enquanto discurso autoritário, o DP aparece como discurso do poder, isto é, como em R. Barthes, o discurso que cria a noção de erro e, portanto, o sentimento de culpa, falando nesse discurso, uma voz segura e autosuficiente. A estratégia, a posição final, aparece como o esmagamento do outro (Orlandi, 1983, p. 11).

De acordo com esta autora, funcionando como um discurso autoritário, o DP anula o conteúdo referencial do ensino e o substitui por conteúdos ideológicos, ou seja, por saberes institucionalizados e legítimos que devem ser adquiridos por todos. Este funcionamento discursivo se dá, por um lado, graças à presença de dêiticos deslocados de contexto (isto, isso) e repetições, que diluem o objeto do discurso, assim como devido a definições rígidas (x é sempre y), cortes polissêmicos (introdução de tópicos secundários ao lado do principal, obscurecendo o objeto de conhecimento) e encadeamentos automatizados que, através de uma suposta metalinguagem, fazem-no parecer um discurso extremamente preciso e coerente.

Outro ponto destacado por Orlandi (1983) com relação ao DP é o seu caráter de cientificidade. Vejamos o que ela escreve a respeito disto:

Em sua definição (o DP) seria um discurso neutro que transmite informação (teórica ou científica), isto é, caracterizar-se-ia pela ausência de problemas de enunciação: não teria sujeito na medida em que qualquer um (dentro das regras do jogo evidentemente) poderia ser seu sujeito (credibilidade da ciência), e onde existiria a distância máxima entre emissor e receptor (não haveria tensão, portanto), tendo como marca a nominalização e como frase de base a frase com o verbo ser (definições). Do ponto de vista de seu referente, o DP seria puramente cognitivo, informacional (Orlandi, 1983, p. 21).

A autora explica que o caráter científico do DP deve-se, principalmente, ao seu funcionamento discursivo preponderantemente metalingüístico (ou seja, baseado em termos que só adquirem um sentido dentro da própria teoria) e ao apagamento do processo através do qual o professor apropria-se do conhecimento do cientista tornando-se, assim, ele mesmo, o dono do saber.

Com relação a esse processo de apropriação-apagamento do saber científico pelo professor, Assolini (1999) observa que o professor não ocupa esse papel de proprietário do saber ou de dono da verdade por livre e espontânea vontade. Segundo a autora, ele, assim como os estudantes e os outros profissionais que atuam na escola, também é um sujeito afetado pela ideologia. O professor também pode ser visto como uma peça do jogo.

Assujeitado, o professor passa a ser, então, um mero instrumento do sistema que indiretamente lhe dita normas por meio de um autor de livro didático, que seleciona os textos que agradam a esse sistema e que, através de um manual, impõe a sua interpretação de acordo com o mesmo sistema. O professor (...) repetindo o que o livro traz impresso, obriga seus alunos à mesma repetição, num processo contínuo de manutenção e reprodução do “status quo” (Assolini, 1999, p. 106).

De acordo com o que afirma essa autora, o sistema de ensino estrutura-se fundamentalmente sobre o funcionamento do discurso pedagógico. Nesse sistema, o DPE dita o que pode ser ensinado, como se deve ensinar e o lugar que cada um deve ocupar, num processo educativo em que prevalece a reprodução dos valores que sustentam as condições de produção do Estado capitalista. Dessa forma, o DPE confunde-se com o próprio funcionamento da Escola, pois as práticas escolares e o sistema de ensino se constituem a partir dos sentidos veiculados por este discurso. Decorre daí termos uma escola autoritária com currículos rígidos que não atendem à singularidade dos sujeitos que chegam até ela para serem educados. Esta escola só faz reconhecer e ecoar a voz do discurso pedagógico reproduzida nos dizeres do professor ou na transparência do livro didático.

É importante dizer que estamos tratando de uma realidade educacional historicamente constituída, possível de ser transformada ou revista. Já existem propostas de saídas para este problema. Entretanto, não há espaço aqui para se aprofundar esta questão, mas apontamos os trabalhos de Tfouni (2005, 2008), cuja teoria sobre o letramento procura romper com as práticas escolares que ignoram, por exemplo, as tradições orais e os discursos atrelados a elas, como o discurso narrativo, que possibilita a emergência da subjetividade e da autoria.

Retomando a discussão, é com base nesse funcionamento discursivo que acabamos de descrever que Tfouni e cols. (no prelo) denunciam a construção de um discurso científico sobre o fracasso escolar a partir do Discurso Pedagógico Escolar tradicional. De acordo com estas autoras, presente na estrutura e nas práticas escolares cotidianas, o DPE também pode ser identificado nas explicações que os professores, e a comunidade escolar como um todo, oferecem sobre os casos de fracasso. Isto significa que o mesmo discurso que diz como deve ser a educação também oferece explicações quando esta não funciona.

É interessante, que enquanto o DPE propõe um modelo de educação que desconsidera a singularidade, a contingência, em um processo no qual “as diferenças são apagadas, a diversidade é negada, e a homogeneização é impingida aos alunos, tornando seus discursos e produções semelhantes e passíveis de controle, o que é atingido principalmente através da cópia, reprodução literal, ou paráfrase” (Tfouni e cols., no prelo, p. 8), a explicações que ele fornece sobre o fracasso escolar são dadas com base nas características do indivíduo ou da família.

Reconhecemos nesse discurso a mesma lógica que encontramos no modelo científico clássico, também chamado de Paradigma Galileano (Ginzburg, 1991), lógica essa que prevê a padronização de procedimentos, variáveis e resultados e a exclusão da diferença, classificada aí como exceção, desvio ou erro.

Nesse modelo de ciência, quando se encontra um obstáculo que dificulte a generalização, são criadas regras especiais para explicar a exceção. São os chamados casos específicos. Quando nem isso é possível, a singularidade é tratada simplesmente como uma irregularidade - e os verbos irregulares estão aí para confirmar isto (retorno, na gramática das línguas, dessa ideologia de homogeneização).

A construção de um discurso científico sobre o fracasso escolar, neste sentido, seria uma forma de tentar explicar-ocultar as falhas de um modelo de educação que não oferece lugar para a diferença, para a singularidade; um modelo de educação que se pretende completo e universal, assim como o paradigma científico sobre o qual se sustenta. Como é impossível uma educação perfeita, absoluta, o fracasso escolar apresenta-se como um sintoma que se repete no cotidiano escolar de nossa sociedade contemporânea; um sintoma-acontecimento que, por não cessar de produzir seus efeitos, também não deixa de pedir sempre novas interpretações.

Mas esse modelo de educação sustentado por um discurso autoritário, que não prevê lugar para a singularidade (que se faz presente em toda subjetividade) tem sua utilidade social. Em uma sociedade de classes, fundamentada não mais na ordem do nascimento como na Idade Média, mas na ordem econômica da propriedade privada e da acumulação de riquezas, um discurso (DPE) que atribui ao indivíduo a responsabilidade pelo seu destino, seu sucesso ou seu fracasso, é indispensável para a manutenção do equilíbrio social. Daí expressões muito conhecidas como tem que estudar para ser alguém na vida, quem não estuda não é ninguém, ou ainda você não estudou porque não quis.

Esse discurso, como já foi discutido aqui, ao mesmo tempo em que cria algumas condições para que haja uma divisão social do trabalho eficaz - pois propõe um modelo de educação que não respeita a singularidade, e assim produz inevitavelmente o fracasso escolar - responsabiliza o sujeito pelo seu próprio fracasso, e assim, também, pela sua própria condição de excluído e de explorado.

Essa lógica de fracasso que estamos indicando neste trabalho pode ser muito significativa para aqueles que trabalham no campo da Orientação Profissional. Como auxiliar jovens e escolas com suas demandas de informação e orientação profissional sem levar em conta os processos sócio-históricos que configuram a divisão social do trabalho? Se o sujeito emerge por retroação da cadeia significante, então é sem sentido falar em tomada de posição antecedendo uma escolha profissional; o sujeito só sabe onde se posicionar e qual lugar poderá ocupar quando já tiver pistas vindas do grande Outro. Se essa pista é do fracasso, então pouco resta para ele se apropriar.

É preciso pensar aquele que vai buscar uma profissão e construir sua carreira em um contexto social caracterizado pela divisão da sociedade em classes e pelas práticas de exclusões necessárias para sustentar essa mesma sociedade. Dessa forma, talvez seja possível pensar em uma prática de orientação que opere um giro no discurso e leve o sujeito a pensar em sua própria condição dentro desse sistema educacional e social, levando-o de uma posição mais idealista - um mundo de oportunidades iguais - para outra mais realista na qual terá de refletir a partir de suas condições reais de classe.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 20/02/2009
1ª Revisão: 26/08/2009
Aceite final: 20/09/2009

 

 

1 Endereço para correspondência: Rua Carlos Gomes, 194, 78.600-000, Barra do Garças-MT, Brasil. Fone: (66) 8115-8670. E-mail: fernandospaula@yahoo.com.br.
2 O Real aqui é pensado de acordo com os três registros lacanianos: real, simbólico e imaginário (Dor, 1995). Compartilhamos da posição defendida por Tfouni e Tfouni (2007) de que existe apenas um real que se manifesta em diferentes espaços, como a Educação e a História.

 

 

Sobre os autores
* Fernando Silva Paula é psicólogo, Mestre em Ciências pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP) e Professor Assistente da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).
** Leda Verdiani Tfouni é Linguista e Analista do discurso, Professora Titular no Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), pesquisadora do CNPq, líder do grupo “A Análise do Discurso e suas interfaces”, cadastrado no diretório do CNPq.

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