SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.16 número1Aconselhamento de carreira multicultural: abordagens teóricas e implicações para a práticaCaracterísticas sociocognitivas de estudantes com dotação e talento: estudo comparativo índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão impressa ISSN 1679-3390

Rev. bras. orientac. prof vol.16 no.1 São Paulo jun. 2015

 

ARTIGO

 

O adulto com deficiência intelectual: concepção de deficiência e trajetória de carreira

 

Adults with intellectual disability: conception of disability and career trajectory

 

El adulto con discapacidad intelectual: concepción de discapacidad y trajetoria profesional

 

 

Larissa Schikovski AngoneseI; Iasmin Zanchi BoueriII; Andréia SchmidtIII

IUniversidade Positivo, Curitiba, Paraná-PR, Brasil
IIUniversidade Federal de São Carlos, São Carlos-SP, Brasil
IIIUniversidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Essa pesquisa teve como objetivo descrever a relação entre trajetória escolar, de carreira e concepção de deficiência de trabalhadores com deficiência intelectual (DI) inseridos no mercado de trabalho. Participaram 20 adultos (19 a 35 anos) com diagnóstico de DI, funcionários de um supermercado, que responderam individualmente a uma entrevista semiestruturada. Os dados foram analisados qualitativamente. A inserção no trabalho favoreceu uma descrição positiva de si mesmos, mas persistiam concepções depreciativas sobre a deficiência em geral, possivelmente em função do fracasso na escola regular, que parecem se refletir sobre a falta de perspectivas de autonomia e de melhoria de condições no trabalho. Discute-se o papel que a orientação profissional e de carreira pode desempenhar na transição de indivíduos com DI para a vida profissional.

Palavras-chave: deficiência intelectual, inclusão no mercado de trabalho, pessoa com deficiência


ABSTRACT

This study aimed to describe the relationship among school trajectory, career trajectory and the conception of intellectual disability (ID) from workers included in the labor market with this disability. Twenty adult participants (19-35 years old) with a diagnosis of ID, employees of a supermarket, answered individually a semi-structured interview. The analysis of data was qualitative. The inclusion in work promoted a positive description of themselves, although depreciatory views about disability in general persisted, possibly due to the failure in regular schools, which seems to reflect on the lack of perspectives of autonomy and better conditions at work. This study points out the discussion about the role of career and vocational guidance in the transition of individuals with ID to professional life.

Keywords: intellectual disability, inclusion in labor market, person with disability


RESUMEN

El objetivo de esta investigación fue describir la relación entre la trayectoria escolar, carrera profesional y concepción de discapacidad de trabajadores con discapacidad intelectual (DI). Participaron 20 adultos (19-35 años) con diagnóstico de DI, todos empleados de un supermercado que contestaron individualmente a una entrevista semi-estructurada. Los datos fueron analizados cualitativamente. La inclusión en el trabajo favoreció una descripción positiva de sí mismos, sin embargo persisten las percepciones negativas acerca de la discapacidad en general, posiblemente debido al fracaso escolar que parece repercutir sobre la falta de perspectivas de autonomía y mejoría de las condiciones en el trabajo. Se discute el papel que la orientación profesional y de carrera pueden desempeñar en la transición de las personas con DI para la vida profesional.

Palabras clave: discapacidad intelectual, inclusión en mercado laboral, persona con discapacidad


 

 

O conceito de deficiência intelectual (DI) passou por modificações ao longo do tempo em função das transformações da própria sociedade. A DI já foi considerada como motivo justificável para o abandono e a morte na Antiguidade; como condição para custódia e acolhimento pela caridade, na Idade Média; como patologia orgânica, permeada de atributos negativos e ameaçadores, no início do século XIX; até ser compreendida, na atualidade, a partir de uma abordagem mais ampla que contempla, para além de problemas orgânicos, as variáveis culturais e educacionais que cercam sua determinação (Mazzotta, 2005; Pessotti, 2012).

Nessa mudança de contexto, a American Association on Developmental Desabilities (AAIDD - Schalock et al., 2010) define a DI como a ocorrência concomitante de limitações significativas no funcionamento intelectual e defasagem em pelo menos três áreas de condutas adaptativas, expressas nas habilidades conceituais, sociais e práticas, que englobam atividades cotidianas do indivíduo e adaptação às demandas sociais. Essa definição indica que as limitações no desempenho devem ser consideradas no ambiente comunitário típico da idade do indivíduo, levando em conta a diversidade cultural e linguística, e que as limitações frequentemente coexistem com potencialidades, que devem ser desenvolvidas com vistas ao pleno exercício da sua cidadania.

A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada no Brasil pelo Decreto n° 6949/09, traz como princípios o direito de pessoas com deficiência à autonomia e à independência, à liberdade de fazer as próprias escolhas, à não discriminação, à igualdade de oportunidades e à plena e efetiva participação na sociedade (Brasil, 2009). No entanto, a conquista desses direitos para as pessoas com deficiência de modo geral, e com DI de modo particular, encontra inúmeros entraves, especialmente no que se refere ao acesso à educação e ao trabalho. Apesar das mudanças conceituais sobre DI ocorridas ao longo do tempo, coexistem na atualidade crenças e atitudes distintas sobre essa condição, que favorecem, ainda, a segregação, a marginalização e a sua exclusão de vários espaços sociais (Mazzota, 2011).

O acesso ao trabalho é um exemplo. A Lei de número 7.853/89 destaca que pessoas com deficiência têm direito à igualdade de tratamento e oportunidade, e que cabe ao Poder Público assegurar a elas o pleno exercício de seus direitos básicos, incluindo-se, aí, o trabalho (Brasil, 1989). A Lei 8.213/91, chamada Lei de Cotas (Brasil, 1991), prevê a reserva de 2 a 5% de vagas nas empresas do setor público e privado com mais de 100 funcionários para pessoas com deficiência. Apesar das garantias legais, em 2013, dos mais de 48 milhões de trabalhadores formais no mercado, apenas 357 mil (0,73%) eram identificados como tendo algum tipo de deficiência, de acordo com dados fornecidos pelas empresas na Relação Anual de Informações Sociais (RAIS, 2013) do Ministério do Trabalho. Esse percentual é especialmente reduzido quando se considera que, de acordo com dados do Censo de 2010, cerca de 6% de pessoas em idade produtiva (entre 20 e 59 anos) declararam ter algum tipo de deficiência. Quando são cruzados os dados da RAIS de 2010 com os dados do Censo desse mesmo ano (Garcia, 2014), verifica-se que as pessoas com DI representam apenas 5% dos trabalhadores com deficiência empregados e que são os que recebem a menor remuneração entre esse grupo.

A baixa escolaridade é o fator que mais dificulta a entrada e permanência de pessoas com DI no mercado de trabalho. De acordo com Oliveira (2012), que analisou dados do Censo 2010, 61% de pessoas com DI não têm qualquer instrução, 14% possuem ensino fundamental incompleto e 17% o ensino fundamental completo, dados que contrastam com os da RAIS 2013, segundo os quais 68% das pessoas com deficiência efetivamente empregadas possuem pelo menos ensino médio incompleto e apenas 0,83% são analfabetas. Isso indica claramente que a escolarização é um fator decisivo na contratação de indivíduos com deficiência por empresas e a inter-relação entre educação, emprego e, por conseguinte, inclusão social, é irrefutável (Dias & Lopes de Oliveira, 2013). Provavelmente em função dessa exigência de escolaridade por parte das empresas, observa-se a preferência na contratação de deficientes auditivos e físicos: de acordo com os dados da RAIS (2013), 50,7% das pessoas com deficiência com emprego formal eram deficientes físicos, 21,8% deficientes auditivos, 9,3% deficientes visuais, 7% deficientes intelectuais e 1,5% pessoas com deficiências múltiplas. Essa situação não é recente, e já foi documentada por várias pesquisas (e.g., Araújo & Schmidt, 2006; Veltrone & Almeida, 2010).

Além da baixa escolarização, as pesquisas revelam outras barreiras à contratação de pessoas com deficiência, como o desinteresse das empresas em empregar pessoas com deficiência que necessitem de maiores adaptações no ambiente de trabalho, pouca oferta de mão de obra, baixa qualificação e ausência de contato direto da empresa com instituições que atendem a esta população (Araújo & Schmidt, 2006; Bezerra & Vieira, 2012; Oliveira, Goulart Jr., & Fernandes, 2009; Tanaka & Mazini, 2005).

É preciso considerar, também, que as instituições que oferecem serviços de ensino e profissionalização a pessoas com DI são precárias. De acordo com estudo realizado por Mendes, Nunes, Ferreira e Silveira (2004), esses serviços são de baixa qualidade, principalmente em função da situação financeira das instituições, de suas condições de funcionamento e da formação deficitária de seus profissionais. Os serviços educacionais oferecidos focam em habilidades para a execução de tarefas específicas e não buscam desenvolver atitudes e habilidades sociais necessárias para a inserção no trabalho (Mazzotta, 2005; Mendes, 2010; Passerino & Pereira, 2014). Além disso, a escolarização e a capacitação profissional para o mercado competitivo são colocadas em segundo plano por essas instituições (Araújo & Schmidt, 2006).

Condições precárias de formação para o ingresso no mercado formal de trabalho fazem parte do cotidiano da grande maioria de pessoas com DI no país e já foram extensamente documentados pela literatura. Mas, e quanto às pessoas com DI que conseguem colocação no mercado formal de trabalho? Elas conseguem, de fato, gerir a própria carreira e fazer escolhas profissionais, de forma a alcançar a independência e igualdade de condições com os demais trabalhadores, assim como participação plena e efetiva na sociedade, como defende a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência?

Em países do hemisfério norte, os governos têm se preocupado em formular políticas públicas para que jovens com deficiência tenham condições de ingresso e permanência no mercado de trabalho após os anos de escolarização, conseguindo independência pessoal e profissional (Oliveira et al., 2009). Nos Estados Unidos, por exemplo, desde o início dos anos de 1990, esforços têm sido feitos no sentido de se definir serviços de intervenção efetivos para aumentar as chances desses indivíduos alcançarem empregos de melhor qualidade, maior participação na comunidade e maior independência (e.g., Lindstrom et al., 2008; Papay & Bambara, 2014; Test et al., 2009). Além da definição do que se pode chamar de "melhores práticas" para favorecer a transição para o mundo do trabalho para pessoas com DI, esses estudos apontam a escola como o local onde seria possível a essas pessoas expandir suas habilidades (o que incluiria o desenvolvimento de habilidades de vida prática, como o gerenciamento do próprio dinheiro e as habilidades interpessoais necessárias para o trabalho) e explorar diferentes opções de carreira, de maneira a poder fazer suas próprias escolhas (Lindstrom et al., 2008).

Intervenções desse tipo estão no escopo da orientação profissional (OP), que pode ser definida como um processo no qual o indivíduo recebe auxílio sobre suas dúvidas quanto à escolha profissional e planejamento de carreira, e pode abranger desde o ingresso no mercado de trabalho até a aposentadoria (Soares, 2009). Intervenções em OP junto a pessoas com DI podem auxiliá-las em uma inserção ativa no trabalho, possibilitando a escolha ou redirecionamento profissional, levando em consideração as reais necessidades do cargo que será ocupado e as potencialidades do trabalhador (Brito, 2009). Em revisão de literatura sobre OP de pessoas com deficiência, Ivatiuk e Yoshida (2010) relatam ter encontrado um número reduzido de artigos na área na década pesquisada, e que apenas dois eram específicos sobre indivíduos com DI. Na grande maioria dos artigos, as intervenções relatadas eram de cunho individual, realizadas em instituições especializadas e com pouca ênfase no processo para inserção e permanência desta população no mercado de trabalho.

Se a literatura não documenta (ou documenta pouco) ações de orientação específicas para pessoas com DI, será que, na prática, essas ações são desenvolvidas junto a trabalhadores com DI inseridos no mercado de trabalho? De que maneira esses trabalhadores têm sido preparados para o ingresso e permanência no trabalho? Existem poucos registros na literatura sobre a trajetória profissional de trabalhadores com DI e a relação que estabelecem com sua ocupação. A descrição das condições que cercam as histórias de pessoas com DI que trabalham, independente da função ocupada, pode fornecer dados importantes para o aperfeiçoamento das práticas já existentes, e para a construção de novas formas de intervir sobre a sociedade para melhorar as condições de vida e de trabalho dessa população. Por outro lado, o entendimento das dificuldades encontradas por essas pessoas também pode sugerir medidas mais efetivas na construção de novas formas de relação entre empregadores e funcionários com algum tipo de deficiência.

O objetivo deste estudo foi descrever a relação entre a trajetória escolar, de carreira e a concepção de deficiência de trabalhadores com DI inseridos no mercado formal de trabalho. Além disso, pretendeu-se discutir o papel que a OP pode ter no desenvolvimento desses indivíduos.

 

Método

Participantes

Participaram 20 adultos com diagnóstico de DI (nove homens e 11 mulheres), com idades entre 19 e 35 anos (Tabela 1). Todos eram funcionários de uma rede de supermercados de uma cidade do sul do Brasil, e foram contratados pela empresa em função do seu diagnóstico (para fins de cumprimento da Lei de Cotas).

A escolaridade dos participantes variou entre a 1ª série do ensino fundamental e ensino médio completo. A maioria frequentou escolas regulares e escolas especiais (n = 16); dois deles também frequentaram a Educação de Jovens e Adultos - EJA, e outros dois estudaram somente em escola especial. Quinze participantes relataram ser o seu primeiro emprego. Todos exerciam a função de empacotador, com exceção de um (repositor). O tempo de serviço na empresa variou entre seis meses e dez anos.

Instrumentos

Foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada (Manzini, 2003), composto de 22 perguntas abertas, sobre os seguintes temas: caracterização do respondente e de sua deficiência, trajetória escolar, interação com a empresa e o trabalho, formas de administrar a remuneração e perspectiva de futuro.

Procedimentos de coleta de dados

Após aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Positivo (Protocolo 019/2008) e pela empresa onde os dados foram colhidos, os participantes foram contatados individualmente. Todos os trabalhadores com DI que aceitaram participar da entrevista assinaram um termo de consentimento livre esclarecido. O documento foi lido para todos e foram respondidas dúvidas em relação ao seu conteúdo.

As entrevistas foram realizadas individualmente nas dependências da empresa, sendo gravadas em áudio para posterior transcrição e categorização das respostas. O tempo médio de duração de cada entrevista foi de uma hora. Após a análise dos dados, os principais resultados foram apresentados para representantes da empresa.

Análise dos dados

Foi realizada análise qualitativa dos dados obtidos por meio de Frameworks (Ritchie & Lewis, 2003). Foram construídos quadros de análise, levando em consideração as temáticas abordadas no roteiro de entrevista. Após transcrição das entrevistas, foi feita a leitura de todas as respostas dadas pelos participantes. As respostas foram agrupadas segundo suas temáticas nos quadros de análises previamente construídos: concepção de DI; trajetória escolar; trajetória profissional; e perspectivas futuras. Excertos das falas foram selecionados a fim de exemplificar tais categorias e complementar as descrições de cada temática abordada (Manzini, 2004). Nos excertos, os participantes são identificados por códigos, conforme a Tabela 1.

 

Resultados e Discussão

De modo geral, a caracterização dos participantes reflete o cenário de inserção de pessoas com DI no mercado de trabalho (Bezerra & Vieira, 2012; Garcia, 2014; Ribeiro, Batista, Prado, Vieira, & Carvalho, 2014): todos trabalhavam nas funções mais simples da empresa (empacotadores e repositor), o que significa, também, os menores salários, e, com exceção de um participante que tinha ensino médio, todos completaram apenas os primeiros anos do ensino fundamental. Também chama a atenção o fato de que todos passaram por instituições especiais, que por sua vez, foram os locais de encaminhamento desses indivíduos para o mercado formal de trabalho. A seguir, são relatados os resultados de acordo com as categorias temáticas identificadas nas narrativas dos entrevistados.

Concepção de DI

De modo geral, os participantes apresentaram descrições contraditórias sobre a DI e a própria condição. Ao mesmo tempo em que mais da metade dos respondentes classificaram a própria deficiência como sendo "leve", e outros tenham defendido a ideia de que, embora fossem deficientes, eram melhores que outros colegas com deficiência com quem conviveram, observa-se um tom pejorativo em referência à deficiência em si. As falas de P1 e P6 ilustram descrições positivas sobre si mesmos, especialmente em contraposição à DI de modo geral ou a outros colegas:

P1: É leve, é assim, que eu não sei ler, é só isso meu problema, é que eu não sei ler, mas deficiência assim normal não, eu sou bem.

P6: Não, lá eles encaminham só quem tem condições, entendeu? Entra naquela sala lá que faz atividade lá, tem que sê encaminhado no mercado de trabalho. Que nem, quem não pode, quem é especial mesmo não pode, fica lá, tem um lugar que é o TS, daí fica lá, pra sempre. (...) Nós não, daí nós tinha vindo normal, quem consegue mesmo, entendeu, fazê aquelas tarefa lá, tudo que é difícil, entendeu? Eles encaminham, só que é o cara mesmo, de tudo.

Importante esclarecer que a fala de P6 se referiu ao encaminhamento dos adultos com DI para o mercado de trabalho, realizado pela escola especial em que estudou. A utilização da expressão especial mesmo foi direcionada aos colegas da escola que não chegaram a ser encaminhados para empregos formais por terem um déficit cognitivo classificado como moderado ou severo. Ou seja, o fato de ter sido encaminhado ao mercado de trabalho revela que ele "é o cara", que conseguiu realizar tarefas difíceis (por isso é "leve"), em contraposição aos colegas que são "especiais mesmo", e que ficarão "para sempre" na escola especial. O mesmo ocorre com P1, para quem a sua deficiência não chega a ser uma "deficiência de verdade", por ser "leve". Dessa forma, ambos procuram se aproximar do padrão esperado de desempenho pela sociedade (Mendes, 2006), o que os afasta dos "deficientes" e produz uma concepção mais positiva de si mesmos.

Interessante notar que essa concepção geral negativa de deficiência (em contraposição à concepção positiva de si), vinda de alguém com diagnóstico de DI, reflete, além de uma concepção social ampla sobre a incapacidade gerada pela deficiência (Mazzotta, 2011), a experiência de ver colegas com maiores dificuldades para o desempenho de funções complexas e relegados a uma condição de dependência que os impossibilita de maior participação social e inserção no mercado competitivo. Essa mesma inserção, por sua vez, é vista de forma positiva por P6, como refletindo suas capacidades e sua possibilidade de independência. Noção semelhante foi encontrada em outros estudos com trabalhadores com deficiência inseridos no mercado formal (Lima, Tavares, Brito, & Cappelle, 2013; Ribeiro & Ribeiro, 2012): o trabalho significa mais que uma forma de sustento, mas uma forma de se sentir útil à sociedade, gerando um sentimento de realização e competência, em contraposição ao sentimento de incompetência gerado pelo estigma de "ser deficiente".

Por outro lado, alguns dos participantes pareceram se debater com o significado de "ser deficiente". Muitos não conseguiam identificar em si quaisquer características específicas que os colocasse sob o rótulo de deficiente intelectual. Essa dificuldade surgia a partir da observação de que, apesar de apresentarem um desempenho aquém do esperado no ambiente da escola regular ou do trabalho, no ambiente da escola especial percebiam-se como mais habilidosos que seus colegas diagnosticados como "moderados" e "severos". Sendo assim, muitos atribuíam a própria deficiência a algum problema físico:

P2: Não, só eu... ah, não sei te dizer, te explicar direitinho, só minha mãe que sabe, que eu tenho um ouvido meu que eu não escuto mais, entendeu, e escuto bem pouquinho em um lado só, entendeu.

P8: Pra mim eu tenho na perna esquerda, e na mão que não tenho movimento, ela não se movimenta.

P12: Só meu pé, porque meu pé é torto assim né, mas (...) fica reto, e na fala.

Da mesma forma, outros participantes atribuíram a própria deficiência a dificuldades encontradas no ambiente escolar regular, relacionadas principalmente à aprendizagem da leitura e da escrita. Algumas falas revelam esta interface entre a DI e a escola:

P1: É a dificuldade de aprender a ler, só isso de problema, de cabeça eu não tenho nada, sô são de tudo.

P11: Meu único problema mesmo é na escola, que eu tenho dificuldade em aprender.

P17: Eu... é... é problema pra ler (...). O colégio né, porque eu não ia pra frente... chegava na quarta e não ia, daí deu o problema.

Nestas falas é possível observar como a escola aparece como ambiente crucial para o diagnóstico daqueles que serão deficientes e aqueles que não serão, pois até o ingresso no ambiente escolar, não havia sido notada ou apontada qualquer diferença clara entre os participantes e seus pares na comunidade. A escola regular, no caso desses participantes, parece ter sido o ambiente crítico para a identificação da DI, diferente de outras deficiências em que características sensoriais ou motoras concretas estão presentes. A definição da AAIDD (Schalock et al., 2010) indica a dificuldade de aprendizagem como uma das características da DI, mas esta não se define exclusivamente por essa característica, principalmente porque as dificuldades escolares podem ser decorrentes de inúmeros fatores (Veltrone & Mendes, 2009). Nesse sentido, observa-se a coexistência de um autoconceito positivo nesses indivíduos, pelo fato de trabalharem, e de um autoconceito negativo, relacionado ao fracasso na escola regular. O papel da escola na vida desses participantes parece ter sido fundamental, e a trajetória escolar aparece com destaque nas suas narrativas.

Sobre a trajetória escolar

Foi possível observar entre os participantes uma relação negativa com a escola regular, sendo que alguns nem chegaram a frequentá-la, iniciando sua vida acadêmica na escola especial. Abaixo, segue um trecho da entrevista com P3, a respeito do início de sua vida escolar:

P3: Só fiz escola especial.

Pesquisadora: Só escola especial?

P3: Uhum.

Pesquisadora: Você nunca estudou em um colégio regular?

P3: Não.

Pesquisadora: E com quantos anos você começou na escola especial?

P3: Desde pequena, o pré foi na escola especial.

Pesquisadora: O pré você já fez na escola especial? Por que você foi direto para escola especial?

P3: Porque não conseguia acompanhar.

Pesquisadora: E como que eles sabiam que você não conseguia acompanhar?

P3: Não sei.

O ingresso na escola marca o confronto dessas pessoas com as diferenças e, consequentemente, com o rótulo de DI. O "não conseguir acompanhar" passa a fazer parte das suas rotinas, inclusive em relação ao seu desempenho no trabalho, como será descrito adiante. A maneira com a qual o aluno com DI se relaciona com as exigências do ambiente escolar, no desempenho de suas atividades ou na realização de condutas de rotina, por exemplo, permeiam seu funcionamento adaptativo. Nestes alunos, observa-se a ocorrência de prejuízos no funcionamento adaptativo que podem ser decorrentes de falta de oportunidades de aprendizagens, atividades desestimulantes ou ambiente educacional empobrecido (Gonçalves & Machado, 2012). Os relatos a seguir reproduzem histórias extensamente documentadas na literatura.

P2: (...) daí eu comecei ir frequentar um colégio lá, daí de lá do colégio eu não conseguia, assim, aprender junto com os alunos né, daí a professora puxava a orelha da gente, né, passava mais exercício pra gente, né, que a gente não sabia, não sabia né, daí no começo do meio eu não fui mais, daí quando eu tava, quando minha mãe me levava eu pro colégio eu voltava, eu voltava pra casa e esperava minha mãe sair pra fugir do colégio, né.

P3: Tem que saber acompanhar, né? Eu sou muito devagar para escrever.

P8. Eu tenho dificuldades na aprendizagem, eu não pego que nem os outros alunos.

P12: É por causa que eu não acompanhava os aluno da outra sala.

P18: Sempre atrasado sabe, daí eles eram mais adiantado que eu.

Diante das dificuldades de desempenho, a escola se torna um ambiente propício ao fracasso, permitindo, inclusive, práticas abusivas, como as relatadas por P2. A impossibilidade de lidar com as diferenças faz com que a escola regular encontre, como única alternativa, o encaminhamento destes alunos para escolas que tenham salas de recurso para atendimento educacional especializado ou centros de educação especial (Veltrone & Mendes, 2009). Esse encaminhamento, então, define a condição dos indivíduos; sua dificuldade é transformada em deficiência, o que marca sua trajetória escolar. Os participantes P2, P8, P14 e P17 relatam o surgimento das dificuldades nos primeiros anos escolares, desde frequentar a sala de recursos, até a transferência para a escola especializada.

P2: Daí eles chamaram minha mãe lá e falaram que era pra minha mãe achar um colégio especial pra mim, né.

P8: (...) daí eu reprovei na 1° e viram que eu não tinha condições de continuar, daí me encaminharam para uma outra escola que tinha classe [especial].

P14: É que daí chamaram minha mãe lá dizendo que eu não acompanhava eles lá, daí que tinha que achar uma escola especial pra mim.

P17: Eu fui na classe especial com 7 anos pra estudar, o colégio achava que precisava.

A despeito da legislação brasileira prever que a educação é direito de todos e que o atendimento de crianças e jovens com deficiência deve ocorrer preferencialmente no ambiente regular de ensino, não foi essa a realidade vivida pelos participantes. Segundo Mendes (2006), o modelo que previa a inserção de crianças com deficiência na classe comum nunca chegou de fato a ser implementado no Brasil, visto que ainda hoje os recursos predominantes são as salas de recurso nas escolas públicas e as escolas especiais, a maioria de caráter filantrópico ou privado.

Qual a implicação disso para a inserção social de pessoas com DI? Dois pontos cruciais estão envolvidos. O primeiro deles é a escolarização. Inúmeras pesquisas (e.g., Bezerra & Vieira, 2012; Garcia, 2014; Tanaka & Manzini, 2005) apontam claramente a baixa (ou ausente) escolarização como uma das barreiras mais importantes para o ingresso de pessoas com DI no mercado de trabalho. O segundo ponto é a importância da escola como local onde a pessoas com DI podem ter oportunidades de expandir suas habilidades e explorar opções de carreira, de forma a se tornarem capazes de fazer escolhas profissionais e construírem projetos de futuro (Lindstrom et al., 2008). Entre as práticas consideradas eficientes para uma transição bem-sucedida de indivíduos com deficiência para a vida adulta e a inserção social, estão a escolarização, experiências que preparem o jovem para o emprego, incluindo OP e experiências no mundo do trabalho, e educação formal em ambiente escolar inclusivo, junto com pares sem deficiência (Papay & Bambara, 2014). Essas práticas estão estreitamente ligadas ao ambiente escolar regular, e se indivíduos com DI são excluídos desse ambiente, algumas oportunidades importantes deixam de ser vivenciadas. Mesmo nas escolas especiais que têm como objetivo preparar pessoas com deficiência para a inserção no trabalho, muitas dificuldades são encontradas para tal, que vão desde a oferta de qualificação diferente daquela exigida pelo mercado de trabalho (Araújo & Schmidt, 2006; Mendes, 2010), passando por problemas estruturais e financeiros que dificultam a oferta de serviços adequados (Mendes, Nunes, Ferreira, & Silveira, 2004). Passerino e Pereira (2014) destacam, ainda, que a prática comum de ensinar atividades de artesanato ou outras atividades simplificadas para pessoas com deficiência contribui para a manutenção do estigma da incapacidade produtiva desses indivíduos, afastando-os ainda mais de uma inserção plena na sociedade.

Sobre a trajetória profissional

Os participantes, assim como os demais funcionários, não possuíam um plano de carreira estabelecido pela empresa. Além disso, a função desempenhada era muito simples e não havia perspectiva de mudança, nem por parte da empresa, nem por parte do trabalhador. Diante da pergunta "Você pensa em ter outra profissão ou trabalhar em outra empresa?", as respostas de P1, P13 e P19 ilustram esse ponto:

P1: Sei lá, eu penso, só que é complicado também.

P13: Além de ser pacoteira? Não, queria ser só pacoteira mesmo... em outras seções, assim, não queria, muito difícil.

P19: Ah, não, esse aí tá bem.

A empresa contratante informou que havia a possibilidade de promoção para os funcionários com DI (passar de empacotador a repositor, função com melhor remuneração e de maior responsabilidade). Porém, apenas um entrevistado informou estar na função de repositor, o que pode indicar que, ou esses trabalhadores não percebiam a mudança de função como algo positivo (ou possível), ou se habituaram às tarefas desempenhadas, fazendo apenas aquilo que lhes parecia simples e o que lhes era solicitado. Para 15 dos 20 entrevistados aquele era o primeiro emprego, indicando que a experiência profissional da maioria dos participantes era bastante limitada. Além disso, a escola especial que frequentavam era um ambiente protegido, no qual não podiam explorar diferentes possibilidades profissionais. A ausência de um trabalho direcionado ao preparo desses indivíduos para o desenvolvimento de uma carreira profissional, tanto na instituição especializada, quanto na própria empresa (Ribeiro & Ribeiro, 2012), pode tê-los impedido de desenvolver noções claras sobre suas potencialidades e sobre como superar suas dificuldades no ambiente laboral "real", com vistas à melhoria nas condições de trabalho. Sinal disso pode ser verificado nas afirmações de alguns participantes sobre o medo de enfrentar situações novas e desempenhar novas funções, por não acreditarem que seriam capazes de um desempenho satisfatório:

P1: Pra mim é pacote porque se eu for fazer outra atividade eu não tenho estudo, tenho medo de fazer, né? É pacote, puxar carrinho e se o negócio é básico, o que eu sei fazer é isso, se for pegar um negócio ai não vou saber fazer, pra mim tem que ser pacote mesmo.

P9: (...) só não faço entrega, porque tem que ter um junto comigo, senão me perco.

É interessante observar que P9 afirma não fazer entregas domiciliares de compras do supermercado, que são realizadas apenas nas redondezas do mercado, porque "pode se perder". Porém, todos os dias, ela vai e volta do trabalho sozinha, de transporte público, e não se perde. A falta de credibilidade que as pessoas com deficiência têm sobre si é construída socialmente (Mendes, 2010), e a desconstrução dessas crenças demanda um trabalho dirigido, que as ajude a reconhecer em si as condições necessárias para assumir uma vida independente. As falas de P1 e de P9 provavelmente retratam a opinião das pessoas que fazem parte do seu cotidiano, mas que foi incorporada ao próprio discurso porque se alinha à concepção que eles faziam de si mesmos: pessoas "lentas", com dificuldades de "acompanhar" os demais, de aprender, enfim, de se desenvolver. Essa crença sobre sua incapacidade possivelmente interfere de forma negativa no desenvolvimento de planos de mudança de emprego ou de função: os poucos participantes que manifestaram o desejo de deixar de ser empacotadores não se imaginavam em qualquer outra função fora da empresa em que trabalhavam, pois pensavam não ter habilidades suficientes, principalmente no que se refere à agilidade - o que apareceu como a maior dificuldade relacionada ao trabalho relatada pelos participantes, como exemplificado pelas falas a seguir:

P3: Eu demoro muito para fazer as coisas, tem vez que eu me bato muito (...) tem que ser rápido e eu não consigo ser rápida, me dá medo de quebrar, né?

P10: É você ser muito rápido, porque fica tudo muito perto, assim, das coisas, porque não consigo fazer muito, se fica muito nervosa, assim brava, eu demoro mais. Daí eu gosto de fazer bem calma, degavarmente, daí a R vai me ajudando, empacotando.

P12: É muito rápido, não consigo ir rápido assim.

O desconhecimento do próprio potencial e a falta de confiança nas próprias habilidades também aparece em questões relacionadas à vida prática, como o gerenciamento da própria vida financeira. Apenas sete entrevistados cuidavam da própria remuneração, enquanto 13 delegavam esta função a parentes próximos. Essa delegação da administração do dinheiro para parentes "mais capazes", revela, por um lado, a falta de confiança que a família tem nas pessoas com DI e, por outro, a falta de confiança que elas depositam em si mesmas. A crença de que a pessoa com DI não é capaz de realizar atividades, ou mesmo administrar o próprio dinheiro, faz com que estes indivíduos permaneçam dependentes, e as pessoas próximas a eles mantêm essa dependência por motivos variados. O diálogo entre P1 e a pesquisadora, e a fala de P10, ilustram este ponto.

P1: Ah quem cuida do meu dinheiro é o cara que tá comigo e o JM (...) Só que era bom ficar comigo o cartão também né? Mas ele não deixa, né? Não sei porquê. Que daí nós ia lá no banco e eu tirava pra mim mesmo, né?

Pesquisadora: E o que você faz com seu dinheiro?

P1: Na verdade eu não faço nada, ele compra os negócios pra mim.

P10: É a minha mãe, que ela me ajuda, porque eu tenho medo de ir pro centro, alguém que pega o dinheiro, né. Daí ela cuida pra mim.

A concepção difundida de que pessoas com DI são "eternas crianças" desqualifica esses indivíduos para uma vida autônoma e responsável (Dias & Lopes de Oliveira, 2013). Com isso, tanto as próprias pessoas com diagnóstico de DI são levadas a acreditar em sua incapacidade (inclusive de aprender a administrar sua vida), como aqueles que as cercam, que assumem esse papel e impedem o desenvolvimento dessa autonomia. Isso cria uma situação paradoxal: ao mesmo tempo em que o indivíduo é capaz de trabalhar e de conseguir seu sustento (assumindo um papel independente), é incapaz para administrar os resultados de seu trabalho (assumindo, então, um papel dependente). Essa dificuldade em assumir o papel de adulto autônomo revela uma concepção historicamente construída pelos discursos sociais (da sociedade, da escola, da família) e que se refletem na forma como o próprio indivíduo se vê e se descreve (Passerino & Pereira, 2014).

Nesse sentido, a família pode desempenhar um papel importante no sucesso da inserção social, de forma ampla, e laboral, de forma específica, de indivíduos com DI: altas expectativas de empregabilidade dos filhos com DI, assim como envolvimento dos pais com o planejamento da transição da escola para o mercado de trabalho são preditores importantes da inserção e da permanência desses indivíduos no emprego, assim como de qualidade de vida (Papay & Bambara, 2014). Quando foi perguntado aos participantes da pesquisa se a família os ajudou na busca deste emprego, alguns relataram o modo como a família reagiu quando soube que iriam ser empregados. Apesar de felizes pela conquista, aparentemente os familiares não tiveram participação ativa na busca da colocação, mas parecem incentivar a permanência dos filhos no emprego. Os relatos de P10 e P11 exemplificam esse ponto:

P10: (...) quando eu fiz treinamento, eu fui fazer lá no [local], sabe? Daí que eu falei pra minha mãe: "Mãe, um dia eu vou trabalhar. Um dia eu vou trabalhar, você vai ver." O dia que eu fui lá, passei na experiência, "mãe, vou trabalhar", minha mãe ficou feliz. Minha mãe me ajudou. Se eu penso em sair ela fica braba, ela não quer que eu saia daqui.

P11: É que ele [P11 se referia ao pai neste momento] pensou que, tipo assim, com a minha escolaridade, ele pensou que eu ia ser uma zeladora, assim, que não ia mexer com pessoas assim, sabe? (...) Mas como eu vim parar no mercado, ele gostou bastante. Sempre ele fala "Ai minha filha que benção que você tá lá", não sei o que, sabe? Ele gosta. Eu também gosto bastante daqui.

Nas falas desses participantes observa-se o papel positivo da família, que pode desempenhar um papel expressivo, tanto na conquista de independência social, quanto na manutenção de uma participação social mais ativa por parte da pessoa com DI.

Sobre perspectivas futuras

Quando questionados sobre como se veem no futuro, muitos demonstraram dificuldade para responder a esta questão. A maioria dos participantes mostrou ausência de perspectiva de mudança e mesmo de planejamento para o futuro. Isso pode ser observado nas falas a seguir:

P2: Ah lá se aposentando, só vou rezar.

P7: Muito velho.

P17: Ah, daí vão falar que eu tô velho (risos) ... ah, eu vou tá com mais cargo né.. eu vou tá...quantos anos de cargo daí eu vou ter?

Mas, foram encontradas, também, falas otimistas, de desenvolvimento e inserção social. Aqueles que tiveram mais facilidade em responder à questão falaram principalmente em constituir família, morar sozinhos e serem bem-sucedidos, o que pode ser considerado como uma perspectiva positiva de futuro:

P6: Daqui uns anos é morar sozinho, né? Assim, sem dependê mais.

P8: Uma pessoa muito importante que conseguiu batalhar né, conseguiu o que tem hoje.

P9: (...) minha casinha, eu, meu marido, o meu sonho é morar sozinha e ter minhas coisas.

P11: Ah, casada com filho.

P18: Eu imagino sim... trabalhando, abrindo meu próprio negócio.

Para esses participantes, talvez fosse muito importante a oportunidade de discutir ações concretas para a efetivação desses desejos, espaço inexistente em suas vidas naquele momento. Outros, no entanto, revelaram a ideia de serem incapazes de cuidar de si mesmos, inclusive no futuro, refletindo mais uma vez uma concepção de incapacidade e dependência:

P20: Daqui uns anos? (silêncio) Bom, que eu morar com a minha mãe e meu pai, eu vou ter que morar né, tem que ter uma estrutura, eu não posso ter uma casa sozinho, pra morar sozinho.

Pesquisadora: Por que não?

P20: Porque não, tem que ter uma estrutura... eu gosto de trabalhar aqui... mas pra morar sozinho, tem que ter um monte de coisa, eu não sei cozinhar.

Pesquisadora: Mas você me disse que aprendeu a cozinhar na *[nome da escola especial].

P20: Eu cozinhei lá, mas você pegando ali, os professores ali, mas você pegar sozinho daí...

Para esses participantes, o futuro parece estar intrinsecamente relacionado à dependência de cuidadores e à impossibilidade de se manter de forma autônoma. A falta de perspectivas de mudança aparece insistentemente nas suas falas, revelando uma interface entre o ambiente no qual estão inseridos e a longa construção que fizeram sobre si mesmos: o que são e o que (não) poderão vir a ser.

O cenário verificado nos relatos deste estudo reproduz, em muitos pontos, a maneira como a sociedade ainda constrói e mantém concepções negativas, deterministas e restritivas sobre a deficiência em geral, e a DI de modo particular (Dias & Lopes de Oliveira, 2013). No entanto, para que a pessoa com deficiência possa, de fato, ter assegurado seu direto à independência, à liberdade de fazer as próprias encolhas, à igualdade de oportunidades e à plena e efetiva participação e inclusão na sociedade, como assegurado pela legislação brasileira (Brasil, 2009), é preciso trilhar um caminho ainda muito longo. A discussão sobre inclusão escolar para pessoas com DI vem de longa data no país, mas a discussão sobre ações que favoreçam a transição de jovens com DI para a vida adulta é ainda incipiente.

O desenvolvimento de ações nesse sentido para esses jovens pode ocorrer por meio de intervenções em OP que sejam adequadas às suas necessidades específicas desses jovens (Ivatiuk & Yoshida, 2010), o que ainda não ocorre de forma disseminada. É sabido que a área de OP desenvolveu-se no Brasil voltada principalmente para os adolescentes que queriam ingressar no ensino superior (Lassance, Melo-Silva, Bardagi, & Paradiso, 2007). A diversificação desse foco para outras populações tem ocorrido de forma tímida (Brito, 2009; Ivatiuk & Yoshida, 2010; Ribeiro, 2009), mas parece ser uma contribuição importante para garantir, especialmente às pessoas com DI, a construção de oportunidades para alcançar autonomia e o exercício da cidadania (Lindstrom et al., 2008).

 

Considerações finais

Este estudo apresentou as narrativas de trabalhadores com DI sobre sua trajetória escolar e profissional. A situação descrita por esses participantes não difere da situação de outros trabalhadores com DI, relatada na literatura consultada: escolaridade reduzida, execução de atividades bastante simplificadas e com baixa remuneração. Apesar de o trabalho ser encarado por eles de forma positiva, como inserção produtiva na sociedade e independência financeira, persistem várias concepções negativas sobre suas capacidades e sobre sua possibilidade real de manter uma vida independente da família, ou de ascender profissionalmente, dentro ou fora da empresa. A situação retraada mostra a necessidade de ações voltadas para pessoas com DI no seu processo de transição para o trabalho, de forma a lhes garantir condições de participação social efetiva.

Os resultados aqui apresentados, no entanto, referem-se a uma realidade bastante específica: trabalhadores com DI de uma única empresa, que desempenhavam uma única função que, apesar de comum para pessoas com diagnóstico de DI, não reflete todas as possíveis ocupações que essas pessoas desempenham em outras instituições. A especificidade dos dados aqui apresentados são, pois, uma limitação deste estudo. Outra limitação refere-se ao fato das entrevistas terem sido conduzidas no ambiente de trabalho dos participantes, o que pode ter influenciado suas respostas em alguma medida. Recomenda-se que outras pesquisas sejam realizadas com grupos de trabalhadores com DI que desempenhem outras funções para se verificar a eventual generalidade dos dados aqui apresentados. Além disso, parece fundamental o desenvolvimento de estratégias de orientação profissional e de carreira para essa população, com vistas a contribuir de forma efetiva para sua inserção no mercado de trabalho. As informações aqui discutidas e outras produzidas em estudos futuros poderão ajudar profissionais a concretizar ações que propiciem condições de aprendizagem e desenvolvimento para que as pessoas com DI possam demonstrar seu potencial e desfrutar do seu direito à cidadania plena.

 

Referências

Araújo, J. P., & Schmidt, A. (2006). A inclusão de pessoas com necessidades especiais no trabalho: a visão de empresas e de instituições educacionais especiais na cidade de Curitiba. Revista Brasileira de Educação Especial, 12, 241-254. doi:10.1590/S1413-65382006000200007        [ Links ]

Bezerra, S. S., & Vieira, M. M. F. (2012). Pessoa com deficiência intelectual: a nova "ralé" das organizações do trabalho. RAE, 52, 232-244. doi:10.1590/S0034-75902012000200009        [ Links ]

Brasil. (1989). Lei n. 7853 de 24 de outubro de 1989. Brasília, DF. Recuperado de http://www10.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1989/7853.htm.         [ Links ]

Brasil. (1991). Lei n. 8.213 de 24 de julho de 1991. Brasília, DF. Recuperado de http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1991/8213.htm.         [ Links ]

Brasil. (2009). Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Brasília, DF. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm.         [ Links ]

Brito, D. C. S. (2009). A orientação profissional como instrumento reabilitador de pacientes portadores de doenças crônicas e deficiências adquiridas. Psicologia em Revista, 15, 106-119.         [ Links ]

Dias, S. S., & Lopes de Oliveira, M. C. S. (2013). Deficiência intelectual na perspectiva histórico-cultural: Contribuições ao estudo do desenvolvimento adulto. Revista Brasileira de Educação Especial, 19, 169-182. doi:10.1590/S1413-65382013000200003        [ Links ]

Garcia, V. G. (2014). Panorama da inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho no Brasil. Trabalho, Educação e Saúde, 12, 165-187. doi:10.1590/S1981-77462014000100010        [ Links ]

Gonçalves, A., & Machado, A. C. (2012). A importância das causas na deficiência intelectual para o entendimento das dificuldades escolares. In M. A. Almeida (Ed.), Deficiência intelectual: realidade e ação (pp. 65-83). São Paulo: Secretaria da Educação, Núcleo de Apoio Pedagógico Especializado - CAPE.         [ Links ]

Ivatiuk, A. L., & Yoshida, E. M. P. (2010). Orientação profissional de pessoas com deficiências: Revisão de literatura (2000-2009). Revista Brasileira de Orientação Profissional, 11, 95-106.         [ Links ]

Lassance, M. C. P., Melo-Silva, L. L., Bardagi, M. P., & Paradiso, A. C. (2007). Competências do orientador profissional: uma proposta brasileira com vistas à formação e certificação. Revista Brasileira de Orientação Profissional, 8, 87-94.         [ Links ]

Lima, M. P., Tavares, N. V., Brito, M. J., & Cappelle, M. C. A. (2013). O sentido do trabalho para pessoas com deficiência. Revista de Administração Mackenzie, 14, 42-68. doi:10.1590/S1678-69712013000200003        [ Links ]

Lindstrom, L., Johnson, P., Doren, B., Zane, C., Post, C., & Harley, E. (2008). Building opportunities for young women with disabilities. Teaching Exceptional Children, 40(4), 66-71.         [ Links ]

Manzini, E. J. (2003). Considerações sobre a elaboração de roteiro para entrevista semi-estruturada. In M. C. Marquezine, M. A. Almeida, & S. Omote (Eds.), Colóquios sobre pesquisa em Educação Especial (pp. 11-25). Londrina: Eduel.         [ Links ]

Manzini, E. J. (2004). Entrevista semi-estruturada: análise de objetivos e de roteiros. Trabalho apresentado no Seminário Internacional sobre Pesquisa e Estudos Qualitativos, São Paulo, Bauru.         [ Links ]

Mazzotta, M. J. S. (2005). Educação especial no Brasil: história e políticas públicas. São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Mazzotta, M. J. S. (2011). Inclusão social de pessoas com deficiências e necessidades especiais: cultura, educação e lazer. Saúde e Sociedade, 20, 377-389. doi:10.1590/S0104-12902011000200010        [ Links ]

Mendes, E. G. (2006). A radicalização do debate sobre inclusão escolar no Brasil. Revista Brasileira de Educação, 11(33), 387-405.         [ Links ]

Mendes, E. G. (2010). Breve histórico da Educação Especial no Brasil. Revista Educación y Pedagogía, 22(57), 93-109.         [ Links ]

Mendes, E. G., Nunes, L. R. D. P., Ferreira, J. R., & Silveira, L. C. (2004). Estado da arte das pesquisas sobre profissionalização do portador de deficiência. Temas em Psicologia, 12, 105-118.         [ Links ]

Oliveira, L. M. B. (2012). Cartilha do censo 2010. Brasília: SDH-PR/SNPD.         [ Links ]

Oliveira, M. A., Goulart Jr., E., & Fernandes, J. M. (2009). Pessoas com deficiência no mercado de trabalho: considerações sobre políticas públicas nos Estados Unidos, União Europeia e Brasil. Revista Brasileira de Educação Especial, 15, 219-232.         [ Links ]

Papay, C. K., & Bambara, L. M. (2014). Best practices in transition to adult life for youth with intellectual disabilities. Career Development and Transition for Exceptional Individuals, 37(3), 136-148. doi:10.1177/2165143413486693        [ Links ]

Passerino, L. M., & Pereira, A. C. C. (2014). Educação, inclusão e trabalho: um debate necessário. Educação & Realidade, 39, 831-846.         [ Links ]

Pessotti, I. (2012). Deficiência mental: da superstição à ciência. Marília: ABPEE.         [ Links ]

RAIS. (2013). Relação Anual de Informações Sociais do Ministério do Trabalho. Recuperado de http://portal.mte.gov.br/portal-mte/rais/#2.         [ Links ]

Ribeiro, M. A. (2009). O dispositivo grupal como estratégia de orientação profissional para pessoas em situação psicótica. Vínculo, 6, 53-64.         [ Links ]

Ribeiro, A. P., Batista, D. F., Prado, J. M., Vieira, K. E., & Carvalho, R. L. (2014). Cenário da inserção de pessoas com deficiência no mercado de trabalho: revisão sistemática. Revista da Universidade Vale do Rio Verde, 12, 268-276. doi: doi:10.5892/ruvrd.v12i2.1441        [ Links ]

Ribeiro, M. A., & Ribeiro, F. (2012). O desenvolvimento da carreira de pessoas com deficiência em empresas: dificuldades e perspectivas. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 5(1), 127-145.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Andréia Schmidt
Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre
14040-901, Ribeirão Preto-SP
Fone: 16 3315 3742
Fax: 16 3633 5015
E-mail: aschmidt@ffclrp.usp.br

Recebido 26/01/2015
1ª Revisão 05/06/2015
Aceite Final 08/06/2015

Creative Commons License