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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof vol.11 no.2 São Paulo dez. 2010

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Amizade no processo de orientação profissional: três abordagens na intervenção com jovens

 

Friendship in career counseling: three approaches with youngsters

 

Amistad en el proceso de orientación profesional: tres enfoques en la intervención con jóvenes

 

 

Luciana Karine de SouzaI, 1; Maria Célia Pacheco LassanceII, 2

IUniversidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte-MG, Brasil
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, Brasil

 

 


RESUMO

Com base na experiência prática em orientação profissional, são relatadas três formas distintas de abordar as relações de amizade na demanda e no atendimento a adolescentes e jovens adultos. Inicialmente é apresentado um breve panorama da concepção de amizade e suas características principais, com foco na adolescência e adultez jovem, período crítico para o desenvolvimento de competências interpessoais que, mais tarde, serão centrais para o ajustamento à vida universitária e ao mundo do trabalho. Em seguida, são discutidas três abordagens para lidar com o impacto das amizades na demanda por e no atendimento em orientação profissional em grupo direcionada a adolescentes e jovens. Estas três abordagens - compreensiva, desafiadora e mediadora - estão descritas sob a perspectiva teórico-metodológica do CAP-SOP/UFRGS.

Palavras-chave: relações interpessoais, amizade, adolescentes, orientação vocacional


ABSTRACT

From professional experience in career counseling with adolescents and young adults, we discuss three distinct approaches to friendship relations. First we present a brief overview of friendship conceptions and the main characteristics of friendship, especially during adolescence and young adulthood. This developmental phase is considered critical to the development of interpersonal competencies which will eventually be crucial to university life and the labor market. Secondly, we present three approaches to deal with the impact that friendship might have on adolescents that seek for career counseling. These three approaches - the understanding, the challenging, and the mediating approach - are discussed with basis on the CAP-SOP career counseling theoretical and methodological background at the Federal University of Rio Grande do Sul, Brazil.

Keywords: interpersonal relations, friendship, adolescents, career counseling


RESUMEN

Con base en la experiencia práctica en orientación profesional, se relatan tres formas distintas de enfocar las relaciones de amistad en la demanda y en la atención a adolescentes y jóvenes adultos. Inicialmente se presenta un breve panorama de la concepción de amistad y sus características principales, con centro en la adolescencia y adultez joven, período crítico para el desarrollo de competencias interpersonales que, más tarde, serán esenciales para ajustarse a la vida universitaria y al mundo del trabajo. En seguida, se discuten tres formas de lidiar con el impacto de las amistades en la demanda por y en la atención en orientación profesional en grupo dirigida a adolescentes y jóvenes. Estos tres enfoques - comprensivo, desafiador y mediador - están descritos desde la perspectiva teórico-metodológica del CAP-SOP/UFRGS.

Palabras clave: relaciones interpersonales, amistad, adolescentes, orientación vocacional


 

 

A influência das relações interpessoais no processo de escolha profissional de adolescentes e jovens adultos há muito tempo é reconhecida por profissionais e pesquisadores da área. Seja promovendo atitudes e comportamentos adaptados, seja inibindo o desenvolvimento saudável do indivíduo, as relações interpessoais fornecem elementos fundamentais para a avaliação e o aconselhamento psicológicos de qualidade destinados a indivíduos que buscam orientação profissional e de carreira. Em especial, têm sido focalizadas as relações que envolvem pais (Gonçalves & Coimbra, 2007), colegas de escola (Pereira & Garcia, 2007) e professores (Mouta & Nascimento, 2008).

Em relação aos usuários de serviços de orientação profissional, o recente trabalho de Pereira e Garcia (2007) aborda o modo como as amizades influenciam o processo de escolha, tanto positiva como negativamente. Por outro lado, o presente trabalho pretende relatar o impacto dos relacionamentos de amizade de adolescentes e jovens sobre o atendimento em orientação profissional em grupo, com sugestões para o planejamento de estratégias de intervenção.

Primeiramente é apresentado um panorama da concepção de amizade e suas características, com foco na adolescência e adultez jovem - etapas críticas para o desenvolvimento de competências interpessoais que posteriormente serão centrais para o ajustamento do orientando à vida universitária e ao mundo do trabalho. Em seguida, é relatada a experiência da equipe do CAP-SOP/UFRGS com três abordagens para lidar com as amizades de adolescentes e jovens, com ênfase na demanda por atendimento e no atendimento propriamente dito. É esperado que o relato de experiência a seguir ofereça a orientadores profissionais uma reflexão sobre como as amizades do orientando podem influenciar o processo de escolha profissional no trabalho com grupos de adolescentes e jovens adultos.

 

Amizade na orientação profissional

Embora não seja possível encontrar um conceito uníssono de amizade (Bell & Coleman, 1999; Blieszner & Adams, 1992; Fehr, 1996), esta modalidade de relacionamento possui algumas características sobre as quais há consenso na literatura científica. Um relacionamento de amizade requer apreço mútuo, interesses, atividades e objetivos em comum, assim como ajuda (ou apoio) instrumental, companheirismo (apoio social), divertimento, confiança, apoio emocional, intimidade, assim como uma base segura diante de novidades e dificuldades (Asher, Parker, & Walker, 1996; Bell, 1981; Buhrmester, 1990; Bukowski, Hoza, & Boivin, 1994; Fehr, 1996; Mendelson & Aboud, 1999; Wright, 1985). Há autores que afirmam taxativamente a impossibilidade da amizade entre familiares e entre colegas de trabalho; contudo outros admitem que a amizade tem condições de coexistir com laços de família e hierarquias laborais (Fehr, 1996; Kipper, 2003).

Em cada etapa do ciclo vital, a amizade desempenha um papel importante tanto na promoção como na inibição do desenvolvimento saudável. Amigos podem ajudar o indivíduo a desenvolver-se bem socialmente, colaborando para sua evolução em termos de autoconceito e de autoestima (Bukowski, Newcomb, & Hartup, 1996). Por outro lado, amigos podem estimular o indivíduo ao uso de drogas e à adoção de comportamentos agressivos e antissociais (Araújo & Gomes, 1998; Lisboa & Koller, 2003).

Na infância, a amizade destaca-se pelo companheirismo, diversão e compartilhamento de atividades e interesses. Na adolescência, aspectos como lealdade, auto-revelação, confiança, honestidade, comprometimento e respeito são mais valorizados nas interações entre amigos (Bukowski et al., 1996).

Alguns pesquisadores consideram que o período em que o indivíduo se está dedicando aos estudos universitários consiste em uma etapa importante na formação e manutenção de amizades mais próximas. Estas amizades contribuem muito para o bem-estar social e emocional do universitário, com ganhos indiretos para seu desempenho acadêmico (Koh, Mendelson, & Rhee, 2003; Rawlins, 1992).

Na visão de Rawlins (1992), a entrada na universidade exige do jovem uma readaptação emocional na constituição de uma nova rede de apoio social. Aliado a isso, este novo período de estudos requer que o indivíduo renegocie as rotinas de interação social com os familiares e com as amizades pré-universidade.

Durante o período universitário, os estudantes são formalmente educados para uma futura profissão; experimentam, em conjunto, alternativas de carreira e de estilos de vida, na interface com os relacionamentos pessoais e valores próprios; e estão com as faculdades físicas e mentais no pico de suas capacidades. Estudantes universitários vivenciam juntos desafios e dúvidas semelhantes, tanto sociais como intelectuais, e uma grande expectativa quanto ao que a vida adulta trará após a universidade (Levinson et al., 1979 citado por Rawlins, 1992). Dessa forma, o período universitário é favorável à formação de amizades profundas e empolgantes (Rawlins, 1992).

No início da adultez, as amizades passam a competir com os relacionamentos românticos, que mais tarde ampliam-se com a constituição da família e a dedicação maior ao cônjuge, filhos e carreira profissional. Dessa forma, resta pouco espaço às amizades tal como eram vivenciadas na adolescência (Carbery & Buhrmester, 1998).

Pereira e Garcia (2007) examinaram o impacto das amizades no processo de escolha profissional de 96 estudantes do Ensino Médio. Os autores atentaram para aspectos como troca de idéias com amigos sobre escolha da profissão, do curso universitário e da universidade. A maioria dos participantes, de ambos os sexos, considerou importante esta troca de idéias, justificando-a como facilitadora para uma reflexão crítica acerca da opção realizada. Um dos resultados mais interessantes do estudo de Pereira e Garcia foi a constatação de que aproximadamente 60% dos participantes não percebem que influenciam a escolha profissional de seus amigos nem percebem que estes influenciam a sua. No entanto, a maioria dos estudantes assumiu que os amigos são valorizados como fonte de apoio emocional e troca de informações sobre a opção estudada. Embora paradoxal, este resultado aponta que, mesmo não reconhecida pelo indivíduo, a amizade exerce um papel importante no processo de escolha profissional através da cooperação.

O estabelecimento de laços de amizade envolve o desenvolvimento de habilidades sociais, que, embora tenham uma raiz no temperamento do indivíduo, são, inegavelmente, passíveis de treinamento e aprendizagem, principalmente através da modelagem, com a observação do comportamento dos outros significativos, como pais e pares. Entretanto, a aprendizagem pressupõe exposição à experiência, decodificação da situação e emissão de resposta. Este processo, por sua vez, advém da percepção, por parte do jovem, de que o contexto permite a sua expressão e que este comportamento expresso será respeitado e valorizado (Caballo, 2006).

Ao mesmo tempo, relações de trabalho exigem cada vez mais habilidades sociais voltadas a competências interpessoais que possibilitem o trabalho em equipe, a adaptação organizacional e o alcance de metas pessoais de carreira (Borges & Albuquerque, 2004; Dix & Savickas, 1995; Gondim & Siqueira, 2004). Assim, tendo como referência a crescente exigência adaptativa para o ingresso e progresso no mundo do trabalho, argumenta-se por um processo de intervenção que, mais do que favoreça uma escolha momentânea acerca de um projeto de estudos universitários, acima de tudo forneça alguma possibilidade de treino das habilidades sociais que serão necessárias no contexto ao qual o processo de orientação está auxiliando este jovem a se inserir.

No Brasil, tradicionalmente os processos de intervenção em orientação profissional para adolescentes e jovens adultos são realizados em grupos (Carvalho, 1995; Lassance, 1999; Soares-Lucchiari, 1993). Como vantagem sobre o atendimento individual, o grupo serve como meio de espelhamento do comportamento e das emoções e como contexto privilegiado de aprendizagem sobre o autoconceito e o mundo do trabalho. Lassance (1999) propõe que um processo de intervenção em orientação profissional deve ater-se a três vertentes de trabalho: o processo de desenvolvimento vocacional (que afirma a base teórica e a intervenção associada, estabelecendo objetivos para a intervenção), o processo individual (que identifica as necessidades do cliente) e o processo grupal (que identifica as relações dos participantes dentro do grupo e seu impacto no processo individual).

A configuração das relações de amizade influencia em grande medida o desempenho dos clientes nos grupos de orientação e, consequentemente, tem impacto no planejamento da intervenção. Um grupo de adolescentes constitui-se em mais do que a soma de individualidades: ao longo do tempo, a homeostase do grupo é configurada pelas relações que os elementos do grupo desenvolvem através dos papéis que nele desempenham. É no grupo de pares que o adolescente faz seus primeiros ensaios de autonomia, desempenhando seu papel social da forma como gostaria de ser visto, ou seja, faz seus primeiros ensaios de imagem social. Esta imagem pode, entretanto, tornar-se importante para a manutenção do equilíbrio do grupo ou simplesmente ser uma resposta do adolescente às exigências que ele imagina advirem dos pares. Grupos de orientação profissional organizados em escolas, num espaço de convivência de muitos anos e com papéis individuais bem consolidados, poderão gerar no orientando uma necessidade de permanecer no papel que vem sendo desempenhado no contexto escolar. Essa necessidade muitas vezes impede o adolescente de explorar novas possibilidades e de desenvolver autoconhecimento com flexibilidade e abertura, uma vez que deverá "manter a imagem frente ao grupo". Assim, a vertente do processo grupal por vezes torna-se o foco inicial da intervenção, uma vez que, sem abertura para a experiência de aprendizagem, as escolhas serão realizadas a partir de clivagens cristalizadas e crenças distorcidas (Lassance, 1999).

Por outro lado, há grupos formados por elementos reunidos por ação externa, de forma alheia à vontade dos integrantes. Esta configuração oferece liberdade para que seus integrantes desempenhem papéis construídos no grupo ou nele facilitados, com maturidade e liberdade. Nestes casos, a intervenção deverá estar focada na criação de um clima de abertura ao outro, de confiança mútua e de permissão entre os participantes, completamente desconhecidos até o encontro no grupo (Lassance, 1999).

Formas híbridas destas configurações grupais ocorrem quando grupos de amigos solicitam a formação de um grupo de orientação. É possível levantar algumas razões que embasam o pedido de orientação entre amigos. Motivos de segurança, por exemplo, têm sido comuns especialmente em função da violência urbana crescente através de assaltos e até mesmo seqüestros. Dessa forma, o deslocamento conjunto dos amigos para o serviço que oferece a orientação profissional proporciona companhia protetora contra estes riscos urbanos.

Uma segunda razão bastante frequente por trás do pedido de orientação entre amigos é a insegurança ou dificuldade para participar de um grupo de desconhecidos, em contraste com a segurança previsível oferecida pelas relações de amizade já conhecidas e bem estabelecidas. Este companheirismo intenso muitas vezes ultrapassa a sala de aula, acompanhando atividades extracurriculares e de lazer. Amizades próximas apresentam esta característica de grande companheirismo, especialmente em períodos de término do ensino médio e entrada na universidade, como argumentado previamente. Já uma terceira justificativa para o pedido dos amigos poderia ser motivada por impulsividade, dentro de um movimento com pouca ou nenhuma reflexão da parte da maioria dos indivíduos do grupo. Isto é, o grupo se forma pelo desejo de manter o companheirismo em mais esta atividade, independentemente de existir, por parte de todos, uma demanda real por orientação profissional.

São apresentadas a seguir as três abordagens observadas a partir do trabalho com grupos de jovens no CAP-SOP/UFRGS para lidar com as amizades na orientação profissional direcionada a adolescentes e jovens. São focalizadas tanto as etapas da procura e inscrição para atendimento como o atendimento propriamente dito.

 

Abordagem Compreensiva: atendendo à solicitação do grupo de amigos

Na abordagem compreensiva, é atendido o pedido do grupo de amigos para que sejam incluídos num mesmo grupo de orientação. Entende-se que, na realidade dos grandes centros urbanos brasileiros, em primeiro lugar, o argumento de segurança contra violência urbana durante o deslocamento até o local da orientação é um apelo importante, e seria insensato desconsiderar o pedido. Outra fonte de grande segurança, especialmente entre adolescentes, é o grupo de amizades. Amigos fornecem uma base segura em situações novas ou difíceis (Bell, 1981; Wright, 1985). Nesse sentido, a abordagem compreensiva se justifica devido à confiança prévia que existe entre os amigos e que, diante de estranhos necessitaria de maior tempo para surgir, favorecendo o engajamento nas atividades e dedicação à orientação. Além disso, os amigos, ao compartilharem as tarefas da orientação profissional, estarão fortalecendo a característica fundamental de apoio, fornecido simultaneamente em três dimensões distintas: social, emocional e instrumental (esta última em nível concreto, através das atividades propostas) (Asher et al., 1996; Bukowski et al., 1994). Ademais, validam a necessidade de busca por orientação e a escolha realizada ao final. Ao mesmo tempo, uma abordagem compreensiva proporcionaria que os amigos realizassem juntos as atividades estruturadas em duplas ou pequenos grupos. Trabalhando com os amigos, poder-se-ia garantir maior engajamento na atividade, e potencialmente melhores resultados. Nesse sentido, estar-se-ia fomentando uma característica típica da amizade - o companheirismo (Buhrmester, 1990; Bukowski et al., 1994).

Apesar das vantagens relacionadas ao apoio e validação da escolha, estes mesmos aspectos podem ocasionar movimentos controladores ou sabotadores. Grupos de amigos podem ter crescido juntos e apresentar rigidez nos papéis desempenhados para a homeostase grupal. A autonomia exigida para uma escolha profissional pode ficar prejudicada pela necessidade de manutenção do papel no grupo de amigos próximos. A ideia da separação dos amigos a partir de escolhas de cursos, faculdades, cidades ou estados diferentes pode levar a movimentos de sabotagem, em que há o controle e a pressão do grupo de amigos para uma escolha que os mantenha juntos, percebendo a escolha que separa como um corte emocional e traição à amizade.

Outra questão a se considerar quando se aceita grupos de amigos é o fato de o indivíduo ser privado da exposição a uma variedade de personalidades distintas daquelas que conhece bem em seu grupo de companheiros (Rawlins, 1992). De forma semelhante, experimentaria dificuldades no que se refere à necessidade de manter seu papel na homeostase grupal (Lassance, 1999).

Além disso, as diferenças multiculturais que serão experienciadas na universidade e, posteriormente, no mundo do trabalho, vão requerer do adolescente uma maior abertura para interações diversas com pessoas de todo tipo e em situações variadas (Mercuri & Polydoro, 2003). Interagir apenas com os próprios amigos pode ser empobrecedor em termos de relações sociais. Nesse sentido, o grupo de orientação profissional proporcionaria ao adolescente conhecer um grupo de jovens que, mesmo vivenciando necessidades similares, pode apresentar experiências multiculturais diferentes e complementares àquelas já consolidadas na rede de relações do sujeito. Isso ofereceria uma experiência psicopedagógica mais ampla, de vivência de desenvolvimento de competências multiculturais, enriquecendo a orientação que trabalha com treinamento para escolha profissional e competências associadas. Ademais, muitos orientadores percebem que amigos apresentam conversas periféricas em demasia, tornando-se fonte de distração para todo o grupo prejudicando o andamento do encontro.

 

Abordagem Desafiadora: protegendo a individualidade da escolha

Na abordagem desafiadora, é recusado, no momento da inscrição, o pedido dos futuros orientandos para participarem de um mesmo grupo de orientação. A recusa é claramente justificada, deixando o participante ciente dos aspectos envolvidos e livre para optar em realizar a orientação nestas condições.

Este tipo de abordagem exige do indivíduo características que serão importantes na entrada ao período universitário, como autonomia, independência, comprometimento, saber lidar com desafios e expor-se a uma gama diversa de personalidades e interações sociais (Mercuri & Polydoro, 2003). Estas experiências podem prepará-lo melhor para as situações sociais que enfrentará no mercado de trabalho, e o período universitário é, como argumentado anteriormente, o momento em que é importante preparar o indivíduo para seu futuro social (Teixeira & Gomes, 2004, 2005).

Outra vantagem da abordagem desafiadora é evitar atendimentos sem demanda, isto é, atendimentos de amigos que acompanham amigos só pela companhia, sem necessidade sentida ou refletida de realmente passar por atendimento em orientação profissional. É digno de nota a recorrência deste tipo de caso em muitos grupos, onde por vezes um indivíduo ingressa para acompanhar um bom amigo. Este acompanhante passa pelas atividades sem engajamento, pouco se expõe quando solicitado, e pouco contribui para o processo grupal. Muitos afirmam abertamente estarem se dedicando à escolha, mas na entrevista individual final manifestam já saberem o que iriam cursar na universidade, estando ali mais para fazer companhia ao amigo.

No contexto da abordagem desafiadora, a ausência dos bons amigos no grupo poderia tornar possível ao adolescente uma vivência espontânea das tarefas e atividades da intervenção, uma vez que se sente liberto do controle social estabelecido pelo grupo de amizade. O adolescente permite-se, assim, experimentar diferentes formas de relacionamentos interpessoais e de abordagem da sua própria problemática (Lassance, 1999).

Em muitos casos, no momento da inscrição não é informado que bons amigos procuram juntos o serviço, e acabam sendo alocados em um mesmo grupo de orientação. Nesse caso, para o orientador que adotasse uma abordagem desafiadora, seria possível nas atividades em duplas ou pequenos grupos realizar uma separação total entre os amigos (abordagem mediadora, descrita a seguir), fazendo-os interagir com pessoas diferentes das quais estão acostumados, expondo-os a situações semelhantes à realidade social que os espera no ambiente universitário e do trabalho. Acima de tudo, é pertinente considerar que os desconhecidos do grupo podem, inclusive, se transformar em novas amizades na vida social do orientando.

Acima de tudo, uma abordagem desafiadora pretende prevenir prejuízos ao aspecto individual da escolha. Esta abordagem colocaria o indivíduo em uma situação em que ele precisa pensar sobre si sem a avaliação explícita de seus pares, já bastante presente em seu cotidiano.

 

Abordagem Mediadora: negociando o envolvimento dos amigos no grupo

A abordagem mediadora procura, ao mesmo tempo, tentar atender ao pedido do estudante para realizar a orientação com seus amigos no mesmo grupo, mas sem deixar de proporcionar situações em que possa interagir com desconhecidos. Na recepção para a inscrição ao atendimento em orientação profissional, é evidenciado o problema da orientação para um grupo (pré-existente) de amigos, expondo-se alternativas para o futuro orientando poder escolher, com as informações fornecidas, realizar a orientação exclusivamente com seus amigos ou experimentar uma nova opção. Nesse sentido, está sendo requisitado ao indivíduo tomar uma decisão consciente e informada.

Seria pertinente, no início do atendimento, ou mesmo no momento de inscrição ao serviço, procurar saber qual a motivação do estudante para realizar orientação com seus amigos próximos. É possível, no caso de um grupo de bons amigos procurando orientação, distribuí-los em duplas em diferentes grupos de atendimento, esclarecendo a medida tomada e efetuando em cooperação com os clientes esta distribuição. Isso possibilitaria, ao mesmo tempo, a manutenção da proximidade aos recursos emocionais, instrumentais e sociais que o amigo proporciona, a oportunidade de conhecer novas pessoas que podem ser candidatas a novas amizades (Fehr, 1996) e o desenvolvimento de recursos adaptativos através da experiência com pessoas diferentes, antecipando a vivência universitária.

A abordagem mediadora orienta sobre a influência dos relacionamentos, em especial de amizade, sobre o processo de escolha profissional, auxiliando o cliente a tornar-se mais consciente do papel de seus amigos neste processo. Os amigos são boa fonte de ajuda, companheirismo e validação ao adolescente e ao jovem, no entanto, o orientador precisa estar atento para vigilâncias sabotadoras, cobranças ameaçadoras e comportamentos que dispersam o grupo e atrapalham o comprometimento individual com as atividades propostas no atendimento.

É de suma importância que, na postura mediadora, o orientador possa acompanhar atentamente os bons amigos no grupo. Nesse sentido, as atividades em duplas e pequenos grupos, por exemplo, poderiam ser intercaladas, com a mediação do orientador, entre envolver os amigos próximos e envolver os demais participantes, alternando as interações com membros conhecidos e desconhecidos.

A abordagem mediadora permite que os amigos mantenham-se próximos, ao mesmo tempo em que proporciona vivências com pessoas desconhecidas. O orientador pode aproveitar a entrevista final individual para averiguar com o orientando o impacto do envolvimento de seus amigos no seu próprio processo de escolha profissional. Esta medida seria especialmente importante no caso de suspeita de escolhas que primordialmente visem à manutenção do grupo. Em outras palavras, seriam escolhas profissionais que envolvem bons amigos que, muito unidos e com dificuldades de separação, podem acabar optando por um mesmo curso universitário ou uma mesma universidade. Acima de tudo, no escopo da intervenção realizada no CAP-SOP, considera-se muito importante, na entrevista de encerramento, abordar explicitamente o papel dos amigos neste momento de escolha, questionando-o sobre o que ele pensa e como se sente na iminência de se afastar destas boas amizades.

Pode ser desafiador para o orientador profissional lidar com o pequeno grupo de amigos dentro do grupo maior. Ao longo de todo o processo de escolha, proporcionado pela orientação, o orientador precisa guiar estes indivíduos em suas necessidades individuais, cada um em seu próprio processo, independente das interações coletivas, habilitando o orientando a atentar para dentro (seu autoconceito, seus interesses) e para frente (suas perspectivas, seu futuro) ao invés de para os lados (sua inserção no grupo de bons amigos).

Assim, na finalização do atendimento, no caso do uso de entrevista(s) individual(is) para encerramento, considera-se pertinente e importante consultar o indivíduo sobre seus sentimentos com relação a uma perspectiva de distanciamento iminente dos bons amigos com a entrada na universidade. Na mesma direção, seria também importante verificar se o indivíduo está apto a formular uma justificativa clara e segura no caso de uma opção que o manterá próximo de suas boas amizades. Isso é relevante porque, como já referido, as amizades adolescentes salientam, dentre outros aspectos, a lealdade, cuja ausência poderá ser muito sentida ao término do Ensino Médio.

Para finalizar, a Tabela 1 resume as três abordagens relatadas com base nas experiências práticas dos profissionais do CAP-SOP/UFRGS. São destacados os momentos da inscrição para orientação, da intervenção, e as vantagens e desvantagens de cada abordagem.

 

Considerações finais

É esperado que os amigos sejam valorizados nas reflexões que o adolescente faz durante seu processo de escolha profissional. Para uns, os amigos estarão mais presentes nestas reflexões; para outros, serão apenas fontes secundárias de incentivo à escolha.

De toda forma, é recomendado, tanto na entrevista individual de abertura como na entrevista final de encerramento da intervenção, inserir uma ou duas questões acerca das relações de amizade do indivíduo e sua posição no momento em termos da opção que está sendo elaborada. Na ausência de entrevista individual inicial, é possível, por exemplo, inserir uma questão aberta no formulário de inscrição para atendimento.

No caso de uma questão fazer parte do formulário de inscrição para orientação, algumas sugestões são apresentadas: O que seus amigos mais próximos pensam sobre você procurar orientação profissional?; As escolhas profissionais de seus amigos mais próximos são importantes para você poder realizar a sua escolha?; Como você se sente diante da possibilidade de distanciar-se dos seus amigos mais próximos devido ao ingresso na universidade? Como você lidará com isso? Esta última questão sugerida é pertinente especialmente para se averiguar quais as disposições do indivíduo frente à separação, isto é, que estratégias ele consideraria empregar na situação dada. Estas estratégias são fonte interessante para o orientador profissional no que diz respeito ao lugar que os amigos ocupam na vida do indivíduo e sobre os recursos deste para lidar com desafios deste tipo. O trabalho de Pereira e Garcia (2007) disponibiliza um questionário que pode ser utilizado para estudar a influência ou cooperação das amizades no processo de orientação profissional. Em especial, a questão sete e as questões de números dez a catorze são mais específicas sobre amigos, e interessantes para uso em entrevistas individuais. A título de exemplo, a questão 11 pergunta ao estudante: "Você considera importante conversar com seus amigos sobre seu futuro profissional? Se sim, explique por quê?" (p. 86).

Com respeito às limitações do presente estudo, não era objetivo deste relato de experiência apresentar uma comprovação da eficácia das abordagens referidas. Além disto, utiliza-se um referencial específico de intervenção, o realizado no CAP-SOP/UFRGS. No trabalho desenvolvido nesse Centro, são realizadas uma entrevista inicial individual pré-grupo e entrevistas individuais após o processo grupal. As entrevistas finais propiciam que se trabalhe questões mais delicadas do cliente, com as quais ele poderia sentir-se constrangido no grupo quando junto com os amigos. Na medida em que se considera o tema da influência do grupo de amigos uma questão relevante, sugere-se que, dentro das especificidades de cada processo de intervenção, haja um espaço para esta discussão com o orientando em uma sessão individual.

Sugere-se, ainda, que, independentemente da abordagem adotada, que se possa avaliar esta questão antes (na inscrição ou em entrevista inicial) e depois da intervenção. Uma comparação entre as respostas fornecidas pelo orientando a estas questões nas duas entrevistas (inicial e final) poderia fornecer indicativos de mudança nas atitudes e sentimentos do indivíduo sobre suas amizades na interface com o processo de escolha profissional. Esta mudança, positiva ou negativa, auxiliaria o orientador a concluir sobre a eficácia da abordagem adotada. Além disso, projetos de pesquisa, por exemplo, podem ser desenvolvidos na direção de estudos que atentam para a eficácia de intervenções psicológicas.

Este relato teve como objetivo refletir sobre formas de abordar a demanda por e o atendimento em orientação profissional com foco no impacto que os relacionamentos de amizade de adolescentes e jovens podem exercer sobre o processo de escolha profissional. Espera-se, com isto, acrescentar, à pesquisa nascente no Brasil sobre o tema (Pereira & Garcia, 2007), dados advindos da experiência profissional prática para estimular novos esforços tanto nesta direção como na da pesquisa. Além disso, espera-se ter contribuído para oferecer aos orientadores profissionais uma reflexão sobre como as amizades do orientando podem influenciar o processo de escolha profissional no trabalho com grupos de adolescentes e jovens adultos.

 

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Recebido: 14/09/2009
1ª Revisão: 01/06/2010
2ª Revisão: 06/08/2010
3ª Revisão: 25/08/2010
Aceite Final: 26/08/2010

 

 

Sobre as autoras
Luciana Karine de Souza é psicóloga pela UFRGS, Mestre e Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRGS. É Professora Adjunta e pesquisadora no Departamento de Psicologia e no Mestrado Interdisciplinar em Lazer da Universidade Federal de Minas Gerais.
Maria Célia Pacheco Lassance é psicóloga (PUC-SP), Mestre em Aconselhamento Psicopedagógico (PUC-RS) e Doutora em Psicologia (UFRGS). Professora Adjunta do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da UFRGS. Coordena o Centro de Avaliação Psicológica, Seleção e Orientação Profissional (CAP-SOP/UFRGS) e é membro da equipe técnica do Núcleo de Apoio ao Estudante (NAE/UFRGS).Fundadora e ex-presidente da ABOP.
1 Endereço para correspondência: Depto. de Psicologia,Universidade Federal de Minas Gerais, Av. Antônio Carlos, 6627, sala F-4050, Campus Pampulha, 31.270-901, Belo Horizonte- MG. Fone: 31 34095027. E-mail: lucianak@fafich.ufmg.br
2 Trabalho apresentado pelas autoras no I Congresso Latinoamericano de Orientação Profissional da ABOP e VIII Simpósio Brasileiro de Orientação Vocacional & Ocupacional, em Bento Gonçalves, RS.

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