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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof vol.13 no.1 São Paulo jun. 2012

 

ARTIGO

 

Saliência do papel de trabalhador, valores de trabalho e desenvolvimento de carreira

 

Work role salience, work values and career development

 

Relevancia del papel de trabajador, valores de trabajo y desarrollo de carrera

 

 

Maria Célia Pacheco Lassance1; Jorge Castellá Sarriera

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, Brasil

 

 


RESUMO

Investigou-se o impacto da saliência do papel de trabalhador nos valores de trabalho e na preocupação e envolvimento com as tarefas de desenvolvimento de carreira, em indivíduos estáveis na carreira e em transição. Participaram no estudo 499 trabalhadores, com nível de educação superior, homens e mulheres, com idades entre 21 e 65 anos respondendo ao Inventário de Saliência, à Escala de Valores relativos ao Trabalho e a uma versão reduzida do Inventário de Preocupações de Carreira para Adultos. Foram observadas associações entre as variáveis que comprovam a relevância da saliência do papel de trabalhador para o desenvolvimento de carreira em adultos. Discutem-se as mudanças nas etapas evolutivas e suas implicações para a avaliação do desenvolvimento de carreira na contemporaneidade.

Palavras-chave: orientação vocacional, valores, desenvolvimento profissional, saliência de papel


ABSTRACT

This study investigated the impact of career role salience on career values and on career task concerns and involvement, with both stable wokers and in career transition workers. Four hundred ninety-nine male and female high education workers, aged 21 to 65 years old, answered the Salience Inventory, Work Values Scale and the ACCI - short version. Associations were found between the variables that showed the importance of work role salience for adult career development. Changes in career evolution processes and their implications for career development assessment in contemporaneity are discussed.

Keywords: career counseling, values, career development, role salience


RESUMEN

Se investigó el impacto de la relevancia del papel de trabajador en los valores de la carrera y en la preocupación y comprometimiento con las tareas de desarrollo de carrera, en individuos estables en la carrera y en transición. Participaron en el estudio 499 trabajadores con nivel de la carrera de educación superior, hombres y mujeres, con edades entre 21 y 65 años respondiendo al Inventario de Relevancia, a la Escala de Valores relativos al Trabajo y a una versión reducida del Inventario de Preocupaciones de Carrera para Adultos. Se observaron asociaciones entre las variables que comprueban la relevancia del papel de trabajador en el desarrollo de la carrera en adultos. Se discuten los cambios en las etapas evolutivas y sus implicaciones para la evaluación del desarrollo de la carrera en la contemporaneidad.

Palabras clave: orientación vocacional, valores, desarrollo profesional, relevancia de papel de la carrera


 

 

A configuração do mercado de trabalho e das relações de trabalho do século XXI exige novas posturas dos trabalhadores frente às suas carreiras e, aos profissionais e pesquisadores da área de estudos de carreira, traz a necessidade de repensar as práticas e as teorias nas quais fundamentam as suas intervenções (Duarte et al., 2010). As trajetórias profissionais antes lineares estão, progressivamente, tornando-se uma sucessão de transições e o vínculo com o trabalho torna-se cada vez mais flexível, provisório e precário. A pressuposição da estabilidade na carreira e no emprego que caracterizou o contexto do trabalho até o final século passado, esteve subjacente aos estudos que resultaram em instrumentos e práticas de intervenção, dentre os quais muitos não foram revisados para o novo cenário de instabilidade e precariedade que se instalou desde então.

O desenvolvimento da carreira tem sido tema de estudo desde a publicação, em 1942, do The Dynamics of Vocational Adjustement, de Donald Super, obra que focava o contexto social e as necessidades pessoais considerados em uma escolha profissional. Nesta obra, Super reformula a perspectiva da psicologia vocacional, funda a perspectiva evolutiva, ao apontar a escolha profissional como um processo e não como um evento. A partir desta idéia, muitos estudos passam a verificar, então, quais os padrões e variáveis que afetariam este processo. Dentre eles, destaca-se o estudo de Eli Ginzberg (Ginzberg, Ginsburg, Axelrad, & Herma, 1951) que definiu o desenvolvimento vocacional como uma sucessão de estágios que envolviam decisões vocacionais, com certa rigidez sequencial, da adolescência ao início da vida adulta, período que encerraria a oportunidade das escolhas de carreira. As idéias de Super e Ginzberg motivaram estudos longitudinais (Roe, 1957; Super, 1985; Tiedeman, 1963) que acompanharam a trajetória de carreira de pessoas a partir da adolescência, com foco no mapeamento de tarefas evolutivas encontradas ao longo deste processo. Entretanto, esta idéia de estágios de desenvolvimento sequenciais e previsíveis, amplamente aceita, foi construída em um contexto social também previsível. Embora certa organização de vida em termos de eventos evolutivos ainda possa constituir uma narrativa social que descreve, em parte, a vida das pessoas, individualmente são muitas as possibilidades narrativas, principalmente em se considerando a necessidade de constantes ajustes a transições de carreira inesperadas (Savickas, 2005).

Dentre as teorias de desenvolvimento de carreira, a mais relevante foi construída por Donald Super ao longo de cerca de 50 anos. A teoria da Trajetória de vida / Espaço de vida (Super 1980; Super, Savickas, & Super, 1996) incorporou à teoria do desenvolvimento vocacional (Super, 1957), e do autoconceito vocacional (Super, 1963), um segmento contextual, que identificava um indivíduo que se desenvolve ao longo de toda a vida, através de estágios sequenciados, que recicla dentro dos estágios a cada transição, e socialmente contextualizado ao desempenhar vários papéis de forma sequencial ou concomitante. Na medida em que se concebe um indivíduo contextualizado, o trabalho já não pode ser visto como uma esfera de vida isolada. Assim, escolhas de vida, e dentre estas, as de trabalho, estariam sujeitas a variáveis contextuais (contexto cultural, social, familiar, oportunidades de trabalho, educação) e variáveis pessoais (interesses, saliência dos papéis, valores pessoais e de trabalho, características de personalidade), e é esta relação entre indivíduo e seu contexto que constrói a trajetória de vida e de trabalho. A partir destas proposições, e de forma a se adequarem às próprias transformações do contexto socioeconômico, os estudos de carreira evoluíram na direção de tornarem-se menos normativos, absorvendo as proposições e métodos construtivistas (Duarte et al., 2010; Savickas, 2005) que pressupõem um indivíduo em constante transformação e em completa integração com o seu contexto social, de vida e de trabalho.

Estudos teóricos e empíricos que atualizam e reformulam os elementos conceituais da teoria clássica de desenvolvimento de carreira de Super são recorrentes na literatura internacional, entretanto, são raros no cenário brasileiro. Assim, o presente estudo pretendeu avaliar algumas variáveis centrais da teoria de Super, - saliência de papel de trabalhador, valores de trabalho e tarefas de desenvolvimento de carreira, bem como interações entre estas variáveis e satisfação no trabalho - de forma a verificar a sua aplicabilidade e pertinência em uma amostra de adultos brasileira e fazer algumas reflexões acerca destas variáveis para a intervenção e a pesquisa em estudos de carreira.

 

Saliência de papel de trabalhador

Saliência foi definida por Super (1980) como a importância de um papel em relação aos demais papéis desempenhados por uma pessoa. A estrutura dos papéis, ou estilo de vida, é determinada por um padrão específico de papéis centrais e periféricos. Os papéis centrais constituem o cerne do que o indivíduo é, são fundamentais para sua identidade e essenciais para sua satisfação de vida (Savickas, 2005). Saliência de papel, no modelo de Super, é descrita a partir de três dimensões: participação, comprometimento e expectativa de valor. Isto é, um papel é saliente quando demanda tempo e energia, quando o indivíduo se sente comprometido com ele e quando espera realizar valores no papel (Lassance & Sarriera, 2009). O papel de trabalhador seria um dentre vários papéis, como os referentes ao estudo, comunidade, casa e família e tempo livre, papéis considerados principais no modelo (Super, 1980).

Estudos demonstram que, para os adultos, o papel mais saliente é o de trabalhador (Lassance & Sarriera, no prelo; Super & Sverko, 1995). Alta saliência no papel de trabalhador tem sido relacionada à prontidão para se fazer escolhas profissionais (Super, 1980), satisfação profissional (Greenhaus, 1971), a melhores condições de empregabilidade (Nurmi, Salmela-Aro, & Koivisto, 2002), maior exploração e menor indecisão profissional (Greenhaus & Simon, 1977; Ng & Feldman, 2007), e índices mais elevados de auto-estima (Greenhaus & Simon, 1976; Reitzes & Mutran, 2002). Assim, saliência no papel de trabalhador pode ser considerada uma variável central na compreensão de como as pessoas desenvolvem suas carreiras profissionais.

 

Valores de trabalho

Valores são crenças relativamente estáveis ao longo do tempo, que funcionam como padrões que guiam a maneira pela qual um indivíduo deve viver; são estruturas cognitivas construídas a partir do contexto cultural no qual o indivíduo está inserido (Brown, 2002) e possuem dimensões afetivas e comportamentais (Porto & Tamayo, 2007; Super, 1995). Como esquemas cognitivos gerais são, portanto, guias de comportamento e escolhas em qualquer papel social. Valores de trabalho são aqueles que o indivíduo acredita serem satisfeitos como resultado de sua participação no papel de trabalhador, embora valores defendidos em outros papéis sociais influenciem o processo de desenvolvimento vocacional (Brown, 2002).

Valores de trabalho são uma variável central para a compreensão do comportamento humano e do processo de desenvolvimento vocacional (Super, 1995) e ocupam a posição mais central no sistema cognitivo e na construção da personalidade dos indivíduos, determinam atitudes e estão intrinsecamente ligados ao construto de motivação para o trabalho (Dose, 1997). A prontidão de um indivíduo para a tomada de decisão de carreira envolve a motivação para o trabalho ou para uma carreira, tanto quando esta motivação envolve trabalhar como um meio para fazer amigos ou para a auto-realização, quanto como um meio de sobrevivência e de uso do tempo (Super, 1995).

 

Tarefas de desenvolvimento de carreira

O desenvolvimento de carreira constitui-se numa dimensão integradora do desenvolvimento psicológico, a partir da confrontação com as demandas sociais ou tarefas evolutivas, que determinam processos de elaboração, implementação e reformulação de projetos de vida ao longo do ciclo vital, realizados a partir de educação, qualificação e atividade profissional (Gonçalves & Coimbra, 2002). Pressupõe ações adaptativas transacionais entre o indivíduo e a sociedade (Savickas, 2005). O autoconceito vocacional, manifestado através de narrativas integrativas e autodefinidoras, é um orientador desta adaptação entre as oportunidades e limitações sociais e culturais, que fornecem padrões socialmente construídos (tarefas evolutivas) através dos quais o indivíduo se desenvolve. O sucesso na adaptação a cada tarefa evolutiva resulta em maior efetividade no desempenho dos papéis sociais e estabelecem as bases para o progresso na sequência de tarefas.

Embora inicialmente Super (1957) tenha descrito o desenvolvimento vocacional como uma sequência rígida de estágios que corresponderiam às principais fases da vida, avançando na própria teoria, posteriormente (Super et al., 1996) postulou que a transição entre os estágios de carreira são mais uma função da personalidade e das circunstâncias de vida de uma pessoa do que uma função da idade cronológica, e diferenças temporais nas transições não implicam em um resultado final mal sucedido. Além disto, teorizou que a passagem por um estágio não deveria necessariamente ser permanente para que se configurasse um desenvolvimento ótimo.

Tarefas evolutivas vocacionais na idade adulta são experimentadas como preocupações de carreira, correspondentes aos estágios de Exploração, Estabelecimento, Manutenção e Desengajamento que constituem os maxi-ciclos, ou uma trajetória linear padrão. O estágio de Exploração, constitui-se das tarefas de cristalização, especificação e implementação de preferências vocacionais, através de exploração ativa de si e do mundo do trabalho. O estágio de Estabelecimento demanda ao indivíduo que se estabilize em uma posição ocupacional ou profissão que permita a auto-expressão de interesses, valores e autoconceitos, através da assimilação da cultura organizacional e do desempenho satisfatório das tarefas sob sua responsabilidade, que demonstre atitudes de trabalho positivas e hábitos produtivos, e que demonstre capacidade de estabelecer bons relacionamentos interpessoais com parceiros de trabalho. Ao final do estágio de Estabelecimento, espera-se que o trabalhador refine seus autoconceitos de forma a estabelecer profundidade e concretude à sua história ocupacional, possibilitando uma reflexão produtiva acerca dos propósitos, potencialidades e limitações, na direção de uma maior coerência. Esta visão mais refinada de si mesmo oportuniza as condições para progresso (vertical nas posições, ou horizontal nas tarefas), de forma a potencializar a integração com o ambiente do trabalho.

O estágio de Manutenção consiste em manter a posição atingida e inovar na ocupação ou inovar na carreira, estabelecendo novos desafios na ocupação presente ou em uma nova posição de trabalho ou carreira. Estabelecido em uma posição, o indivíduo questiona-se sobre a adequação da permanência na situação presente como projeção futura. O objetivo deste momento evolutivo concentra-se numa escolha entre permanência (continuar fazendo com adaptação ou estagnação), atualização (fazer melhor) ou inovação (fazer diferente), através de uma reavaliação das experiências de trabalho e uma consequente revisão dos autoconceitos. Para Savickas (2005), esta etapa deve ser denominada de Gerenciamento, uma vez que a inserção do indivíduo maduro não mais pressupõe uma noção de permanência e sim de resiliência e recomeço, em função das mudanças sociais e na organização do trabalho. O estágio de Desengajamento pressupõe uma diminuição gradual da inserção no trabalho até a retirada completa.

A teoria também postula que, além do desenvolvimento através dos estágios de carreira (maxi-ciclos), o indivíduo ainda recicla através das tarefas evolutivas, realizando nova exploração, novo estabelecimento e nova manutenção, a cada transição profissional (Super et al., 1996). Isto é, a mudança também faz parte do desenvolvimento normal e bem sucedido, e a transição acarreta um retorno a etapas tradicionalmente atribuídas a estágios anteriores do desenvolvimento. Este retorno facilita o desenvolvimento pessoal e a adaptação às mudanças sociais e das circunstâncias de vida pessoal, reforçando a maturidade, poder pessoal e produtividade criativa. A flexibilização do desenvolvimento de carreira, determinada pela multiplicidade individualizada de possibilidades de trajetórias profissionais e tarefas de carreira associadas, experimentadas como transições planejadas ou rupturas, cada vez mais freqüentes, define para o estudo das carreiras um foco nas competências que o trabalhador desenvolve para adaptar-se às transições.

O conceito de maturidade vocacional (MV) é o aspecto mais significativo da obra de Donald E. Super em termos do volume de pesquisas que gerou. A MV foi definida como uma prontidão para realizar escolhas vocacionais alinhadas às demandas relativas ao desenvolvimento biológico e social, bem como pelas expectativas sociais de outras pessoas que alcançaram esta etapa de desenvolvimento (Super et al., 1996). Entretanto, o modelo de MV pressupõe um componente maturacional e uma dinâmica evolutiva crescente, quase linear. Para a população adulta, Super e Knasel (1981) apresentaram o conceito de adaptabilidade de carreira, para melhor descrever a natureza do desenvolvimento na vida adulta, uma vez que, nesta etapa, as situações se apresentam de forma heterogênea para cada indivíduo e não se pode falar em crescimento ou maturação na vida adulta.

Super, Thompson e Lindeman (1988), ao defenderem a substituição dos conceitos, argumentam que o conceito de adaptabilidade é mais compatível com a idéia de que o desenvolvimento depende primordialmente da personalidade e das experiências cotidianas, tanto que o indivíduo se torna mais adaptável quando maduro. Além disto, o desenvolvimento não estanca com a chegada à idade adulta, apenas não segue o padrão linear ou curvilíneo da infância e adolescência. Isto é, o desenvolvimento ocorre durante toda a vida, manifestando-se algumas vezes de forma harmoniosa ou lenta e, em outras, de forma abrupta ou rápida, de acordo com as condições físicas, a competência, as condições de bem-estar e produtividade da pessoa.

O conceito de adaptabilidade está, portanto, centrado nas competências e atitudes do indivíduo frente a si mesmo e ao seu contexto e extremamente ligado às possibilidades de transição de carreira. A adaptabilidade de carreira diz respeito à prontidão e aos recursos para lidar com as tarefas de desenvolvimento vocacional demandadas culturalmente e que definem os objetivos de cada etapa de desenvolvimento da carreira de um indivíduo (Savickas, 2005). O modelo de adaptabilidade desenvolvido por Super et al. (1988), parte de cinco dimensões principais: duas afetivas (disposição para planejar e exploração), e três cognitivas (informação, tomada de decisão e orientação para a realidade). O modelo sustenta que os componentes psicológicos são os principais determinantes da adaptabilidade. Uma vez que satisfação no trabalho está relacionada com a capacidade do indivíduo para desenvolver e implementar seus autoconceitos, quanto mais elevada a adaptabilidade, maiores as possibilidades de se alcançar a satisfação profissional. Isto é, os índices de adaptabilidade são preditores de ajustamento profissional (Super, 1977, 1985).

O desenvolvimento da carreira constitui-se na relação que o indivíduo estabelece com expectativas sociais que se apresentam na forma de tarefas evolutivas, isto é, na relação entre características do indivíduo e seu contexto. Dentre as características individuais, este estudo abordou a saliência do papel de trabalhador, procurando verificar a existência de interações entre saliência, valores de trabalho, preocupação e envolvimento com as tarefas de desenvolvimento de carreira de indivíduos [em duas situações de carreira diferentes: situação1 - estáveis ou que não consideram uma transição de carreira; situação2 - em etapas diversas de uma transição de carreira] e satisfação com o trabalho com adultos jovens e maduros.

 

Método

Participantes

Participaram deste estudo 499 adultos, 111 homens e 388 mulheres, com idades entre 21 e 65 anos (M = 37,14; DP = 10,21), sendo 73,9 % (n = 369) adultos jovens, (na faixa entre 21 e 44 anos) e 26,1% (n = 130) adultos maduros (na faixa entre 46 e 65 anos). Todos possuíam escolaridade de nível superior, 50,3 % referiu renda familiar acima de R$ 6.000,00 e 70,9% declararam-se satisfeitos com sua atividade profissional.

Medidas e instrumentos

Saliência de papel de trabalhador: esta variável foi avaliada através do Inventário de Saliência (IS - Lassance & Sarriera, no prelo), traduzido e adaptado do Salience Inventory (Super & Nevill, 1986). O IS possui 170 itens, divididos em três subescalas do tipo Likert de quatro pontos que varia de (1) nunca ou raramente e pouco ou nada; (2) às vezes ou alguma coisa; (3) frequentemente ou bastante até (4) quase sempre ou sempre e muito. A subescala "Participação" avalia o quanto o indivíduo se ocupa de um papel, a de "Comprometimento" avalia a atitude frente ao papel e a de "Expectativa de Valor" avalia o quanto o respondente espera realizar valores no papel, para cinco papéis: trabalho, estudo, serviço comunitário, casa e família, e tempo livre. No presente estudo, foram utilizadas as subescalas "Participação" e "Comprometimento", compostas por 10 afirmações, que devem ser respondidas face aos cinco papéis, perfazendo, assim, cada uma, um total de 50 itens. Neste estudo, a saliência do papel de trabalhador foi classificada em alta ou baixa tomando por base os escores referentes ao papel de trabalhador nas subescalas de Participação e Comprometimento, que apresentaram bons índices de consistência interna (alphas de Cronbach de 0,87 e 0,84 respectivamente). Participantes com escores superiores à mediana tanto em "Participação" (Mdn = 3,33) quanto em "Comprometimento" (Mdn = 3,50) foram considerados com alta saliência (n = 134), e aqueles com escores inferiores à mediana foram considerados com baixa saliência (n = 160).

Preocupação com as tarefas de carreira: medida através do IPC-r (Lassance, 2010), uma versão reduzida do Adult Career Concern Inventory (ACCI - Super et al., 1988) como proposta por Perrone, Gordon, Fitch e Civiletto (2003). Para compor a versão reduzida, utilizou-se os itens da adaptação brasileira (Inventário de Preocupações de Carreira para Adultos, IPC) realizada por Balbinotti (2004). O IPC-r fornece informação acerca da tarefa evolutiva enfrentada pelo respondente e o estágio associado e constitui-se em uma escala com 12 itens: quatro itens referentes a tarefas de "exploração", seis itens referentes às tarefas de "gerenciamento" (estabelecimento e manutenção) e dois itens referentes às tarefas de "desengajamento". Solicita-se que o respondente classifique as afirmações (correspondentes às tarefas evolutivas) numa grade de resposta que varia de (1) Atualmente isso não me tem preocupado a (5) Atualmente isso me preocupa muitíssimo. Um item adicional solicita ao respondente que indique sua situação de carreira em relação à transição. Neste estudo, os índices de consistência interna (alpha de Cronbach) foram de 0,87 para "exploração", 0,88 para "gerenciamento" e 0,84 para "desengajamento".

Envolvimento com as tarefas de carreira: para a avaliação do envolvimento concreto com as tarefas evolutivas, utilizou-se uma segunda grade de respostas para o IPC-r, como proposto por Niles, Lewis e Hartung (1997), que afirmam que "ao acessar meramente o nível de preocupação com as tarefas vocacionais, o ACCI não identifica razões explícitas para o nível indicado de preocupação" (p. 88). Assim, solicita-se ao respondente que classifique as afirmações através da seguinte grade de respostas: 1 = ainda não pensei nisto; 2 = já pensei nisto mas não sei o que fazer a respeito; 3 = sei o que tenho de fazer; 4 = estou atualmente fazendo o que é necessário a respeito disto e 5 = já fiz isto.

Para esta grade de respostas, os índices de consistência interna (alpha de Cronbach) foram de 0,82 para "exploração", 0,79 para "gerenciamento" e 0,74 para "desengajamento".

Transição de carreira: Para se determinar a situação de carreira, utilizou-se a questão referente à transição de carreira - item 13 do IPC-r - que solicita ao respondente que indique sua situação de carreira: (1) não considero uma mudança de carreira; (2) eu estou me perguntando se deveria fazer uma mudança de carreira; (3) eu estou planejando uma mudança de carreira e estou no processo de escolha da área que deveria ir; (4) eu escolhi uma nova área e estou tentando me engajar nela; e, (5) eu recentemente mudei de carreira e estou no processo de me estabelecer na nova área. Os participantes foram agrupados em estáveis (situação 1 - respostas 1 ) (n = 162) e em transição (situação 2- respostas 2, 3 e 4) (n = 132), por serem as respostas que mais claramente indicam a situação do respondente (i.e.; se está ou não em processo de transição no momento).

Valores de trabalho: foram medidos através da Escala de Valores Relativos ao Trabalho (EVT - Porto & Tamayo, 2003). A EVT possui 45 itens, distribuídos em quatro dimensões: "realização no trabalho" (busca de prazer, realização pessoal e profissional, independência de pensamento e ação no trabalho, autonomia intelectual e criatividade); "relações sociais" (busca de relacionamentos positivos no trabalho, contribuição à sociedade através do trabalho); "prestígio" (busca de autoridade, sucesso profissional, poder e influência no trabalho) e "estabilidade" (busca de segurança e ordem na vida através do trabalho, provimento material através do trabalho). A EVT constitui-se de afirmações que são classificadas em uma escala tipo Likert de 5 pontos, que varia de (1) nada importante a (5) extremamente importante.

O estudo de validação (Porto & Tamayo, 2003), demonstrou que a EVT apresentou bons índices de confiabilidade (índices alpha de Cronbach entre 0.81 e 0.88) e boas cargas fatoriais para os itens, bem como boa validade de conteúdo. No presente estudo, a EVT apresentou índices de consistência interna de 0,91 para "realização", 0,87 para "relações sociais", 0,86 para "prestígio" e 0,83 para "estabilidade".

Satisfação no trabalho: realizou-se uma avaliação da satisfação com a atividade profissional atual e com o nível ocupacional através de duas questões contidas no questionário sociodemográfico, que solicitavam aos participantes que avaliassem a satisfação com a ocupação atual e com o nível ocupacional atingido até o momento, através de uma escala tipo Likert de 5 pontos, em que (1) significava muito insatisfeito e (5) significava muito satisfeito. Estas duas medidas compuseram uma medida única de satisfação com o trabalho (através da estimativa da média).

Procedimentos

Os participantes foram contatados por um e-mail padrão, que informou sobre os objetivos da pesquisa e disponibilizou um link através do qual poderiam acessar os instrumentos. Na abertura da página, apresentou-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e, após a indicação de estarem cientes do conteúdo da pesquisa e aceitarem participar, os participantes tinham acesso aos instrumentos para preenchimento. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (nº 2008/57).

Inicialmente foram feitas estatísticas descritivas para obtenção de médias e desvios-padrão para descrição da amostra. Utilizou-se testes correlacionais para verificação de associação entre variáveis e, análises de variância para verificação de relações entre as variáveis independentes (saliência do papel de trabalhador - alta saliência e baixa saliência) e transição de carreira (participantes estáveis e em transição) e as variáveis dependentes "preocupação" e "envolvimento de carreira", para as tarefas de "exploração", "gerenciamento" e "desengajamento", valores de trabalho e satisfação profissional. Para compreensão da relação entre as variáveis independentes, foram realizados testes de diferenças de médias (t de Student).

 

Resultados

A Tabela 1 exibe as médias e desvios-padrão para os quatro grupos desta análise para preocupações e comportamento de carreira, valores de trabalho e satisfação no trabalho. A variável "Idade" correlacionou-se significativa e negativamente com "preocupação de carreira" para as tarefas de "exploração" (r = -0,30; p < 0,001) e menos com as tarefas de "gerenciamento" (r = 0,18; p < 0,001) e significativa e positivamente para "envolvimento de carreira" para as tarefas de "desengajamento" (r = 0,28; p < 0,001) e um pouco menos para as tarefas de "gerenciamento" (r = 0,13; p < 0,01), demonstrando um efeito evolutivo sobre preocupação e envolvimento de carreira, como esperado. Entretanto, nesta amostra, os grupos etários não diferiram em relação à "saliência do trabalho" (Mjovens = 3,34 ; DP = 0,41 ; Mmaduros = 3,36 ; DP = 0,49; t = 0,39 ; p = 0,69) nem na proporção entre estáveis e em transição (maduros estáveis = 76% e jovens estáveis = 72,3%).

A Tabela 2 exibe os resultados das ANOVAs 2 X 2 para preocupação e envolvimento com as tarefas de desenvolvimento de carreira. A análise de variância indicou existir, para preocupação com as tarefas de exploração, um efeito principal da variável transição, isto é, participantes em transição mostraram-se mais preocupados com as tarefas de exploração do que os estáveis, tanto dentre os participantes com alta saliência, como dentre os com baixa saliência. Ainda, observou-se um efeito marginal (p = 0,06) da saliência, sugerindo uma tendência a maior preocupação com as tarefas de exploração por parte do grupo de baixa saliência em relação ao grupo de alta saliência. Para envolvimento com as tarefas de exploração foram observados efeitos tanto da transição quanto da saliência. Isto é, participantes estáveis mostraram-se mais envolvidos com as tarefas de exploração do que os participantes em transição e participantes com alta saliência mostraram-se, em média, mais envolvidos do que os com baixa saliência.

 

 

Para as tarefas de gerenciamento, observou-se efeito principal das variáveis saliência e transição, tanto para preocupação quanto para envolvimento. Participantes em transição mostraram-se mais preocupados e menos envolvidos com estas tarefas. Alta saliência no papel de trabalhador associou-se tanto a maior preocupação quanto a maior envolvimento com as tarefas de gerenciamento. Embora a análise de variância tenha apontado um efeito marginal da interação entre saliência e transição (p = 0,06), pode-se pensar na existência de uma tendência. O teste de diferenças de médias (t de Student) mostrou que, dentre os participantes com baixa saliência, os em transição apresentaram escores significativamente mais elevados do que os estáveis em preocupação com as tarefas de gerenciamento (t = 2,96, p < 0,01) e significativamente mais baixos do que os estáveis em envolvimento com estas tarefas (t = 2,60, p = 0,01) e, dentre o grupo com alta saliência, não foram observadas diferenças significativas nem para preocupação, nem para envolvimento com as tarefas de gerenciamento entre participantes estáveis e em transição.

Com relação a preocupação com as tarefas de desengajamento, observou-se um efeito principal da transição, sendo que os participantes em transição mostraram-se mais preocupados do que os estáveis. Não se observou efeitos significativos da saliência ou da interação entre saliência e transição para a variável preocupação com o desengajamento. Já em relação ao envolvimento com as tarefas de desengajamento, não se observaram efeitos significativos (da saliência, da transição ou da interação entre esses fatores).

A Tabela 3 exibe os resultados das ANOVAs 2 X 2 para valores de trabalho e satisfação. Quanto aos valores de trabalho, de um modo geral, realização profissional apresentou escores mais elevados, seguido de estabilidade, relações sociais e prestígio. A única exceção foi para o grupo de baixa saliência e em transição, no qual o escore de estabilidade foi mais alto do que o de realização profissional. A análise de variância demonstrou um efeito principal da saliência para todos os quatro valores, associando alta saliência com escores de importância mais elevados para os quatro valores investigados. Para o valor prestígio também se observou um efeito principal da transição, sendo que os participantes em transição obtiveram escores significativamente mais elevados do que os estáveis. Contudo, uma análise mais detida das médias obtidas nos sugere que o grupo de baixa saliência apresentou uma diferença entre indivíduos estáveis e em transição mais acentuada do que no grupo de alta saliência. De fato, o tamanho do efeito (da diferença) no grupo de baixa saliência foi d = 0,46 e no grupo de alta saliência foi d = 0,07. Um teste t de Student mostrou que essa diferença foi estatisticamente significativa para o grupo de baixa saliência (t = 3,04, p < 0,01), mas não para o de alta saliência. Para o valor estabilidade verificou-se, além do efeito principal da transição, uma interação significativa entre saliência e transição. Análises complementares mostraram que, dentre os participantes de baixa saliência, os em transição atribuíram maior importância à estabilidade do que os estáveis (t = 2,48 , p < 0,01) e, dentre o grupo de alta saliência não se observou diferenças.

 

 

Para satisfação no trabalho observou-se efeito principal da saliência e da transição, assim como uma interação significativa. Como esperado, indivíduos de alta saliência estão mais satisfeitos com o trabalho do que os com baixa saliência e, também como esperado, no geral, indivíduos estáveis mostraram-se mais satisfeitos do que indivíduos em transição. Entretanto, dentre os participantes com baixa saliência, os estáveis apresentaram escores significativamente mais altos em satisfação do que os em transição (t = 6,64; p < 0,001), enquanto que para indivíduos de alta saliência, não se observou diferenças significativas na satisfação em relação à situação de carreira (t = 1,78 ; p = 0,07).

 

Discussão

Os dados obtidos neste estudo ratificam e atualizam achados de estudos sobre desenvolvimento de carreira. De forma ampla, quando comparados com indivíduos de baixa saliência no papel de trabalhador, indivíduos com alta saliência estão mais satisfeitos com o trabalho, estão mais envolvidos com as tarefas de exploração e com as tarefas de gerenciamento e atribuem maior importância aos valores de trabalho em geral e, em especial, ao valor de realização pessoal.

Os resultados do presente estudo reforçam a ideia de reciclo, na medida em que envolvimento com tarefas de exploração não se correlacionaram com idade. Além disto, estar experimentando um momento de transição leva o indivíduo ao enfrentamento de tarefas tradicionalmente ligadas a etapas anteriores no desenvolvimento, corroborando as afirmações de Smart e Peterson (1997), que, ao avaliar o reciclo entre estágios de desenvolvimento de carreira com 226 adultos australianos em diferentes situações de transição de carreira, também concluíram que mudanças profissionais levavam os trabalhadores à preocupação com tarefas dos primeiros estágios descritos por Super. Entretanto, as correlações entre idade e preocupações com as tarefas de exploração e desengajamento sugerem que a noção de "grande narrativa" (Savickas, 2005) ainda permanece como paradigma pelo qual as trajetórias de carreira são pautadas na sua forma geral. Assim, embora a carreira contemporânea deva ser considerada uma construção individualizada, ainda se pode pensar em demandas sociais constituídas por um padrão sequencial de desenvolvimento, o que pode transformar transições em problemas de carreira, experimentados pelo trabalhador como uma ruptura do padrão esperado.

Indivíduos em transição de carreira, no geral, mostraram-se mais preocupados com as tarefas de exploração e gerenciamento do que indivíduos estáveis e, para envolvimento de carreira, o contrário foi verdadeiro: indivíduos estáveis na carreira apresentaram maiores escores do que indivíduos em transição. Os estudos de Niles et al. (1997) apontaram que envolvimento ativo com as tarefas de exploração correlacionou-se negativamente com preocupação com estas tarefas, indicando que o envolvimento concreto em exploração auxilia o indivíduo a diminuir a preocupação com a mesma. Isto demonstra a utilidade de se adicionar uma investigação comportamental aos estudos de carreira, para que se possa compreender com clareza o significado da preocupação de carreira que um indivíduo declare experimentar. Ainda, os resultados apontam para um impacto importante da saliência do papel de trabalhador no envolvimento com as tarefas de desenvolvimento de carreira, na medida em que o grupo de alta saliência mostrou-se mais envolvido com as tarefas de exploração e gerenciamento do que o grupo com baixa saliência, tanto para o grupo estável quanto para o grupo em transição.

Alta saliência no trabalho aparece claramente relacionada com satisfação no trabalho. De acordo com o modelo de desenvolvimento da carreira, satisfação na vida e no trabalho depende da possibilidade de se dar vazão às habilidades, necessidades, valores e interesses, isto é, da possibilidade de implementação dos autoconceitos nos diversos contextos de vida (Super et al., 1996). Mesmo que indivíduos em transição estejam menos satisfeitos como regra geral, dentre os de alta saliência não há diferenças entre o grupo estável e o grupo em processo de transição. Este resultado, associado ao fato de que o grupo com alta saliência atribui maior importância aos valores de trabalho do que o grupo com baixa saliência e ao fato de apresentarem maior envolvimento com as tarefas de exploração e gerenciamento de carreira, pode sugerir que estes indivíduos apresentem maior adaptabilidade. Preocupações de carreira, a dimensão atitudinal do modelo de adaptabilidade (disposição para planejar e explorar) (Super et al., 1988) aliada à dimensão comportamental (informação, tomada de decisão e orientação para a realidade) oferece as condições para um desenvolvimento alinhado às demandas sociais de adaptação e abertura à mudança que se apresentam cada vez mais frequentemente em um contexto de trabalho caracterizado pela instabilidade.

Os resultados para as tarefas de desengajamento estão também alinhados a estas mudanças. Saliência no trabalho não apresentou efeito sobre envolvimento com as tarefas de desengajamento, o que pode estar explicado pela importância que a preparação para a aposentadoria assume na atualidade. Em primeiro lugar, saliente-se o aumento da longevidade - em 1950, a expectativa de vida do brasileiro era de 51,6 anos, passando, em 2005 para 75,9 anos (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2009), e a consequente necessidade de preparação para um grande período da vida como aposentado. Além disto, a falência do sistema previdenciário oficial termina transferindo para os trabalhadores boa parte do encargo com a qualidade de remuneração que terão na aposentadoria, transformando, assim, a vida de trabalho em uma etapa de constante construção das condições de vida pós trabalho, principalmente para a população mais qualificada e acostumada a melhores condições de vida. Estas duas questões colocam-se ao trabalhador, de forma paralela a um aumento da instabilidade no emprego, o que termina por repercutir no cuidado com os anos da aposentadoria (Rifkin, 1995).

Os resultados para valores de trabalho, mais uma vez, diferenciam e caracterizam padrões entre estes grupos. Embora valores de trabalho sejam em geral mais importantes para os indivíduos com alta saliência, prestígio e estabilidade parecem ser valores que movimentam os participantes com baixa saliência nas suas transições. Papéis sociais definem um lugar ao indivíduo e este lugar nunca é destituído de valor social (Berger & Luckmann, 2002). Cada papel envolve um conjunto de expectativas sociais atribuídas às posições ocupadas na rede de relacionamentos (Stryker & Burke, 2000; Super, 1980), e a identidade de papel é a internalização destas expectativas que terminam por definir o autoconceito (Ng & Feldman, 2007; Stryker & Burke, 2000). Na medida em que o papel de trabalhador é supervalorizado socialmente, baixa saliência pode gerar falhas na autoverificação, isto é, no processo de ajustamento entre as expectativas sociais e a auto-avaliação (Burke, 1991) e, consequentemente, menor auto-estima, fazendo com que o indivíduo busque prestígio e estabilidade - valores de qualidade extrínseca - como guias para transições de carreira.

Saliente-se ainda a estrutura fatorial do IPC-r nas suas duas formas: atitudinal e comportamental. Os estágios de estabelecimento e manutenção compuseram um mesmo fator, como no estudo de Super et al., (1988), constante no manual do ACCI, cuja amostra era de adultos com escolaridade acima da média dos americanos e empregados em uma grande corporação, semelhante à do presente estudo, que pesquisou indivíduos com nível superior de escolaridade. Este resultado reforça a ideia de que a construção da vida de trabalho é individualizada, sem tarefas prescritas ou mesmo uma estrutura sequencial rígida. As etapas de estabelecimento e manutenção, antes sequenciais, pois contextualizadas em uma estrutura de trabalho também organizada, estável e prescritiva, torna-se um elenco de tarefas de gerenciamento da carreira, que variam da preocupação com o desenvolvimento de competências de trabalho e o respeito decorrente, com o planejamento do progresso até a atualização, inovação e a desaceleração, tarefa tradicionalmente característica do desengajamento. A estrutura contemporânea do trabalho estabelece que o indivíduo deva apropriar-se de sua carreira (Duarte, 2006), gerindo a sua inserção e o seu progresso, ou mesmo a sua permanência, num processo essencialmente caracterizado por uma estrutura transacional, isto é, que ocorre na interação única entre o indivíduo e o seu contexto imediato (Savickas, 2005).

 

Considerações finais

Estes achados trazem algumas implicações relevantes para a intervenção em aconselhamento de carreira. Em primeiro lugar, é preciso compreender a questão da saliência de papel dentro da estrutura de vida global do indivíduo e a partir dos significados que ele atribui a esta estrutura e aos resultados das suas decisões de vida e de carreira. Por um lado, muitas das demandas por atendimento em aconselhamento de carreira de adultos constituem-se nos reflexos de decisões e transições em outros papéis de vida sobre as questões de carreira do indivíduo ou o contrário, dificuldades em concatenar decisões de carreira com outros domínios da vida. Por outro lado, menor satisfação no trabalho e menor envolvimento nas tarefas de desenvolvimento de carreira não significam, necessariamente, insatisfação de vida ou mesmo uma condição a ser "corrigida" na intervenção. Embora o trabalho esteja no centro das demandas culturais naturalizadas de conservação social, ter o trabalho como papel periférico não pode ser considerado pelo orientador como transgressão, e ele deve estar atento ao conjunto singular de significados que o cliente traz. A busca de valores extrínsecos e menor envolvimento com tarefas de desenvolvimento, associados aos valores culturais que atribuem ao trabalho uma medida de qualidade pessoal podem ter como consequência, para o indivíduo, dificuldades de inserção e progresso no contexto de trabalho, bem como dificuldades de autoverificação em outros papéis como o parental e conjugal, na medida em que a saliência no papel de trabalhador é uma variável relevante de valorização no grupo social. Embora o trabalho seja a atividade através da qual se dá o provimento da vida material, tentar assumir um estilo de vida imposto pode ser fonte de confusão, sofrimento e baixa auto-estima em função de resultados nem sempre satisfatórios. Cabe à intervenção em aconselhamento de carreira, em primeiro lugar, ao defrontar-se com esta questão, tornar claros ao cliente os significados que o levaram a construir esta estrutura de vida particular e os significados que tornam esta estrutura insatisfatória e mal sucedida. Apenas a partir desta clareza é que cliente e orientador poderão, em conjunto, construir uma estrutura de vida que leve o indivíduo a decisões conscientes, que poderão incluir reforço de atividades em outros contextos e papéis, levando a uma maior satisfação de vida.

Os resultados deste estudo devem, no entanto, ser compreendidos dentro do contexto específico da pesquisa, e, portanto, deve-se ter muito cuidado com generalizações. A amostra pesquisada, indivíduos com níveis de escolaridade e renda bem acima da média nacional, constituem um grupo para quem, muito provavelmente, a estrutura de oportunidades é mais ampla e a questão da satisfação e realização profissional colocam-se de forma concreta. É preciso que se continue investigando o tema através de estudos com populações diversificadas, com níveis de escolaridade e oportunidades menos privilegiadas, o que pode trazer resultados bem mais conservadores. Incerteza, exigências cada vez maiores para a empregabilidade, fluidez nas demandas organizacionais, necessidade de qualificação e atualização constantes são características do trabalho para grande parte dos trabalhadores; entretanto, é preciso perceber em que medida estas características afetam as carreiras de trabalhadores em diferentes níveis de qualificação e inserção profissional.

Por fim, cabe salientar que não só a pesquisa, mas também a intervenção em aconselhamento de carreira, prática cada vez mais comum face às dificuldades e complexidade do mercado de trabalho, podem beneficiar-se de instrumentos padronizados, na medida em que favorecem a comparação de resultados e o acúmulo de conhecimento formalmente compatível. A Psicologia da Construção da Vida, um novo paradigma para os estudos de carreira (Duarte et al., 2010) preconiza a necessidade de intervenções individualizadas, que auxiliem o indivíduo na construção de um projeto único de vida e trabalho. Entretanto, salienta a importância da pesquisa, realizada através de instrumentos científicos bem como de estudos de caso estruturados de forma a tornarem-se comparáveis, para que se apreendam as circunstâncias individualizadas do desenvolvimento de carreira na modernidade, com fins de ajustar constantemente o modelo que, como a nova ordem socioeconômica, deve ser dinâmico.

Espera-se, com este estudo, estimular a pesquisa na área do desenvolvimento de carreira de forma a se ampliar e qualificar o conhecimento culturalmente relevante e adequado para o contexto brasileiro, bem como fornecer elementos para intervenção em aconselhamento de carreira.

 

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Recebido: 04/12/2011
1ª Revisão: 14/02/2012
Aceite final: 21/03/2012

 

 

Sobre os autores
Maria Célia Pacheco Lassance é doutora em Psicologia, professora do Instituto de Psicologia da UFRGS, coordenadora do CAP-SOP (Centro de Avaliação Psicológica, Seleção e Orientação profissional / UFRGS) e membro da equipe técnica do NAE (Núcleo de Apoio ao Estudante / UFRGS).
Jorge Castellá Sarriera é doutor em Psicologia, professor do do Instituto de Psicologia da UFRGS, pesquisador do CNPq e coordenador do Grupo de Pesquisa em Psicologia Comunitária (UFRGS).

1 Endereço para correspondência: R. Ramiro Barcelos, 2600, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia 90035-003, Porto Alegre-RS, Brasil. E-mail: maria.lassance@ufrgs.br