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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof vol.14 no.2 São Paulo dez. 2013

 

ARTIGO

 

Sistematização das principais narrativas produzidas sobre carreira na literatura especializada

 

Systematization of the main narratives produced about career in literature

 

Sistematización de las principales narraciones producidas sobre carrera en la bibliografía especializada

 

 

Marcelo Afonso Ribeiro

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo-SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo visou levantar as principais narrativas acadêmicas que propunham algum tipo de estruturação dos processos de construção das carreiras e articulá-las numa sistematização mais abrangente. Os resultados permitiram a organização dos possíveis processos de construção das carreiras em quatro produções discursivas genéricas, sendo duas delas marcadas por modelos tradicionais: organizacional (discurso da nostalgia) e profissional/ocupacional (discurso do fechamento); uma por um modelo flexível através de construções de rede (discurso da possibilidade) e uma fora do continuum de construção das carreiras (discurso da instrumentalidade). Conclui-se que a heterogeneidade e a complexidade do mundo do trabalho atual demandam conceitos que consigam compreender este quadro, ao mesmo tempo em que auxiliem na construção de categorias de análise de seus fenômenos psicossociais.

Palavras-chave: trabalho, identidade, discurso, construcionismo social, orientação vocacional


ABSTRACT

This article aimed to bring up the main academic narratives which have proposed some kind of organization of the career construction process and have articulated these narratives in a general systematization. The results allowed organizing the possible alternatives of the career construction process into four general discourses. Two of them have been determined by traditional models of career construction: the organizational model (discourse of nostalgia) and the professional model (discourse of enclosure). The other two discourses have been defined by a flexible model of the current social network relations (discourse of possibility) and the other out of the continuum of career construction (discourse of instrumentality). The conclusion is that the heterogeneity and complexity of the contemporary world of work demand theoretical concepts capable of capturing this complexity and, at the same time, help in the construction of analytical categories of the psychosocial phenomena associated to work.

Keywords: work, identity, discourse, social constructionism, career counseling


RESUMEN

Este artículo buscó reunir las principales narraciones académicas que proponen algún tipo de estructuración de los procesos de construcción de las carreras y articularlas en una sistematización genérica. Los resultados permitieron la organización de los posibles procesos de construcción de las carreras en cuatro producciones discursivas genéricas, dos de ellas marcadas por modelos tradicionales: organizacional (discurso de la nostalgia) y profesional/ocupacional (discurso del cerramiento); una por un modelo flexible mediante construcciones de red (discurso de la posibilidad) y otra fuera del continuum de construcción de las carreras (discurso de la instrumentalidad). Se concluye que la heterogeneidad y la complejidad del mundo del trabajo actual demandan conceptos que consigan comprender este cuadro y, al mismo tiempo, auxilien en la construcción de categorías de análisis de sus fenómenos psicosociales.

Palabras clave: trabajo, identidad, discurso, construccionismo social, orientación vocacional


 

 

Há mais de 40 anos, o mundo do trabalho vem sofrendo uma grande transformação em termos da flexibilização, complexificação e heterogeneização das atividades, relações, vínculos, identidades e trajetórias de trabalho, o que gerou a emergência de um processo de construção e consolidação de formas contemporâneas das carreiras.

Estas carreiras contemporâneas coexistem com as formas tradicionalmente descritas, principalmente associadas à progressão das pessoas no interior das empresas (dimensão objetiva dos planos organizacionais de carreira, na chamada carreira organizacional ou externa), que resultou, também, na configuração de sua dimensão subjetiva (desenvolvimento e trajetória psicológica das pessoas no trabalho, na chamada carreira interna ou desenvolvimento vocacional).

O livro Man and their Work de Hughes (1958) e The Psychology of Careers de Super (1957), são produções emblemáticas desta diferenciação, sendo que o primeiro representaria a ideia da carreira organizacional, mais estudada no campo da Administração e da Psicologia Organizacional e do Trabalho, e o segundo a ideia da carreira subjetiva, mais estudada no campo da Psicologia Vocacional e da Orientação Profissional.

Estas formas contemporâneas das carreiras postularam uma série de desafios aos(às) estudiosos(as) da temática e as concepções de carreira tiveram que ser revistas e ampliadas, pois as trajetórias de trabalho se tornaram mais plurais e menos normativas, não somente centradas na carreira organizacional, o que permitiu, em parte, a retomada da concepção original de carreira, gerada do latim via carraria, que significa padrão de um percurso, curso da ação, caminho (Chanlat, 1995).

Assim, pensadores(as) e pesquisadores(as) começaram a repensar suas bases de análise e de definição da carreira, inclusive para continuarem a ser referência para o mundo do trabalho, implicando em mudanças teóricas e metodológicas, o que gerou um movimento de articulação das dimensões objetivas e subjetivas das carreiras para sua análise, e a realização de um conjunto significativo de estudos e investigações nas últimas décadas para tentar compreender as novas formas das carreiras.

Como indica Tolfo (2002), o recurso encontrado pela Administração e pela Psicologia Organizacional e do Trabalho foi a utilização de metáforas para descrever e analisar as novas formas das carreiras contemporâneas, mais heterogêneas e menos normativas, entre elas, a carreira de Proteu (D. T. Hall, 2002), a carreira sem fronteiras (Arthur & Rosseau, 1996), a carreira multidirecional (Baruch, 2004), a carreira caleidoscópio (Mainiero & Sullivan, 2005), e a carreira portfólio (Fenwick, 2006).

Já na Psicologia Vocacional e na Orientação Profissional, o caminho encontrado foi a explicação dos processos de construção das carreiras através de novas bases epistemológicas menos positivistas e mais interpretativistas, como o construtivismo e o construcionismo, através de modelos como: Arco-Íris de Carreira (Super, 1990), Transicional (Schlössberg, 1984), Desenvolvimentista-Contextual (Vondracek, 2001), Life Design (Savickas et al., 2009), e Contextualista da Ação (Young, Valach, & Collin, 2002).

Neste panorama tão heterogêneo, há inúmeras maneiras para a compreensão das carreiras na contemporaneidade, sendo uma delas o levantamento e a análise das produções discursivas e narrativas distintas acerca desta temática específica, como preconizam as propostas socioconstrucionistas, das quais se pode citar:

1. Narrativas e discursos acadêmicos, que objetivam gerar narrativas e discursos explicativos e sistematizadores acerca dos fenômenos psicossociais, como as carreiras.

2. Narrativas autobiográficas, produzidas por trabalhadores(as) em seus processos singulares de construção das carreiras.

3. Discursos sociais disponíveis em dado grupo social sobre a construção das carreiras.

Com base no Construcionismo Social, então, pode-se indicar que, tanto as narrativas quanto os discursos, são práticas performativas que definem a maneira como as pessoas se posicionam nas relações psicossociais e constroem a realidade através deste processo de significação compartilhada.

Os discursos são posicionamentos coletivos, se constituindo em macronarrativas construídas e legitimadas nas relações psicossociais, com base em significados e processos de significação mais estáveis como discursos socioculturais mais amplos e intimamente associados à distribuição de poder na sociedade. São narrativas coletivamente compartilhadas que se mantém (Gergen, 1997; Polkinghorne, 1988).

As narrativas são posicionamentos individualizados que constituem micronarrativas construídas e legitimadas nas relações psicossociais e baseadas nos discursos sociais disponíveis, marcando a contribuição pessoal através de saberes e experiências da vida cotidiana transformada em linguagem. É uma maneira da singularidade da existência entrar no mundo humano e na ordem do discurso (Gergen, 1997; Spink, 2010).

Desta maneira, baseando-se numa perspectiva socioconstrucionista, o presente estudo visou compreender as principais formas contemporâneas das carreiras através de uma das modalidades de produção discursiva acerca das carreiras, que são as narrativas acadêmicas. Para tal tarefa, teve como objetivos principais:

1. Levantar na literatura especializada de estudos da carreira e de áreas afins as principais produções narrativas de autores(as) contemporâneos(as) que propusessem algum tipo de sistematização dos processos centrais de construção das carreiras.

2. Articular estas narrativas numa sistematização genérica, gerando um quadro com as principais produções discursivas acadêmicas das construções das carreiras.

É importante salientar que a concepção de carreira utilizada no presente artigo foi compreendida como padrão de um percurso, curso da ação ou caminho sociolaboral como preconiza sua origem etimológica do latim via carraria e, por isso, muitos dos(as) autores(as) estudados(as), a priori, não parecem versar sobre carreiras nos textos analisados, entretanto pode-se considerar como tal em função desta noção ampliada de carreira.

 

Método

Na proposta que aqui se coloca, mais do que realizar uma revisão de literatura, o objetivo foi sistematizar o conhecimento produzido sobre as possibilidades de construções das carreiras na literatura especializada e de áreas afins através da aproximação e articulação do conhecimento produzido, e gerar um quadro sintético das principais produções discursivas encontradas.

Esta aproximação cumpriu o único papel de traçar um panorama do que tem acontecido na realidade sociolaboral contemporânea no tocante às construções das carreiras, levando em conta todos os riscos epistemológicos possíveis decorrentes desta operação e sem a intenção inexequível de elaborar um quadro uniforme e homogêneo, tarefa epistemologicamente impossível, mas somente gerar um retrato que permitisse visualizar, mesmo que de forma esquemática, a complexidade do mundo do trabalho atual através de uma das dimensões geradas das relações eu-outro no trabalho, que são as carreiras (produções narrativas e discursivas).

Desta forma, as aproximações realizadas não implicaram na produção de concepções epistemologicamente coerentes, apenas apontaram uma sistematização dos modos de construção das carreiras semelhantes propostos pelos(as) autores(as) estudados(as) analisados(as) a partir de bases epistemológicas e conceituais distintas.

Caracterização do fenômeno a ser estudado

A proposta da presente pesquisa foi fazer uma análise de livros e artigos científicos (entendidas como narrativas acadêmicas), que propusessem, especificamente, um quadro genérico das possibilidades de construção das carreiras, nem sempre diretamente relacionado com a compreensão mais ortodoxa de construções de carreiras, mas numa visão ampliada, como apontado anteriormente. Foram consultados livros relevantes de autores(as) importantes e os principais periódicos científicos da área da Psicologia, de parte das Ciências Sociais e da Administração nas últimas três décadas (1980-2010), período em que o processo de flexibilização e complexificação do mundo do trabalho vêm acontecendo, sem a pretensão de levantar todas as referências e possibilidades, mas antes de traçar um panorama das construções de carreiras contemporâneas.

Procedimentos

1. Consulta aos livros relevantes de autores(as) importantes e os principais periódicos científicos da área da Psicologia, de parte das Ciências Sociais e da Administração nas últimas três décadas (1980-2010).

2. Localização de livros, artigos teóricos e relatos de pesquisa que apontassem como os(as) trabalhadores(as) têm construído suas carreiras nas últimas décadas.

3. Estruturação e apresentação, em forma de um quadro, das principais produções narrativas acadêmicas relativas às formas de construção das carreiras na contemporaneidade e a proposição de uma sistematização de quatro grandes produções discursivas para a compreensão das mesmas.

 

Resultados e Discussão

Foram encontradas treze referências entre artigos teóricos e relatos de pesquisa na literatura especializada que apresentavam algum tipo de sistematização dos processos centrais de construção das carreiras, compreendidas como produções narrativas na forma de narrativas acadêmicas. São elas: Berzonsky (1989), Castel (1997), Castells (2001), Chanlat (1995), Demazière e Dubar (2006), Dif (2004), Douglas (1998), Driver (1982), Grote e Raeder (2009), S. Hall (2003), Kanter (1997), Marhuenda, Martínez e Navas (2004) e Touraine (1998).

A apresentação das propostas dos(as) autores(as) citados(as) ora focalizava a dimensão do projeto de vida de trabalho, principalmente por conta das construções identitárias, ora focalizava a dimensão da trajetória de trabalho, e nem sempre se utilizavam do termo carreira, muito em função da representação social dominante de carreira como trajetória de trabalho no interior de uma empresa.

De qualquer maneira, apesar da diversidade das propostas dos autores(as), todos(as) buscavam organizar as experiências contemporâneas de relação das pessoas com o mundo do trabalho por meio da possibilidade de se posicionar e de construir projetos de vida, trajetórias e identidades (possíveis dimensões constitutivas das carreiras).

A diversidade do foco de análise se centrava nas estratégias de construção de projetos de vida (Berzonsky, 1989), nas formas de cultura que dariam base ao posicionamento no mundo (Douglas, 1998), nas concepções de sujeito construídas e assumidas (S. Hall, 2003), nas posições relacionais ou vinculares possíveis das pessoas diante da realidade sociolaboral (Castel, 1997; Castells, 2001; Grote & Raeder, 2009; Touraine, 1998), nos modos genéricos de identificação e definição no mundo do trabalho (Demazière & Dubar, 2006), nas estratégias de socialização e construção de projetos de vida de trabalho (Dif, 2004), nos discursos formados sobre a identidade de trabalho (Marhuenda et al., 2004), e nas maneiras de construção das trajetórias de trabalho (Chanlat, 1995; Driver, 1982; Kanter, 1997).

A apresentação sucinta e sintética das propostas de sistematização dos(as) autores(as) levantados(as) é apresentada a seguir como uma proposta de ampliação de publicações já realizadas (Ribeiro 2009; Ribeiro & Uvaldo, 2011).

Apresentação das propostas de sistematização das construções de carreira pela literatura

1. Michael Berzonsky - Estilos de construção de projetos de vida

Berzonsky (1989) não versa diretamente sobre as construções das carreiras, entretanto investiga como que as pessoas constroem seus projetos de vida na relação com a realidade através de formas características de enfrentamento de problemas oriundos desta relação, sendo três processos diferenciados de construção, a saber:

1. Informacional - foca o processo de construção do projeto de vida na dimensão subjetiva através de um engajamento flexível na realidade (processo de criação do projeto de vida).

2. Normativo - foca o processo de construção do projeto de vida na dimensão sociocultural através do recurso a modelos preexistentes na realidade (processo de reprodução de modelos de projeto de vida).

3. Difuso e esquivo - evita a tarefa de construção do projeto de vida e vive de forma difusa na relação com a realidade.

2. Mary Douglas - Formas de cultura que dariam base ao posicionamento no mundo

Douglas (1998) também não versa diretamente sobre as construções das carreiras, mas está interessada nas formas como as pessoas se posicionam no mundo através de formas culturais distintas, marcando seus lugares, suas relações e, principalmente, os processos de interação com o mundo. Trabalha com quadrantes opostos que definiriam posições de concordância ou de negação no mundo. As quatro formas de cultura seriam:

1. Hierárquica conservadora - Baseada na comunidade hierárquica e definida por um movimento de afirmação coletiva por adesão às normas.

2. Enclave separatista - Baseada na igualdade e identificação grupal e gerada pelo retraimento sociocultural, em função de dissidência coletiva centrada em princípios compartilhados e sectários.

3. Individualismo ativo - Baseada na cultura da competitividade do individualismo e marcada por um movimento de afirmação por iniciativa pessoal (empreendedora).

4. Isolamento - Baseada na cultura do indivíduo isolado e determinada por um movimento de retraimento individual.

3. Stuart Hall - Concepções construídas de sujeito pelo mundo

Para S. Hall (2003) há três concepções centrais de sujeito, construídas e assumidas, coexistentes na contemporaneidade e que designam o modus vivendi que as pessoas desenvolveram e desenvolvem reunidas em sociedade (conhecimento, ideias e crenças de um povo, assim como as maneiras como existem na vida social). São elas:

1. Sujeito do Iluminismo - concepção baseada na ideia da pessoa definida pelo centramento e unicidade em torno de si encerrada num padrão singular.

2. Sujeito sociológico - concepção baseada na sobredeterminação mútua entre pessoas e mundo social.

3. Sujeito pós-moderno - celebração móvel da vida social, na qual não há nem unificação, nem permanência da concepção de si e do mundo.

4. Robert Castel - Proteções e vulnerabilidades nos posicionamentos na realidade social

Castel (1997) se pergunta acerca de um paradoxo para a construção da vida sociolaboral atualmente: como se poderia existir como pessoa no mundo contemporâneo mais individualizado e dispor de proteções que dependem da participação em coletivos?

Pode-se depreender de sua obra, uma definição das posições possíveis das pessoas em relação ao mundo em que vivem e deste mundo em relação a elas, em termos de proteção e vinculação social, ou ausência parcial destas possibilidades, indo de um processo de integração para um processo de desfiliação, passando pela vulnerabilidade, posições, estas, principalmente marcadas pelo trabalho, propiciador da possibilidade de ter suportes sociais e viver com segurança e proteção social, tornando-se proprietários de si através de seu trabalho. As principais posições de relação ao mundo seriam:

1. Individualismo coletivo - vida marcada pelo fechamento em comunidades em situação de proteção máxima e de pouco contato com o mundo.

2. Coletivismo - vida orientada pelas referências sociolaborais vigentes.

3. Individualismo moderno - vida norteada pela independência, se utilizando das relações sociais para si, não para ser limitado por elas, embora permaneça solitário e desprotegido (empreendedor).

4. Individualismo negativo - vida determinada por um individualismo por falta de referências sociolaborais, não por uma afirmação de si.

5. Alain Touraine - Posições relacionais diante da realidade sociolaboral

Touraine (1998) enfatiza que o mundo contemporâneo vem sofrendo um processo de fragmentação sociocultural com impactos significativos para a formação dos laços sociolaborais. O autor se pergunta: como existir com coerência, continuidade e identidade no mundo atual flexibilizado? Indica que o caminho privilegiado seria a partir de saídas mais individualizadas negociadas socialmente. Postula quatro posições relacionais no mundo:

1. Comunitária - fechamento em comunidades que pouco estabelecem vínculos e comunicação com o mundo.

2. Moderna - foco nos modelos e controles sociais normativos generalizantes.

3. Pós-Moderna - vida determinada pelas contingências sociais, numa falta de controle sobre si e sobre o outro.

4. Sujeito - vida marcada pela negociação constante entre eu e outro e pela afirmação da liberdade contra a falta de controle pós-moderno e contra os ditadores comunitários.

6. Manuel Castells - Posicionamentos na realidade sociolaboral

Castells (2001) procura compreender como as pessoas estão se posicionando diante de um mundo cada vez mais instável, flexível e heterogêneo, através da (re)construção de sua identidade e de suas relações com este mundo, em um processo marcado por relações de poder. A identidade organiza significados e permite a negociação de estilos de vida em meio à multiplicidade atual de possibilidades, sendo três os posicionamentos contemporâneos:

1. Resistência - busca de referências e proteção em grupo de iguais, formando comunidades marcadas pela resistência coletiva à desintegração sociolaboral atual.

2. Legitimador - identificação e adaptação constante às formas sociolaborais dominantes.

3. Projeto - negociação constante do posicionamento no mundo que leve em conta sínteses possíveis na relação eu-outro.

7. Gudela Grote e Sabine Raeder - Continuidade biográfica e construção identitária

Grote e Raeder (2009) procuraram analisar as possíveis construções das carreiras na atual realidade sociolaboral flexível através da relação entre continuidade biográfica, consistência social e controle interacional, gerando quatro alternativas de posicionamento no mundo:

1. Posição crítico-flexível (média continuidade biográfica, média consistência social e um foco interacional de ação no mundo) - marcada pela mudança e insatisfação constante com a situação de trabalho, pela sobreposição dos papéis sociais e pela interação como foco de ação no mundo.

2. Posição autodeterminada (baixa continuidade biográfica, alta consistência social e um foco subjetivo de ação no mundo) - marcadas por mudanças de interesses e objetivos no trabalho, pela diferenciação dos papéis sociais e pelo autocentramento como foco de ação no mundo.

3. Posição permanente (alta continuidade biográfica, alta consistência social e um foco interacional de ação no mundo) - marcada pela coerência para operar mudanças.

4. Posição centrada no trabalho (alta continuidade biográfica, baixíssima consistência social e um foco interacional de ação no mundo) - marcada pelo investimento total no trabalho e pela separação, sem integração, dos papéis sociais.

8. Claude Dubar e Didier Demazière - Modos genéricos de identificação ao trabalho

Demazière e Dubar (2006) fizeram uma longa investigação acerca dos modos genéricos de identificação ao mundo do trabalho contemporâneo, determinados pelas relações de trabalho, carreiras e processos de qualificação. Buscaram identificar mundos socioprofissionais relativamente coerentes e claramente diferenciados, relacionando ordens categoriais (modos de dizer, de categorizar o trabalho e o emprego), e universos de crenças (tipos de argumentação sobre as relações entre si e o trabalho-emprego), através de operações de agregação e nominação, o que resultou em cinco formas identitárias, conforme descrito a seguir:

1. Estatutária - determinada pela dependência institucional e pela inscrição em um sistema sociolaboral reconhecido que traga estabilidade e segurança.

2. Narrativa - construção dispersa na rede social não institucionalizada que privilegia a incerteza do projeto com foco na ação pessoal.

3. Reflexiva - determinada pela identificação a um grupo de referência e interiorização de valores coletivos.

4. Cultural - marcado pelo pertencimento a uma comunidade protetora como forma de resistência à flexibilização sociolaboral.

5. Difusão adaptativa - "adaptação a uma situação sociolaboral de incertezas através de relações sociais de descompromisso e sem projetos futuros, minando qualquer possibilidade de integração espaço-temporal" (Ribeiro & Uvaldo, 2011, p. 62).

9. M'hamed Dif - Estratégias de socialização e construção de projetos de trabalho

Dif (2004) coloca que a realidade sociolaboral tem produzido uma fragmentação das formas clássicas de socialização e de construção de projetos e a emergência de processos mais flexíveis e individualizados, o que tem gerado dois posicionamentos básicos por parte das pessoas: uma estratégia defensiva ou de retirada (volta ao passado ou redefinição do presente) e uma estratégia ofensiva (em direção ao futuro), que podem ser descritos através de quatro estratégias de construção de projetos de trabalho, sendo as três primeiras estratégias defensivas e a quarta uma estratégia ofensiva:

1. Retirada - tentativa de volta ao passado e aos seus processos de identificação.

2. Fusão corporativista - baseado na posição e no status organizacional e na luta contra as mudanças que possam comprometer a trajetória de carreira.

3. Carreirista tradicional - comprometimento com a organização em troca de segurança e mobilidade interna constante.

4. Negociador em rede/com mobilidade - busca da mudança constante através de um projeto de carreira individualizado, sendo as empresas apenas lugares e contextos nos quais este projeto acontecerá.

10. Fernando Marhuenda, Ignacio Martínez e Almudena Navas - Discursos formados sobre a identidade no trabalho

Marhuenda et al. (2004) discutem a formação das identidades no trabalho, marcando que as mesmas fornecem um sentido indicativo de pertencimento coletivo compartilhado, sendo o desafio atual do mundo do trabalho "dar um sentido de continuidade pessoal dentro de um mercado que fornece histórias erráticas e descontínuas, em vez de rotinas bem definidas, como no passado" (p. 224). Diante deste desafio, propõem a sistematização de cinco padrões mais importantes de discurso formados sobre as carreiras. São eles:

1. Profissional devotado - definido pela forte identidade profissional com aspectos de autonomia, sentido corporativo de profissão e autorrealização em um trabalho.

2. Aviador elevado - centrado na organização como uma estrutura funcional para o trabalho, buscando sempre crescer e progredir na carreira, principalmente através de formações continuadas.

3. Trabalhador conciliado - marcado pela adaptação constante ao trabalho, mesmo que isto gere insatisfação pessoal com uma demanda por estabilidade em troca.

4. Candidato ativo insatisfeito - baseado na integração ao trabalho de forma conflitiva sempre numa tensão entre interesses pessoais e a possibilidade de não ter suas expectativas atendidas.

5. Novato ou trabalhador não consolidado - vivência focada em situações instáveis e com mudanças constantes de trabalho, por não conseguir desenvolver ligações fortes com os espaços de trabalho.

11. Michael Driver - Tipos básicos de trajetórias de trabalho (carreiras)

Inspirado em Super (1957), Driver (1982) identificou quatro padrões de carreira nos anos 1980, focados em seus objetivos. São eles:

1. Transitória - mudança constante de carreira sem estabilização.

2. Tradicional - experimentação de várias trajetórias de trabalho até a estabilização numa trajetória permanente e vinculada às profissões.

3. Linear - escolha de uma trajetória de trabalho permanente na vida toda e vinculada aos gestores.

4. Espiral - estabilização temporária numa trajetória, transição e estabilização em outra área de forma contínua, e associada à carreira atual dos consultores.

12. Jean François Chanlat - Tipos básicos de trajetórias de trabalho (carreiras)

Chanlat (1995) procurou relacionar os tipos de carreiras aos tipos de sociedade vigentes e identificou três tipos básicos de carreira. São eles:

1. Burocrático - ligada à estrutura organizacional.

2. Profissional - ligada à formação profissional.

3. Empreendedor - ligada à autonomia no trabalho.

13. Rosabeth Kanter - Tipos básicos de trajetórias de trabalho (carreiras)

Kanter (1997) dividiu as carreiras em três tipos básicos: corporocráticas, profissionais e empreendedoras, de forma semelhante a Chanlat (1995), e acrescentou a ideia da carreira pós-empresarial, de cunho flexível, submetida às demandas dos processos organizativos de trabalho e descrita como a capacidade de colocar suas competências a serviço do trabalho.

Sistematização das produções narrativas acadêmicas sobre as construções das carreiras

Embora haja uma diversidade na análise do processo de construção das carreiras, todos(as) os(as) autores(as), de modo diferenciado, trabalhavam com a proposta de um continuum psicossocial, constituído de extremos "como dois polos de um continuum de respostas possíveis" (Kirpal, 2004, p. 215), onde as carreiras seriam construídas em algum ponto entre estes extremos com maior proximidade de um ou de outro.

Um dos extremos é sobredeterminado por padrões mais tradicionais, estáveis, permanentes, fechados, socialmente definidos, baseados em organizações de trabalho circunscritas e instituídas e na reprodução de modelos preexistentes de construção das carreiras, e resistentes às mudanças (enraizados no passado), que pode ser nomeado de extremo tradicional. E o outro extremo é definido por uma maior flexibilidade, individualização, transitoriedade, baseados nas redes sociais e na criação de modelos de construção das carreiras e com uma maior abertura às mudanças (direcionado ao futuro), que pode ser nomeado de extremo flexível.

A partir desta constatação, propõe-se que a compreensão da estrutura e da dinâmica da realidade sociolaboral seja realizada através das polaridades tradicionais e flexíveis de análise para a investigação das carreiras.

Assim, o extremo tradicional do processo de construção das carreiras poderia ser caracterizado como tendo uma base no social, estável, circunscrito organizacionalmente, gerador de permanência e fechado em seus próprios modelos, enquanto que o extremo flexível pode ser caracterizado como tendo uma base na pessoa, flexível, disperso nas redes sociais, gerador de mudanças e marcado pela abertura a novos modelos de construção para as carreiras.

Com base neste continuum psicossocial de análise, foi realizada uma aproximação e uma articulação entre as propostas de sistematização apresentadas, que produziu um quadro com as principais produções narrativas acadêmicas contemporâneas das construções das carreiras e a proposição de quatro grandes produções discursivas resultantes para a compreensão e análise das carreiras nomeadas de discurso da nostalgia, discurso do fechamento, discurso da possibilidade e discurso da instrumentalidade, que já haviam sido anunciadas de forma pouco aprofundada e sem uma base empírica consistente em estudos anteriores (Ribeiro, 2009; Ribeiro & Uvaldo, 2011), conforme pode ser visto na Tabela 1.

 

 

Os quatro discursos foram analisados a partir de suas bases psicossociais de apoio (organizações, profissões/ocupações, redes sociais e sem base), caracterização dos modelos de projetos e trajetórias de trabalho e a localização no continuum psicossocial de análise anteriormente apresentado. A nomeação de cada discurso faz referência aos processos centrais de produção discursiva encontrados na sistematização das narrativas acadêmicas sobre as construções das carreiras e cumpriram a função de se constituir em quatro produções discursivas genéricas para a compreensão e análise das carreiras.

A seguir, será apresentada cada uma das quatro produções discursivas genéricas propostas (nostalgia, fechamento, possibilidade e instrumentalidade), localizando-a em quadros com as concepções de cada autor(a) específico(a), com uma descrição e análise de suas principais características.

Discurso da Nostalgia

Na Tabela 2, pode-se visualizar a sistematização das produções narrativas sobre as construções das carreiras dos autores identificados na literatura que resultaram no Discurso da Nostalgia.

Esta produção discursiva está localizada no extremo tradicional de construções das carreiras, que é o polo onde estariam as pessoas ligadas à necessidade de dependência institucional, por isso é caracterizada por um processo central de busca da nostalgia do passado do trabalho e do emprego numa tentativa atual de manutenção da ordem hegemônica anterior de uma vida com estabilidade e permanência baseada em um sistema sociolaboral reconhecido e institucionalizado, como o sistema de emprego ou um espaço de trabalho delimitado e legitimado, como são as empresas, reforçando os controles normativos generalizantes (modelos sociais passados) através da busca de uma posição em que as referências sociolaborais sejam determinantes para a vida das pessoas (Castel, 1997; Demazière & Dubar, 2006; Touraine, 1998).

Dif (2004) chama as pessoas localizadas neste extremo de carreirista tradicional, pois as define como comprometidas com a organização num movimento de afirmação coletiva por adesão às normas, solicitando em troca segurança, permanência e mobilidade interna constante, numa busca da hierarquia conservadora dos modelos de relação psicossocial (Douglas, 1998) através da construção de projetos de vida normativos (Berzonsky, 1989).

"O desejo é pela volta a uma ordem passada na qual havia instituições normativas geradoras de modelos e estruturas hegemônicas que ofereciam segurança e vinculação a um sistema de trabalho reconhecido e estável" (Ribeiro & Uvaldo, 2011, p. 70).

Produzem a construção de carreiras atrelada à estrutura organizacional burocrática (Chanlat, 1995) ou corporocrática (Kanter, 1997), definido pelos modelos clássicos da identidade organizacional e da carreira organizacional.

É importante salientar que o termo nostalgia vem do fato de que o processo central de construção das carreiras tem sua base na busca da referência clássica da estabilidade, previsibilidade e continuidade. Strangleman (2012), ao realizar uma revisão das teorias sobre nostalgia, indica que a concepção de nostalgia pode ser compreendida como um lamento pela perda de um passado que se foi (ideia da nostalgia simples), entretanto também "implica um sentido maior de compromisso com o significado do passado" (p. 415) e uma ressignificação ativa do presente (ideia de nostalgia interpretativa), sendo esta segunda concepção aqui empregada.

Discurso do Fechamento

Na Tabela 3, pode-se visualizar a sistematização das produções narrativas sobre as construções das carreiras dos autores identificados na literatura que resultaram no Discurso do Fechamento.

Esta produção discursiva também está localizada no extremo tradicional de construções das carreiras, que é o polo onde estariam as pessoas ligadas à necessidade de pertencer a coletivos protetores, sendo a base predominante para os processos de construções das carreiras por quase todo o século XX, por isso é caracterizado por um processo discursivo central de fechamento e de proteção em grupos e comunidades, numa espécie de enclave separatista (Douglas, 1998) ou individualismo coletivo (Castel, 1997).

É baseada em sistemas profissionais, associações de classe, sindicatos ou comunidades de práticas, definidos pelos modelos clássicos das identidades profissionais e ocupacionais e das carreiras profissionais, atrelada a uma formação profissional. Os trabalhadores buscam se proteger em comunidades delimitadas definidas pelos ofícios desempenhados ou pelas identidades profissionais tradicionais, por isso que tem as profissões e as ocupações como bases de apoio (Chanlat, 1995; Kanter, 1997; Marhuenda et al., 2004), numa forma de resistência coletiva à desintegração diante de um contexto que impõe certas lógicas como a da flexibilização sociolaboral (Castells, 2001).

Estão apoiados na autoridade de um grupo de referência que protegeria a relação pessoa-trabalho, sendo sua característica central a referência ou a resistência, buscam a estabilidade e a permanência, e com pouca disponibilidade para adaptações e mudanças, sendo que pessoa experimenta vários caminhos profissionais, de forma temporária, até se estabilizar em um único caminho, que será permanente, na carreira tradicional segundo Driver (1982), sendo a identidade igualmente permanente e encerrada num padrão singular, como o sujeito do Iluminismo preconizado por S. Hall (2003).

Discurso da Possibilidade

Na Tabela 4, pode-se visualizar a sistematização das produções narrativas sobre as construções das carreiras dos autores identificados na literatura que resultaram no Discurso da Possibilidade.

Esta produção discursiva está localizada no extremo flexível de construções das carreiras, que é o polo onde estariam as pessoas ligadas à necessidade de mudança constante, flexibilidade, abertura ao novo e construção das carreiras realizada através de relações fluídas nas redes sociais por meio de projetos individualizados articulados, "mas legitimados socialmente, pois a pessoa se localizaria de forma intermediária entre a estabilidade permanente de uma estrutura hegemônica e genérica e a transformação incessante de estruturas singulares não intercambiáveis" (Ribeiro & Uvaldo, 2011, p. 70), sempre na busca de estratégias constantes de redefinição de si e do mundo sociolaboral pela capacidade de "transformar numa história e num projeto pessoal uma série de situações e de incidentes vividos" (Touraine, 2006, p. 109).

Foca o processo de construção das carreiras na dimensão subjetiva através de um engajamento flexível na realidade num processo de criação informacional do projeto de vida (Berzonsky, 1989), sendo a pessoa um ator social capaz de negociar as relações entre eu-outro pela sua transformação em sujeito (Touraine, 1998) e tendo como marca o predomínio do processo biográfico que privilegia a incerteza de um projeto sobre a segurança da dependência institucional, e se constrói disperso numa rede social não institucionalizada na forma narrativa das carreiras (Demazière & Dubar, 2006).

Castells (2001) enfatiza que o mundo contemporâneo está cada vez mais centrado na lógica social das redes sociais (descentralizada, fluída e interdependente), ou seja, a base para a construção das carreiras estaria dispersa num conjunto complexo de redes sociais articuladas e, ao mesmo tempo, dispersas, exigindo das pessoas uma posição mais ativa nestes processos de construção marcada, numa atitude empreendedora (Chanlat, 1995; Dif, 2004; Kanter, 1997) corroborada pelas ideias de carreira espiral (Driver, 1982) e de individualismo moderno (Castel, 1997).

Não se sentem presos às relações sociais, pelo contrário, se utilizam das relações sociais para si, não para ser limitado ou enquadrado por elas, em um individualismo ativo marcado por um movimento de afirmação por iniciativa pessoal (Douglas, 1998). Seus projetos de carreira são individualizados e as empresas são apenas lugares e contextos nos quais este projeto acontecerá, em um movimento de mudança constante com momentos de estabilidade num caminho flexível e transitório (Dif, 2004; Driver, 1982).

Os principais discursos acadêmicos sobre carreiras, realizados pela Administração, estão associados ao Discurso da Possibilidade, como são os exemplos das metáforas da carreira de Proteu ou da carreira sem fronteiras (Tolfo, 2002).

Discurso da Instrumentalidade

Na Tabela 5, pode-se visualizar a sistematização das produções narrativas sobre as construções das carreiras dos autores identificados na literatura que resultaram no Discurso da Instrumentalidade.

Esta produção discursiva está localizada fora do continuum de construção das carreiras, fazendo com que as pessoas evitem a tarefa de construção do projeto de vida e vivam de forma difusa na relação com a realidade sociolaboral através de relações psicossociais de descompromisso e sem projetos futuros, minando qualquer possibilidade de integração espaço-temporal, numa total falta de controle sobre si e sobre o outro, condição pós-moderna das pessoas segundo S. Hall (2003) e Touraine (1998).

Castel (1997) define bem esta situação como individualismo negativo que pode ser compreendido como um individualismo por falta de referências, produto do enfraquecimento ou perda das referências sociolaborais, sendo mais um individualismo por desagregação do enquadramento coletivo do que por uma afirmação de si.

Diante desta situação, constroem projetos de vida no trabalho difusos e esquivos (Berzonsky, 1989), com uma orientação pragmática (Strangleman, 2012), vivendo na transitoriedade sem conseguir se estabilizar e gerando uma trajetória instável de trabalho pelo movimento de mudança constante de carreira sem estabilização (Driver, 1982), que costuma resultar em situações de anti-identidade (Sveningsson & Alvesson, 2003) pelo uso instrumental da relação com o mundo numa estratégia de difusão adaptativa (Demazière & Dubar, 2006), configurando uma trajetória de sucessão de trabalhos semelhantes com pouca possibilidade de reconhecimento e autonomia, numa situação de provisoriedade identitária com duas resultantes, segundo Lerrer-Rosenfield (2008):

1. Relação instrumental com a carreira, pois ela é uma situação presente que possibilitará perspectivas futuras, ou seja, é uma situação de passagem.

2. Relação instrumental com o trabalho, mas por uma impossibilidade de escapar de uma carreira marcada por uma trajetória de sucessão de trabalhos semelhantes, sem oportunidades de mudança.

 

Considerações finais

Este artigo visou levantar as principais narrativas acadêmicas que propusessem algum tipo de estruturação dos processos de construção das carreiras e articular estas narrativas numa sistematização genérica, o que trouxe contribuições para a reflexão acerca das concepções de carreira na contemporaneidade, bem como as implicações destas reflexões para o campo da Orientação Profissional e de Carreira, em termos da pesquisa e da intervenção.

Primeiramente, em termos teóricos, é importante destacar a emergência nas narrativas acadêmicas da situação de transição do mundo do trabalho caracterizado pela heterogeneidade, que vem sendo construída, simultaneamente, por dois movimentos discursivos antagônicos, embora articulados.

De um lado, há um movimento de busca da estabilidade, da segurança e da continuidade com foco no modelo tradicional da carreira organizacional (Discurso da Nostalgia) ou da carreira profissional (Discurso do Fechamento). De outro lado, há um movimento de construção mais individualizada das carreiras dispersas nas redes sociais (Discurso da Possibilidade), como havia apontado Castells (2001), ao mesmo tempo, gerador de momentos de anti-identidade e não-carreira (Discurso da Instrumentalidade), que emergem com mais frequência pela falta de referências mais estáveis e coletivas (Sveningsson & Alvesson, 2003; Touraine, 1998).

Este resultado permite apontar que os discursos hegemônicos, segundo os quais todos os trabalhadores contemporâneos deveriam aderir à flexibilidade e à multifuncionalidade para sobreviver no mundo do trabalho, parecem ser parciais, pela presença dos discursos da Nostalgia e do Fechamento.

Além disso, as críticas de que a ruptura da estabilidade moderna seria uma situação compulsória de instabilidade, descontinuidade e vulnerabilidade (Discurso da Instrumentalidade) também são parciais, pois ao contrário do que parte da literatura indica (Castel, 1997; Grote & Raeder, 2009; Kirpal, 2004), a busca pela flexibilidade e a vivência da descontinuidade na carreira parecem ser uma opção nem sempre desestruturante, como mostra a presença do Discurso da Possibilidade, embora sem as proteções sociais dos modelos modernos de vínculo com o trabalho, como o emprego.

Assim, pode-se dizer que a contemporaneidade tem se construído na pluralidade e na heterogeneidade, mas ainda com padrões coletivos. Não há modelos meramente individuais, com uma consequente quebra de qualquer padrão de construção das carreiras, nem modelos coletivos infinitos para a construção das carreiras, o que rompe com ideia de um movimento hegemônico de individualização das construções das carreiras, como vem sendo apontado em parte da literatura de estudos da carreira (Arthur & Rosseau, 1996; D. T. Hall, 2002; Mainiero & Sullivan, 2005), pois padrões para estas construções existem e claramente apareceram nas narrativas acadêmicas.

Outra questão central, em termos teóricos, seria uma diminuição da potencialidade de macronarrativas teóricas para a compreensão e explicação dos fenômenos psicossociais (as carreiras, por exemplo), como foi a tradição acadêmica da modernidade corporificada em sistemas teóricos generalizantes e universalizantes, em função de um mundo do trabalho mais complexo e heterogêneo, enfatizando o valor das micronarrativas teóricas como possibilidade contemporânea de compreensão dos processos de construção psicossociais (Gergen, 1997; Spink, 2010), como é a construção das carreiras.

Em segundo lugar, em termos metodológicos, um ponto de destaque é a concepção de que a análise e a compreensão das carreiras atualmente deveria se dar através do contato aprofundado e heterogêneo com o cotidiano dos trabalhadores, através dos vários discursos sociais e narrativas singulares construídos, pois nem o contexto social, nem as pessoas, tomados de formado isolada, conseguiriam informar sobre os processos atuantes nestas construções, ressaltando a importância de focar a relação estabelecida entre as pessoas e os contextos como eixo investigativo de análise, conforme recomendam alguns enfoques do campo da Orientação Profissional e de Carreira, entre eles o Life Design (Savickas et al., 2009), e o Enfoque Contextualista da Ação (Young et al., 2002).

Esta constatação tem uma implicação importante para o trabalho da pesquisa, pois aponta que as metanarrativas teóricas, como discursos sociais legitimados, são fontes de informação significativas, mas devem sempre ser contrastadas com as micronarrativas singulares, para poder gerar retratos da realidade.

Por último, em termos das propostas e modelos de intervenção em Orientação Profissional e de Carreira, deve-se levar em conta que as pessoas têm tido experiências de vida plurais, heterogêneas, complexas, descontínuas ou contínuas; que o mundo do trabalho tem proporcionado situações de estabilidade e instabilidade e que, diante de sua complexidade, torna-se difícil seu conhecimento como um todo; o que, por conseguinte, tem feito com que o orientador não tenha mais um lugar de segurança daquele que sabe sobre o mundo do trabalho, sendo mais um mediador do que um orientador como tradicionalmente o foi.

Conclui-se que a heterogeneidade e a complexidade do mundo do trabalho atual demandam conceitos que consigam compreender este quadro, ao mesmo tempo em que auxiliem na construção de categorias de análise de seus fenômenos psicossociais e forneçam bases de apoio para as intervenções no campo da Orientação Profissional e de Carreira.

 

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Endereço para correspondência:
Marcelo Afonso Ribeiro
Avenida Prof. Mello Moraes, 1721, 03178-200
São Paulo-SP, Brasil
E-mail: marcelopsi@usp.br

Recebido 27/08/2013
1ª Revisão 15/10/2013
Aceite Final 26/10/2013

 

 

Sobre o autor
Marcelo Afonso Ribeiro é Doutor e Livre Docente em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (Brasil). É atualmente docente nesta universidade, tendo como principais temáticas de investigação: carreira, projeto de vida, identidade e trajetória no trabalho, e grupos em situação de vulnerabilidade psicossocial.